124
1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA 2015

O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

  • Upload
    lediep

  • View
    228

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

1

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI

IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA

2015

Page 2: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

2

O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI

IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-

Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal

do Rio de Janeiro, para obtenção do título de Doutor em

Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos; opção:

Literatura Italiana).

Orientadora: Profa. Dra. Maria Lizete dos Santos

Rio de Janeiro Junho 2015

Page 3: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

3

FICHA CATALOGRÁFICA

Costa, Izabel Cristina Cordeiro Lima.

O tempo na narrativa de Dino Buzzati / Izabel Cristina Cordeiro Lima Costa. –

Rio de Janeiro: UFRJ/FL, 2015.

124f. : 30 cm

Orientadora: Maria Lizete dos Santos

Tese (Doutorado) – Faculdade de Letras, Departamento de Letras Neolatinas,

Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2015.

Referências Bibliográficas: f. 120-124.

1. Buzzati, Dino. 2. Narrativa italiana Séc. XX. 3. Conto. 4.Tempo. 5. Sessanta

racconti. 6. In quel preciso momento. Santos, Maria Lizete dos. II. Universidade

Federal do Rio de Janeiro. III. O tempo na narrativa de Dino Buzzati.

Page 4: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

4

O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI

Izabel Cristina Cordeiro Lima Costa

Orientadora: Professora Doutora Maria Lizete dos Santos

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras

Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos

requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas

(Estudos Literários Neolatinos; opção: Literatura Italiana).

Examinada por: ______________________________________________________________ Presidente, Professora Doutora Maria Lizete dos Santos - FL/UFRJ _______________________________________________________________ Professor Doutor Alcebíades Martins Arêas - UERJ _______________________________________________________________ Professora Doutora Marinês Lima Cardoso - UERJ

Professor Doutor Rossana Cavalieri Falcão - CNEN/UFRJ

Professora Doutora Sonia Cristina Reis - FL/UFRJ

Professora Doutora Geysa Silva - UFJF _______________________________________________________________ Professor Doutor Flavio García Queiroz de Melo - UERJ

Rio de Janeiro Junho de 2015

Page 5: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

5

RESUMO

O tempo na narrativa de Dino Buzzati

Izabel Cristina Cordeiro Lima Costa

Orientadora: Professora Doutora Maria Lizete dos Santos

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em

Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos

requisitos necessários à obtenção do titulo de Doutor em Letras Neolatinas

(Estudos Literários; opção: Literatura Italiana).

Esta tese analisa as estratégias utilizadas por Dino Buzzati (San Pellegrino,

1906 - Milão, 1972) em sua produção poética - especificamente, o gênero

conto - para a construção da categoria tempo com vistas a abordar a sua

irreversibilidade sob o ponto de vista ora da personagem, ora do narrador,

causando uma aparente irrelevância das outras duas categorias fundamentais

da narrativa: espaço e personagem. Dão suporte a este trabalho,

principalmente, os pressupostos teóricos de Gérard Genette em Discurso da

narrativa (1972), Confissões (2004) de Santo Agostinho e vários estudos que

tratam do tempo na narrativa, dentre os quais se destaca Paul Ricoeur e seu

Tempo e narrativa (2010) tomos I, II e III.

Palavras-chave: Dino Buzzati, Narrativa Italiana Séc. XX, Conto, Tempo,

Sessanta racconti, In quel preciso momento.

Rio de Janeiro Junho de 2015

Page 6: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

6

RIASSUNTO

Il tempo nella narrativa di Dino Buzzati

Izabel Cristina Cordeiro Lima Costa

Relatrice: Professoressa Dottoressa Maria Lizete dos Santos

Riassunto della Tesina di Dottorato presentata nell’ambito del Programma di

Post laurea in Lettere Neolatine presso l’Università Federale di Rio de Janeiro,

per acquisire il titolo di Dottore in Lettere Neolatine (Studi Letterari- opzione:

Letteratura Italiana).

Questa tesina analizza le strategie utilizzate da Dino Buzzati (San Pellegrino,

1906 - Milano, 1972) nella sua produzione poetica – e specificamente, il genere

racconto – per la costruzione della categoria tempo con vista alla sua

irreversibilità sotto punto di vista ora dal personaggio, ora del narratore,

causando un’apparente non pertinenza dalle altre due categorie fondamentali

dalla narrativa: spazio e personaggio. Daranno supporto a questo lavoro,

principalmente, i pressuposti teorici di Gérard Genette in il “Discurso da

narrativa” (1972), “Confissões” (2004) di Sant’ Agostino e vari studi che trattano

del tempo nella narrativa, tra i quali si mette in evidenza Paul Ricoeur e la sua

opera “Tempo e Narrativa” (2010) tomi I, II e III.

Parole-chiave: Dino Buzzati, Narrativa Italiana Sec. XX, Racconto, Tempo,

Sessanta racconti, In quel preciso momento.

Rio de Janeiro Giugno 2015

Page 7: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

7

ABSTRACT

Time on Dino Buzzati’s narrative

Izabel Cristina Cordeiro Lima Costa

Advisor: Professor Maria Lizete dos Santos

Abstract of the PhD thesis submitted to Rio de Janeiro Federal University’s Neo

Latin Literature Postgraduate Program, as a partial requisite necessary to

obtain the title of PhD in Neo Latin Literature (Literary Studies; option: Italian

Literature).

This thesis analyzes the narrative strategies employed by Dino Buzzati (San

Pellegrino, 1906 – Milão, 1972) in his poetry production – specifically the genre

of tales – in order to set up the time category and so approach its irreversibility

either under the character’s perspective or under the narrator’s, inducing an

apparent irrelevance of the narrative’s two other fundamental categories: space

and character. To support this work, we have, mainly, the theoretical

presuppositions of Gérard Genette’s Narrative Discourse (1972), Confessions

(2004), by Saint Augustine and many other studies on time in the narrative,

among which we can highlight Paul Ricoeur’s Time and Narrative (2010),

volumes 1, 2 and 3.

Keywords: Dino Buzzati, Italian Narrative from the 20th Century, Tale, Time,

Sessanta racconti, In quel preciso momento.

Rio de Janeiro Junho de 2015

Page 8: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

8

AGRADECIMENTOS

Muitas foram as dificuldades enfrentadas, dentro e fora da universidade, ao

longo destes quatro anos de pesquisa, mas muito maior que elas foi o amparo

que sempre recebi de amigos queridos e sempre prontos para me defender e

auxiliar em toda e qualquer situação.

Minha jornada acadêmica teria sido bem difícil sem a presença acolhedora de

Andrea Cabral, César Casimiro e Luciana Nascimento, que sempre puseram

em prática o verdadeiro significado da frase “um por todos e todos por um”.

Na impossibilidade de nominar todas as valorosas pessoas que participaram

deste sonho comigo, sei que todos os envolvidos, direta ou indiretamente,

encontrarão seu reflexo nestas linhas de gratidão.

Agradeço à Professora Doutora Maria Lizete dos Santos, por sua dedicação e

esmero em me ajudar com suas sábias orientações ao longo dos últimos sete

anos, me corrigindo e auxiliando com a paciência de uma verdadeira mãe

acadêmica. Obrigada por cada puxão de orelha!

À CAPES pela bolsa que financiou parte de nossa pesquisa.

A todos os professores com os quais tive a oportunidade de ampliar meus

horizontes assistindo suas enriquecedoras aulas desde a graduação.

Aos professores doutores Alcebíades Martins Arêas, Marinês Lima Cardoso,

Rossana Cavalieri Falcão e Sonia Cristina Reis, pela generosa leitura desta

tese.

Aos funcionários da Pós-Graduação e à secretária do Departamento de

Neolatinas da Faculdade de Letras, Maria Denise Genovese, in memoriam.

Aos meus familiares e amigos que compreenderam os motivos de minha

ausência temporária.

Aos meus filhos Vittor e Vittoria que, do alto de seus seis anos de vida,

conseguiram entender os motivos pelos quais a mamãe nem sempre pode

brincar com eles.

A todos vocês, por tudo isso e muito mais, o meu sincero e eterno

agradecimento.

Page 9: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

9

Dedico esta tese ao meu marido, Gerson Costa, por sua generosidade infinita e

sua amorável dedicação ao trilhar este caminho junto a mim.

Page 10: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

10

O tempo é um tecido invisível em que se pode bordar

tudo, uma flor, um pássaro, uma dama, um castelo, um

túmulo. Também se pode bordar nada. Nada em cima de

invisível é a mais sutil obra deste mundo, e acaso do

outro.

Machado de Assis.1

1 MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 52.

Page 11: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

11

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO, p. 12

CAPÍTULO I

DINO BUZZATI, NO TEMPO, p. 14

1.1- Buzzati, autor de múltiplas estéticas, p. 14

1.2- Reflexionando a respeito do tempo, p. 19

1.2.1- O tempo em Confissões, p. 20

1.2.2- O tempo e os físicos, p. 27

1.3- O conto em foco, p. 31

1.4- Tempo, tempo, tempo, p. 37

1.5- Um elo em várias correntes, p. 42

CAPÍTULO II

TEMPO, MEMÓRIA, INESPERADO, p. 51

2.1- Naquele exato momento: contos mínimos, p. 56

2.2- Sessanta racconti: em busca de um tempo perdido, p. 68

2.3- Fantástico, Mágico ou Inesperado?, p. 77

2.3.1- Uma gota de medo, p. 83

2.3.2- Um paletó enfeitiçado, p. 85

2.3.3- Caçadores de tempo perdido, p. 92

2.3.4- Contestação global contra a "terrível senhora", p. 96

2.3.5- No médico: o morto em vida, p. 99

2.3.6- "Solidão" e seus integrantes, p. 103

CONSIDERAÇÕES FINAIS, p. 117

REFERÊNCIAS, p. 120

ANEXOS

Page 12: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

12

INTRODUÇÃO

Nosso interesse pela obra de Dino Buzzati foi despertado quando

estávamos no curso de especialização em língua e literatura italiana oferecido

pela Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro e tivemos

a oportunidade de nos aproximar da obra desse multifacetado autor e

conhecer, especialmente, alguns dos seus contos que abordam a questão

medo/morte.

Mais tarde, já completamente enredados pela trama narrativa de Dino

Buzzati, decidimos investigá-la mais profundamente, e, em nosso mestrado,

também realizado na mesma Faculdade de Letras, nos dedicamos ao estudo

do tempo, do medo e da morte na produção poética do nosso autor. Esse

estudo teve vários desdobramentos, que se materializaram na pesquisa cujos

resultados apresentamos nesta tese, que objetiva, principalmente, analisar as

estratégias narrativas utilizadas por Dino Buzzati na construção da categoria

tempo para abordar a sua irreversibilidade sob o ponto de vista ora da

personagem, ora do narrador, causando uma aparente irrelevância das outras

categorias do discurso narrativo.

O tempo e o espaço estão intimamente ligados (cronotopo) em alguns

contos de Dino Buzzati, mas não na maioria deles, nos quais o tempo descrito

pelo narrador/personagem está, aparentemente, dissociado do elemento

espaço. Nos contos em que se observa essa pseudodissociação

tempo/espaço, o ponto de vista da personagem em relação ao tempo se

mantém o mesmo, mas verifica-se uma ampliação, um engrandecimento da

categoria tempo dentro da narrativa, toldando as demais categorias.

Nossa hipótese é, então, que a categoria tempo assume uma posição de

destaque na narrativa de Dino Buzzati, minimizando a presença das categorias

personagem e espaço como procuraremos demonstrar no corpus selecionado.

Assim, a partir de contos selecionados dos livros Sessanta racconti

(2007), In quel preciso momento (1950) e Le notti difficili (2002), pretendemos

analisar a relação do tempo com a categoria espaço e a categoria personagem,

Page 13: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

13

através do ponto de vista do narrador/personagem, com a intenção de

demonstrar a intensidade com que a categoria tempo sobrepuja as demais nas

narrativas do nosso autor.

Para tanto, nossos estudos estarão ancorados, principalmente, nos

pressupostos teóricos de Gérard Genette em Discurso da narrativa (1972),

Mikhail Bakhtin em Estética da criação verbal (1997), Paul Ricoeur em Tempo

e narrativa (2010) tomos I, II e III, entre outros.

E, para tornar mais acessível a leitura da nossa tese, a segmentaremos

em dois capítulos. No primeiro – Dino Buzzati, no tempo –, será focalizada a

obra poética do autor; se refletirá sobre questões relativas ao tempo, filosófico

e científico; se discursará sobre o gênero conto; e, ainda, serão apresentadas

as correntes artísticas, literárias e filosóficas, às quais o autor se aproximou. No

segundo capítulo – Tempo, Memória, Inesperado –, serão abordados os

conceitos explicitados no título, bem como será proposta uma análise dos

contos selecionados para a composição desta tese.

Por fim, antes de iniciarmos a apresentação dos resultados da nossa

pesquisa, convém esclarecer que, sempre que possível, procuramos adotar a

bibliografia na língua original e que todas as traduções feitas por nós serão

indicadas com TN (Tradução Nossa).

Page 14: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

14

CAPÍTULO I

DINO BUZZATI, NO TEMPO.

1.1- Dino Buzzati, autor de múltiplas estéticas.

Dino Buzzati, jornalista, pintor e escritor italiano nasceu no dia 16 de

outubro de 1906, na localidade de San Pellegrino, Belluno, região do Vêneto,

na Itália. Formou-se em direito, em 1928 e, no mesmo ano, começou a

trabalhar no jornal milanês Corriere della Sera. Desde cedo soube conciliar seu

trabalho de jornalista com o ofício de escritor. Em 1933, publicou seu primeiro

romance, Bàrnabo delle montagne e, dois anos depois, Il segreto del bosco

vecchio. Em 1939, entregou para edição o manuscrito do romance Il deserto

dei Tartari, cujo título original era La fortalezza, mudado a pedido do editor, por

temer uma possível alusão à guerra, já iminente. No entanto, ironicamente, é

sua a “Cronaca di ore memorabili”, publicada na primeira página do Corriere

della Sera, em 25 de Abril de 1945, dia em que a Itália se liberta do domínio

nazifascista. Nesse mesmo ano, Buzzati lança La famosa invasione degli orsi in

Sicilia, história infanto-juvenil ilustrada pelo autor, publicada anteriormente em

capítulos, de 7 de janeiro a 29 de abril, no Corriere dei Piccoli.

“Tornou-se mundialmente conhecido em 1940 quando publicou Il deserto

dei tartari (O Deserto dos Tártaros), romance alegórico que Camus adaptou

para o teatro e Zurlini levou ao cinema”, conforme escreve Eduardo Pitta em

seu blogue – Da Literatura – em 1 de agosto de 2008, comentando a coletânea

de contos A Derrocada da Baliverna (http://daliteratura.blogspot.com/2008/08/dino-

buzzati.html).

Em 1958 foi contemplado com o Prêmio Strega pelo livro Sessanta

racconti e, em 1970, com o premio jornalístico “Mario Massai” pelos artigos

publicados no Corriere della Sera, no verão de 1969, sobre a descida do

homem na Lua.

Em 1969, lança Poema a fumetti, obra idealizada no momento em que,

na Itália, os quadrinhos começavam a conquistar espaço no mundo das artes.

Afirma Buzzati:

Page 15: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

15

La pittura per me non è un hobby, ma il mestiere; hobby per me è scrivere. Ma dipingere e scrivere per me sono in fondo la stessa cosa. Che dipinga o che scriva, io perseguo il medesimo scopo, che è quello di raccontare delle storie2.

O autor, que já tinha tido a experiência de ilustrar seu livro La famosa

invasione degli orsi in Sicilia, reúne nesse Poema, suas duas paixões: a

literatura e as artes plásticas. No romance “a Fumetti” Buzzati apresenta e

redimensiona alguns de seus temas mais caros, dos quais destacamos a

Morte, a partir de um diálogo com textos clássicos da literatura como, por

exemplo, Orfeu e Eurídice.

A produção de Dino Buzzati obteve considerável sucesso no exterior,

principalmente na França, mas repercussão incipiente na Itália, apesar de seu

romance Il deserto dei Tartari (O deserto dos tártaros), considerado sua obra-

prima, ter sido traduzido em várias línguas. Somente a partir dos anos 1960 e,

mais especificamente, após a sua morte, em 1972, o autor passou a merecer

maior atenção dos estudiosos italianos. Entretanto, ainda não se contabiliza um

número significativo de críticos literários italianos que se tenham dedicado ao

exame de sua obra. Escassas referências ao autor são encontradas nas

principais antologias italianas de literatura; Buzzati é citado, na maior parte das

vezes, através de fragmentos de seu romance Il deserto dei tartari, cujo

sucesso, na opinião do estudioso da literatura italiana Giulio Ferroni (2001, p.

233), deve-se ao fato de a obra “collocarsi al limite tra la grande letteratura e la

letteratura di grande consumo” 3.

Recentemente, foram escritos alguns trabalhos enfocando a

religiosidade nas obras de Dino Buzzati, autor que se dizia agnóstico, “non

credente”. A pesquisadora Lucia Bellaspiga, por exemplo, realizou uma

pesquisa materializada no livro Dio che non esisti ti prego. Dino Buzzati, la

fatica di credere, no qual examina os contos do escritor com o intuito de

2 A pintura para mim não é um hobby, mas um ofício; hobby para mim é escrever. Mas pintar e escrever

para mim são, no fundo, a mesma coisa. Quer pinte ou quer escreva, eu persigo o mesmo objetivo, que é o de contar histórias. (TN) http://www.railibro.rai.it/articoli.asp?id=64. Acesso em 20 de junho de 2010. 3 Colocar-se no limite entre a grande literatura e a literatura de consumo. (TN)

Page 16: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

16

individuar os “segnali” (sinais) que ele percebia como mensagens enviadas do

Além.

No Brasil, o escritor tem merecido alguns estudos acadêmicos. Desses,

na Universidade Federal do Rio de Janeiro, registram-se uma tese de

doutorado (2004) intitulada Dino Buzzati: na fronteira do narrativo e do

pictórico, de autoria de Jardilete Cabral de Andrade, e a dissertação de

mestrado da mesma autora – O imaginário social na alegoria do romance “Il

deserto dei Tartari”, além de nossa dissertação de mestrado (2010) intitulada O

Tempo, o Medo e a Morte em contos de Dino Buzzati.

Outros trabalhos produzidos nos últimos anos sobre a obra do autor

merecem ser citados como, por exemplo: Trabalho de Conclusão de Curso

(TCC) de Chiara Tormen, da Università Ca’ Foscari, de Veneza, intitulado Dino

Buzzati e il mondo della cronaca giornalistica (2012), que aborda a questão

escritor/jornalista, estabelecendo algumas comparações entre Buzzati e outros

escritores que também tiveram por ofício primeiro a atividade jornalística,

como, por exemplo, Leonardo Sciascia e Emile Zola. Também o TCC de

Tommaso Menna, da Università di Roma – “La sapienza”, intitulado Tempo e

spazio nei romanzi di Dino Buzzati (2007), que analisa a concepção do tempo e

do espaço na obra buzzatiana e sua singularidade na literatura novecentesca

italiana. Ou, ainda, o TCC de Maria Chiara Banchio, da Università degli studi di

Torino, intitulado Dino Buzzati e il racconto di Natale (2010), que focaliza trinta

e três contos de Buzzati dedicados à temática natalina e à forma como o

escritor insere temáticas atuais para abordar um evento sobre o qual um sem-

número de autores escreveram: o Natal.

Outros TCCs sobre o autor que merecem ser citados: de autoria de

Andrea Suverato, da Università degli studi di Genova, Il bestiario di Dino

Buzzati (2013), trata da iconografia animal que permeia várias obras do nosso

autor; La problematica morale ed esistenziale nella narrativa di Dino Buzzati, de

Giuseppina Lapadula, cuja instituição não foi informada (cf. link), aborda os

recursos utilizados pelo autor, que ela classifica de fantástico, para falar de

temas tão caros ao homem como a morte e Deus.

Page 17: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

17

Com relação à produção ensaística sobre o autor, registra-se, o ensaio

de Chiara Lepri4 – Infanzia e linguaggi narrativi in Dino Buzzati (2014) –, que

trata da presença da infância na obra do autor e a importância da ingenuidade

infantil em alguns personagens para o desfecho de obras como Il segreto del

bosco vecchio, Barnabò delle montagne e La famosa invasione degli orsi in

Sicilia. Um outro ensaio, escrito por Eliza Martinez Garrido, no periódico

Quaderns d’Italià, sob o título Brevi considerazioni sulla familiarità perturbante

di Dino Buzzati. Una animalesca metamorfosi terrificante (2011), estuda o conto

“I topi” (os ratos) à luz da psicanálise freudiana e da experiência existencial do

autor, com o objetivo de problematizar a angústia edipiana. Por fim, a

professora Ancilia María Antonini, no periódico Cuadernos de Filología Italiana,

publicou o artigo La ricezione critica di Dino Buzzati in Spagna (2000), no qual

aborda o crescente interesse da crítica espanhola, bem como o renovado

interesse de pesquisadores pela obra de Dino Buzzati.

Como é possível observar, as pesquisas sobre a produção poética de

Dino Buzzati são cada vez mais volumosas e consistentes, particularmente se

tomarmos em consideração o trabalho que se vem realizando através do

Centro Studi Buzzati, constituído em 1991, como estrutura permanente da

Associazione Internazionale Dino Buzzati, com vistas a promover pesquisas

sobre o autor e difundir a sua obra, no mundo.

Autor multifacetado, Dino Buzzati morreu em Milão, em 28 de Janeiro de

1972. Legou-nos uma profícua produção poética: “libretos de ópera, crônica,

teatro, poesia e ficção, área em que se notabilizou: cinco romances e cerca de

uma centena de contos fizeram dele um nome incontornável da literatura

europeia do século XX” (PITTA). Tem traduzidos e publicados no Brasil os

seguintes trabalhos: O Deserto dos Tártaros (1984), Um Amor (1985), Naquele

Exato Momento (1986), e As Noites Difíceis (1986).

“Autor de uma obra que questiona o poder e indaga o sentido da vida,

Buzzati, um verista por excelência, tem sido com frequência associado ao

4 LEPRI, Chiara. Infanzia e linguaggi narrativi in Dino Buzzati. Studi sulla Formazione, [S.l.], p. 131-47,

apr. 2014. ISSN 2036-6981. Disponibile all’indirizzo:

http://www.fupress.net/index.php/sf/article/view/14246/13203 (acesso em 20/03/2015)

Page 18: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

18

realismo fantástico graças ao estranhamento que nimba tantas das suas

histórias”, escreve Eduardo Pitta em seu blogue5.

Não concordamos com Pitta no que diz respeito à afirmação "um verista

por excelência", visto que as obras de Buzzati não se inscrevem na corrente

verista, quer seja temporalmente, quer seja pelas escolhas temáticas.

Concordamos, sim, plenamente, quanto ao estranhamento que "nimba tantas

das suas histórias", aspecto que nos atraiu para o estudo de sua obra.

Endossamos a afirmação de Pitta, sobre as reflexões ontológicas

propostas por Buzzati em sua produção poética; reflexões quase sempre

preteridas pelos críticos da literatura, em favor de uma leitura, muitas vezes

redutora, associada somente ao Surrealismo ou à narrativa fantástica.

Nossa intenção é, reiteramos, procurar demonstrar que sob a forma

narrativa que nos induz a aproximar a obra de Buzzati, por exemplo, do

Fantástico conceituado por Todorov, do Insólito pesquisado pelo professor

Flavio García6 ou do Surreal postulado por Breton, pulsa uma profunda

indagação sobre o Tempo, associado ao Medo e à Morte e que se manifesta

através do Realismo Mágico conceituado por Massimo Bontempelli.

E é sobre essa indagação – o tempo – que a seguir passaremos a

discorrer.

5 http://daliteratura.blogspot.com/2008/08/dino-buzzati.html

6 GARCÍA, Flavio. A banalização do insólito: questões de gênero literário – mecanismos de construção

narrativa. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2007.

Page 19: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

19

1.2- Reflexionando a respeito do tempo.

Tamanha é a riqueza das experiências e das interpretações do tempo através do curso da história que se acaba sucumbindo à impressão de que qualquer intento de atribuir-lhe uma definição que se pretendesse exaustiva revelar-se-ia precária e antecipadamente anacrônica. São raros os conceitos que podem ostentar uma prodigalidade tão grande de abordagens, todas como que a mostrar a inesgotabilidade do tema. 7

A afirmação de Gerd Bornhein, na epígrafe, nos ajuda a justificar a breve

reflexão que apresentaremos sobre o tempo, um tema inesgotável, valendo-

nos, somente, de alguns conceitos dentre o sem-número de estudos

registrados através "do curso da história".

Nossas considerações têm início com os conceitos de tempo dos quais

nos valeremos ao longo deste trabalho.

Toda narrativa se constrói sobre as categorias de tempo, espaço e

personagem; e, para nossas reflexões, buscaremos aprofundar as acepções da

categoria tempo dentro do conto.

No verbete do dicionário8, encontramos várias definições sobre tempo,

como, por exemplo: “duração relativa das coisas que cria no ser humano a

ideia de presente, passado e futuro; período contínuo no qual os eventos se

sucedem”, que nos sinaliza a importância da memória para a construção da

ideia de tempo, ou a definição: “dimensão que permite identificar dois eventos

que, caso contrário, seriam idênticos e que ocorrem no mesmo ponto do

espaço” que se adequa aos estudos da física, ciência esta que também

contribuirá para as nossas reflexões e, ainda que não seja objeto de nossos

estudos, os conceitos estabelecidos por ela servirão para ilustrar a

versatilidade de Dino Buzzati na construção da categoria tempo em sua

narrativa.

7 BORNHEIN, Gerd. "A invenção do novo". In: Tempo e História / org. Adauto Novaes. São Paulo:

Companhia das Letras; Secretaria Municipal de Cultura, 1992, p. 103

8 HOUAISS, Antônio [et al.]. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009,

p. 1826.

Page 20: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

20

Por outro lado, no Dicionário de narratologia9, lemos que o relevo do

tempo se dá, antes de tudo, por conta da “condição primordialmente temporal

de toda narrativa”10, uma vez que é o responsável pelas “implicações

linguísticas”11 advindas de sua importância como categoria gramatical.

Valemo-nos, aqui, apenas das definições que servem de aporte para

nossa tese, uma vez que sabemos que a narrativa nasce para explicar o mito,

mas também que o mito só se explica através da narrativa; daí, a necessidade

de revisitar os primórdios que tratam sobre o tempo. Por isto, optamos por

começar nossa reflexão por Confissões, de Santo Agostinho.

1.2.1- O tempo em Confissões.

No livro XI das Confissões, que se intitula “O homem e o tempo”,

Agostinho começa seu discurso questionando-se sobre o que, de fato, seja o

tempo e nos brinda com a sua célebre assertiva:

O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo pergunta, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei. (AGOSTINHO, 2004, p. 322)

Percebemos ser esta, ainda, a angústia do homem moderno; não poder

definir o tempo, não poder controlá-lo, mais que nada, não poder vislumbrá-lo

mesmo que sofrendo todas as sanções advindas do seu ‘existir’. Sim, o tempo

“é”. Agostinho questiona essa existência do tempo em paralelo com a busca de

respostas do tipo “como pode ser breve ou longo o que não existe?”, quando

se refere à duração do tempo. Ele parte da divisão em passado, presente e

futuro e considera que, como o passado já não existe, e o futuro ainda está por

vir, apenas o presente poderia ser longo ou breve. Ocorre que, também esse

presente é questionável e suscetível às divisões passadas e futuras.

9 REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de narratologia. Coimbra: Almedina, 2002.

10

Idem 11

Ibidem

Page 21: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

21

O filósofo percebe que, se o presente em questão for um dia, esse

mesmo dia é composto por vinte e quatro horas e que, se nos ativermos à hora

nona, por exemplo, as que lhe antecederam já pertencerão ao passado, assim

como as que ainda não vieram pertencem ao futuro. Ora, a mesma lógica

poderá ser aplicada à hora nona, no que se refere aos minutos e segundos que

a compõem. Partindo dessa premissa, ele questiona: “Onde existe portanto o

tempo que podemos chamar longo? Será o futuro? Mas deste tempo não

dizemos que é longo, porque ainda não existe. Dizemos: “será longo”. E

quando será?” (AGOSTINHO, 2004, p. 324. Os grifos são nossos.)

O advérbio onde possui várias funções, mas a sua significação básica

será sempre locativa. Assim como o advérbio quando, expressará sempre as

circunstâncias de tempo. Ora, o autor questiona a existência do tempo e sua

localização, mas sabe que ele ocupa algum lugar, em algum dado momento.

Continuando, Agostinho questiona a existência das coisas futuras e

conclui que os profetas não as vaticinariam, caso elas não fossem reais. Mas a

problemática da medição desse tempo se mantém, até porque intrínseca a esta

questão temos aquela da origem do tempo:

Mas de onde se origina ele? Por onde e para onde passa, quando se mede? De onde se origina ele senão do futuro? Por onde caminha, senão pelo presente? Para onde se dirige, senão para o passado? Portanto, nasce naquilo que ainda não existe, atravessando aquilo que carece de dimensão, para ir para aquilo que já não existe. (AGOSTINHO, 2004, p. 328)

O que pode ser medido, por assim dizer, é o que deixa marcas em

nossa alma, em nosso espírito; as impressões do antes, do durante e do

depois que ficam gravadas em nossa memória é que nos conferem certa ideia

de durabilidade do tempo. Daí, podermos dizer que o jantar de ontem à noite

foi longo, ao passo que a noite dormida foi curta, por exemplo.

Os acontecimentos diários em nossa vida estão, necessariamente,

repletos de imagens, que vão sendo gravadas em nossa memória, as quais

retomamos quando nos reportamos a um acontecimento do passado. As

impressões que esses acontecimentos deixaram em nosso espírito é que nos

permitem o ‘atrevimento’ de supor medir a duração de tais eventos. Da mesma

Page 22: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

22

forma se dá quando vislumbramos acontecimentos futuros na expectativa de

que eles aconteçam.

Com base nessa expectativa do tempo futuro e nessa lembrança do

tempo passado, Santo Agostinho questiona se o tempo não seria “outra coisa

senão distensão”. Então, se assim é, poderíamos concluir que essa percepção

da passagem do tempo e essa noção de longo/curto só seriam possíveis em

nível psicológico, uma vez que se trata das impressões que essas vivências

imprimem na alma daquele que as experienciou. O tempo pertence à

consciência, já que medimos apenas o que fica retido na nossa memória,

porque:

[...] Meço a impressão que as coisas gravam em ti à sua passagem, impressão que permanece, ainda depois de elas terem passado. Meço-a a ela enquanto é presente, e não àquelas coisas que se sucederam para a impressão ser produzida. É a essa impressão ou percepção que eu meço, quando meço os tempos. Portanto, ou esta impressão é os tempos ou eu não meço os tempos. (AGOSTINHO, 2004, p. 336)

Para Agostinho, as coisas passadas existem porque deixam suas

marcas na memória e o tempo que passou não pode ser longo, pois longa é

apenas “a lembrança do passado”. A atenção no presente é que permite que

as coisas presentes passem e, no que concerne ao futuro, ele não pode ser

longo uma vez que longa é, apenas, a “expectação do futuro”. (AGOSTINHO,

2004, p. 337)

Paul Ricoeur afirma que Santo Agostinho “poderá salvar essa certeza

inicial de um aparente desastre, transferindo para a expectativa e para a

memória a ideia de um longo futuro e de um longo passado”12, propondo uma

Solução elegante: confiando à memória o destino das coisas passadas e à expectativa o das coisas futuras, pode-se incluir memória e expectativa num presente ampliado e dialetizado, que não é nenhum dos termos anteriormente rejeitados: nem o passado, nem o futuro, nem o presente pontual, nem mesmo a passagem do presente. (RICOEUR, 2010, p. 23)

12

RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa I. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 18.

Page 23: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

23

Para o filósofo francês, toda obra narrativa expressará sempre um

mundo temporal na medida em que “desenhe as características da experiência

temporal”, desde que o tempo humano esteja “articulado de maneira

narrativa”13. Assim sendo, não se pode medir algo que não seja sensível aos

nossos sentidos.

Consideramos oportuno fazer um breve desvio em nosso discurso, ainda

que nos mantenhamos nele. Agostinho trata de memória, quando nos

remetemos ao passado, e de expectativa, quando projetamos os

acontecimentos futuros: para evitar qualquer conceituação comprometida e

equivocada de nossa parte a respeito desses termos, recorremos ao dicionário

Houaiss:

memória s.f. (sXIII) 1 faculdade de conservar e lembrar estados de consciência passados e tudo quanto se ache associado aos mesmos [...] 3 aquilo que ocorre ao espírito como resultado de experiências já vividas; lembranças, reminiscência [...]14.

expectativa s.f. (1515) situação de quem espera a ocorrência de algo, ou sua probabilidade de ocorrência, em determinado momento [...]15

A partir da definição encontrada para o vocábulo memória, podemos

acrescentar que ela “é a percepção firme, pela alma, das coisas e das

palavras”16. É através da memória que temos noção do tempo que passou e do

que ainda poderá vir, assim como do que vivenciamos e imprimimos nela no

presente. É também por conta da memória que o homem criou e cria uma série

de símbolos para representá-la, para eternizá-la, mais que nada, para

reconhecer-se.

Segundo Norbert Elias, em seu livro Sobre o Tempo, o que nós

pontuamos com o uso dos relógios são os nossos compromissos sociais, uma

13

Ibidem. 14

HOUAISS, Antônio [et al.]. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p. 1271. 15

Idem, p. 858. 16

YATES, Frances A. A arte da memória. Campinas: Editora Unicamp, 2010, p. 25.

Page 24: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

24

vez que não se pode “medir uma coisa que não se pode perceber pelos

sentidos”, ou seja,

[...] Uma das dificuldades com que deparamos em nossas investigações decorre do fato de os homens ainda não haverem adquirido uma consciência clara da natureza e do modo de funcionamento dos símbolos que eles mesmos aperfeiçoaram e, que constantemente utilizam. Assim, correm o risco de se perder na densa floresta de seus próprios simbolismos. O tempo é um exemplo deles. Os calendários estabelecidos pelos homens e os mostradores dos relógios atestam o caráter simbólico do tempo. E, a despeito de tudo, o tempo tem sido, muitas vezes, um enigma para os homens [...] (ELIAS, 1998, p. 27)

Pode-se, então, afirmar que a memória armazena as impressões do que

foi vivenciado pelo indivíduo ao longo de sua vida e, quando recordamos

dessas experiências, ela nos sugere uma dimensão, breve/longa, do tempo

que supõe ter passado, além de, por força da própria lembrança, tornar esse

passado presente através da recordação que, por sua vez, estabelecerá

sempre o seu parâmetro de medida em relação ao presente. Então, o nosso

bom e velho relógio é a invenção que afere essa ilusão de tempo passado, e a

memória, o continente desse conteúdo temporal/atemporal:

De fato, não estando agora alegre, recordo-me de ter estado contente. Sem tristeza, recordo a amargura passada. Repasso sem temor o medo que outrora senti, e, sem ambição, recordo a antiga cobiça. Algumas vezes, pelo contrário, evoco com alegria as tristezas passadas; e com amargura relembro as alegrias. (AGOSTINHO, 2004, p. 272-73)

Em seu livro A arte da memória, Frances A. Yates trata do estudo da

memória desde Simônides de Ceos (556~468 a.C.) até Leibniz (1646~1716) e,

citando Boncompagno da Signa, professor de retórica na Universidade de

Bolonha, escreve:

O que é a memória. A memória é um glorioso e admirável dom da natureza, pelo qual recordamos as coisas passadas, compreendemos as presentes e contemplamos as futuras, por meio de sua semelhança com as coisas passadas. (YATES, 2010, p. 81)

Page 25: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

25

A autora observa que é a memória que confere ao tempo a sua

imortalidade; é o que o torna perene. É através da memória que o homem,

desde os primórdios, conta a sua própria história e lega às gerações futuras os

feitos de sua época, seja por intermédio de arautos e escribas da antiguidade,

seja através dos textos impressos e digitais dos dias de hoje.

Ao longo de toda a história da humanidade, o tempo ocupou a posição

de desafiado, uma vez que o homem assume a postura de desafiador do

grande dragão que a tudo devora: Cronos.

Várias têm sido as tentativas, sejam elas filosóficas, científicas,

psicológicas ou literárias, de explicar e definir esse elemento misterioso, em

sua essência, e que controla tudo o que nos cerca. Ao mesmo tempo, tentamos

de todas as formas controlar os efeitos que ele causa em nós, seja com

cirurgias plásticas, tinturas nos cabelos, exercícios físicos para alimentar o

tônus muscular da juventude, a fim de aparentarmos menos “tempo” do que o

que temos na verdade. Somos, de fato, cada um de nós, regidos por três

pequenas agulhas, também chamadas ponteiros, que eternizam em seu

tiquetaquear as lembranças daquilo que chamamos vida.

Então, fica mais fácil entender que a nossa noção de tempo,

passado/presente/futuro, se dá por conta da capacidade que temos de

armazenar na memória tudo o que tange aos nossos sentidos, como afirmou

Kant em sua obra Crítica da razão pura, quando tratou do tempo:

Logo, o tempo é simplesmente uma condição subjetiva da nossa (humana) intuição (que é sempre sensível, isto é, na medida em que somos afetados por objetos), e em si, fora do sujeito, não é nada. [...] (KANT, 2005, p. 80)

O autor postula que o tempo sem a experiência humana não existe, mas

há algumas controvérsias a respeito das coisas que tangem aos nossos

sentidos. Platão, em Fédon, quando escrevia a respeito dos contrários, afirma:

[...] E também, supondo pelo menos que depois de tê-lo adquirido (o conhecimento) não o esqueçamos constantemente, é uma necessidade lógica que tenhamos nascido com esse saber eterno, conservando-o sempre no curso de nossa vida. Saber, com efeito, consiste nisso: depois de haver adquirido o conhecimento

Page 26: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

26

de alguma coisa, dispor dele e não mais perdê-lo. Aliás, o que denominamos “esquecimento” não é, por acaso, o abandono de um conhecimento? [...] (PLATÃO, 1983, p. 79)

Segundo Platão, narrando os diálogos de Sócrates, o mundo real é o

das ideias, e tudo quanto temos no mundo físico não passa de um simulacro

desse real. Esse conceito, por si só, já justificaria a teoria do conhecimento que

prescinde o empírico de Kant. Mas, também ele, Kant, reconhece esse saber

que antecede a experiência e o chama de a priori ou conhecimento puro:

E justamente nestes últimos conhecimentos, que se elevam acima do mundo sensível, onde a experiência não pode dar nem guia nem correção, residem as investigações de nossa razão que pela sua importância consideramos muito mais eminentes e pelo seu propósito último muito mais sublimes do que tudo o que o entendimento pode aprender no campo dos fenômenos; mesmo sob o perigo de errar, nisto arriscamos antes tudo a dever desistir de tão importantes investigações por uma razão qualquer de escrúpulo, de menosprezo ou de indiferença. Esses problemas inevitáveis da própria razão pura são Deus, liberdade e imortalidade. [...] (KANT, 2005, p. 56. O grifo é nosso.)

De acordo com Kant, apesar de o conhecimento humano começar com a

experiência, nem todos os saberes principiam nela. O conceito platônico da

imortalidade da alma, por exemplo, é para Kant um conhecimento a priori. A

esse respeito, Santo Agostinho, o “ancião cheio de sabedoria”17, no Livro X das

Confissões, quando trata da memória e dos sentidos, corrobora com as teorias

platônicas, ao escrever: “[...] Não foi por nenhum dos sentidos do corpo que

atingi essas coisas significadas nestes sons, nem as vi em parte nenhuma a

não ser no meu espírito. Escondi na memória não as suas imagens, mas os

próprios objetos.” (AGOSTINHO, 2004, p. 270)

Observamos que tempo e memória caminham juntos. É a memória que

nos confere o conhecimento de que o tempo passou, ou de que passamos por

ele. Santo Agostinho afirma que a memória é uma potência e que “esta

potência é própria do meu espírito, e pertence à minha natureza”18. Sendo

17

ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 7. 18

AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 2004, p. 268.

Page 27: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

27

assim, podemos afirmar que, se a memória é uma potência do indivíduo e que

cada indivíduo tem um acervo de experiências diferente do seu semelhante e,

ainda, essa memória é responsável pela noção de tempo, existem vários

tempos. Esse conceito da pluralidade temporal também é objeto de estudos da

Física quando trata do tempo através da ótica do observador, como esclarece o

estudioso Stephen Hawking:

[...] O tempo dos eventos não poderia ser rotulado de uma única maneira. Pelo contrário, cada observador teria sua própria medida de tempo conforme registrada pelo relógio que ele carregava, e os relógios carregados por diferentes observadores não seriam necessariamente concordantes entre si. [...]19 (HAWKING, 2005, p. 109)

Mas, isso só vale se os observadores estiverem com velocidades

relativas próximas à da luz, caso contrário o tempo é absoluto, ou seja, a

relatividade do tempo de que falam os físicos não tem nada a ver com a

relatividade de que falam filósofos como Kant ou Santo Agostinho.

1.2.2- O tempo e os físicos.

No parágrafo anterior, aludimos à relatividade do tempo; no entanto, não

pretendemos nos alongar nos domínios da física quântica ou da teoria restrita

de Einstein, as quais não dominamos e que, ademais, nos afastariam do nosso

objetivo primeiro, apesar de as considerarmos teorias adequadas à uma

possível leitura das várias estratégias que Dino Buzzati utiliza para construir,

em seus contos, a ideia de tempo, como, por exemplo, nos contos

"All’idrogeno", "Qualcosa era sucesso", "24 marzo 1958", "Velocità della luce",

"Smagliature del tempo", "Nessuno crederà" e "Appuntamento con Einstein".

Os três últimos contos citados merecerão uma leitura detalhada neste trabalho,

mais adiante. Por isto, faremos aqui uma breve explanação do assunto, dando

destaque, somente, aos pontos que servem de apoio à nossa tese.

19

HAWKING, Stephen; MLODINOW, Leonard. Uma nova história do tempo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005, p. 109.

Page 28: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

28

Existem duas teorias da relatividade, a geral e a restrita: a Teoria da

Relatividade Geral é aquela criada por Einstein que, inserindo os efeitos

gravitacionais, concebe-se a noção de espaço-tempo curvo; a Teoria da

Relatividade Restrita é a que substitui os conceitos independentes de espaço e

tempo, da teoria proposta por Newton, pela ideia de espaço-tempo como sendo

uma unidade geométrica na qual podemos encontrar quatro dimensões: três

espaciais - altura, largura e profundidade - e uma temporal, quarta dimensão20.

A partir das descobertas de Einstein, a percepção do universo não foi

mais a mesma. A teoria da relatividade restrita abalou as estruturas da

mecânica newtoniana, onde o tempo era considerado uma grandeza absoluta.

Na teoria newtoniana, a velocidade é relativa porque, dependendo do

referencial, podemos observar diferentes velocidades. Por exemplo, se um

indivíduo caminha a certa velocidade e avista um carro em movimento terá, da

velocidade do carro, uma percepção diferente de um outro cidadão que,

parado, veja o mesmo carro movimentar-se. Então, na teoria newtoniana, a

velocidade é relativa porque depende da visão do observador.

Toda a física trabalha com a questão do observador, mas na teoria de

Newton apenas a velocidade é relativa, o tempo não. Para ele, se o indivíduo

está parado, ou em movimento, o tempo passará da mesma forma. É mais ou

menos assim: se eu e você sincronizarmos os nossos relógios e eu sair em

meu carro a 100 km/h, enquanto você fica parado, depois de meia hora o

tempo que passará para mim será exatamente o mesmo que passará para

você, ainda que eu estivesse em movimento e você não. A minha velocidade

será relativa em relação à sua, mas o tempo não. Na teoria newtoniana o

tempo será sempre fixo.

Até 1900, essa era a única verdade e tem sua origem nos estudos de

Galileu e em sua Lei dos Corpos em Queda, na qual Newton, anos depois, se

apoiou para desenvolver suas teorias. A respeito das conclusões lógicas do

físico, Elias afirma que “Newton, sem dúvida, foi o representante mais eminente

20

Todas as informações a respeito das teorias da Física nos foram fornecidas pela pesquisadora Rossana

Cavalieri Falcão, Doutora em Física pela UFRJ.

Page 29: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

29

dessas concepções objetivistas, que começaram a declinar a partir do início da

era moderna” (ELIAS, 1998, p. 9).

Àquela época, os físicos observaram que a luz tem uma velocidade que

se mantém em qualquer referencial, ou seja, se eu estiver dentro de um trem

rápido, a 200 km/h, e, paralelo ao trem, tiver um raio de luz, a velocidade da luz

será sempre 300.000 km/s.

Não importa que velocidade o trem no qual esteja consiga atingir, a

velocidade do raio de luz será sempre a mesma.

Nenhum físico conseguia explicar essa questão da luz, até que Einstein

propôs que a velocidade da luz era absoluta, mas o tempo não. Daí, ele

concebeu o paradoxo dos gêmeos, como explica Stephen Hawking:

[...] Consideremos um par de gêmeos. Supondo que um dos gêmeos vá viver no topo de uma montanha, enquanto o outro permanece no nível do mar. O primeiro gêmeo envelheceria mais rápido que o segundo. Logo, se eles voltassem a se encontrar, um seria mais velho que o outro. Neste caso, a diferença nas idades seria bem pequena, mas seria muito maior se um dos gêmeos partisse para uma longa viagem numa espaçonave na qual ele acelerasse até uma velocidade próxima à da luz. Quando retornasse, ele seria muito mais jovem que aquele que permaneceu na Terra. (HAWKING, 2005, p. 56)

Podemos observar na afirmação de Hawking, acima citada, o conceito

de Relatividade Restrita, ou seja, a velocidade da luz é absoluta em qualquer

referencial, mas o tempo passará mais lento na medida em que o referencial

que se move estiver próximo da velocidade da luz. Mas esses efeitos só podem

ser observados em velocidades muito altas.

Talvez fosse um absurdo considerar que Einstein tenha realmente dito

que “tudo é relativo”, uma vez que os estudos nos mostram que o que é relativo

é o tempo em relação à partícula observada, já que uma pessoa, a princípio,

jamais alcançaria tal velocidade.

A velocidade da luz é o limite de velocidade do universo. Apenas uma

partícula sem massa pode conseguir chegar à velocidade da luz. O fóton, que é

Page 30: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

30

a partícula de luz, não tem massa; do contrário sua velocidade diminuiria. É

como uma onda de energia.

Para finalizar essa explanação a respeito do tempo, sob a ótica da

Física, relataremos uma pequena história, que poderá ilustrar a nossa

impossibilidade de dar um assunto por encerrado ou, no nosso caso, um tema

por esgotado.

Conta-se que Einstein, depois de conceber a fórmula primeira da Teoria

da Relatividade (E=+mc²), pensou: Não pode haver uma energia negativa,

nada tem uma energia negativa, logo, tomarei por valido apenas E=mc². Mas,

outro físico, chamado Paul Dirac, pensou: Não. Porque esquecer esse valor

negativo? Deve haver partículas com energia negativa e eu as chamarei de

antipartículas. Se existe um elétron, existirá um antielétron; se existe um

próton, existirá um antipróton e essas antipartículas terão um valor negativo.

Dirac escreveu uma teoria muito complexa a esse respeito – que chamou de

mecânica quântica relativística e une a física quântica com a relatividade – e

enviou uma carta a Einstein, sugerindo a existência dessa antipartícula para os

valores negativos da energia, ao que Einstein respondeu: Se a natureza não é

assim, a natureza é uma idiota, porque a tua teoria é tão boa que a natureza

precisa ser assim.21

Posteriormente, eles realmente encontraram essas antipartículas. Na

verdade, para cada partícula teremos uma antipartícula correspondente.

A conclusão a que chegamos, depois desta digressão através do

universo da física, e também recorrendo à afirmação de Gerd Bornhein, citada

como epígrafe, é que o estudo do tempo proporciona uma série de definições e

interpretações, sejam elas científicas, sociológicas, filosóficas, religiosas,

psicológicas ou literárias. E que, em cada uma dessas áreas, e em tantas

outras, o tempo continua sendo um objeto de estudo profícuo e intrigante, que

conduz cada um de nós, pesquisadores, a uma fascinante viagem ao encontro

do grande Titã.

21

Fato relatado pela Professora Doutora Rossana Cavalieri Falcão, pesquisadora da Comissão Nacional de Energia Nuclear e Doutora em Física pela UFRJ.

Page 31: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

31

Após nos aproximarmos de teorias sobre o tempo e a memória, que

servirão de base a nossa tese, passaremos à leitura dos contos selecionados

de Dino Buzzati. Antes, porém, justificaremos nossa escolha pelo gênero conto,

visto que, como informamos, Dino Buzzati é um autor multifacetado, que

transitou em diferentes gêneros. No entanto, é seu romance Il deserto dei

tartari (1940), que o consagra como escritor tornando-se a obra que mais

trabalhos mereceu, e tem merecido, dos estudiosos e críticos da sua produção

literária. Nesse romance, Buzzati dá vida à personagem Drogo, um militar de

carreira, que, designado a servir em um forte perdido em um deserto desolado,

fronteiriço ao território tártaro, passa décadas na expectativa de uma invasão

tártara. Consome sua vida se preparando para uma grande batalha, na qual ele

acredita que sua existência será submetida à prova. Ao ficar velho e doente,

Drogo é dispensado pelo novo comandante do forte e, em seu caminho de

volta à cidade, morre solitário em uma pensão. A história, na qual se destaca a

passagem do tempo, seus desdobramentos e significados, recebeu uma

versão cinematográfica, em 1976, com título homônimo, sob a direção de

Valerio Zurlini.

O filme de Zurlini também foi determinante para decidirmos pesquisar,

na obra de Buzzati, as questões relativas ao tempo, já aguçadas quando da

leitura de alguns de seus contos, nos quais as diversas alegorias sobre a

passagem do tempo nos fascinaram, conforme assinalamos na introdução a

este trabalho.

Retomados os contos lidos na especialização, e examinada mais

acuradamente a produção poética de Buzzati, constituímos o corpus de nossa

tese, a partir de uma seleção de contos.

1.3- O conto em foco.

Sobre o conto, o intelectual argentino Julio Cortázar, considerado um

dos mais inovadores e originais escritores latino-americanos do século XX, com

importante produção no gênero, afirma:

Page 32: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

32

O excepcional reside numa qualidade parecida à do imã; um bom tema atrai todo um sistema de relações conexas, coagula no autor, e mais tarde no leitor, uma imensa quantidade de noções, entrevisões, sentimentos e até ideias que lhe flutuavam virtualmente na memória e na sensibilidade; um bom tema é como um sol, um astro em torno do qual gira um sistema planetário de que muitas vezes não se tinha consciência até que o contista, astrônomo de palavras, nos revela sua existência. 22

A definição de conto feita por Cortázar encerra plenamente os nossos

motivos para escolher estudar esse gênero, uma vez que:

[...] o conto excepcional [...] não é o conto que traz o extraordinário anormal, [...] nem o conto que traz o extraordinário fantástico, [...]. O conto excepcional é o conto muito bom. Excepcional é a marca de qualidade literária que torna alguns contos inesquecíveis para quem os lê. 23

O termo conto admite três significados diferentes. Primeiramente, define-

se como conto qualquer tipo de história centrada sobre uma ou mais

personagens, narrada de forma oral ou escrita, em versos ou em prosa,

equivalendo-se a texto narrativo e opondo-se a texto poético. O termo pode ser

utilizado, ainda, para indicar o enredo ou a trama de uma narração,

distinguindo-o de fábula. Por fim, tem-se o terceiro significado, em que o termo

designa um gênero narrativo específico, que é a narração breve, em prosa,

centrada sobre um acontecimento particular e com um número limitado de

personagens. Na terceira acepção, o termo conto se aproxima ao conceito de

novela, e, muitas vezes, são usados como sinônimos.

Na tradição ocidental, a novela configura-se como gênero literário

durante a Idade Média, quando começam a ser organizadas histórias

fantásticas da vida cotidiana ou casos curiosos conforme o argumento. Assim,

a novela distingue-se da fábula e de outros tipos de histórias como uma

narração mais articulada e complexa, girando em torno de um único

acontecimento, verossímil ou imaginário, e com poucas personagens.

22

Apud. GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. São Paulo: Ática, 2006, p. 66.

23 Idem, p. 66

Page 33: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

33

Por ser uma das mais antigas formas de narrativa de que se tem

notícia, pode-se dizer que é o primogênito impresso das narrativas orais da

antiguidade. Àquela época, a perpetuação da memória dos feitos heróicos,

históricos ou fabulares se dava através da oralidade o que, posteriormente, nos

legou clássicos como A ilíada e A odisséia, de Homero. Mas, em sua maioria,

os relatos eram breves e de cunho moral, como podemos observar, por

exemplo, na coletânea de contos publicados em 11 de janeiro de 1697 por

Charles Perrault, primeiramente com o título Histórias ou contos do tempo

passado com moralidades, e, posteriormente, chamado Contos da Mamãe

Gansa, onde, pela primeira vez, apareceriam as nossas já tão conhecidas

histórias como Chapeuzinho vermelho, A Bela Adormecida, O Gato de Botas e

O Pequeno Polegar. Estas histórias tinham, inicialmente, o objetivo de entreter

a sociedade da época em rodas de salão e, só depois, passaram a também

fazer parte da literatura para a infância.

Alguns dos supracitados contos foram também reproduzidos na

coletânea de contos baseados na cultura alemã, e que foi publicada pelos

irmãos Grimm, em 1812, com o título Contos de Grimm, eternizando, assim,

todos os medos e crenças daquele povo. Outra curiosidade a respeito dos

contos compilados pelos Grimm é que não foram produzidos com o intuito de

ninar crianças, utilidade que lhes damos nos dias atuais. Eram narrativas

densas e, até certo ponto, perversas, se tomarmos em consideração, por

exemplo, o texto que originou a adaptação que temos atualmente do

Chapeuzinho vermelho, no qual avó e neta articulam os meios de afogar o

lobo, o que deu margem a inúmeras leituras, por conta das

[...] muitas interpretações de “Chapeuzinho Vermelho” (antropológica, psicanalítica, mitológica, feminista, e por aí afora), em parte porque a história tem várias versões: no texto dos irmãos Grimm há coisas que não se encontram no de Perrault, e vice-versa. 24

O mesmo acontece com os contos orientais:

Massudi, que viveu no século XI e foi um dos escritores mais viajados do seu tempo, afirmou que as Mil e uma Noites foram tiradas do livro persa Hezar Afsaneh (Mil

24

ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras. 2004, p. 97.

Page 34: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

34

Histórias). Esta última obra, segundo se afere de uma referência qua a ela faz Firduzzi, no prefácio de Schanameh (Livro dos Reis), é atribuída a um poeta persa, Rasti, que teria vivido na segunda metade do século X e, assim, o erudito Massudi parece estar com a razão, pois as duas heroínas principais das Mil e uma Noites, Scherazade e Dinazade, estão com seus nomes persas nas páginas famosas de Hezar Afsaneh.25

As mil e uma noites, livro que reúne contos em encaixe, tornou-se

conhecido no Ocidente graças ao meticuloso trabalho do orientalista francês

Antoine Galland que, em sua tradução,

Aproveitou, apenas, uma quarta parte dos contos originais. A sua escolha foi recair sobre as lendas mais curiosas e de enredo mais palpitante. Teve o cuidado de abolir todas as cenas que pudessem ferir os princípios morais cristãos. Suprimiu do enredo dos contos todos os versos, poemas e citações poéticas. Procurou fazer uma tradução que fosse isenta de expressões chulas ou pouco edificantes. 26

Na Itália, sobressai-se Giovanni Boccaccio (1313-1375), considerado um

dos maiores mestres nesse gênero. Sua obra-prima, Decameron, narra

histórias de dez jovens – sete moças e três rapazes –, que se refugiam "num

agradável local fora da cidade, onde passam o tempo se distraindo com

histórias que eles mesmos vão narrando, durante dez dias seguidos.”27

Boccaccio codificou o novo gênero literário, o conto, organizando as

ações dentro de uma estrutura temporal bem definida, a cornice (moldura). A

novela introdutória do Decamerão, o racconto-cornice (conto-moldura),

descreve a peste havida em 1348, bem como o clima de catástrofe e luto dela

decorrente. Ou seja, o racconto-cornice, não é somente um expediente

destinado a introduzir as novelas, mas serve para explicar o espírito que move

dez jovens a passarem dez dias em total prazer, contando histórias entre si.

Através das cem novelas narradas, Boccaccio aborda assuntos diferentes com

25

GALLAND, Antoine. As mil e uma Noites. Trad. Alberto Diniz. 13ª edição – Rio de Janeiro: Ediouro, 2001, p. 18.

26 Idem, p. 20.

27 BOCCACCIO, Giovanni. Decamerão. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo: Círculo do Livro, 1987, p.

655.

Page 35: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

35

registros linguísticos também diferentes. Compõe uma verdadeira galeria com

personagens de então.

As novelas do Decameron evidenciam o interesse e a curiosidade do

escritor florentino ao retratar os aspectos contrastantes, dramáticos e cômicos

do homem medieval. Boccaccio estabelece um modelo de narração breve

inserida em uma narrativa maior, conforme explica Giulio Ferroni: “[...] com uma

trama reduzida, uma dinâmica inventiva atraente e um aprofundamento

psicológico das personagens, porém, sempre em função da aventura”28. Esse

modelo de novela tornou-se referência obrigatória, e não apenas para

escritores italianos.

Somente durante o século XVIII, se difundem narrações de caráter

alegórico e filosófico-moral, já não mais organizadas em um racconto-cornice.

E, por apresentarem um novo tipo de organização e, e ainda, serem reunidas

de forma aleatória, tais narrações passam a ser chamadas de conto, termo que

predominará até os dias atuais, apesar de, na Itália, alguns escritores

preferirem adotar o termo novela para designar as suas histórias breves, como,

por exemplo: Giovanni Verga (Novelle rusticane, 1883), Gabriele D'Annunzio

(Novelle della Pescara, 1902) e Luigi Pirandello (Novelle per un anno, 1922).

Convém assinalar que, enquanto a novela se baseia em um fato

concluído e apresenta uma história de caráter aventuroso, o conto pode narrar

um acontecimento inconcluso ou pobre de eventos, ou limitar-se ao registro de

acontecimentos da realidade, ou da biografia do autor, ou ainda, exprimir

reflexões e estados de espírito, conforme destaca Ferroni (2000, pp.176-780).

Essas características ganham mais força no conto do século XX, no qual o fato

em si perde importância em detrimento de uma análise psicológica, ou

também, o conto pode não apresentar uma conclusão.

Convém assinalar, ainda, que nas línguas portuguesa, italiana, francesa

e alemã, os termos conto e novela remetem ao mesmo conceito;

diferentemente, em espanhol ou em inglês, o termo novela designa romance.

28

Ibidem, p. 170.

Page 36: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

36

Daí resultam as expressões novela curta ou short-story para designar uma

narrativa breve.

Acreditamos que todos os estudiosos do gênero conto estejam de

acordo que sua principal característica é a brevidade, o que não significa dizer

que, por ser breve, o conto desprezará as questões elementares para a boa

compreensão de uma história, quais sejam: O quê; Quem; Quando; Onde;

Como; Por quê. É bem verdade que alguns autores, dentre eles o nosso,

muitas vezes constróem contos que privam o leitor de algumas dessas

respostas, até porque a obra literária prescinde dessa rígida necessidade. No

livro In quel preciso momento, por exemplo, como veremos mais adiante,

Buzzati inseriu vários contos brevíssimos, que quisemos classificar como

fragmentários ou pensamentos interrompidos.

Para encerrar nossa reflexão sobre o conto e, particularmente, sobre o

conto breve, ou melhor, sobre o conto mínimo de Buzzati, colocamos em

destaque “Um caso interessante”29:

A moça disse: - Gosto da vida, sabe? - Como? Como disse? - Disse que gosto da vida. - Ah, sim? Explique isso, explique bem. - Gosto, pronto, e me desagradaria muitíssimo deixá-la. - Senhorita, explique-nos, é terrivelmente interessante... Ei! Vocês aí, venham ouvir vocês também, a senhorita aqui diz que gosta da vida!

Este brevíssimo conto nos remete, novamente, ao discurso sobre o

tempo, lembrando-nos de que através da literatura “tomamos consciência de

nossa humanidade” (BELLEMIN-NOëL, 1983, p. 12):

[...] a língua que se aprende nas relações quotidianas com os pais e amigos só serve para agir: perguntar, responder, para viver. Em suma, é só com alguma coisa como literatura [...] que o homem se interroga sobre si mesmo, sobre seu destino cósmico, sua história, seu funcionamento social e mental. (BELLEMIN-NOëL, 1983, p. 12)

29

In: "Naquele exato momento", p. 53

Page 37: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

37

É esse “interrogar sobre si mesmo”, de que fala Bellemin-Noël, com o

qual, desde as priscas eras da humanidade, nos deparamos sempre que

buscamos uma compreensão maior para aquilo que denominamos tempo.

1.4- Tempo, tempo, tempo.

No que tange à literatura, os questionamentos a respeito da efemeridade

do tempo e da busca incessante em contê-lo produziram grandes obras para a

humanidade como, por exemplo, O retrato de Dorian Gray, do escritor irlandês

Oscar Wilde, onde deparamos com Lorde Henry dizendo a Dorian que “o mais

valoroso dos seres humanos tem medo de si mesmo”30, referindo-se

exatamente aos conceitos de pecado que guardamos na memória e à

fugacidade da juventude.

No romance em questão, todas as marcas de uma vida desregrada e

sagrada exclusivamente aos prazeres carnais eram transferidas para o retrato

de Dorian, enquanto ele continuava exibindo o viço e a beleza que só se tem

aos vinte anos.

Ao longo da narrativa, evidencia-se o estreito diálogo que existe entre

memória e tempo31. Podemos citar o momento em que a personagem guardou

o quadro no sótão, na tentativa de esconder do alcance da visão as marcas

causadas pelo tempo mal vivido.

A respeito dessa relação entre tempo e memória, Yates nos diz que:

[...] a memória pertence à mesma parte da alma que a imaginação; é um conjunto de imagens mentais a partir de impressões sensoriais, mas com um elemento temporal adicionado, pois as imagens da memória não provêm da percepção das coisas presentes, mas das coisas passadas. [...] (YATES, 2010, p. 53-54)

30

WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1964, p.27. 31

Sabemos que desse diálogo também tomam partido os conceitos de medo, morte e consciência que, em capítulos posteriores, serão abordados de forma mais aprofundada.

Page 38: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

38

Ao esconder a pintura num sótão, a personagem se recusara a acessar

a memória das coisas passadas, dos atos aviltantes que transformaram a sua

imagem em algo horrendo até mesmo para ele. Aristóteles, quando tratou da

memória e da reminiscência (lembrança), distinguiu uma da outra atribuindo à

segunda a função de recuperar o conhecimento adquirido ou mesmo a

sensação causada por ele. Então, podemos inferir que Dorian se furtava não

somente à memória de seus atos, mas, também, das sensações produzidas

por eles.

Aproveitando os questionamentos que o polêmico livro de Wilde nos

proporciona, trataremos um pouco da nossa “terceira ferida de amor-próprio”:

[...] Freud infligiu ao ser humano o que [...] ele chama de sua “terceira ferida de amor-próprio”. Copérnico tinha-o forçado a reconhecer que seu pequeno planeta não era mais o centro do mundo; Darwin, que ele era apenas um animal mais afortunado que os outros e não uma criatura de origem maravilhosa; ele próprio demonstrou que “o eu não é mais o senhor na sua própria casa” [...]. 32

Sabe-se que Freud partiu da literatura para elaborar seus conceitos

relativos ao inconsciente. Foi através dela que o pai da psicanálise percebeu

que a natureza humana sempre encontra meios de externar o que lhe tange a

alma, seja porque experiencia as situações ou porque as observa na vivência

alheia. Verificou que textos como os de Goethe, Shakespeare, Flaubert, Wilde

e tantos outros estavam repletos das angústias humanas, transbordavam as

inquietudes, os medos, as neuroses, dentre outros. Nota que, ainda que o

homem não perceba, o seu inconsciente sempre encontrará um meio de

demonstrar, em nível consciente, suas motivações.

Nenhuma análise deve ser estanque, limitada e castradora. Não pode

haver exclusão. Todas as possibilidades de abordagem surgem como potencial

resposta satisfatória para o questionamento inicial. Freud sabia disso e buscou

“ouvir as palavras exatas de um paciente, em saborear o discurso preciso do

escritor”33, e o resultado disso foi ele ter-se tornado um ícone da psicanálise.

32

BELLEMIN-NOËL, Jean. Psicanálise e literatura. São Paulo: Cultrix, 1983, p. 11.

33

Idem, p. 19.

Page 39: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

39

Quando analisamos um texto literário, os mecanismos de pesquisa não

são diferentes. Jean Pouillon, em seu livro O tempo no romance, escreve a

esse respeito, quando afirma:

[...] O romance, portanto, é psicologia, e começar por separá-los para em seguida estudar as possíveis relações entre ambos é um absurdo. Seu objetivo é o mesmo: compreender a realidade humana. [...] (POUILLON, 1974, p. 32)

Podemos, então, concluir que a literatura é objeto de estudo da

psicanálise tanto quanto a psicanálise é objeto de estudo da literatura, uma vez

que “o psicólogo pretende nos transmitir a compreensão de nós mesmos” e “o

romancista a de outrem”, como escreve Pouillon (1974, p. 33).

Inicialmente, pode parecer um desvio de curso esta nossa abordagem a

respeito da psicanálise, mas, quando começarmos a tratar das divisões do

tempo dentro da literatura, nos depararemos com vários conceitos e um deles,

o que mais nos interessa, atende por tempo psicológico34, categoria à qual Reis

e Lopes atribuem a capacidade de filtrar as vivências subjetivas das

personagens, estando “diretamente relacionado com o devir existencial da

personagem”35.

A psicanálise se vale de vários métodos para avaliar as causas do

comportamento humano num sem-número de situações. Um desses meios é o

sonho, que serve como uma janela aberta para uma infinidade de símbolos os

quais representarão o estado psíquico da criatura em dado momento. Como

exemplo, recorremos, mais uma vez, a Santo Agostinho quando, no item 30 do

capítulo X das Confissões, confessa seus sonhos recorrentes e de teor

pecaminoso:

Mas na minha memória, de que longamente falei, vivem ainda as imagens de obscenidades que o hábito inveterado lá fixou. Quando, acordado, me vêm à mente, não têm força. Porém, durante o sono, não só me arrastam ao deleite, mas até à aparência do consentimento e da ação. A ilusão da imagem possui

34

O grifo é nosso.

35 REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de narratologia. Coimbra: Almedina, 2002, p. 407.

Page 40: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

40

tanto poder na minha alma e na minha carne, que, enquanto durmo, falsos fantasmas me persuadem a ações a que, acordado, nem sequer as realidades me podem persuadir. (AGOSTINHO, 2004, p. 287)

Não podemos afirmar que Freud tenha bebido na fonte agostiniana,

mas, sim, fazer uma ideia do tipo de análise que ele talvez fizesse do relato do

Santo. De nossa parte, observamos, nesse pequeno trecho, muitos elementos

já citados por nós: a interferência da memória no inconsciente; o conhecimento

empírico de que nos fala Kant; o imagético que nutre a memória, e a nossa

incapacidade de controlar a fúria do inconsciente.

Mas os sonhos podem produzir muito mais que “confissões” hereges.

Vejamos, por exemplo, o relato de Vítor Manuel sobre a produção do poema

Kubla Khan, de Coleridge:

No verão de 1798, o poeta, adoentado, retira-se para uma quinta solitária. Aqui, certa vez, enquanto lia um velho livro de aventuras, o poeta tomou um calmante a fim de debelar uma pequena indisposição. O sono sobreveio e, durante um sonho, Coleridge assistiu ao desenrolar de imagens relacionadas com o relato do velho livro e acompanhadas de versos. Ao acordar, o poeta transcreveu o poema que assim lhe fora revelado; uma visita, porém, que interrompeu por algum tempo o poeta, determinou uma pausa na transcrição e Coleridge jamais conseguiu completar o poema. (AGUIAR E SILVA, 2006, p. 556)

Servimo-nos de tais citações com o intuito de ratificar que a psicanálise

e a literatura caminham juntas em muitos aspectos. O sonho de Santo

Agostinho produziu a confissão de suas angústias inconscientes, ao passo que

o sonho de Coleridge nos prorpocionou um clássico da poesia. Em ambos os

casos temos como produto final um texto que, se por um lado é fruto da

manifestação do inconsciente, por outro é produção literária.

Aproximando-nos do nosso objetivo principal – a leitura de contos de

Buzzati –, trazemos ao nosso texto algumas correntes às quais nosso autor se

acercou, como, por exemplo, o Surrealismo, o Fantástico e o Realismo Mágico

que, acreditamos, seja a que mais se adeque à nossa análise.

O Surrealismo surgiu em Paris, no início do século XX, e tem seus

alicerces edificados sobre as teorias de Sigmund Freud, que trazia à sociedade

Page 41: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

41

da época questionamentos acerca da vulnerabilidade humana frente às

questões da mente e sua incapacidade em dominar e compreender a realidade

e as emoções suscitadas por ela. O ideário surrealista pretendia mostrar a

ausência da racionalidade humana deixando livre a manifestação,

aparentemente desconexa e sem sentido, do inconsciente na produção

artística uma vez que

Ainda vivemos sob o império da lógica, [...] Ela circula num gradeado de onde é cada vez mais difícil fazê-la sair. Ela se apóia, também ela, na utilidade imediata, e é guardada pelo bom senso. A pretexto de civilização e de progresso conseguiu-se banir do espírito tudo que se pode tachar, com ou sem razão, de superstição, de quimera; a proscrever todo modo de busca da verdade, não conforme ao uso comum. Ao que parece, foi um puro acaso que recentemente trouxe à luz uma parte do mundo intelectual, a meu ver, a mais importante, e da qual se afetava não querer saber. Agradeça-se a isso às descobertas de Freud. Com a fé nestas descobertas desenha-se afinal uma corrente de opinião, graças à qual o explorador humano poderá levar mais longe suas investigações, pois que autorizado a não ter só em conta as realidades sumárias. (BRETON, 1924, p.4)

Assim lemos nas primeiras páginas do Manifesto do Surrealismo, de

outubro de 1924, lançado por André Breton, documento que pretendia resgatar

as emoções e os impulsos humanos na produção da obra de arte. Tal

movimento contou com o engajamento de vários e importantes artistas como

Salvador Dali, René Magritte e Max Ernst, na pintura; Buñuel, no cinema, e nas

letras o próprio Breton.

Muitos são os estudiosos que inserem a produção poética de Dino

Buzzati na vertente surrealista por sugerir, em algumas de suas obras, uma

sucessão de fatos aparentemente desvinculados da realidade. Ocorre que esse

não passa de um recurso utilizado pelo autor para, exatamente, discorrer sobre

a ‘realidade’, uma vez que em nenhum de seus escritos podemos encontrar a

característica básica de tal movimento como tão bem o definiu Breton (1924,

p.12):

SURREALISMO, s.m. Automatismo psíquico puro pelo qual se propõe exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento, na ausência

Page 42: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

42

de todo controle exercido pela razão, fora de toda preocupação estética ou moral.

Outra associação, frequentemente estabelecida pelos estudiosos de

Buzzati, é a que lê sua obra pelo viés do Fantástico, vertente literária que se

apoia na dúvida e na incerteza deixadas pelo autor em sua narrativa, como

bem o escreve Todorov:

Chegamos assim ao coração do fantástico. Em um mundo que é o nosso, que conhecemos, sem diabos, sílfides, nem vampiros se produz um acontecimento impossível de explicar pelas leis desse mesmo mundo familiar. Que percebe o acontecimento deve optar por uma das duas soluções possíveis: ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto de imaginação, e as leis do mundo seguem sendo o que são, ou o acontecimento se produziu realmente, é parte integrante da realidade, e então esta realidade está regida por leis que desconhecemos. Ou o diabo é uma ilusão, um ser imaginário, ou existe realmente, como outros seres, com a diferença de que rara vez o encontra.

O fantástico ocupa o tempo desta incerteza. Assim que se escolhe uma das duas respostas, deixa-se o terreno do fantástico para entrar em um gênero vizinho: o estranho ou o maravilhoso. O fantástico é a vacilação experimentada por um ser que não conhece mais que as leis naturais, frente a um acontecimento aparentemente sobrenatural. (TODOROV, 1981, p.15-16)

Essa “vacilação” e o “tempo desta incerteza” não se mantêm nos contos

de Buzzati. As personagens buzzatianas não tem dúvida quanto às suas

experiências, ainda que pareçam, em uma leitura superficial, acontecimentos

fantásticos.

1.5- Um elo em várias correntes

Autor de uma obra singular, Dino Buzzati aproximou-se de várias dessas

correntes literárias e artísticas. Pode-se, então, perguntar em quê isso se

aproxima do tempo, que é nosso tema principal, e a resposta será "em tudo".

Isso porque nosso autor é rotulado por muitos estudiosos como sendo, por

exemplo, um autor com obras filiadas ao Fantástico; outros o categorizam

como pertencente ao Surrealismo. A dificuldade encontrada em encaixar a obra

Page 43: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

43

de Buzzati em determinado estilo e de afiliá-la a escolas, ao nosso entender, se

deve ao fato de o autor reproduzir em sua obra, em especial em seus contos,

gênero que escolhemos abordar neste trabalho, o implícito da vida, sugerindo

saídas inesperadas/inesperadas ou mágicas o que, de certa maneira, gera uma

possível ambiguidade na leitura por causa das inferências que se podem fazer.

De uma forma ou de outra, o tempo articulado pelo autor em seus contos tem,

também, muito de psicológico, se pensarmos na afirmativa de Bellemin-Noël

quando explicita que “literatura e psicanálise “lêem” o homem na sua vivência

quotidiana tanto quanto no seu destino histórico”36. E, a bem da verdade,

também acreditamos “que, em última instância, toda literatura é fantástica”37,

segundo o ponto de vista dado por Todorov, quando afirma:

[...] El que percebe el acontecimento debe optar por una de las dos soluciones posibles: o bien se trata de una ilusión de los sentidos, de un produto de imaginación, y las leyes del mundo siguen siendo lo que son, o bien el acontecimento se produjo realmente, es parte integrante de la realidade, y entonces esta realidade está regida por leyes que desconocemos. O bien el diablo es una ilusión, un ser imaginário, o bien existe realmente, como los demás seres, con la diferencia que rara vez se lo encuentra. (TODOROV, 1981, p. 15)38

Essa afirmativa nos remete ao conto de Buzzati Appuntamento con

Einstein, no qual o protagonista teve um encontro com certo Iblìs,

supostamente mensageiro do próprio Diabo, e, ao final da narrativa, o leitor

pode cogitar a possibilidade de a personagem Einstein ter ou não, de fato,

encontrado tal ser.

Lo fantástico ocupa el tempo de esta incertidumbre. En cuanto se elige una de las dos respuestas, se deja el terreno de lo fantástico para entrar en un género vecino: lo extraño o lo maravilloso. Lo fantástico es la vacilación experimentada por un ser que no conoce más que las

36

BELLEMIN-NOËL, Jean. Psicanálise e literatura. São Paulo: Cultrix, 1983. 37

COSTA, Flávio Moreira da. Os melhores contos fantásticos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. 38

[...] O que percebe o acontecimento deve optar por uma das duas soluções possíveis: ou bem se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto da imaginação, e as leis do mundo seguem sendo o que são, ou bem o acontecimento se produziu realmente, é parte integrante da realidade e, então, esta realidade está regida por leis que desconhecemos. Ou bem o diabo é uma ilusão, um ser imaginário, ou bem existe realmente, como os demais seres, com a diferença que raras vezes o encontramos. (TN)

Page 44: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

44

leyes naturales, frente a un acontecimento aparentemente sobrenatural.

El concepto de fantástico se define pues con relación a los de real e imaginário, y estos últimos merecem algo más que uma simple mención. [...] (TODOROV, 1981, p. 15)39

O conto narra a história do cientista Alberto Einstein, que, em um fim de

tarde de outono, fazia um despretensioso passeio pelas ruas de Princeton,

depois do trabalho. Enquanto admirava a paisagem:

[...] D’un subito Einstein vide intorno a sé lo spazio cosiddetto curvo, e lo poteva rimirare per diritto e per rovescio, come voi questo volume.40 (BUZZATI, 2007, p. 249)

Primeiramente, ele ficou meio perturbado com a descoberta. Sentia um

misto de felicidade e incredulidade, que só o fato em si acalmava. Num

segundo momento, com as emoções mais controladas, sentiu-se envaidecido:

[...] E benché egli fosse un uomo saggio, che non si preoccupava della gloria, tuttavia in quei momenti si considerò fuori del gregge come un miserabile tra i miserabili che si accorge di avere le tasche piene d’oro. Il sentimento dell’orgoglio si impadronì quindi di lui.41 (BUZZATI, 2007, p. 250)

Na sequência, com a mesma rapidez com que essa incontestável

verdade saltou aos seus olhos, ela desapareceu, deixando apenas a certeza de

sua existência. Nesse ínterim, Alberto se viu perto de um posto de gasolina,

que jamais vira nas redondezas, e percebeu que um homem negro aguardava

os clientes chegarem.

39

O fantástico ocupa o tempo da incerteza. Enquanto se escolhe uma das duas respostas, se deixa o terreno do fantástico para entrar em um gênero próximo: o estranho e o maravilhoso. O fantástico é a vacilação experimentada por um ser que não conhecemos mais que as leis naturais, frente a um acontecimento sobrenatural.

O conceito de fantástico se define pois com relação ao de real e imaginário, e estes últimos merecem algo mais que uma simples menção. (TN)

40 [...] De repente, Einstein viu em volta de si o espaço dito curvo, e podia admirá-lo frente e verso, como

vocês podem fazer com este volume. (TN)

41 [...] E ainda que ele fosse um homem sábio, que não se preocupava com a glória, naquele momento se

considerou fora do rebanho como um miserável entre os miseráveis que se dá conta de que tem os

bolsos cheios de ouro. Então o sentimento de orgulho se apoderou dele. (TN)

Page 45: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

45

[...] Così in piedi, risultava altissimo, più bello che brutto, di fattezze africane, formidabile; e nella vastità azzurra del vespero il suo sorriso bianco risplendeva.42 (BUZZATI, 2007, p. 250)

Podemos observar que a marcação do tempo é feita de maneirra sutil.

Primeiramente, o narrador anuncia que a história começa num entardecer de

outono; é como se o tempo começasse a correr de fato a partir dessa “vastità

azzurra del vespero”43. E esse movimento temporal continua:

Il negro disse: <<Ho bisogno di voi per una cosa segreta. E non la dirò che nell’orecchio>>. I suoi denti biancheggiavano più che mai intanto si era fatto buio. Poi si chinò all’orecchio dell’altro: <<Sono il diavolo Iblìs>> mormorò <<sono l’Angelo della Morte e devo prendere la tua anima>>.44 (BUZZATI, 2007, p. 250)

Fez-se noite e os dentes do Anjo da Morte brilhavam mais que nunca.

Mário Quintana já escreveu Da morte:

Um dia... pronto! Me acabo. Pois seja o que tem de ser. Morrer, que me importa? O diabo, É deixar de viver!45

Assim, também Alberto Einstein não queria "deixar de viver",

principalmente porque havia acabado de fazer a descoberta das descobertas.

Resolveu, então, barganhar com Iblìs um mês a mais de vida, com o objetivo

de concluir sua recente e inacabada teoria sobre a curvatura do espaço/tempo.

O anjo da morte aceitou a proposta com um sorriso malicioso. Mas o tempo

voa.

42

[...] Assim em pé parecia altíssimo, mais bonito que feio, com feições africanas, formidável. E, na vastidão azul do entardecer o seu sorriso branco resplandecia. (TN)

43 Vastidão azul do entardecer. (TN)

44 O negro disse: “Preciso de você para uma coisa secreta. E só posso contar no seu ouvido”. Os seus

dentes brancos iluminavam mais que nunca, uma vez que já era noite. Depois se inclinou em direção à orelha do outro: <<Sono il diavolo Iblìs>>, murmurou, <<sou o Anjo da Morte e devo levar a tua alma>>. (TN)

45 http://quintanaeterno.blogspot.com.br/2009/02/mario-quintana-faleceu-em-porto-alegre.html

(acesso em 31/03/2015)

Page 46: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

46

Un mese è lungo se si aspetta la persona amata, è molto breve se chi deve giungere è il messaggero della morte; più corto di un respiro. Passò l’intero mese e di sera, riuscito a restar solo, Einstein si portò sul luogo convenuto. C’era la colonnetta di benzina e c’era la panca con il negro, solo che adesso sopra la tuta aveva un vecchio cappotto militare: faceva freddo, infatti.46 (BUZZATI, 2007, p. 252)

Esse trecho do conto merece duas considerações. A primeira vem do

filósofo e escritor brasileiro Luiz Felipe Pondé, quando discursa sobre o “Tempo

sagrado, Tempo profano”. Afirma Pondé que uma das diferenças que existem

entre nós e Deus é que, para Ele, o tempo não passa no sentido de consumi-lo;

para nós, seres humanos, o passar do tempo faz que nos percamos no que

chamamos de velhice. É o deixar de ser.

[...] Toda vez que o sagrado se manifesta, qualquer que seja o código religioso, ele altera a relação do ser humano com o tempo e com o espaço. [...] Quando você está num momento de tempo que é considerado sagrado, aquele momento, ele é qualitativamente diferente de todos os momentos. [...] O que significa um momento de tempo sagrado: significa um momento que está fora do seu dia a dia [...] quando você está nesse momento, ele ressignifica todos os outros momentos.47

O “diavolo Iblìs” encerra a representação do sagrado, no sentido em que

fala o supracitado filósofo, uma vez que para ele o tempo não passa. Mas, no

conto, ele detém o poder de parar o tempo do homem Alberto Einstein.

A segunda consideração que fazemos refere-se à sutil indicação de data

que acreditamos estar inserida nesse parágrafo. Quando lemos “aveva un

vecchio cappotto militare”48 e, sabendo que o “Angelo della Morte” precisava

das conclusões teóricas de Einstein para algo que deduzimos ser a construção

da bomba atômica, podemos inferir que a data provável desse encontro

inusitado esteja em algum momento entre 1905 e 1919, período no qual

46

Um mês é longo, se se espera a pessoa amada; é muito breve, se quem deve chegar é o mensageiro da morte; é mais curto que um suspiro. Passado um mês, à tarde, quando conseguiu ficar só, Einstein foi até o local combinado. Lá estava a coluna do posto de gasolina e o banco com o negro, só que agora ele usava um velho casaco militar sobre o macacão: de fato fazia frio. (TN)

47 https://www.youtube.com/watch?v=9FIacd4lKPg (acesso em 15/12/2014)

48 Tinha um velho casaco militar. (TN)

Page 47: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

47

ocorrem as descobertas e confirmações das teorias de Albert Einstein e que

antecede a Segunda Grande Guerra Mundial. Dessa forma, o “capote militar”

seria a sinalização do momento/necessidade bélica da descoberta.

Talvez seja interessante que tomemos em consideração a opinião e o

posicionamento do próprio Buzzati a respeito da guerra:

Quando dichiarano: “La guerra é la cosa più orrenda di questa terra”, rispondo: non é vero. Ci sono delle cose peggio della guerra: la malattia é peggio della guerra; la prigionia é peggio della guerra… La guerra é una cosa stupenda. Tant’é vero che tutti gli uomini che io conosco, arrivati ad una certa etа, le cose che ricordano con maggior trasporto nostalgia e amore, proprio, sono state le loro esperienze di guerra. Ci sarà qualche motivo… Vuol dire che la guerra consente all’uomo di manifestare se stesso, e di essere giovane… Non c’é nulla che consenta all’uomo di essere giovane come la guerra. Molto più dell’amore49

Retornando ao conto, observamos que o cientista pedira mais um mês

de vida ao diabo Iblìs, porque sua pesquisa era muito complexa e ainda lhe

faltavam alguns dados importantes para a conclusão, ao que o diabo atendeu.

Trinta dias depois, um novo encontro, no mesmo local, e o protagonista já

estava pronto para cumprir sua parte no acordo, mas: “Va, va, vecchia

canaglia... Torna a casa e corri, se non vuoi prenderti una congestione

polmonare... Di te, per ora, non me ne importa niente.50 (BUZZATI, 2007, p.

253)

Assim termina o conto, deixando a cargo da imaginação do leitor e do

próprio protagonista os motivos que fizeram o diabo querer o fim da pesquisa

de Einstein. E, por isto, evocamos Bontempelli, que afirma: o “unico strumento

49

Quando declaram: “A guerra é a coisa mais horrenda da terra”, respondo: não é verdade. Existem coisas piores que a guerra: a doença é pior que a guerra; a prisão é pior que a guerra... A guerra é algo estupendo. Tanto é verdade que todos os homens que eu conheço, chegando a certa idade, se recordam com maior nostalgia e amor, exatamente, das suas experiências de guerra. Tem algum motivo pra isso... Quer dizer que a guerra permite ao homem manifestar a si mesmo, e de ser jovem... Não existe nada que permita mais ao homem ser jovem do que a guerra. Muito mais que o amor. (TN) (http://rinabrundu.com/2012/01/30/a-quarantanni-dalla-morte-tutto-sullopera-del-giornalista-dino-buzzati-traverso-and-more-o-quasi/ - acesso em 10/04/2013)

50 Vai, vai, velho patife... Volta pra casa e corre, se não quiser pegar uma pneumonia... De você, por

hora, não quero nada. (TN)

Page 48: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

48

del nostro lavoro sarà l’immaginazione”51 (BONTEMPELLI, 2006, p.16). Conta,

também, a nossa forma de observação.

Jean Pouillon, em seu livro O tempo no romance, nos propõe três formas

de se observar um texto: a “visão “com”, onde escolhemos um único

personagem e o “focalizamos”52 estabelecendo com ele uma compreensão

empática, por assim dizer; a “visão “por detrás”, onde estabelecemos uma

espécie de focalização analítica, buscando “considerar de maneira objetiva e

direta a sua vida psíquica”53; e, por fim, o que ele chama de “visão de “fora”,

onde focalizamos o que o significado psicológico de tudo que cerca a

personagem pode representar para ela, e em que pode afetar as suas ações.

São algumas das várias possibilidades de análise que um texto nos

oferece, mas, na verdade, toda e qualquer leitura que façamos dele terá

sempre como base o nosso conhecimento enciclopédico, as nossas

experiências, os nossos vários modos de ver ou focalizar o mundo que nos

cerca, exatamente como fazemos na vida real, quando estamos na condição

de leitores dos acontecimentos que nos rodeiam. Se nos deparamos com um

texto, leremos as atitudes das personagens e as julgaremos segundo as

nossas convicções filosóficas, religiosas, sociais, por exemplo. Imprimiremos,

queiramos ou não, os nossos (pre)conceitos às personagens tal como fazemos

nas nossas relações pessoais. A diferença, muitas vezes, é que podemos

verbalizar, tornar públicas as nossas impressões sobre tal ou qual personagem,

ao passo que, com aqueles que nos cercam, as nossas percepções nem

sempre são publicadas, ou publicáveis.

Vale lembrar que essa é uma atitude inerente ao ser humano e,

portanto, não configura demérito para ninguém. Somos todos críticos e

questionadores em potencial. Isto se dá porque seremos sempre o primeiro

parâmetro que estabeleceremos para toda e qualquer comparação que

51

O único instrumento do nosso trabalho será a imaginação. (TN)

52 Optamos pelo termo focalização, proposto por Gerard Genette, por considerá-lo mais abrangente que

visão, termo proposto por Jean Pouillon. 53

POUILLON, Jean. O tempo no romance. São Paulo: Cultrix, 1974, p. 62.

Page 49: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

49

façamos. A leitura/interpretação primeira que fazemos ocorre em nós mesmos,

conforme afirma Bellemin-Noël:

[...] O que é que eu leio quando leio? O que um escritor lê quando escreve? A resposta é a mesma: lemos primeiro a nós mesmos, seja qual for a obra literária, quer a produzamos, quer a consumamos. (BELLEMIN-NOËL, 1983, p. 34. Os grifos são do autor.)

Como já foi dito, a narrativa nasce para explicar o mito que, por sua vez,

só se explica através da narrativa. Os mitos surgiram para aplacar o medo e as

angústias do homem desde muito antes de ele, o homem, se dar conta de si

mesmo.

Quando o raio, durante um temporal, caiu numa árvore provocando um

incêndio, o homem primitivo rendeu culto ao deus fogo por vários motivos. Por

não entender o fenômeno e não se saber capaz de reproduzi-lo, ele temeu e

automaticamente leu o acontecimento como sendo algo de superior e

poderoso, maior que ele. Num segundo momento, percebeu a recorrência do

evento em dadas circunstâncias de observação e, pouco a pouco, foi-se dando

conta dos benefícios e prejuízos que o fogo poderia proporcionar, mas, ainda

assim, continuava sem entender como um raio de luz vindo do céu poderia

produzi-lo. Assim, pode-se dizer, nasce um Deus.

Assim se cria um mito para justificar o que não entendemos, o que não

dominamos e, principalmente, o que não conseguimos controlar. E, dessa

forma, a narrativa do mito nasce da necessidade de perpetuarmos nossas

memórias e de codificar as nossas raízes. A narrativa é vida e,

[...] Além disso, sob essas formas quase infinitas, a narrativa está presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades; a narrativa começa com a própria história da humanidade; não há em parte alguma povo algum sem narrativa; todas as classes, todos os grupos humanos têm suas narrativas, e frequentemente estas narrativas são apreciadas em comum por homens de culturas diferentes, e mesmo opostas; a narrativa ridiculariza a boa e a má literatura:

Page 50: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

50

internacional, trans-histórica, trans-cultural; a narrativa está aí, como a vida. [...]54

A despeito da própria vida, a narrativa também está sujeita às

intempéries do tempo, como passaremos a examinar no próximo capítulo,

tendo alguns contos de Dino Buzzati como corpus.

54

BARTHES, Roland [et al.]. Análise estrutural da narrativa. Rio de Janeiro: Vozes, 2008, p. 19.

Page 51: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

51

CAPÍTULO II

TEMPO, MEMÓRIA, INESPERADO

Nenhuma obra de arte é realmente “fechada”, pois cada uma delas congloba, em sua definitude exterior, uma infinidade de “leituras” possíveis. Umberto Eco55

Diversas são as possibilidades de se analisar o tempo dentro da

narrativa e muitos foram os teóricos, ao longo da história, a se aventurar em

tão laboriosa tarefa. Também, muitas são as formas de se observar o tempo na

composição de uma determinada obra e, por isto, para ilustrar o enfoque que

decidimos empreender nesta tese, optamos por fazer uma pequena digressão,

partindo da Sétima Arte, abordando o filme de suspense intitulado Ponto de

vista56, um longa-metragem bem ao estilo americano, que assim pode ser

resumido: Durante uma histórica conferência sobre o combate ao terrorismo

mundial, realizada na Espanha, o presidente dos Estados Unidos da América é

atingido por uma bala assassina. Oito cidadãos conseguem ver o ataque, mas

se indaga sobre o que cada um deles realmente teria visto. À medida que os

momentos anteriores ao tiro fatal são revistos, através dos olhos de cada

testemunha, a identidade do assassino ganha sua forma real. Quando o

espectador achar que descobriu a resposta, de onde partira o tiro, a chocante

verdade será revelada.

Nos primeiros oito minutos do filme, o espectador é apresentado à visão

panorâmica da ação, através da ótica de alguém que assiste à transmissão

televisiva, ou seja, descobre, através da equipe jornalística que se encontra no

local que, durante uma conferência em Salamanca, Espanha, o presidente dos

Estados Unidos da América faria um pronunciamento em praça pública e, antes

que começasse a proferir o seu discurso, é gravemente ferido por dois tiros.

Alguns minutos após os disparos, quando o presidente já se encontra na

55

ECO, Umberto. Obra aberta. São Paulo: Perspectiva, 1976, p. 67. 56

Título original: Vantage point. PONTO de vista. Direção: Pete Travis. Hollywood: Columbia Pictures, 2008 [produção]. 1 filme (90 min.), DVD.

Page 52: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

52

ambulância a caminho do hospital, uma bomba é detonada no palanque onde

ele havia sido atingido minutos antes, ferindo e matando dezenas de pessoas,

inclusive a repórter que fazia a cobertura do evento.

Nesse momento, o narrador anuncia um retrocesso de vinte e três

minutos na narrativa e o filme recomeça, a partir da ótica da personagem de

Dennis Quaid, o guarda-costas. E o espectador revê toda a cena, mas, dessa

vez, pela perspectiva de quem está dentro da ação.

E transcorrem mais quatorze minutos de filme até que, outra vez, somos

convidados a rever a cena, agora pelo olhar da personagem Enrique, um

policial local. Passam-se mais oito minutos.

Nesse momento, contados cerca de trinta minutos de exibição,

retornamos ao início através do olhar da personagem Forest Whitaker, um

solitário e curioso turista que, no afã de registrar cada segundo de sua viagem

e devidamente equipado com sua filmadora, grava tudo ao seu redor.

O olhar dessa personagem nos conduz por cerca de doze minutos e

contempla a totalidade da ação, ou seja, início, meio e fim da história. Mas o

espectador ainda não sabe disso.

O narrador nos convidará a mais dois retornos, um sob o olhar do

próprio presidente norte-americano e outro, o último, que nos conduzirá à

conclusão da trama, sob o atento olhar dos prováveis terroristas.

A construção da narrativa em flashback não é uma novidade no cinema

– em C’eravamo tanto amati (1974), filme dirigido pelo cineasta italiano Ettore

Scola, por exemplo, as personagens Gianni, Antonio, Nicola e Luciana têm

suas histórias de juventude narradas a partir de um encontro fortuito, após três

décadas de separação – e nem na literatura, vide Os Lusíadas (c. 1556), de

Luís de Camões, em que temos um conhecimento mais amplo das

personagens por conta desse recurso. Mas, o que nos importa, no filme, são as

possibilidades de leituras que ele nos oferece a partir da “focalização” que

escolhamos para efetuar nossa análise.

Page 53: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

53

A diegése do filme é de cerca de noventa minutos e a ação em si ocorre

num espaço de tempo de, aproximadamente, quarenta minutos. É evidente que

os recursos fílmicos diferem muito dos literários, mas nos utilizamos deles, e,

em particular, desse filme, para definir que o nosso olhar em relação à

construção do tempo nos contos de Dino Buzzati será o do guarda-costas

atento que, além de registrar o que o cerca e que é comum a todos, enxerga o

que o olhar comum não consegue perceber.

Assim como no filme, onde uma mesma situação pode ser percebida

sob várias ângulos diferentes, a construção da categoria tempo dentro de uma

obra literária também pode ser observada sob vários prismas.

Carlos Reis e Ana Cristina Lopes, no Dicionário de narratologia57,

escrevem que a “condição primordialmente temporal de toda narrativa”58 levou

vários estudiosos a se debruçarem sobre o tema tomando por base,

principalmente, autores ficcionista como Joyce e Proust, por exemplo, “que

precisamente fizeram do tempo uma categoria central de seus relatos”59. Nesse

grupo de autores incluímos Dino Buzzati.

A partir dos estudos elaborados por pesquisadores como Pouillon,

Ricoeur, Genette e outros, Reis dividiu o tempo narrativo em quatro grupos, a

saber60: o Tempo da história que se refere a ordem cronológica dos “eventos

susceptíveis de serem datados com maior ou menor rigor”; o Tempo do

discurso, que se refere a ordem e/ou velocidade que o narrador confere ao

universo diegético; o Tempo diegético ou histórico que é aquele no qual se

situam os acontecimentos em determinado momento histórico, ou seja,

contextualiza historicamente os eventos narrados; e, finalmente, o Tempo

psicológico em que “entende-se como tal o tempo filtrado pelas vivências

subjetivas da personagem, erigidas em factor de transformação e

57

REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de narratologia. Coimbra: Almedina, 2002. 58

Idem, p. 405. 59

Ibidem, p. 405-406. 60

Ibidem, p. 406 e seguintes.

Page 54: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

54

redimensionamento (por alargamento, por redução ou por dissolução) da

rigidez do tempo da história.”

No supracitado filme, o tempo da história é de, aproximadamente,

quarenta minutos, contra os noventa minutos do tempo do discurso, como

dissemos. No conto “Cacciatori di vecchi”, de Dino Buzzati, o tempo da história

equivale a uma noite, enquanto que o tempo do discurso consome sete

páginas.

O tempo do discurso no filme é construído em flashbacks, nos quais o

narrador nos apresenta o tempo dos olhares das personagens. No conto de

Buzzati, o tempo do discurso e o da história seguem paralelamente.

Em Ponto de vista, o tempo diegético/histórico se passa algum tempo

após os atentados de 11 de Setembro de 2001, ao passo que o conto

Cacciatori di vecchi não nos oferece uma data precisa, mas a frase “[...] I

giornali, la radio, la televisione, i film gli avevano dato corda”61 nos remete a

algum período após a década de 1960.

No que tange ao tempo psicológico, o filme tem pouco a acrescentar; em

contrapartida, no conto esse tempo é determinante, uma forte presença.

Benedito Nunes62 apresenta uma lista ampliada dos conceitos de tempo:

tempo físico, caracterizado pela irreversibilidade do tempo e baseado na

relação de causa e efeito; tempo psicológico, que varia de indivíduo para

indivíduo e sua percepção se dá ora em função do passado ora em função do

futuro; tempo cronológico, caracterizado pelo tempo dos calendários – os ritos

litúrgicos, por exemplo; e nesse aspecto se liga ao tempo físico; o tempo

histórico, que demarca os eventos históricos – a revolução industrial, por

exemplo e o tempo linguístico, que depende do ponto de vista da narrativa, o

que Genette chama de “focalização”, e detalha:

Alinhamos cinco conceitos diferentes – tempo físico, tempo psicológico, tempo cronológico, tempo histórico e

61

Os jornais, o rádio, a televisão, os filmes lhes deram trela. (TN) 62

NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. São Paulo: Editora Ática, 1988.

Page 55: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

55

tempo linguístico – que diversificam uma mesma categoria, combinada à quantidade (tempo físico ou cósmico), à qualidade (tempo psicológico) ou a ambas (tempo cronológico), esse último aproximando-se do primeiro pela objetividade e opondo-se à subjetividade do segundo, cuja escala humana difere da do tempo histórico e da do tempo linguístico, ambos de teor cultural (NUNES, 1988, p. 23)

Todos esses “tempos” estão relacionados e constróem, juntos, a

narrativa literária, mas acreditamos também que um deles pode dar um salto

semântico e significar algo mais que uma categoria narrativa: o tempo

psicológico.

Por conta de todas essas possibilidades de leitura do tempo dentro da

narrativa e, principalmente, por adotarmos o posicionamento de lê-lo como

sendo também um catalisador em potencial do sentimento de solidão das

personagens, dedicaremos o próximo capítulo ao nosso corpus, no qual

propomos a leitura de contos de Dino Buzzati selecionados, especialmente,

dos livros Sessanta racconti, Le notte difficili e In quel preciso momento.

Antes, porém de iniciarmos a leitura proposta, convém trazer ao nosso

discurso a questão da personagem, uma categoria fundamental da narrativa.

É entorno da personagem que toda a trama se desenrola no espaço por

ela ocupado. É também através dela e de suas experiências e impressões que

o tempo se estabelece como a terceira face da pirâmide narrativa:

Personagem, Espaço e Tempo.

As personagens reproduzem tudo o que define o ser humano de forma

tão plena, que, muitas vezes, chegamos a crê-las pessoas de fato. Daí, muitas

vezes, o querer colocá-las em um divã e analisar seus medos, anseios e

angústias, como se fossem – elas e seus problemas – reais.

No Dicionário de Narratologia encontramos a definição de personagem

como sendo “o eixo entorno do qual gira a acção e em função do qual se

organiza a economia da narrativa” (REIS; LOPES, 2002, p. 314).

Nos contos de Dino Buzzati, esse eixo é diretamente influenciado pela

categoria tempo, uma vez que ele surge como o mecanismo que desperta o

Page 56: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

56

medo, que o trás à tona, tirando-o da parte submersa do iceberg de nossa

consciência. E, por isso, muitas vezes, o tempo sobressai-se na narrativa,

sobrepujando as demais categorias do discurso para fazer surgir o medo (da

morte) que fingimos desconhecer ou preferimos não (re)conhecer. Em outros

momentos, o mesmo tempo nos assola de tal maneira que não conseguimos

dar continuidade aos nossos pensamentos ou mesmo às ações. Essa

peculiaridade também pode ser observada nos contos buzzatianos, como a

seguir demonstraremos, começando por In quel preciso momento (Naquele

exato momento).

2.1- Naquele exato momento: contos mínimos

In quel preciso momento é o livro que consideramos ilustrar a afirmação

contida no parágrafo anterior. Nesse livro, Dino Buzzati reúne uma série de

contos mínimos, que findam em seu ápice, no momento em que

deveriamcomeçar o declínio rumo ao desfecho. A construção das tramas causa

expectativa com relação à conclusão do conto que, na maioria das vezes, o

autor não oferece, dando-nos a impressão de uma série de “pensamentos

interrompidos”.

Diferente estrutura encontramos nas coletâneas Sessanta racconti e Le

notti difficili, por exemplo, onde todos os contos apresentam um início bem

marcado com a apresentação das personagens e do espaço ocupado por elas;

um meio, em que conhecemos o ápice das ações das personagens, e um fim,

onde nos é apresentada a conclusão de todas as ações praticadas pelo

protagonista. Alguns desses contos são longos como, por exemplo, “Sette

piani”, contido em Sessanta racconti, que conta quase vinte páginas contra as

dez linhas de “Imprudência gramatical”, coletado em In quel preciso momento.

Acreditamos que o “non conclude”63 é verdadeiro a partir da premissa

básica que nenhuma obra literária poderá gabar-se de possuir o ponto final, de

fato, em sua narrativa; a conclusão definitiva das interpretações possíveis.

63

Título do último capítulo do romance Uno, nessuno e centomila, de Luigi Pirandello.

Page 57: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

57

Esse gran finale caberá ao leitor64 que, com base em suas experiências,

conhecimento de mundo e leituras anteriores, intuirá possíveis causas para os

desfechos narrados, porque “cada vez que a ponta da caneta toca o papel, no

fundo há o pensamento de quem vai ler amanhã”65.

No caso do livro In quel preciso momento, se tudo o que temos é um

“pensamento interrompido”, faz-se necessário observar a obra como um todo

harmônico onde cada conto representa, de certa forma, parte de uma mesma

história. Se assim procedermos, poderemos encontrar o fio que une de forma

plena cada um dos microcontos ao redor de um mesmo tema: o tempo. Mais,

no decorrer do livro, o autor pontua o tempo da narrativa de forma sutil,

inserindo aqui e ali contos cujos títulos constituem datas progressivas como,

por exemplo: “Janeiro de 1944”, “A invasão dos hunos – fevereiro de 1944”,

“Trombeta 1944”, “Abril de 1945” e finda com “1º de janeiro de 1962”.

Não podemos afirmar que a diegese seja de dezoito anos. Poderíamos,

talvez, divagar nessa maioridade que principia a vida adulta e consequente

maturidade para analisar as idades de nossa vida.

Já no livro Le notti difficili, Buzzati reúne contos que se enquadram na

definição canônica de “narrativa breve e concisa, contendo um só conflito, uma

única ação – com espaço geralmente limitado a um ambiente –, unidade de

tempo, e número restrito de personagens”66. A temática continua sendo a

mesma: o tempo, mas a construção da obra difere de In quel preciso momento

por conter histórias independentes, diegéticamente falando, ainda que ligadas

pela mesma temática.

Vale lembrar que, ainda que a temática seja a mesma, o autor aborda

diferentes aspectos do tempo. Construirá a abordagem do tempo sob o alicerce

da Física e das teorias de viagem tempo/espacial em alguns contos; nos falará

das questões socioeconômicas da humanidade, caso a morte fosse impedida

64

ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 81.

65 Buzzati, Dino. Naquele exato momento. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 49

66

HOUAISS, Antônio [et al.]. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p. 536.

Page 58: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

58

de atuar; abordará os temores que o passar do tempo traz para todos os que

vivem e, principalmente, encontraremos em seus contos a eterna solidão que

habita todo ser que vive, e morre.

Alguns contos compreendem outros menores, como é o caso de, por

exemplo, “Smagliature del tempo”, que é composto por três outros contos e traz

a seguinte introdução:

Il tempo, si sà, è irreversibile. Eppure, come la fatale discesa dei fiumi consente qua e là dei rigurgiti, dei borghi, delle controonde che potrebbero quase far supporre eccezioni alla legge della gravità, così, nella smisurata trama del tempo, di quando in quando si determinano piccole crepe, intoppi, smagliature, che per brevi istanti ci lasciano sospesi in una dimensione arcana, agli estremi confini dell’esistenza.67 (BUZZATI, 2002, p. 271)

Nesse conto, o autor constrói três situações nas quais seria possível o

suporte da Física para a leitura de haver uma fenda na curvatura espaço/tempo

que possibilitasse, de alguma forma, uma previsão do futuro. Chamaremos a

esses pequenos contos de "contos integrantes".

O primeiro conto integrante de Smagliature del tempo se intitula “Il

martire” e narra a história de um joalheiro que viajava por uma autoestrada com

seus guarda-costas. Em dado momento da viagem, o joalheiro e os guarda-

costas avistaram um jovem e “egli agita le mani come invocando aiuto”68. O

carro entretanto não pára imediatamente, seguindo por mais “un trecento

metri”. Quando “provvisti di torce eletriche69”, voltaram ao local onde haviam

avistado o jovem, o encontraram estendido no chão, morto, cercado por uma

multidão de pessoas, que aparentemente não os via. Saíram dali estarrecidos e

seguiram seu caminho falando sobre o acontecimento inesperado. Horas

depois, quando retornavam pela mesma estrada, no lugar em que tinham visto

67

Sabemos que o tempo é irreversível. Contudo, como a fatal descida dos rios permite, aqui e ali, transbordamentos, redemoinhos, repuxos que quase poderiam supor exceções à lei da gravidade, assim, na infinita trama do tempo, de quando em vez, há pequenas fendas, obstáculos, falhas que, por breves instantes, nos deixam suspensos numa dimensão arcana, nos extremos confins da existência. (MORETTO, 1986, p. 252)

68 Agita os braços como se pedisse ajuda. (MORETTO, 1986, p. 252)

69 Munidos de lanternas elétricas. (MORETTO, 1986, p. 252)

Page 59: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

59

o insólito acidente, encontraram uma lápide que registrava um acontecimento

que só se efetivaria em dezesseis anos e, no curto espaço de tempo que

levaram para buscar uma câmera fotográfica no carro, pois desejam fotografar

a inscrição, a lápide desaparecera.

Difatti, al lume delle lampadine, non si riesce più a trovare né croce né lapide. L’erbetta stenta dal bordo, e basta. Non un segno. Neppure orme recenti. Mi chiedo: dovranno realmente accadere le cose viste stanotte? O è stato un sogno? L’Anselmo Tito Gambellotti che fra sedici anni dovrà immolare la giovinezza per la causa della libertà (quale libertà?) quanti anni ha oggi? Se riuscissi a rintracciarlo, potrei metterlo sull’avviso? O è stato tutto già scritto?70 (BUZZATI, 2002, p. 273)

Já o segundo conto integrante, intitulado “La targa”, narra a história de

um homem que, enquanto dirigia seu carro, foi alertado por um outro motorista

que sua placa estava amassada. O protagonista parou o automóvel alguns

metros adiante e constatou que sua placa não estava amassada. Pensou: “Uno

scherzo, dunque. Ma il signore che mi ha avvertito non sembrava

assolutamente un tipo da scherzi. E poi, a che scopo? Evidentemente aveva

visto male.”71 (BUZZATI, 2002, p. 274)

Uma semana depois, percorrendo a mesma estrada, foi mais uma vez

abordado, dessa vez por um rapaz, que lhe disse que sua placa caíra e que

uma lanterna do carro fora quebrada. Mais uma vez ele interromperia seu

caminho para verificar a informação que, dessa vez, para sua surpresa, era

verdadeira.

No terceiro e último conto integrante, intitulado por Buzzati de “La

nonna”, é narrada a história de um homem de 34 anos, que fora passar um fim

de semana na vivenda de uns amigos e, quando saiu de seu quarto para

almoçar com eles, encontrou uma bela jovem no corredor Ela trazia “in mano

70

De fato, à luz das pequenas lanternas não conseguimos achar nem cruz nem lápide. A pobre relvazinha da margem e pronto. Nem um sinal. Nem pegadas recentes. Pergunto-me: as coisas vistas esta noite acontecerão realmente? Ou foi um sonho? Anselmo Tito Gambellotti, que dentro de 16 anos deverá imolar a juventude pela causa da liberdade (que liberdade?), quantos anos tem hoje? Se conseguisse encontrá-lo, poderia avisá-lo? Ou tudo já está escrito? (MORETTO, 1986, p. 253)

71 Portanto, uma brincadeira. Mas o homem que me avisou não parecia absolutamente ser do tipo de

quem faz brincadeiras. E além disso com que finalidade? Evidentemente ele vira mal. (MORETTO, 1986, p. 254)

Page 60: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

60

un pacchetto rotondo legato con un nastro azzurro”72. Cumprimentaram-se e o

protagonista “discesi in giardino col meraviglioso presentimento che tra poco, in

un mondo o nell’altro, avrei conosciuto l’adorabile creatura; e che forse la mia

vita sarebbe cambiata per sempre”.73

No jardim, o homem foi apresentado à avó de seu amigo que, para seu

embaraço, afirmou já conhecê-lo. Ele gentilmente negou tal afirmação, dizendo

não recordar-se de um possível encontro anterior com ela:

Io sì, ricordo, io sì, come fosse ieri. E sa che cosa devo dirle? Che lei è un miracolo. Un miracolo! Lei ha fatto un patto col diavolo, dica la verità... No, no, sto scherzando. Ha ragione lei, di guardarmi in questo modo. Si immagini, sono passati da allora almeno cinquant’anni... Non poteva essere lei, uno identico, le giuro... [...] Soltanto una cosa: la sera, senza che lui sapesse, senza dirgli una parola, gli ho fatto trovare in camera una torta. Una torta d’arance. Fatta apposta per lui. Era la mia specialità...74 (BUZZATI, 2002, p. 275-76)

Quando, mais tarde, ele retornou ao seu quarto não ousou “neppure

aprire il pacchetto legato con un nastro azzurro che si trovava sul comò (perché

sapevo ch’era la torta d’arance, fatta cinquant’anni prima).”75

A personagem não apresenta nenhum traço de dúvida quanto ao fato de

que aquele era o pacote sobre o qual a senhora falara há pouco. Ainda que

exista um quê de insegurança ou um questionamento acerca das experiências

inusitadas vividas pelas personagens, ao fim dos relatos todas elas aceitam o

ocorrido como se fosse natural e possível.

72

Na mão um pacotinho redondo, amarrado com uma fita azul. (MORETTO, 1986, p. 254)

73 Desci para o jardim com o maravilhoso pressentimento de que dentro em pouco, de uma forma ou de

outra, iria conhecer a adorável criatura; e que talvez minha vida mudasse para sempre. (MORETTO, 1986, p. 254)

74 Eu, sim, lembro-me como se fosse ontem. E sabe o que devo dizer-lhe? Que o senhor é um milagre.

Um milagre! O senhor fez um pacto com o diabo, diga a verdade... Não, não, estou brincando. O senhor tem razão para olhar-me dessa maneira. Imagine, desde então passaram-se pelo menos 50 anos... Não podia ser o senhor. O senhor ainda não havia nascido. Mas era alguém como o senhor, idêntico, juro... [...] Somente uma coisa: à noite, sem que ele soubesse, sem dizer-lhe uma palavra, coloquei uma torta em seu quarto. Uma torta de laranja. Feita propositalmente para ele. Era a minha especialidade... (MORETTO, 1986, p. 254)

75 Abrir o pacotinho amarrado com fita azul que se encontrava sobre a cômoda (porque sabia que era a

torta de laranja, feita havia 50 anos) (MORETTO, 1986, p. 256)

Page 61: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

61

Percebemos que as falhas no tempo às quais Buzzati alude seriam

aquelas que permitiriam ao homem um certo transitar para o futuro ou para o

passado, mas sempre de forma aleatória e não premeditada, incontrolável. Mas

possível.

A nosso ver, essa seria a construção de um tempo da Física, que

perpassa as pesquisas de Einstein e a sua visão da curvatura espaço/temporal,

permitindo, em teoria, tal transitar entre passado-presente-futuro.

Tal abordagem do tempo, e as possibilidades de viagem nele, também

são exploradas pelo autor no conto “Nessuno crederà”, em que é apresentada

uma clínica de vanguarda no tratamento do que ele chama de “il male del

secolo”. Ali todos os pacientes se encontravam em estado terminal, mas

misteriosamente não temiam a morte, porque:

[...] Nella trama del tempo esistono qua e là delle specie di fessure, delle brecce. È una cosa piuttosto astrusa, bisognerebbe che ci fosse un fisico a spiegarla e probabilmente non capiresti lo stesso, come in fondo non ho capito neppure io. Bene, una di quelle rarissime smagliature si è determinata qui, dove siamo, in questo recondito angolo delle Alpi. Sopra di noi c’è come un buco che ci mette in comunicazione col futuro.76 (BUZZATI, 2002, p. 35-6)

Os pacientes viajavam através dessa fenda e eram transportados para

anos e anos no futuro, onde já não existia nenhum dos seus amados do

presente: nem filhos, nem netos, nem amigos ou filhos dos filhos dos amigos.

Todos já haviam morrido também. A constatação de que ninguém sobrevive

eternamente conferia aos moribundos internados naquela clínica uma

consolação e uma resignação para lidar com a doença que os ceifaria,

inevitavelmente, a vida.

76

[...] na trama do tempo existem, lá e cá, espécies de fendas, brechas. É uma coisa bastante obscura, seria necessário um físico para explicá-la e provavelmente você também não entenderia, como, no fundo, eu também não entendi. Bom, uma daquelas raríssimas falhas da malha produziu-se aqui onde estamos, neste recôndito dos Alpes. Acima de nós há uma espécie de buraco que nos põe em comunicação com o futuro. (MORETTO, 1986, p. 48)

Page 62: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

62

Buzzati conclui o conto com a seguinte frase: “Era un sogno? O era

vero? Mai lo potrò raccontare, mai lo potrò scrivere, nessuno mi crederà.”.77

Mais uma vez poderíamos crer que tais indagações da personagem

indicassem uma ignorância com relação ao que acontecia verdadeiramente

com os pacientes daquele hospital, mas o período subsequente invalida tal

leitura, uma vez que um sonho, por mais insólito que seja, sempre poderá ser

publicado e o nível de credibilidade do leitor em relação ao relato pouco

importa ao autor.

A propósito da tristeza que acomete a todos pela expectativa da morte –

a "indesejada das gentes", nos versos de Manuel Bandeira – e da calma que os

pacientes do conto aparentavam quando retornavam do futuro, lembramos da

fala do professor Leandro Karnal ao abordar o tema A utopia da melhor idade,

no programa Café filosófico. Ele relatou que

[...] A Sibila cumana, na caverna de Cuma, ao sul da atual Roma, uma Sibila, ou seja uma sacerdotisa de Apolo, decidiu pedir ao Deus a suprema graça que um Deus podia conceder. Apolo lhe pediu conceder um desejo e ela disse que queria viver eternamente ou, pelo menos, mil anos para cada grão de areia que ela apresentasse na mão. Apolo concedeu e a Sibila, feliz, começou a viver eternamente. Esqueceu-se nesse pedido, que contém sempre uma armadilha, esqueceu-se de pedir a juventude eterna. Resultado: viveu eternamente, mas começou a se desmanchar em vida. Dessa forma, quando as pessoas entravam na caverna de Cuma, na antiguidade, segundo a tradição, posta numa gaiola assustadora estava essa figura encarquilhada, absolutamente destruída pelo tempo, e que só dizia aos que entravam: Quero morrer!

Por que que ela quer morrer? Não apenas por causa da aparência, mas porque depois de um tempo todo mundo que dava sentido ao que eu era começa a desaparecer; tudo aquilo que identificava o meu mundo, começa a desaparecer. A nova linguagem do mundo, as novas pessoas, as novas relações vão sumindo [...]78

77

“Seria um sonho? Ou seria verdade? Nunca poderei dizer, nunca poderei escrever, ninguém acreditará.” (MORETTO, 1986, p. 256)

78 https://www.youtube.com/watch?v=_uBpH6jEAbU (acesso em 04/12/2013)

Page 63: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

63

As nossas percepções sobre o tempo – passado, presente ou futuro –

são muito particulares, pessoais e nem sempre correspondem à realidade do

coletivo que nos circunda.

Se trouxermos essa particularidade da leitura do tempo para âmbitos da

realidade, fora da ficção literária ou cinematográfica, ou de qualquer outra

forma de representação do real, poderemos constatar que a variação de leitura

temporal é um fato na história do homem.

O calendário, nos moldes que conhecemos hoje, com sua divisão de

trezentos e sessenta e cinco dias por ano, foi concebido há mais ou menos

cinco mil e quinhentos anos a.C. pelos egípcios, com o fim de precisar as

cheias do Nilo e, assim, conseguir uma otimização da agricultura às margens

do rio.

Posteriormente, em 1582, esse calendário solar foi adaptado pelo Papa

Gregório XII e vige, até os dias atuais, como padrão para o povo cristão. Já os

judeus, por exemplo, usam o calendário lunissolar, ou seja, calculam o ano

pelos ciclos da lua, levando em consideração as estações do ano solar, assim

como os chineses. No ano cristão de 2015, os judeus estão no ano de 5775 e

os chineses em 4713. Há que se considerar, de fato, a teoria da relatividade,

uma vez que tudo é relativo nesta vida. Não temos como precisar quando/em

que ano, realmente, estamos.

Em outro conto, intitulado “Che accadrà il 12 ottobre”, o autor mantém a

sua temática do tempo, mas, dessa vez, sugere a fragilidade humana frente à

grandiosidade universal que o homem desconhece e que está longe de

conceber. Nesse conto, ocorre que, enquanto o professor de história do direito

italiano, Luigi Splitteri, estava lendo um livro, sentado na poltrona de sua sala,

uma mosca teimava em pousar em seu joelho e, ato contínuo, o homem

tentava matá-la com uma revista, um livro, um jornal.

A partir do momento em que Luigi Splitteri tenta matar a mosca, o

narrador começa a sua preleção a respeito das grandes descobertas científicas

que tratam da semelhança existente entre a estrutura dos átomos e a estrutura

do que chamamos de sistema planetário.

Page 64: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

64

Proprio all’ultima estremità della seconda zampa destra della mosca che starà tormentando il professore, c’è un atomo il cui sistema solare comprende un pianeta abitato da esseri identici a noi.79 (BUZZATI, 2002, p. 144)

Aventa a possibilidade de o planeta ao qual pertencia o professor

Splitteri também fazer parte de um sistema solar integrante de um átomo na

pata de uma mosca num universo de grau superior. E sob a mesma linha de

raciocínio, imaginou, ainda, uma terceira mosca e um terceiro grau de universo

no átomo de sua pata.

L’uomo infatti è una imprevista anomalia verificatasi nel corso del processo evolutivo della vita, non il risultato a cui l’evoluzione doveva necessariamente portare. È mai concepibile infatti che l’officina della natura mettesse determinatamente in circolazione un animale nello stesso tempo debole, intelligentissimo e mortale cioè inevitabilmente infelice?80 (BUZZATI, 2002, p. 145)

Nesse momento, o narrador associou a infelicidade humana à sua

fragilidade ante a morte. Discorreu sobre a velocidade do tempo no planeta do

professor, que ele chamou de A, e a do microscópico planeta que chamou de

Z. Afirmou que durante o tempo que Splitteri levaria para acender um cigarro

no planeta A teriam se passado dias ou mesmo meses no planeta Z. E, ao

seguir essa linha de pensamento, o narrador dialoga diretamente com a teoria

da relatividade e as probabilidades que ela sugere no que concerne ao tempo.

O conto termina com um dilema: "Il dilema è grave. Eppure non

possiamo risolverlo. Ci è rigorosamente negato di capire se viviamo in un

mondo o nell’altro. Per saperlo, dobbiamo aspettare il 12 ottobre."81 (BUZZATI,

2002, p. 148)

79

Exatamente na última extremidade da segunda pata direita da mosca que está atormentando o professor, há um átomo em cujo sistema solar compreende um planeta habitado por seres idênticos a nós. (MORETTO, 1986, p. 144)

80 O homem é, na realidade, uma imprevista anomalia no curso do processo evolutivo da vida, não o

resultado ao qual a evolução devia necessariamente chegar. De fato, é inconcebível que a oficina da natureza tenha posto deliberadamente em circulação um animal ao mesmo tempo fraco, inteligentíssimo e mortal, isto é, inevitavelmente infeliz? (MORETTO, 1986, p.145)

81 O dilema é grave. Contudo não poderemos resolvê-lo. É-nos rigorosamente negado compreender se

vivemos num mundo ou no outro. Para sabê-lo, deveremos esperar o dia 12 de outubro. (MORETTO, 1986, p. 145)

Page 65: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

65

Mais uma vez, recorreremos à Sétima Arte para ilustrar nosso discurso.

Há alguns anos, em 1997, a Columbia Pictures lançou um filme chamado Men

in black, que focaliza seres extraterrestres que coabitam conosco no planeta

Terra. Até aqui nada se acrescenta ao nosso conto, mas, quando assistimos a

última cena do filme, conseguimos visualizar precisamente o discurso do

narrador buzzatiano: o jogo de câmeras se distanciando gradativa e

verticalmente do carro e, pouco a pouco, nos dando uma visão cada vez mais

ampla da rua de onde o carro acabara de sair, do bairro, do estado, país,

continente, planeta, enfim, se estendendo para o nosso sistema solar e, num

crescente, conseguimos ver nossa galáxia e tantas outras a sua volta até que,

como num passe de mágica, percebemos que tudo aquilo que chamamos

universo, não passa de uma bola (do tipo gude) com a qual uma espécie

alienígena, ainda criança, brinca. Vale lembrar que tal bola não é a única,

existem muitas outras na algibeira do alienígena.

Percebemos que por trás desse questionamento a respeito da pequenez

humana frente a tudo que o homem ainda não conhece, também está uma

reflexão sobre o tempo no que diz respeito à fragilidade humana diante de algo

que não se pode prever (o tempo futuro) ou evitar (o que aconteceria em 12 de

outubro).

A reflexão proposta pelo conto nos remete às palavras do professor,

filósofo e escritor brasileiro Mário Sérgio Cortella, acerca da insignificância do

homem frente ao (Multi)Universo82:

Quem és tu? Tu és um indivíduo, entre outros seis bilhões e quatrocentos milhões de indivíduos, compondo uma única espécie, entre outras três milhões de espécies já classificadas, que vive num planetinha que gira entorno de uma estrelinha, que é uma entre outras cem bilhões de estrelas, compondo uma única galáxia, entre outros duzentos bilhões de galáxias, num dos universos possíveis, e que um dia vai desaparecer.83

82

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/saudeciencia/66522-a-possibilidade-do-multiverso.shtml (acesso em 04/04/2015)

83 https://www.youtube.com/watch?v=P3NpHryB-fQ (acesso em 14/03/2015)

Page 66: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

66

Em outro conto, intitulado I vecchi clandestini, o olhar se lança ao tempo

já passado. Nele é narrada a história de Yamashita, um homem que, certo dia,

passando por uma loja que vendia objetos usados nos arredores de Kyoto, viu

um par de óculos por um preço irrisório, ainda que ‘velhos’.

De acordo com o vendedor da loja, se tratava de um par de óculos

especiais, que serviam para enxergar as pessoas quando velhas, ou seja, as

lentes tinham a propriedade de nos mostrar, por assim dizer, a baixa na carga

de vitalidade de uma pessoa. Daí, se fosse uma jovem de vinte anos, por

exemplo, mas com uma doença em estado avançado e que fatalmente a

levaria à morte, os óculos mostrariam, ao invés de uma jovem, uma velha

decrépita e cadavérica. Essa imagem seria o bastante para decretar o fim da

vida daquela pessoa.

Querendo convencer o protagonista a comprar o produto, o vendedor

sugeriu que ele saisse da loja com o objeto e buscasse ver uma determinada

moça, que estava sentada há alguns metros da loja. O homem concordou e

qual não foi sua surpresa:

Io ho preso gli occhiali, sono uscito in strada, tra parentesi mi domandavo come mai l’ometto si fidasse tanto di me, ho fatto una trentina di passi e ho trovato il giardino. Su una sdraio c’era una ragazza bellissima, avrà avuto sì e no diciotto anni. Io inforco gli occhiali e la ragazzina diventa una spaventosa strega sdentata tutta pelle e ossa.84 (BUZZATI, 2002, p. 300)

Buzzati faz uso de um elemento inusitado, inesperado, para abordar,

mais uma vez, a temática do tempo. Aqui o autor põe em evidência a face da

morte, invisível aos olhos comuns, mas que nos afronta de improviso. Também

insere um elemento mágico no seguinte trecho:

Poi che cosa sia sucesso lo sa soltanto il diavolo. Faccio per tornare verso la bottega: venti passi, trenta passi, quaranta passi, rifaccio la strada in un senso e nell’altro. Niente. La bottega dell’occhialaio non riesco più a trovarla. La bottega non c’è più. Come se fosse stata

84

Peguei os óculos, saí para a rua, entre parênteses, perguntava a mim mesmo como o homenzinho confiava tanto em mim, dei uns trinta passos e encontrei o jardim. Numa espreguiçadeira, havia uma moça belíssima, teria uns 18 anos. Coloco os óculos, e a menina fica uma assustadora feiticeira desdentada, só pele e osso. (MORETTO, 1986, p. 277)

Page 67: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

67

inghiottita dalla terra. Era assurdo, no? Era incredibilie, no? Allora domando ai negozianti vicini: in questa strada c’è un negozio di occhiali? Quelli fanno delle facce strane: “Negozio di occhiali? In questa strada? Mai visto né conosciuto”.85 (BUZZATI, 2002, p. 300)

Podemos observar, nesse momento, uma similitude entre esse conto e o

La giacca stregata, quando o protagonista buscou o ateliê onde adquirira o

terno e não mais o encontrou.

O professor Leandro Karnal nos diz que “somos filhos do pecado de

Adão e Eva” porque,

[...] a partir do momento que o homem pecou, segundo a tradição judaico-cristã, o homem passou a envelhecer, passou a morrer. Adão viveu, vocês sabem, mais de 900 anos, Matusalém 969, mas o homem morre. Tudo na vida passa, todos morremos [...] A juventude absoluta de Apolo... os Deuses gregos são idênticos aos homens, raivosos, ciumentos, eventualmente generosos, eventualmente magnânimos, mas com todos os defeitos humanos, menos um defeito: os Deuses nunca envelhecem. A imagem de um Apolo, de um Deus grego que jamais envelhece, que vive para sempre... a imagem que persegue muito aos homens: como viver para sempre? O que seria ter diante de si todo o tempo? Naturalmente uma reflexão mais forte nas pessoas na medida em que elas vão ganhando experiências [...]86

E a história se encaminha para o fim, acrescida de mais um pecado

quando Yamashita, após uma vida inteira controlando a própria face através da

ótica dos óculos mágicos, um belo dia se deparou com a face da decrepitude

característica da morte que se anunciava irreversível. Nesse momento, ele

resolveu que deveria passar adiante aquela que poderíamos chamar maldição

para outra pessoa e, na sequência, se suicidou por não querer esperar a visita

da morte, que lhe traria um fim desconhecido.

85

Mas o que acontece só o diabo sabe. Procuro voltar para a loja: 20 passos, 30 passos, 40 passos, volto num sentido e no outro. Nada. Não consigo mais encontrar a óptica. Não existe mais. Como se tivesse sido engolida pela terra. Era absurdo, não? Era incrível, não? Então pergunto aos comerciantes vizinhos: nessa rua não há uma óptica? Fazem umas caras estranhas: - Óptica? Nessa rua? Nunca vi. (MORETTO, 1986, p. 277)

86 https://www.youtube.com/watch?v=_uBpH6jEAbU (acesso em 14/12/2013)

Page 68: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

68

Lembremos que o suicído para muitas religiões é considerado um

pecado; no judaísmo, por exemplo, o suicida é enterrado de costas para

Jerusalém. O suicídio, no conto, poderia ser lido como uma forma de

Yamashita controlar e determinar como se daria esse ponto final de sua

existência. Ou seja, a forma de não ficar à mercê dos caprichos da morte.

Esse conto nos possibilita fazer, mais uma vez, uma ponte com o livro, já

citado, O retrato de Dorian Gray, e nos conduz à leitura de "Il borghese

stregato", conto publicado em Sessanta racconti.

2.2- Sessenta contos: em busca de um tempo perdido.

Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. Fernando Pessoa87

Sessanta racconti (Sessenta contos), antologia que será focalizada

neste item, nos permitirá abordar, novamente, a questão do tempo – passado,

presente e futuro – e a frustação sentida pelo homem que dispendeu seu

tempo de vida em coisas que não o realizaram.

O primeiro conto a ser examinado é "Il borghese stregato" ("O burguês

enfeitiçado"), que tem como foco a história de Giuseppe Gaspari, um

comerciante de cerais de 44 anos, que fora ao encontro da mulher e filhas que

passavam férias em um hotel campestre.

Lá chegando, Gaspari ficou frustrado com o lugar, que pensara ser mais

sofisticado do que realmente era:

[...] Un posto da cacciatori, pensò il Gaspari, rimpiangendo di non essere potuto mai vivere, neppure per pocchi giorni, in una di quelle valli, immagini di felicità umana, sovrastate da fantastiche rupi, dove candidi

87

PESSOA, Fernando. O livro do desassossego - composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-

livros da cidade de Lisboa, Richard Zenith (Org.) 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

Page 69: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

69

alberghi a forma di castello stanno alla soglia di foreste antiche, cariche di legende.88 (BUZZATI, 2007, p. 151)

Após o almoço, o comerciante decidiu dar uma volta pelo lugarejo,

enquanto todos os demais hóspedes repousavam. Lembrou, lamentando-se,

que jamais tivera o que desejara, mas que nunca lhe faltara nada. E, também,

concluiu que nada, nunca, lhe dera plena alegria.

Durante sua caminhada, em dado momento, Giuseppe Gaspari ouviu

vozes de crianças. Resolveu, então, sair da sua trilha e se dirigiu ao local de

onde vinha o som. Imediatamente antes de mudar sua rota, ele olhou para trás

e a visão que teve do vale, estando no alto da colina, marca o momento em

que o narrador pontua a dualidade real-inusitado em sua narrativa:

A quella vista egli ebbe una gioia; e non sapeva neanche lui il perché. Il valloncello non presentava speciale bellezza. Tuttavia gli aveva ridestato una quantità di sentimenti fortissimi, quali da molti anni non provava; come se quelle ripe crollanti, quella abbandonata fossa che si perdeva chissà verso quali segreti, le piccole frane bisbiglianti giù dalle arse prode, egli le riconoscesse. Tanti anni fa le aveva intraviste, e quante volte, e che ore stupende erano state; propriamente così erano le magiche terre dei sogni e delle avventure, vagheggiate nel tempo in cui tutto si poteva sperare.89 (BUZZATI, 2007, p. 152)

Continuando a caminhar pelo vale, na direção das vozes infantis,

adentrou por uma trilha e viu cinco garotos que brincavam de índio. Ficou a

observá-los durante um tempo e constatou que aquele lugar havia sido

invadido por uma grande alegria, que lhe era totalmente inexplicável.

88

[...] Um lugar de caçadores, pensou Gaspari, lamentando nunca ter podido viver, nem mesmo por poucos dias, em um daqueles vales, imagens de felicidade humana, cobertos por fantásticos penhascos, onde cândidos hotéis em forma de castelo estão na soleira de florestas antigas, cheias de lendas. (TN)

89 Àquela visão, ele sentiu uma alegria; e nem mesmo ele sabia por quê. O pequeno vale não

apresentava especial beleza, todavia lhe tinha despertado uma quantidade de sentimentos fortíssimos, os quais há muitos anos não sentia; como se aqueles despenhadeiros desabados, aquela cova abandonada que se perdia em direção a sabe-se lá quais segredos, os pequenos deslizamentos de terra sussurantes das fortes queimadas, ele reconhecesse. Há muitos anos ele as havia vislumbrado, e quantas vezes, e que horas estupendas foram aquelas; exatamente assim eram as mágicas terras dos sonhos e das aventuras, ansiadas no tempo em que tudo se podia esperar. (TN)

Page 70: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

70

Podem-se notar as conjecturas da personagem com relação à sua

infância, a aludir que aquela seria a etapa da vida em que o tempo era longo e

que se podia esperar por tudo, em contraponto com a idade adulta, quando já

não se tem essa mesma perspectiva com relação à vida. Lembrava-se de

como a infância é repleta de luz e fantasia.

Até este ponto da narrativa não se observam eventos que possam ser

definidos como mágico, fantástico ou surreal. Até então, o protagonista não

exerce nenhum controle ou pseudocontrole sobre forças superiores a ele; não

há nenhuma lei natural que lhe cause estranhamento ou hesitação, assim

como não se encontra em processo de imaginação descontrolada.

Mas, a partir do momento em que divaga sobre a infância, o discurso

começa a se aproximar do surreal, segundo as acepções de Breton, quando

afirmou em seu manifesto:

Imaginação querida, o que mais amo em ti é não perdoares.

Só o que me exalta ainda é a única palavra, liberdade. Eu a considero apropriada para manter, indefinidamente, o velho fanatismo humano. Atende, sem dúvida, à minha única aspiração legítima. Entre tantos infortúnios por nós herdados, deve-se admitir que a maior liberdade de espírito nos foi concedida. Devemos cuidar de não fazer mau uso dela. Reduzir a imaginação à servidão, fosse mesmo o caso de ganhar o que vulgarmente se chama a felicidade, é rejeitar o que haja, no fundo de si, de suprema justiça. Só a imaginação me dá contas do que pode ser, e é bastante para suspender por um instante a interdição terrível: é bastante também para que eu me entregue a ela, sem receio de me enganar (como se fosse possível enganar-se mais ainda). (BRETON, 1924, p. 1)

Com a mudança de trajetória na trilha que seguia, o empresário, homem

sério, de negócios, mudou também a sua percepção do entorno. Passou a

observar a paisagem de forma diferenciada, como se tivesse sido encantado

por tudo aquilo que via. Até a visão do hotel, lá embaixo, ao pé da colina, agora

lhe parecera mais aprazível.

Esse desvio de caminho levou a personagem Giuseppe Gaspari a um

mergulho profundo no mar da imaginação que, segundo Breton, abandona o

Page 71: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

71

homem aos vinte anos. Ele se defrontara com um grupinho de cinco garotos

que brincavam de índio e, para surpresa dos meninos, se ofereceu para

participar da brincadeira.

Vale mencionar que tal brincadeira não era comum na Itália daquela

época. As crianças tendem a repetir as brincadeiras aprendidas culturalmente

ou, falando em dias de hoje, aquelas que se tornam moda através dos meios

de comunicação de massa, tais como cinema, TV, internet, principalmente.

Cabe esclarecer, como pequeno adendo: os filmes western norte-

americanos, aqueles conhecidos no Brasil como faroeste, tiveram seu auge no

final da década de 1930 com as produções de John Ford. O cinema italiano já

os exibia, mas as salas de projeção eram um luxo reservado às capitais e

grandes centros. Já a televisão90 chegou à Itália na primeira metade da década

de 1950, apesar de as primeiras transmissões experimentais terem sido

iniciadas em 1939, em Turim, por uma instituição radiofônica pública do regime

fascista – EIAR –, que interrompeu seus trabalhos com o início da Segunda

Guerra Mundial. Com o fim da guerra, as transmissões foram retomadas sob a

responsabilidade da RAI - Radio Audizioni Italiane, que, em 1954, torna-se

Radio Televisione Italiana e inaugura, assim, o Programma Nazionale (Primo

Programma), hoje RAI 1.

No início, a televisão era um bem de luxo usufruído por um número

restrito de cidadãos. As transmissões diárias duravam poucas horas:

começavam ao meio-dia e terminavam por volta das 23 horas. Às vezes, a RAI

1 fazia transmissões na madrugada, como, por exemplo, quando cobria ao vivo

programas produzidos nos Estados Unidos da América.

Em 1961, nasce o Secondo Programma, a atual RAI 2, administrado

pelo Partido Socialista Italiano, um canal alternativo às transmissões do Primo

Programma, que era administrado pela Democracia Cristã.

Este adendo não pretende apresentar a história da televisão na Itália,

mas, simplesmente, colocar em relevo que, em seus primeiros anos de

existência, a televisão nesse país é, especialmente, um instrumento de 90

http://www.antebolicas.com/seccao.php?s=historia (acesso em 19/02/2014)

Page 72: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

72

informação e educação, dedicando pequeno tempo ao entretenimento. Em

1960, por exemplo, começa a ser transmitido o programa "Non è mai troppo

tardi", um curso que objetivava ensinar a ler e a escrever aos analfabetos,

ainda numerosos no país.

Considerando que a RAI 1 foi, até 1960, totalmente "democristiana", ou

seja, foi comandada pelo governo, e transmitia somente programas culturais e

educativos, podemos entender que os programas televisivos não teriam

influenciado a brincadeira dos meninos vistos por Gaspari.

O conto “Il borghese stregato” foi publicado em 1958 na coletânea

Sessanta racconti, mas, se observarmos a história dos filmes western na Itália,

veremos que, só a partir da década de 1960, esse gênero começa a entrar e

ganhar espaço no país, com uma nova tendência cinematográfica que

chamaram de western spaghetti e que foi popularizada pelo cineasta Sergio

Leone, diretor de, por exemplo, Por um punhado de dólares (1964) e Era uma

vez no Oeste (1969).

Em 1954, quando começou a emitir sinais televisivos em escala

nacional, havia certa restrição quanto ao conteúdo a ser transmitido: não

poderia conter cenas que perturbassem a paz social, o respeito aos valores

familiares e religiosos ou incitasse o ódio entre as classes. Talvez esse controle

tenha ocorrido por conta do, ainda recente, fim da Segunda Guerra mundial.

Todos os programas veiculados deveriam respeitar a moralidade dos costumes

da nação italiana, assim como rejeitar todas as cenas com apelos eróticos ou

que maculassem a santidade matrimonial. Todas essas normas eram

garantidas pelo “Comitato per la determinazione delle direttive di massima

culturali”91, uma espécie de agência reguladora dos conteúdos veiculados pela

TV, instituído em 1947. Assim, as transmissões eram basicamente de

entrevistas, musicais e esportes e, em 1954, a TV chegava a pouco mais de

vinte mil casas por conta do custo elevado do aparelho. Era um artigo de luxo

que nem toda família italiana podia ter, daí acabou se tornando popular o

91

http://it.wikipedia.org/wiki/Storia_della_televisione (acesso em 19/02/2014)

Page 73: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

73

hábito de várias famílias se reunirem na casa do vizinho para assistir a tal ou

qual programa como, por exemplo, o telequiz italiano “Lascia o raddoppia?”

Com tantas preocupações com relação ao conteúdo divulgado e com tão

poucos telespectadores fica difícil crer que, em um hotel localizado em uma

zona campestre, as crianças do lugarejo já houvessem assimilado a cultura de

brincar de faroeste, brincadeira pertencente à nação estadunidense.

Acreditamos poder, então, inferir que essa imagem utilizada por Buzzati

no conto em apresentação não diga respeito, essencialmente, à cultura infantil

italiana, mas, sim, faça alusão a algo mais significativo e que tange a outras

características dos Estados Unidos da América.

Fim do adendo.

Gaspari perguntou aos meninos se podia entrar na brincadeira e foi tão

veemente que os surpreendeu:

I bambini lo guardavano meravigliati. Curioso: non c’era ombra di compatimento in lui, come negli altri uomini grandi quando si degnano di giocare. Pareva proprio facesse sul serio.92 (BUZZATI, 2007, p. 154)

A personagem entrara tão seriamente na brincadeira que até a

paisagem, para ela, se modificara:

Il Gaspari guardava. Non c’era più il valloncello adatto ai giochi dei ragazzi, né le mediocri cime a panettone, né la strada che risaliva la valle, né l’albergo, né il rosso campo da tennis. Egli vide sotto di sé sterminate rupi, diverse da ogni ricordo, che precipitavano senza fine verso maree di foreste, vide piú in là il tremulo riverbero dei deserti e più in là ancora altre luci, altri confusi segni denotanti il mistero del mondo. E qui dinanzi, in cima alla rupe, stava una sinistra bicocca; tetre mura a sghembo la reggevano e i tetti in bilico erano coronati da teschi, candidi per il sole, che sembrava ridessero. Il paese dele maledizioni e dei miti, le intatte solitudini, l’ultima verità concessa ai nostri sogni!93 (BUZZATI, 2007, p. 155)

92

Os meninos o olhavam maravilhados. Curioso: não tinha sinal de superioridade nele como nos outros adultos, quando se dignam a brincar. Parecia que levava a sério de verdade. (TN)

93 Gaspari olhava. Não existia mais o vale adequado às brincadeiras dos meninos, nem os medíocres

cumes em forma de panettone, nem a estrada que circundava o vale, nem o hotel, nem a quadra de tênis vermelha. Ele viu sob seus pés penhascos intermináveis, diferentes do que se lembrava, que se precipitavam sem fim em direção a marés de florestas. Viu, mais além, o trêmulo reverberar dos desertos e, mais além ainda, outras luzes, outros confusos sinais que denotavam o mistério do mundo. E

Page 74: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

74

Quando fez o desvio de caminho para encontrar as crianças, Gaspari

começou a imaginar, começou a sair da realidade a qual se agrilhoara há anos,

mas sem romper com ela. A partir desse momento, quando a paisagem que o

cercava começou a se transformar, ele passou a vivenciar a sua imaginação e

essa vivência é bem marcada no trecho a seguir:

Una porta di legno, socchiusa (che non esisteva), era coperta di biechi segni e gemeva ai soffi del vento. Il Gaspari si trovava ormai vicinissimo, a due metri forse. Cominciò ad alzare lentamente la tavola, per lasciarla cadere sull’altra sponda.94 (BUZZATI, 2007, p. 156)

Breton escreve, em seu manifesto, que “de fato, alucinações, ilusões etc

são fonte de gozo nada desprezível” e essa fonte de gozo levou Gaspari ao

extremo da experiência imaginativa, uma vez que, ao fim do conto, a

personagem confunde a realidade com a fantasia e se vê ferida de morte por

um singelo graveto.

Ma, dalla socchiusa porta coperta di oscuri segni (che non esisteva), il Gaspari vide uscire uno stregone, incrostato di lebbre e di inferno. Lo vide rizzarsi, altíssimo, gli sguardi privi di anima, un arco in mano, sorretto da una forza scellerata. Egli lasciò allora andare la tavola, si trasse con spavento indietro. Ma l’altro già scoccava il colpo. Colpito al petto, il Gaspari cadde tra i rovi.95 (BUZZATI, 2007, p. 156)

A essa altura começa a descrição da morte da personagem e

poderíamos conjecturar se tal morte é física ou moral, uma vez que a "causa

mortis", a flecha, não existe, de fato.

aqui adiante, em cima do penhasco tinha um sinistro casebre; sombrios muros tortos o sustentavam, o teto instável era coroado por caveiras, cândidas por causa do sol, que pareciam rir. A terra das maldições e dos mitos, as intactas solidões, a última verdade concedida aos nossos sonhos. (TN)

94 Uma porta de madeira, entreaberta (que não existia), estava coberta por ameaçadores sinais e gemia

ao assoprar do vento. Gaspari já estava muito perto, a dois metros talvez. Começou a levantar lentamente a tábua para deixá-la cair sobre a outra margem. (TN)

95 Mas da entreaberta porta coberta por obscuros sinais (que não existia), Gaspari viu sair um bruxo

incrustado de lepra e de inferno. O viu levantar-se altíssimo, os olhos sem alma, um arco na mão, sustentado por uma força maligna. Então, ele soltou a tábua, recuou assustado. Mas o outro já disparava o golpe. Golpeado no peito Gaspari caiu entre os espinheiros. (TN)

Page 75: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

75

Nesse conto, Dino Buzzati nos permite observar o tempo de um modo

bem sutil. Ele se utiliza do recurso do inusitado para gerar o questionamento de

Giuseppe em relação ao aproveitamento de sua vida. A personagem retoma

fragmentos de seu passado com um olhar mais crítico com relação ao que de

fato era importante: si mesmo. Novamente, o tempo transcorrido, visões do

passado, avaliações sobre o presente.

Logo no segundo parágrafo, encontramos essa imagem de tempo

perdido, por vontade ou impedimento, que é ressaltada quando ele pensa:

Un posto da cacciatori, pensò il Gaspari, rimpiangendo di non esser potuto mai vivere, neppure per pochi giorni, in una di quelle valli, immagini di felicità umana, sovrastate da fantastiche rupi, dove candidi alberghi a forma di castello stanno alla soglia di foreste antiche, cariche di legende.96 (BUZZATI, 2007, p. 151)

A sequência desse pensamento é aquela na qual ele conclui que nada,

nunca, lhe faltara, mas tudo tinha sido sempre inferior ao que desejara. E

retoma essa ideia no encerramento do conto, quando, fazendo uma espécie de

balanço de sua vida, ele conclui que o fato de ter dado vazão a sua imaginação

e vivenciado toda aquela experiência com os meninos foi, para ele, libertador.

Tão libertador que ele morreu.

Podemos inferir, primeiramente, que essa morte não se deu em âmbito

físico e, sim, no psicológico da personagem. Se pensarmos que Giuseppe era

um comerciante de cereais, de quarenta e quatro anos de idade, que afirma

que jamais nada lhe faltara, mas que tudo tinha sido sempre inferior ao que

queria, podemos também imaginar que se tratava de alguém que trabalhava

muito e que, por conta das responsabilidades junto à família, tinha pouco

tempo para desfrutar de momentos sem preocupações de ordem profissional.

Se, a isso, anelarmos a brincadeira de índio, sabendo que essa não era

uma diversão que fizesse parte do imaginário coletivo da Itália daquela época,

poderíamos supor que tenha sido essa a forma escolhida por Dino Buzzati para

falar da máquina industrial estadunidense, que escraviza e aprisiona, muito ou

96

Um lugar para caçadores, pensou Gaspari, lamentando por nunca ter podido viver, nem mesmo por poucos dias, em um daqueles vales, imagens de felicidade humana, cobertos por fantásticos penhascos, onde cândidos hotéis em forma de castelo estão no limiar de florestas antigas, cheias de lendas. (TN)

Page 76: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

76

pouco, todos os que a ela se vinculam, fazendo que a produtividade e o

consumo sejam os grandes motivos para se viver. É uma verdadeira e intensa

guerra onde sobrevive o mais forte. Mas poucos não sucumbem diante dela.

Ao começar a brincar com as crianças, Gaspari rompe com esse grilhão

mercantil e sente a leveza da liberdade de quem se permite relaxar. Mas, como

o seu condicionamento empresarial era muito grande, ele mergulha na

brincadeira de corpo e alma, com vontade; e a experiência se torna tão intensa

que o leva à morte.

Fato é que, nesse conto, o tempo parece não ter maior relevância, mas,

na realidade, se faz fortemente presente através do recurso do inusitado. A

imaginação exacerbada da personagem é a alavanca, a maneira utilizada pelo

autor para abordar as prioridades humanas na utilização do tempo e, mais,

quais os resultados que essa escolha pode dar. No caso da personagem em

questão, pode-se perceber uma infelicidade e uma nota de arrependimento que

surgem na medida em que ele desperta, por assim dizer, para aquilo que

deveria ter sido importante em sua vida. Poderíamos inferir, então, que a

consciência desse fato, dessa escravidão mercantilista à qual ele havia se

vinculado por força das circunstâncias o levara a valorizar, a partir daquele

momento, as coisas mais simples que a vida pode oferecer-lhe e a liberdade de

se permitir viajar na imaginação, quando se fizesse necessário. Essa suposta

análise da personagem é feita em relação direta com o tempo vivido por ela e,

consequentemente, com o que ela priorizou: o uso de tempo vivido. Daí, o

comentário final de Giuseppe – “ti ho vinto miserabile mondo, non mi hai

saputo tenere”97 – fazendo alusão a essa liberdade conquistada por ele em

relação às obrigações impostas pelo mundo empresarial no qual estava

inserido.

Essas escolhas da personagem nos remetem a metáfora do caminho da

vida, quando Bakhtin afirma:

[...] A realização da metáfora do caminho da vida, com suas diversas variantes, desempenha um papel importante em todos os tipos de folclore. Pode-se mesmo dizer que o caminho no folclore nunca é uma simples

97

Te venci, mundo miserável, você não soube me ter. (TN)

Page 77: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

77

estrada, mas sempre o todo ou uma parte do caminho da vida; o cruzamento é sempre o ponto que decide a vida do homem folclórico; a saída da casa paterna para a estrada e o retorno à pátria são frequentemente as etapas etárias da vida (parte moço, volta homem); os signos do destino, etc. por isso o cronotopo romanesco da estrada é tão concreto e circunscrito, tão impregnado de motivos folclóricos. (BAKHTIN, 2010, p. 242)

Giuseppe Gaspari fez esse desvio de caminho, teve esse contato com o

folclórico, partiu homem e voltou menino para a sua estrada da vida.

Os questionamentos de Gaspari nos fazem lembrar de um trecho de

Epitáfio, música de Sérgio Britto, tecladista da banda Titãs – "Devia ter

complicado menos, trabalhado menos, ter visto o Sol se por. / Devia ter me

importado menos com problemas pequenos, ter morrido de amor. / Devia ter

aceitado a vida como ela é. A cada um cabe alegrias e a tristeza que vier" – e

ensejam a passagem ao próximo item.

2.3- Fantástico, Mágico ou Inesperado?

Através da história da humanidade, o homem criou relógios para marcar

o passar do tempo e vários têm sido os recursos que tem utilizado para

representá-lo. A literatura surge, então, como mais uma das tantas formas

descobertas pelo homem para expressar as suas necessidades e registrar os

acontecimentos da vida.

Aristóteles98, dissertando a respeito da origem da poesia, afirma que

Parece haver duas causas, e ambas devidas à nossa natureza, que deram origem à poesia. A tendência para a imitação é instintiva no homem desde sua infância. Nesse ponto, distinguem-se os humanos de todos os outros seres vivos: por sua aptidão muito desenvolvida para imitação. Pela imitação adquirimos nossos primeiros conhecimentos e nela todos experimentamos prazer. (ARISTÓTELES, 2013, p.25)

Como habilidade inerente ao homem, a imitação nos permitiu, no que se

refere à literatura, desenhar com palavras as nossas percepções a respeito do

98

ARISTÓTELES, Poética. São Paulo: Hunter Books, 2013, p. 25.

Page 78: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

78

mundo que nos cerca. Começamos lá atrás, na Antiguidade, com a escrita

subjetiva onde os signos eram condicionados pelo meio ao qual pertenciam.

Com a evolução do pensamento, a necessidade de comunicação para a

manutenção da própria subsistência e o desejo de expansão, também inato, o

homem desenvolveu o alfabeto, padronizando, de certa forma, a escrita.

A partir daí, terão início as grandes produções literárias que datam de

séculos antes de Cristo como a Ilíada, poema épico ambientado na guerra de

Tróia, e a Odisséia, poema que dá continuidade à Ilíada e que trata do retorno

de Odisseu à Itaca, sua cidade natal, após o fim da guerra. Ambos poemas

atribuídos a Homero.

Temos, também, as obras dos grandes filósofos gregos Platão e

Aristóteles, que revolucionaram o pensamento filosófico da Era Clássica, assim

como as dos poetas romanos Virgílio, autor da Eneida, na qual se inspirou

Dante Alighieri para escrever a Divina Comédia (1304-1321), e Horácio, autor

de Semonum liber primus. Já na era Cristã, encontramos Santo Agostinho com

suas Confissões, além de tantos outros ícones da literatura ocidental que, ao

longo da história, vêm registrando em prosa, verso e teoria as suas leituras da

vida com o passar do tempo. Tais leituras nos levaram ao que classificamos

ainda hoje como Escolas Literárias, posto que a leitura que o homem faz da

vida e de tudo que o cerca depende, primordialmente, do momento histórico-

político-psicológico no qual ele está inserido no momento da produção textual.

Retomando, existem intrínsecas relações entre as percepções do autor

em relação ao mundo que o cerca ou sua própria vida, e a sua produção

literária propriamente dita.

Em meio ao racionalismo iluminista, que rejeitava peremptoriamente o

conjunto de ideias da igreja católica, assim como toda a cultura ocultista,

mágica ou mitológica por ele considerada inferior, surge o gênero Fantástico.

Ao colocar a derrota do herói sob as forças maléficas do desconhecido, demonstra uma filiação ideológica a um pensamento teocêntrico e antirracionalista. De teor retrógrado, por um lado, o fantástico incorpora, por outro, os conhecimentos científicos em voga para, em seguida, procurar desmontá-los com a insurgência de fenômenos

Page 79: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

79

extranaturais, num jogo de ambiguidade insolúvel levado ao extremo.99

Então, com base no trecho supracitado, a partir das especificidades de

cada autor, temos o que chamamos de gênero literário que se divide em: lírico,

narrativo e dramático que, por sua vez, também se dividem em outros

subgrupos. A respeito dessas nominações, Carlos Reis e Ana Cristina Lopes100

escrevem que:

[...] a moderna teoria literária tem postulado a distinção entre categorias abstratas, universais literários desprovidos de vínculos históricos rígidos – os modos: lírica, narrativa e drama – e categorias historicamente situadas e apreendidas por via empírica -, os gêneros: romance, conto, tragédia, canção, etc. [...]

3. A capacidade de codificação do género narrativo (que pode considerar-se uma hipercodificação, <<isto é, um fenómeno de especificação e de complexificação das normas e convenções já existentes e actuantes no modo [...]>>, tal capacidade é indissociável de motivações periodológicas e ideológicas; tanto Lukács (1970) como Bakhtin (1979), ao estudarem géneros narrativos como a epopeia e o romance, chamaram a atenção para as conexões entre uma determinada solução de género e o desenvolvimento sociocultural que mediatamente a inspira: <<O presente na sua incompletude, como ponto de partida e centro de orientação artístico-ideológica, é uma grandiosa transformação na consciência criativa do homem. No mundo europeu, esta reorientação e esta destituição da velha hierarquia dos tempos encontram uma expressão essencial, na esfera dos géneros literários, nos confins da Antiguidade clássica e do Helenismo e, no mundo moderno, na época da Idade Média tardia e do Renascimentro>> (Bakhtin, 1979: 480). (REIS; LOPES, 2002, p.187-88)

Todas essas considerações acerca dos gêneros literários e suas

classificações servem de aporte para nossas investigações nos textos de Dino

Buzzati e, também, nossa tentativa de ler a sua obra não como a de um

escritor do gênero Fantástico, como propõe a maioria dos estudiosos de suas

obras, e, sim, aproximá-las ao Realismo Mágico, como o entendia Massimo

Bontempelli.

99

http://www4.pucsp.br/revistafronteiraz/numeros_anteriores/n3/download/pdf/tensao.pdf (acesso em 25/02/2015)

100 REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de narratologia. Coimbra: Almedina, 2002; p. 187

Page 80: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

80

Quando se fala do Fantástico na literatura é comum encontrar definições

que o enquadrem como sendo um enredo povoado por elementos improváveis,

fantasiosos e maravilhosos que se desvinculam da realidade humana. A esse

respeito Tzvetan Todorov nos diz que:

Chegamos assim ao coração do fantástico. Em um mundo que é o nosso, que conhecemos, sem diabos, sílfides, nem vampiros se produz um acontecimento impossível de explicar pelas leis desse mesmo mundo familiar. Que percebe que o acontecimento deve optar por uma das duas soluções possíveis: ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto de imaginação, e as leis do mundo segue sendo o que são, ou o acontecimento se produziu realmente, é parte integrante da realidade, e então esta realidade está regida por leis que desconhecemos. Ou o diabo é uma ilusão, um ser imaginário, ou existe realmente, como outros seres, com a diferença de que rara vez o encontra.

O fantástico ocupa o tempo da incerteza. Assim que se escolhe uma das duas respostas, deixa-se o gênero do fantástico para entrar em um gênero vizinho: o estranho ou o maravilhoso. O fantástico é a vacilação experimentada por um ser que não conhece mais que as leis naturais, frente a um acontecimento aparentemente sobrenatural. (TODOROV, 1981, p. 15-16)

Em sua obra Introdução à literatura fantástica, cita alguns outros teóricos

que comungam a mesma definição para o gênero, como o filósofo russo

Vladimir Soloviov, o escritor inglês Montague Rhodes James e, mais

recentemente, a autora alemã Olga Reimann. Mas, segundo Todorov, é

necessário ir além das definições que se limitam a repetir a presença do

“mistério”, do “inexplicável”, do “inadmissível”, que invade “a vida real” ou o

“mundo real” e acrescenta que “a definição carece ainda de nitidez, e é no

referente a este ponto onde devemos ir mais à frente que nossos

predecessores,” porque:

O fantástico implica pois uma integração do leitor com o mundo dos personagens; define-se pela percepção ambígua que o próprio leitor tem dos acontecimentos relatados. Terá que advertir imediatamente que, com isso, não temos presente tal ou qual leitor particular, real, a não ser uma “função” de leitor, implícita ao texto (assim como também está implícita a função do narrador). A percepção desse leitor implícito se inscreve no texto com a mesma precisão com que o estão os movimentos dos personagens. (TODOROV, 1981, p. 19)

Page 81: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

81

Todorov afirma que, para um texto ser categorizado como fantástico, ele

deve cumprir três condições, a saber: primeira, o texto deve obrigar o leitor a

considerar que o universo das personagens é real; segunda, no caso de uma

leitura ingênua, o leitor real se identifica com o personagem; e, por fim, é

importante que o leitor recuse tanto a interpretação alegórica como a

interpretação “poética”101. Outra afirmação do autor é que “quanto ao fantástico

em si, a vacilação que o caracteriza não pode, por certo, situar-se mais que no

presente”.

Seja como for, não é possível excluir de uma análise do fantástico, o maravilhoso e o estranho, gêneros aos quais se sobrepõe. Mas tampouco devemos esquecer que, como o diz Louis Vax, “a arte fantástica ideal sabe manter-se na indecisão” (TODOROV, 1981, p. 25)

A semelhança que existe entre o Fantástico e o Realismo Mágico reside

no fato de que ambas as correntes têm por objeto de observação a ocorrência

de situações irreais, ou inesperadas, ou inusitadas, no universo narrado. Ao

contrário do Fantástico, a presença do irreal, ou estranho, ou inesperado, ou

inusitado, não causa vacilação e é percebida como algo habitual ou dentro da

narrativa no Realismo Mágico.

O romance Cem anos de solidão, do escritor colombiano Gabriel García

Márquez, publicado em maio de 1967, é considerado por muitos críticos

literários como um exemplo para se compreender o Realismo Mágico, que

surgiu em um dos mais conturbados períodos da América Latina. Esse gênero

inaugura uma outra forma de contar a realidade, trazendo para a narrativa um

sem-número de sortilégios que animam todas as dimensões da imaginação,

traçando um diálogo com os sonhos, mitos, magia e religião de maneira

harmônica.

Vale observar que essa nova vertente literária já se mostrava ativa na

Itália, nos anos 1920 a 1940, com o escritor Massimo Bontempelli:

[...] o romance publicado em 1930 e traduzido para o português em 1933 com o título Vida e morte de Adria e de seus filhos, obra que expressa a abordagem do realismo mágico empreendida pelo escritor. (CHIARELOTTO, 2011, p. 14)

101

Idem, p. 19-20

Page 82: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

82

Não pretendemos discorrer sobre as origens do Realismo Mágico, mas,

apenas, pontuar a sua presença e forte influência na literatura italiana e,

principalmente, na narrativa de Dino Buzzati.

Massimo Bontempelli e Curzio Malaparte lançam a revista “900”, e, no

primeiro exemplar, em setembro de 1926, escreve Bontempelli:

Il compito più urgente e preciso del secolo ventesimo, sarà la ricostruzione del Tempo e dello spazio. Dopo averli ricostituiti nella loro eternità, nella loro immobilità, nella loro gelidezza, avremo cura di ricollocarli al posto che avevano perduto, nelle tre dimensioni infinite, fuori dell’uomo. Quando potremo credere di nuovo in un Tempo e in uno Spazio oggettivi e assoluti, che si allontanano dall’uomo verso l’infinito, sarà facile riseparare la materia dallo spirito, e riprendere a combinare le variazioni innumerevoli delle loro armonie. A questo punto potremo con sicurezza affrontare il secondo còmpito, che sarà il ritrovamento dell’individuo, sicuro di sè, sicuro d’essere sè, di essere sè e non altri, sè con alcune certezze e alcune responsabilità, con le sue passioni particolari e una morale universale: e in cima a tutto ritroveremo forse un Dio, da pregare o da combattere.[...] Tutto questo – ricostruzione della realtà esterna e della realtà individuale – sarebbe antipatico e scorretto chiederlo alla filosofia. Quale atroce crudeltà pretendere che lei torni indietro e rinunci alle sue conquiste più eteree! Tale còmpito sarà affidato all’arte, che è operosa e modesta, non ha nè progressi nè sviluppi, non si evolve, ma soltanto subisce qualche capricciosa e fatale crisi di splendore o d’abbattimento.102 (BONTEMPELLI, 1938, p. 17-18)

102

“A tarefa mais urgente e necessária do século XX será a reconstrução do tempo e do espaço. Depois

de reconstituí-los na sua eternidade, na sua imutabilidade, na sua frieza, os teremos reconduzido ao lugar outrora perdido, nas três dimensões infinitas, fora do homem. Quando pudermos acreditar de novo num tempo e espaço objetivos e absolutos, que se distanciam do homem em direção ao infinito, será fácil reparar a matéria do espírito e recomeçar a combinar as inumeráveis variações das suas harmonias. Neste ponto poderemos seguramente enfrentar a segunda tarefa, que será a retomada do indivíduo, seguro de si, seguro de ser ele mesmo, de ser ele mesmo e não outros, ele mesmo com algumas certezas e algumas responsabilidades, com as suas paixões particulares e uma moral universal: e acima de tudo reencontraremos um Deus, rezando ou combatendo. [...] Diante disso – reconstrução da realidade externa e da realidade individual – seria antipático e incorreto requerer à filosofia. Que crueldade atroz pretender que ela retroceda e renuncie a suas conquistas mais etéreas! Tal tarefa será confiada à arte, que é empenhada e humilde, não tem nem avanços nem desenvolvimento, não evolui, mas apenas sofre de uma caprichosa e fatal crise de esplendor ou abatimento.”

Page 83: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

83

A partir da citação acima, podemos observar que a representação do

tempo e do espaço, dentro da narrativa proposta pelo Realismo Mágico, é um

fator determinante para a compreensão dessa vertente literária na qual, em

nossa opinião, Dino Buzzati ocupa lugar de relevo. Em 1950, o autor lança o já

citado livro In quel preciso momento, uma coletânea de relatos breves nos

quais a fugacidade do tempo surge como sustentáculo da narrativa. Essa

abordagem permeia toda a obra do autor e pode ser verificada com maior

frequência em seus contos.

Muitos são os críticos literários que inserem a produção poética de

Buzzati na escola Surrealista ou Fantástica, mas nós não comungamos com

essa leitura, como já destacamos, pois acreditamos que o autor tenha, de fato,

um discurso mais afinado com as definições do Realismo Mágico, pois

Nas melhores obras de Dino Buzzati o apelo ao estranho e ao fantasmático não resultam de uma alteração dos traços da realidade, nem de pesquisas linguísticas e estilísticas especiais: o autor se mantém no plano de uma língua “média”, normalmente comunicativa, e de uma representação que não altera as relações habituais entre as coisas.103 (FERRONI, 2001, p. 232)

Começaremos, então, a discorrer sobre essa naturalidade na inserção

do elemento inusitado/inesperado, mas que não altera a “representação” do

real na narrativa de Dino Buzzati, a partir do conto "Una goccia" ("Uma gota").

2.3.1 – Uma gota de medo.

No conto “Una goccia”, também integrante da coletânea Sessanta

racconti, observamos uma estrutura narrativa próxima à utilizada no conto “Il

borghese stregato”.

O conto narra as experiências dos moradores de determinado prédio

que, diariamente, ao anoitecer, ouviam uma gota que, aparentemente, subia as

escadas. Esse verbo – subir – pode, num primeiro momento, induzir-nos a

103

Nelle migliori opere di Dino Buzzati il richiamo dello strano e del fantasmatico non risultano da un’alterazione dei connotati della realtà, né da particolari ricerche linguistiche e stilistiche: l’autore si tiene sul piano di una lingua “media”, normalmente comunicativa, e di una rappresentazione che non altera i rapporti consueti tra le cose.

Page 84: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

84

classificar o conto como Fantástico, uma vez que nos causa dúvida, gera a

incerteza que é peculiar a esse gênero. Ocorre que, em nenhum momento, ela

surge no discurso. Em nenhum momento há a dúvida quanto ao fato de que

uma gota, de fato, sobe. E isso, sim, vem bem marcado no texto:

E allora – insistono – sarebbe per caso una allegoria? Si vorrebbe, così per dire, simboleggiare la morte? O qualche pericolo? O gli anni che passano? Niente affatto, signori: è semplicemente una goccia, solo che viene su per le scale.104 (BUZZATI, 2007, p. 161)

Esse evento não causava nenhum estranhamento aos moradores do

prédio, porque eles sabiam que se tratava de uma gota que subia as escadas.

A certeza vinha da identificação do som que uma gota faz ao cair:

[...] Tic, tic, si ode a intermittenza. Poi la goccia si ferma e magari per tutta la rimanente notte non si fa più viva. Tuttavia sale. Di gradino in gradino viene su, a differenza delle altre gocce che cascano perpendicolarmente, in ottemperanza alla legge di gravità, e alla fine fanno un piccolo schiocco, ben noto in tutto il mondo. Questa no: piano piano si innalza lungo la tromba delle scale lettera E dello sterminato casamento.105 (BUZZATI, 2007, p. 161. Os grifos são nossos.)

Já em 1926, Massimo Bontempelli106 escrevera, no primeiro caderno do

periódico 900, que, quando nós conseguirmos crer novamente em um Tempo e

um Espaço objetivo e absoluto o suficiente para distanciar-se do homem em

direção ao infinito, será fácil alcançar o reencontro do indivíduo com si mesmo.

E acrescenta:

Perché non per niente l’arte del Novecento avrà fatto lo sforzo di ricostruire e mettere in fase un mondo reale esterno all’uomo. Lo scopo è di imparare a dominarlo, fino a poterne sconvolgere a piacere le leggi. Ora, il dominio dell’uomo sulla natura è la magia. Ed ecco spiegati certi caratteri e certe velleità magiche che vediamo spuntare

104

E então – insistem – seria por acaso uma alegoria? Se queria, por assim dizer, simbolizar a morte? Ou algum perigo? Ou os anos que passam? Nada disso, de fato, senhores: é simplesmente uma gota, só que ela sobe as escadas. (TN)

105 Se ouve a intermitência. Depois a gota pára e tomara que por todo o resto da noite não apareça

mais. Contudo ela sobe. De degrau em degrau, ela sobe, diferentemente das outras gotas que caem perpendicularmente em cumprimento à lei da gravidade, e, ao fim, fazem um pequeno estouro, peculiar em todo o mundo. Esta não: devagar se eleva ao longo das escadas E do imenso prédio. (TN)

106 BONTEMPELLI, Massimo. Realismo magico e altri scritti sull’arte. Milano: Abscondita, 2006, p. 15

Page 85: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

85

qua e là in quella <<atmosfera in formazione>> che non ho inventata io, non non, ma che questo <<900>> si lusinga di poter rappresentare e favorire.

[...]

Piuttosto che di fiaba, abbiamo sete di avventura. La vita più quotidiana e normale, vogliamo vederla come un avventuroso miracolo: rischio continuo, e continuo sforzo di eroismi o di trappolerie per scamparne.107 (BONTEMPELLI, 2006, p. 16)

Dino Buzzati mantém esse acordo em sua narrativa exteriorizando o

tempo vivido por suas personagens através da utilização de recursos mágicos

dentro do discurso. A transgressão da Lei da gravidade no conto "La goccia"

suscita um questionamento a respeito da dualidade, ou pluralidade

comportamental humana. Os moradores, que durante a noite temiam e ficavam

à espreita para ouvir a gota passar, eram os mesmos que, durante o dia, saiam

à rua como se nada houvesse acontecido, como se nada os tivesse abalado.

Essa é uma realidade peculiar ao ser humano, que tem por hábito esconder os

seus medos e fraquezas na escuridão interna de si mesmo, e revelar a força e

coragem, que não tem, à luz do dia, que brilha aos olhos dos outros.

Da gota d'água que sobe os degraus passamos a um paletó enfeitiçado,

que também nos permite reconhecer esse traço de magia presente no real,

para uma sutil abordagem a respeito do tempo que passa, inexoravelmente.

2.3.2- Um paletó enfeitiçado

O conto “La giacca stregata” ("O paletó enfeitiçado") tem como

protagonista um homem não nominado no discurso, que encomendara um

paletó a um alfaiate chamado Alfonso Corticella. Quando o protagonista

recebeu a roupa pronta em seu escritório, não tardou a experimentá-la. É

107

Porque não é à toa que a arte do séc XX terá feito um esforço para reconstruir e lançar a era de um mundo real externo ao homem. O papel é o de aprender a dominá-lo, até poder perturbar as leis com prazer. Ora, o domínio do homem sobre a natureza é a magia. E eis explicados certos personagens e certos caprichos mágicos que vemos despontar aqui e ali naquela << atmosfera em formação>> que não foi inventada por mim, não, não, mas que esse século se lisonjeia em poder representar e favorecer.

Mais que de fábula, temos sede de aventura. A vida mais quotidiana e normal, queremos vê-la como um aventureiro milagre: risco contínuo, e contínuo esforço de heroísmo ou de armadilhas para fugir. (TN)

Page 86: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

86

nesse ponto que o autor insere o inusitado para abordar a nossa pequena

percepção da passagem do tempo na vida real. O protagonista descobre que,

inusitadamente, seu paletó produzia dinheiro, continuamente, que podia ser

retirado do bolso quantas vezes ele quisesse.

Col pretesto di non sentirmi bene, lasciai l’ufficio e rincasai. [...] Chiusi le porte, abbassai le persiane. Cominciai a estrarre le banconote una dopo l’altra con la massima celerità, dalla tasca che pareva inesauribile.

Lavorai in una spasmodica tensione di nervi, con la paura che il miracolo cessasse da un momento all’altro. Avrei voluto continuare per tutta la sera e la notte, fino ad accumulare miliardi. Ma a un certo punto le forze mi vennero meno.108 (BUZZATI, 2007, p. 307)

A metáfora do bolso do paletó pelo qual surgia dinheiro e enriquecia

aquele que o usava com a voluptuosidade com que recolhia suas cédulas, se

aplica bem ao nosso homem de negócios moderno, que se enclausura no

próprio trabalho no afã de fazer fortuna. Seu castelo é o seu escritório, onde se

sente em casa e bem à vontade para acumular o vil metal.

A respeito dessa nova forma de ver a realidade que nos cerca,

Bontempelli diz, repetimos aqui, que “il compito più urgente e preciso del secolo

ventesimo è la ricostruzione del Tempo e dello Spazio”109 (BONTEMPELLI,

2006, p. 32) que, em sua concepção, havia adoecido por causa do cansaço e

exaurimento ocasionado pela rígida filosofia que impunha a definição de mundo

como sendo uma realidade bíblica. Foram dezenove séculos de uma visão

castradora que originou “tutte le malattie spirituali che hanno fatto degli anni

che ci precedono un periodo di paurosa decadenza.”110 (BONTEMPELLI, 2006,

p. 32)

108

Com o pretexto de não sentir-me bem, deixei o escritório e voltei para casa. [...] Fechei as portas, abaixei as persianas. Comecei a extrair as cédulas uma após a outra com a máxima rapidez do bolso que parecia inexaurível.

Trabalhei em uma espasmódica tensão de nervos, com o medo de que o milagre parasse de um momento para outro. Gostaria de ter continuado por toda a noite e a madrugada, até acumular bilhões. Mas em um dado momento as forças me faltaram. (TN)

109 A mais urgente tarefa do séc. XX é a reconstrução do Tempo e do Espaço. (TN)

110 As doenças espirituais que fizeram dos anos que nos precederam um período de assustadora

decadência. (TN)

Page 87: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

87

Podemos afirmar que a narrativa de Dino Buzzati (re)significa o real

através do elemento mágico, desde que entendamos “por signo tudo aquilo que

represente ou substitua alguma coisa, em certa medida e para certos

efeitos”111, como escreveu Décio Pignatari. Ora, nada é por acaso em literatura.

Por exemplo, para uma cachorra ser batizada com o nome de Baleia em uma

obra que se intitula Vidas secas é porque para Graciliano havia um significado

nessa nominação que ia além de seus significantes e que só poderia ser

compreendido e apreendido pela sutileza da interpretação:

Ilustrando: no soneto Manhã, de Carlos Drummond de Andrade, comparece uma palavra aparentemente inexplicável: “caçadores”. Examinando o poema no seu todo, com alguma atenção, vemos que ele se refere a cenas passadas num hospital, ou, melhor, numa maternidade. Podemos descobrir, então, que “caçadores” quer dizer “caça-dores” – ou seja: os médicos, enfermeiras e enfermeiros em sua azáfama peculiar. Refiro-me a descobrir deliberadamente, pois a disposição de descobrir nunca pode estar ausente da análise literária; ela comanda mesmo todo o processo (descobrir = desencobrir, revelar). (PIGNATARI, 2004, p. 26)

O terno, no conto "La giacca stregata", encerra um significado muito

maior que o de simples vestimenta masculina; é a personificação do

enriquecimento rápido, desmedido e ilícito do protagonista, o que podemos

observar na seguinte passagem:

[...] Poi mi affrettai in un magazzino di abiti fatti per comprare un altro vestito, di stoffa simile; avrei lasciato questo alle cure della cameriera; il “mio”, quello che avrebbe fatto di me, nel giro di pochi giorni, uno degli uomini più potenti del mondo, l’avrei nascosto in un posto sicuro.112 (BUZZATI, 2007, p. 308)

A rapidez com que a personagem enriqueceu está muito bem marcada

na frase “nel giro di pochi giorni” e, também aí, temos uma sinalização de como

será a percepção da passagem do tempo aos olhos desse homem: frenética.

Em pouco tempo ele se transformara no homem mais poderoso do mundo, e a

licitude dos meios de aquisição dessa fortuna se faz suspeita pela necessidade

111

PIGNATARI, Décio. Semiótica e literatura. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004, p. 26.

112 [...] Depois fui rapidamente rápido a uma loja de departamentos para comprar outro terno, com o

tecido parecido, para deixar aos cuidados da empregada; o “meu”, aquele que fez de mim, em poucos dias, um dos homens mais poderosos do mundo, o escondi em um lugar seguro. (TN)

Page 88: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

88

de esconder a fonte de renda (o terno mágico), utilizando-se de uma fachada (o

terno similar) para a sociedade (a empregada).

Vale pontuar que, em nenhum momento, observamos, no protagonista,

aquele “tempo da incerteza” de que tanto fala Todorov. Ao contrário, há um quê

de corriqueiro, de comum no fato em si. O questionamento feito pela

personagem foi tão natural quanto o seria se feito por um amante ao questionar

a palpabilidade da emoção ao sentir o beijo do ser amado:

Non capivo se vivevo in un sogno, se ero felice o se invece stavo soffocando sotto il peso di una fatalità troppo grande. Per la strada, attraverso l’impermeabile, palpavo continuamente in corrispondenza della magica tasca. Ogni volta respiravo di sollievo. Sotto la stoffa rispondeva il confortante scricchiolio della carta moneta.113 (BUZZATI, 2007, p. 308)

O apalpar do casaco significa tanto quanto o nosso tradicional “me

belisca, para ver se eu estou sonhando!” que muitas pessoas dizem a quem

lhes está próximo, quando em uma situação extraordinária.

Bontempelli114 já afirmava, nos idos de 1930, que “la vera norma dell’arte

narrativa è questa: raccontare il sogno come se fosse realtà e la realtà come se

fosse un sogno.”115 Mas, sempre chega a hora de despertar, e, para a nossa

personagem, esse momento chegou quando ela começou a se dar conta de

que havia algo de ruim em seu sonho de fortuna fácil.

Poteva esistere un rapporto tra la mia improvvisa ricchezza e il colpo brigantesco avvenuto quase contemporaneamente? Sembrava insensato pensarlo. E io non sono superstizioso. Tuttavia il fatto mi lasciò molto perplesso.116 (BUZZATI, 2007, p. 308)

113

Não entendia se vivia em um sonho, se eu era feliz ou se estava sufocando sob o peso de uma imensa fatalidade. Na rua, através do sobretudo, eu apalpava continuamente o local do bolso mágico. Sempre respirava aliviado. Embaixo do pano respondia o confortante rangido do papel moeda. (TN)

114 BONTEMPELLI, Massimo. Realismo magico e altri scritti sull’arte. Milano: Abscondita, 2006, p. 51.

115 A verdadeira norma da arte narrativa é esta: contar o sonho como se fosse realidade e a realidade

como se fosse um sonho. (TN)

116 Poderia existir uma relação entre a minha repentina riqueza e o golpe criminoso ocorrido quase ao

mesmo tempo? Parecia insensato pensá-lo. E eu não sou supersticioso. Entretanto o fato me deixou muito perplexo. (TN)

Page 89: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

89

Essa foi a primeira vez que a personagem se deu conta de que, talvez, o

dinheiro que lhe chegava com tamanha facilidade pudesse ter saído de algum

outro lugar e mais, que, talvez, esse dinheiro estivesse destinado a suprir

necessidades que não eram as suas.

A partir desse momento, a personagem começou a perceber essas

coincidências. Sempre que tirava um montante do bolso, imediatamente depois

lhe vinha a notícia de alguma desgraça ocorrida tendo por causa o mesmo

valor que ele havia retirado do bolso. Primeiramente, foi o assalto a um carro-

forte, depois um incêndio que destruiu um cofre, que continha a mesma quantia

que ele havia ganho, e levou a óbito dois bombeiros.

E a consciência começou a atormentá-lo:

Quella notte non riuscii a chiudere occhio. Era il pressentimento di un pericolo? O la tormentata coscienza di chi ottiene senza meriti una favolosa fortuna? O una specie di confuso rimorso? Alle prime luci balzai dal letto, mi vestii e corsi fuori in cerca di un giornale.117 (BUZZATI, 2007, p. 308)

A partir de então, começou a verificar que havia uma simultaneidade nos

acontecimentos: todas as vezes que ele se utilizava dos benefícios financeiros

do bolso do paletó, imediatamente soava uma espécie de campainha em sua

consciência, que o levava à ponderação a respeito de seu ato.

Arrependimento? Fato é que tais conjecturas não eram suficientes, ainda, para

fazê-lo parar.

Senza lasciare il vecchio appartamento (per non dare nell’occhio), mi ero in poco tempo comprato una grande villa, possedevo una preziosa collezione di quadri, giravo in automobili di lusso, e, lasciata la mia ditta per “motivi di salute”, viaggiavo su e giù per il mondo in compagnia di donne meravigliose.118 (BUZZATI, 2007, p. 309)

117

Aquela noite não consegui fechar os olhos. Era o pressentimento de um perigo? Ou a atormentada consciência de quem obtém, sem méritos, uma fortuna fabulosa? Ou uma espécie de confuso remorso? Ao raiar do dia pulei da cama, me vesti e corri pra rua em busca de um jornal. (TN)

118 Sem deixar o velho apartamento, para não dar na vista, em pouco tempo comprei uma mansão,

possuia uma valiosa coleção de quadros, andava em carros de luxo, deixei meu antigo emprego alegando “problemas de saúde”, e viajava pelo mundo para cima e para baixo na companhia de belas mulheres. (TN)

Page 90: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

90

Nesse ponto, podemos observar que há uma certa displicência, por

parte do protagonista, com o fator tempo. Nesse pequeno parágrafo está

registrado o passar de anos, quiçá décadas, da vida dessa personagem. Dino

Buzzati, em poucas palavras, conseguiu marcar o espaço de realização da

personagem: o velho apartamento; justificar esse espaço: para não fazer-se

notado; elencar as aquisições: uma grande casa, uma preciosa coleção de

quadros, automóveis de luxo; pontuar o rompimento com o ético, no que diz

respeito à fonte de renda legal: deixou o emprego; e, por fim, pontuar as

motivações que impediam o nosso protagonista de libertar-se da volúpia do

prazer: viajou por todo o mundo em companhia de belas mulheres.

Buzzati realiza o que Bontempelli, ao escrever sobre a missão da arte no

século XX, chamou de:

Restaurare, dunque, il tempo e lo spazio, nella loro eternità e infinità immodificabili, matrici di tutte le leggi fisiche e morali su cui l’uomo deve foggiare la propria vita.119 (BONTEMPELLI, 2006, p. 33)

A essa altura, o conto já está perto do fim, assim como as

arbitrariedades do protagonista que, em um lampejo de lucidez, decidiu colocar

um ponto final naquele frenesi:

In macchina raggiunsi una recondita valle delle Alpi. Lasciai l’auto su uno spiazzo erboso e mi incamminai su per un bosco. Non c’era anima viva. Oltrepassato il bosco, raggiunsi le pietraie della morena. Qui, fra due giganteschi macigni, dal sacco da montagna trassi la giacca infame, la cosparsi di petrolio e diedi fuoco. In pochi minuti rimase che la cenere.120 (BUZZATI, 2007, p. 310)

Queimar o paletó parecia a coisa mais certa a ser feita naquele

momento, para interromper as ocorrências desastrosas que sucediam ao

enriquecimento ilegítimo. Mas, em nenhum momento, esse ato foi motivado

pelo arrependimento dos danos causados por esse mesmo fato: “nonostante lo

119

Restaurar, então, o tempo e o espaço na sua eternidade e infinitude imodificável, matriz de todas as leis físicas e morais sobre as quais o homem deve forjar a própria vida. (TN)

120 De carro cheguei a um vale escondido nos Alpes. Deixei o automóvel em um espaço gramado e subi

por um bosque. Não tinha alma viva ali. Ultrapassando o bosque alcancei a encosta pedregosa da montanha. Aqui, entre dois gigantescos pedregulhos, tirei da mochila o infame paletó, o embebi de querosene e ateei fogo. Em poucos minutos só havia cinzas. (TN)

Page 91: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

91

spavento provato, ridiscesi al fondo valle con un senso di sollievo. Libero,

finalmente. E ricco, per fortuna.”121 Ao contrário, o que lhe movia era a

sensação de leveza por, teoricamente, se livrar de um escolho que o impedia

de viver sua fortuna sem culpa. Era como se o casaco, e não ele, fosse o

responsável por tudo.

Depois disso, voltou para o lugar onde havia estacionado e qual não foi

a sua surpresa ao constatar que o carro já não estava mais lá. Desaparecera.

O mesmo se deu com todos os bens que adquirira através dos préstimos do

casaco.

Ele voltou a ter e ser o que era antes da aquisição do terno, mas com

um pequeno acréscimo: tinha a consciência de que havia contraído uma dívida

que, um dia, lhe seria cobrada.

E so che non è ancora finita. So che un giorno suonerà il campanello della porta, io andrò ad aprire e mi troverò di fronte, col suo abbietto sorriso, a chiedere l’ultima resa dei conti, il sarto della malora.122 (BUZZATI, 2007, p. 311)

Mais uma vez, o recurso mágico para falar do real se faz presente na

narrativa. Há uma certa tradição da humanidade em responsabilizar Deus ou o

diabo por seus dissabores e, a esse respeito, mais uma vez, Bontempelli já

escrevia em 1929 que:

Il diavolo ha bisogno che l’uomo non creda a se stesso e al mondo, alla materia e allo spirito, alla terra e al cielo; cioè ha bisogno che l’uomo non creda alla dualità: perché dalla dualità nasce il concetto di punto di partenza e punto d’arrivo, di mezzo e di fine: peccato e salvazione.

[...]

La nostra è dunque un’impresa contro il diavolo. La storia è tutta fatta da una serie di imprese contro il diavolo. C’è dunque qualche possibilita che la nostra storia sia un’impresa storica.123 (BONTEMPELLI, 2006, p. 34)

121

Apesar do susto, desci o vale com uma sensação de alívio. Livre, finalmente. E rico, por sorte. (TN)

122 E sei que ainda não acabou. Sei que um dia a campainha da porta tocará, eu irei abrir e estarei de

frente com o seu abjeto sorriso, a pedir o último faturamento, o alfaiate da desgraça. (TN)

123 O diabo precisa que o homem não acredite em si mesmo e no mundo, na matéria e no espírito, na

terra e no céu; isto é, ele precisa que o homem não acredite na dualidade: porque da dualidade nasce o conceito de ponto de partida e de chegada, de meio e de fim: pecado e salvação. [...]

Page 92: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

92

O supracitado texto foi escrito em resposta aos que ele chamou de

“nefasti cretini d’Italia”, quando escarnearam de sua afirmação de que o grande

desafio da arte do século XX seria a reconstrução do tempo e do espaço, uma

vez que, até então, a representação artística que se tinha era de um mundo

como realidade bíblica.

A conclusão a que chegamos é que Buzzati capta e reproduz

plenamente as ideias e ideais do Realismo Mágico em sua narrativa, trazendo,

sempre, o tempo como elemento deflagrador dos questionamentos morais,

intelectuais e sociais sobre a realidade da vida humana, como seguiremos a

ilustrar no conto "Cacciatori di vecchi" ("Caçadores de velhos").

2.3.3- Caçadores do tempo perdido.

Em "Cacciatori di vecchi", temos o relato da história de uma noite na

vida de Roberto Saggini, um homem de quarenta e seis anos, bonito, com

cabelos grisalhos que, durante um passeio de carro com sua jovem namorada,

resolveu parar para comprar cigarros em uma tabacaria, enquanto a jovem

ficou a esperá-lo no carro. A saga da personagem começou no momento em

que saiu do estabelecimento.

Saggini vivia em uma época na qual aquele que completasse quarenta

anos de idade passava a ser considerado decrépito e dispensável para a

sociedade, principalmente para os jovens, como podemos observar na citação

a seguir:

[...] Un risentimento cupo eccitava i nipoti verso i nonni, i figli verso i padri. Di più: si erano formate delle specie di club, di compagnie, di sette, dominate da un odio selvaggio verso gli anziani, come se questi fossero responsabili delle loro scontentezze, malinconie, delusioni, infelicità, così tipiche, da che mondo è mondo, della giovinezza.124 (BUZZATI, 2007, p. 299)

O nosso negócio, então, é contra o diabo. A história é toda feita de uma série de negócios contra o diabo. Então, há alguma possibilidade de que o nosso seja um negócio histórico. (TN) 124

[...] Um ressentimento triste incitava os netos contra os avós, os filhos contra os pais. Mais ainda: foram formadas algumas espécies de clube, de companhia, de seitas, dominadas por um ódio selvagem

Page 93: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

93

À medida que a noite avançava, aumentava a perseguição aos velhos e,

ao voltar à rua, viu que jovens caçadores já se encontravam nas imediações.

Precavido, Roberto Saggini voltou ao bar para pedir abrigo, mas o

estabelecimento já estava fechado. Correu para um espaço onde havia um

parque de diversões, na esperança de esconder-se em uma das tendas, em

vão. Era seguido de perto pelo perigoso Sergio Régora e seu bando de

malfeitores, dentre os quais se encontrava o próprio filho de Roberto, o jovem

Ettore.

Depois de algumas horas nessa caçada funesta, sentindo-se cansado

de tanto correr e se esconder, Roberto, em dado momento, pensando que

havia conseguido despistar seus perseguidores, saiu do local onde se

escondera. Nesse momento, foi golpeado no rosto e teve de recomeçar a fugir.

Mas, depois de tanto tempo de fuga, ele se sentia esgotado. Em sua fuga,

chegou até um despenhadeiro e, por já não ter aonde ir, voltou-se e,

finalmente, ficou frente a frente com Sergio Régora. Na impossibilidade de fugir

e sabendo o destino que teria se o enfrentasse, Roberto deu um passo para

trás e caiu da encosta.

I due si trovarono di fronte, sul breve crinale erboso. Régora non ebbe neanche bisogno di colpirlo. Per scansarsi, Saggini fece un passo indietro, non trovò l’appoggio, precipitò all’indietro giù per la diruta scarpata, tutta pietre e rovi.125 (BUZZATI, 2007, p. 303)

O meliante Sergio Régora saiu do local acompanhado por seus

asseclas. A certa altura, o grupo se separou, cada um seguindo o seu caminho,

já que o dia estava raiando.

Se n’andarono in gruppetto, commentando la caccia fra sguaiato scoppi di risa. Quanto era durata, però. Nessun vecchio aveva dato tanto da fare. Anche loro erano

contra os anciãos, como se eles fossem responsáveis pelos seus descontentamentos, melancolias, desilusões, infelicidades, típicas, desde que o mundo é mundo, da juventude. (TN) 125

Os dois se encontraram de frente, no pequeno cume gramado. Régora não teve sequer a necessidade de golpeá-lo. Para esquivar-se, Saggini deu um passo atrás, não encontrou apoio, caiu na encosta íngreme toda de pedras e espinhos. (TN)

Page 94: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

94

stanchi. Chissà perché, ma erano stanchissimi. Il gruppetto si sciolse.126 (BUZZATI, 2007, p. 303)

Régora continuou apenas com sua namorada e, quando estavam

chegando a uma “piazza illuminata intensamente”127, ela foi a primeira a

perceber alterações havidas na aparência deles.

“Ma che cos’hai sulla testa?” Chiese lei. “E tu? Anche tu.” Si avvicinarono, esaminandosi a vicenda. “Dio, che faccia che hai. E come mai tutto quel bianco sui capelli?” “Anche tu, anche tu hai una faccia spaventosa.”128 (BUZZATI, 2007, p. 304)

Nesse momento, o rapaz se aproximou de uma vitrina para se observar

e percebeu que havia se transformado em um velho de mais de quarenta anos.

Estava com os cabelos brancos, a pele enrugada e dois dentes a menos. Sua

namorada já se havia ido e, enquanto ele tentava elaborar o que estava

acontecendo, eis que ouviu gritos ao longe; eram jovens gritando: “Dàgli, dàgli

al vecchio!”

Régora cominciò a correre con tutte le sue forza. Ma erano poche. La giovinezza, la spavalda e spietata stagione, sembrava che dovesse durare tanto, sembrava che non dovesse finire mai più. E a bruciarla era bastata una notte. Adesso non restava più niente da spendere. Adesso il vecchio era lui. E veniva il suo turno.129 (BUZZATI, 2007, p. 304)

O conflito de gerações que observamos diariamente está perfeitamente

representado nesse conto, que se inicia em uma “sera di maggio con l’aria

126

Foram embora em grupo, comentando a caça entre vulgares explosões de riso. Quanto tempo teria durado, porém. Nenhum velho havia dado tanto o que fazer. Eles também estavam cansados. Quem sabe por que, mas estavam cansadíssimos. O grupo se desfez. (TN) 127

Praça intensamente iluminada (TN)

128 “Mas o que você tem na cabeça?” perguntou ela.

“E você? Você também.”

Aproximaram-se examinando-se.

“Deus, que cara é essa. E como todo esse cabelo branco?”

“Você também, você também está com uma cara assustadora.” (TN) 129

Régora começou a correr com todas as suas forças. Mas eram poucas. A juventude, a desafiadora e impiedosa estação parecia que duraria tanto, parecia que nunca mais terminaria. E para queimá-la bastou uma noite. Agora não tinha mais nada a perder. Agora o velho era ele. E chegara a sua vez. (TN)

Page 95: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

95

tiepida e viva della primavera”130. A juventude primaveril pela qual todo ser

humano passa e crê infinita, “strade tutte deserte”131 como representação de

todas as possibilidades de caminho a trilhar e a sensação de eternidade.

Mais uma vez o elemento mágico se faz presente na narrativa, para

colocar o real em evidência e, novamente, sem causar a dúvida ou

estranhamento característico do fantástico. Acreditamos que Roberto Saggini e

Sergio Régora sejam a mesma pessoa em diferentes fases da mesma vida. Até

as iniciais dos nomes sugerem uma ordem inversa, uma espécie de

sinalizadores do Passado e do Presente. A personagem dispendeu sua vida

promovendo caçadas aos velhos e nem sequer se deu conta de que o seu

próprio tempo havia passado, em sua narrativa. Se, na busca de um culpado,

ao perguntarmos quem causou a derrocada da personagem e obtivéssemos

por resposta: o Tempo, não seria de todo inverdade, uma vez que é ele o

catalisador da conscientização do protagonista em relação à sua própria

existência, atuando como um “inconsciente do texto”,

[...] Assim como o sonho, segundo Freud, é o guardião do sono, poderíamos dizer que o texto é o guardião da fantasia, que ele incorpora, anexa, manipula para fazer dela sua substância própria, arrancando-a assim da vivência do autor. Então, a crítica psicanalítica só tem possibilidade de atingir seu verdadeiro objeto se colocar, de saída, a hipótese de um inconsciente do texto.132 (BELLEMIN-NOëL, 1983, p. 94)

O tempo, nos contos de Buzzati, é esse agente silencioso e ativo em sua

inalterabilidade, uma vez que encerra a identidade narrativa que deflagra todas

as dores, angústias e questionamentos das personagens.

Podemos observar que a escolha do tempo enquanto temática principal

de sua narrativa permeia toda a sua obra abordando os mais diversificados

aspectos de dor e angústia por ele causadas. Mas, a grande marca que esse

tempo deixa é o medo de sua proximidade com a morte. Nós, seres humanos,

somos essencialmente insatisfeitos, como afirma o filósofo Luiz Felipe Pondé:

130

Em uma tarde de maio com o ar morno e vivo da primavera. (TN)

131 Todas as estradas desertas. (TN)

132 Bellemin-Noël, Jean. Psicanálise e literatura. São Paulo: Cultrix, 1983.

Page 96: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

96

O ser humano é um ser estruturalmente marcado pela angústia de que parece que tem alguma coisa errada com ele, a começar pelo fato de que a gente deveria viver mais do que vive, ter mais saúde do que tem, dar mais certo nas coisas que a gente faz, adiar o que não é bom e, por exemplo, finalmente encontrar aquela pessoa com quem você possa viver para sempre e eternamente feliz com ela.133

A passagem do tempo associada ao medo da morte é o tema do

próximo conto, "Contestazione globale" ("Contestação global").

2.3.4- Contestação global contra a "terrível senhora".

No conto “Contestazione globale”, incluído na coletânea Le notti difficili,

último livro publicado por Dino Buzzati em vida, observamos o tempo através

da dupla ótica novo/velho.

É narrada a história de um grupo de aposentados, liderados por Modesto

Svampa, que decidiu impedir que a morte, chamada por eles de “la maledetta

signora”, “la terribile signora”, “la malcapitata”134 seguisse seu tenebroso roteiro

ceifando vidas.

Dal teatro Magnum, sede dell’assemblea, il corteo mosse verso le sette di sera. Ordinati, impassibili, stringendosi l’uno all’altro, a passi lenti ma sicuri. Misteriosamente spuntarono dalla fiumana cartelli e striscioni: “Basta con la morte! Viva la vera contestazione globale! Via per sempre la maledetta signora!”. Arrivarono fotografi, reporters, telecronisti coi camioncini azzurri. La notizia corse per il paese, per il mondo.135 (BUZZATI, 2002, p. 66)

133

https://www.youtube.com/watch?v=6xt-k2kkvb4 acesso em 13/03/2015.

134 A maldita senhora, a terrível senhora, a malfadada. (TN)

135 Lá pelas sete horas da noite o cortejo deixou o teatro Magnum, local da assembleia. Em ordem,

impassíveis, um ao lado do outro, com passos lentos mas firmes. Misteriosamente apareceram na multidão cartazes e faixas: “Chega de morte! Viva a verdadeira contestação global! Fora para sempre com a maldita senhora!” Chegaram fotógrafos, repórteres, a televisão em suas caminhonetes azuis. A notícia correu o país e o mundo. (Tradução de Fulvia M. L. Moretto)

Page 97: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

97

Esse conto aborda de maneira breve e pontual as agruras a que o

homem estaria fadado caso a morte, de fato, se aposentasse, e, ao mesmo

tempo, acena de maneira sutil à aceitação inevitável de sua chegada.

Causa curiosidade por se tratar de um grupo de aposentados que se

rebelam contra a morte na recusa de morrer, uma vez que o termo

“aposentado”, por si só, carrega um estigma de inutilidade e ociosidade senil

que, desde aquela época, já não correspondia à realidade. Ao longo dos anos,

a perspectiva de vida aumentou quase que proporcionalmente à vivacidade dos

idosos. Vemos, nesse conto, uma crítica social pelo aparente conflito de

gerações que se estabelece quando a morte, impedida de cumprir seu ofício,

não mata mais nenhum dos velhos e doentes, ocasionando, assim, uma

sobrecarga econômica colocada sem aviso prévio sob a responsabilidade dos

jovens.

Anos mais tarde, em 2005, o autor português José Saramago publica o

livro As intermitências da morte, que aborda o mesmo tema:

No dia seguinte ninguém morreu. O facto, por absolutamente contrário às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação enorme, efeito em todos os aspectos justificado [...] passar-se um dia completo, com todas as suas pródigas vinte e quatro horas [...] sem que tivesse sucedido um falecimento por doença, uma queda mortal, um suicídio levado a bom fim, nada de nada, pela palavra nada. [...] A passagem do ano não tinha deixado atrás de si o habitual e calamitoso regueiro de óbitos, como se a velha átropos da dentuça arreganhada tivesse resolvido embainhar a tesoura por um dia. (SARAMAGO, 2005, p. 11)

José Saramago faz uma longa abordagem sociológica a respeito da

situação difícil e insustentável na qual o mundo estaria mergulhado, caso

ninguém mais morresse. Tecendo uma crítica a vários níveis da sociedade

como o governo, a igreja, a publicidade, os hospitais e familiares dos doentes,

que já não morriam, o autor vai mais além do que o sucinto conto de Dino

Buzzati, que estabelece um diálogo entre o desejo universal de viver e a

necessidade premente de morrer, em tese, ao fim das forças físicas.

Verso le undici e mezzo arrivò in volo, da Samarcanda, con la velocità del pensiero, la terribile signora. Aveva da riscuotere, quella notte, nell’ospedale, una ventina di vite. Era naturalmente camuffata da dottoressa, vestita

Page 98: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

98

sobriamente, ma con una certa distinzione. Tentò l’ingresso principale. Qui, per sua sfortuna, stava lo Svampa, il quale la riconobbe al primo sguardo. Venne dato l’allarme. La malcapitata fu respinta sotto una pioggia di vituperi.136 (BUZZATI, 2002, p. 67)

A figura da morte, disfarçada de médica, não causou nenhum impacto

com sua chegada. Foi logo reconhecida pelo protagonista e de maneira bem

natural. Mais uma vez não se percebe a presença do estranhamento frente a

esse acontecimento mágico, muito pelo contrário. A chegada da morte é

aguardada por todos, principalmente pelos mais jovens, que se sentiam

preocupados com o colapso econômico que poderia ocorrer, caso os idosos

conseguissem mesmo impedir o trabalho da morte.

O conto termina com Svampa, já sem forças para lutar contra tamanha

pressão dos jovens e, também, sem disposição para animar seus

companheiros. Resolvendo aceitar o inevitável, chamando a morte de

condessa, partiu com ela.

Pode-se, em um primeiro momento, considerar que a abordagem que

Buzzati faz sobre o tempo privilegie a morte ou nos leve a uma suposição de

autobiografia, ao menos no que diz respeito ao livro Le notti difficili, que foi

escrito quando o autor já tinha conhecimento de que sofria de um câncer e se

encontrava em estado terminal. Ocorre que nossa tese tem mostrado que a

tônica da abordagem do tempo na obra do nosso autor se dá muito mais para

falar da vida do que da morte propriamente dita. E essa sutileza na abordagem

do tempo de vida e morte, que habita em cada um de nós, é o que faz com que

o leiamos como um autor que se utiliza do mágico, do inusitado, do inesperado,

do incomum para tratar das banalidades às quais não atentamos no decorrer

de nossa existência e que são de primordial importância para a manutenção de

uma vida, em toda a sua plenitude, dentro daquilo que chamamos tempo, e

cujo relógio biológico trazemos conosco desde o nosso nascimento e ao qual

chamamos de memória. Daí, podermos afirmar que a grande e grave questão

136

Lá pelas onze e meia chegou voando, de Samarcanda, com a velocidade do pensamento, a terrível senhora. Devia arrecadar naquela noite, no hospital, umas vinte vidas. E, naturalmente, vinha disfarçada de médica, vestindo roupas sóbrias, mas com uma certa distinção. Tentou a entrada principal. Aqui, para sua desgraça, estava Svampa, que a reconheceu ao primeiro olhar. Foi dado o alarme. A indesejada foi afastada sob uma chuva de impropérios. (Tradução de Fulvia M. L. Moretto)

Page 99: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

99

do homem buzzatiano não é morrer e, sim, deixar de viver. Em todos os

sentidos que se puder atribuir à palavra vida. E seja qual for a atribuição de

significado que dermos a essa palavra, teremos sempre a tangenciá-la,

obrigatoriamente, o elemento tempo, seja trazido pelas mãos de Mnemósina,

deusa da memória na mitologia grega, ou pelas de Clio, musa da história e da

criatividade, filha de Mnemósina e Zeus.

Um conto que pode ilustrar essa nossa afirmação intitula-se “Dal

medico” ("No médico") e será analisado no próximo item.

2.3.5- No médico: o morto em vida

Em "Dal medico" ("No médico") é narrada a história de um homem que,

após completar quarenta anos de idade, passou a se consultar com seu

médico a cada seis meses. Mas, um dia ele foi ao médico especialmente

porque se sentia bem, muito bem.

Após as sondagens médicas de praxe em uma consulta de rotina, o

doutor Trattori perguntou-lhe sobre as preocupações que habitualmente o

atormentavam:

Piuttosto dimmi, le tue fisime, le tue classiche fisime? Gli incubi? Le ossessioni? Mai conosciuto uno più tormentato di te. Non vorrai mica farmi credere...137. (BUZZATI, 2002, p. 150)

E obteve por resposta: "Piazza pulita. Sai quello che si dice niente?

Neanche il ricordo. Come se fossi diventato un altro".138 (BUZZATI, 2002, p.

150)

A partir desse momento, o médico começou a indagar a respeito da vida

cotidiana do paciente: o que ele vinha fazendo, como estava se sentido ao

fazer o que fazia, como eram as suas noites de sono, se ele andava assistindo

137

Diga-me. As suas quimeras, as suas famosas quimeras? Seus pesadelos? As obsessões? Nunca conheci alguém mais atormentado do que você. Não quer me fazer acreditar... . (Tradução de Fulvia M. L. Moretto)

138 Acabou. Sabe o que significa nada? Nenhuma lembrança. Como se fosse outra pessoa. (Tradução de

Fulvia M. L. Moretto)

Page 100: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

100

TV, torcendo por um time ou engajado em um partido político, se continuava a

dirigir, enfim, eram inúmeras as perguntas, aparentemente banais. A todas as

indagações o paciente respondeu de maneira positiva, dentro dos padrões de

normalidade pré-estabelecidos para a dualidade saúde/doença.

Depois de certo tempo, nosso protagonista se preocupou com o

tamanho do questionamento do médico e começou a inferir se não estaria

Trattori a averiguar uma possível doença detectada a partir de suas respostas.

Decidiu, então, perguntar o que ou se havia algo errado com ele. E o médico

lhe respondeu: “una cosa semplicissima. Sei morto.”139

O protagonista não conseguiu entender o que o médico queria dizer com

aquela afirmação e insistiu em perguntar se, talvez, Trattori não quisesse dizer

que ele estava para morrer de uma doença incurável. O que também não faria

muito sentido, já que o médico acabara de afirmar que ele estava com a saúde

ótima e, até onde se sabe, essa afirmativa invalida, até certo ponto, o

diagnóstico de morte. A resposta de Trattori não poderia ser mais simples:

Sano, sì. Sanissimo. Però morto. Ti sei adeguato, ti sei integrato, ti sei omogeneizzato, ti sei inserito anima e corpo nella compagine sociale, hai trovato l’equilibrio, la tranquillità, la sicurezza. E sei un cadavere.140 (BUZZATI, 2002, p. 152)

A partir desse momento, o médico começou a elencar toda uma série de

pequenas feridas que culminaram com a morte do paciente, ainda em vida e

gozando de perfeita saúde:

Mica tanto traslato. La morte fisica è un fenomeno eterno e dopo tutto eccessivamente banale. Ma c’è un’altra morte, che qualche volta è ancora peggio. Il cedimento della personalità, la assuefazione mimetica, la capitolazione all’ambiente, la rinuncia a se stessi... Ma guardati in giro. Ma parla con la gente. Ma non ti accorgi che sono morti almeno il sessanta per cento? E di anno in anno il numero cresce. Spenti, piallati, asserviti. Tutti che

139

Algo muito simples. Você está morto. (TN)

140 É sim. Perfeitamente sadio. Porém, morto. Você está adaptado, integrado, você se homogeneizou,

inseriu-se de corpo e alma no complexo social, encontrou o equilibrio, a tranquilidade, a segurança. E você é um cadáver. (Tradução de Fulvia M. L. Moretto)

Page 101: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

101

desiderano le stesse cose, che fanno gli stessi discorsi, tutti che pensano le stesse identiche cose. Schifosa civiltà di massa.141 (BUZZATI, 2002, p. 152)

Uma frase atribuída ao doutor Albert Schweitzer reflete bem o caso

narrado nesse conto: “A tragédia não é quando o homem morre. A tragédia é o

que morre dentro dele enquanto ele ainda está vivo.” A angústia que habitava a

vida do protagonista, que o médico chegou a chamar de “bendita”, e o

inquietava diante da vida era o que o mantinha vivo pelo simples fato de

questioná-la. A partir do momento em que ele se rendeu às mesmices da vida

cotidiana da sociedade que o cercava, a partir do momento em que ele se

enquadrara naqueles gostos, comportamentos e ideais, deixou de viver as

expectativas e passou à morte da homogeneidade.

Non rammollito. Morto. Ci sono oggi nazioni imense, tutte fatte di morti. Centinaia di milioni di cadaveri. E lavorano, costruiscono, inventano, si danno terribilmente da fare, sono felici e contenti. Ma sono dei poveri morti. Fatta eccezione per una minoranza microscopica che gli fa fare quello che vuole, amare quello che vuole, credere in quello che vuole. Come gli zombi delle Antille, i cadaveri resuscitati dagli stregoni e mandati a lavorare nei campi. E in quanto alle tue sculture, è proprio il successo che hai e che una volta non avevi, a dimostrare che sei morto. Ti sei conformato, ti sei dimensionato, ti sei aggiornato, ti sei messo al passo, ti sei tagliato le spine, hai ammainato le bandiere, hai dato le dimissioni da pazzo, da ribelle, da illuso. E perciò adesso piaci al grande pubblico, il grande pubblico dei morti.142 (BUZZATI, 2002, p. 153)

141

Não é bem uma imagem. A morte física é um fenômeno eterno e, afinal de contas, excessivamente banal. Mas há outra morte, que algumas vezes é até pior. O desmoronamento da personalidade, o hábito mimético, a capitulação ao ambiente, a renúncia a si mesmo... Olhe ao seu redor. Fale com as pessoas. Não percebe que estão mortas, pelo menos 60 por cento? E a cada ano cresce esse número. Apagadas, niveladas, submissas. Todos desejam a mesma coisa, dizem as mesmas coisas, todos pensam as mesmas e idênticas coisas. Nojenta civilização de massa. (Tradução de Fulvia M. L. Moretto)

142 Não imbecilizado. Morto. Há hoje nações imensas, todas feitas de pessoas mortas. Centenas de

milhões de cadáveres. E trabalham, constróem, inventam, criam terríveis ocupações, estão felizes e contentes. Mas são uns pobres mortos. Com a exceção de uma minoria microscópica que os obriga a fazerem o que quer, a amarem o que quer, a acreditarem naquilo que quer. Como os zumbis das Antilhas, os cadáveres ressuscitados pelos feiticeiros e enviados para trabalhar nos campos. E, quanto às suas esculturas, é exatamente o sucesso que você tem, e que antigamente não tinha, que prova que você está morto. Você transformou-se, dimensionou-se, atualizou-se, parou suas arestas, arrimou suas bandeiras, perdeu sua loucura, sua rebelião, sua ilusão. E assim, agora agrada ao grande público, o grande público dos mortos. (Tradução de Fulvia M. L. Moretto)

Page 102: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

102

Ao se “tornar vítima da indigência mental e ficar impermeável à

renovação do seu conhecimento”143, como disse o filósofo Mário Sérgio

Cortella, o nosso protagonista deixou de viver sua vida de forma plena. É como

se a loucura, a rebelião e a ilusão fossem os nutrientes que garantiam a sua

vitalidade. Ao passo que, quando ele se amalgamou àquilo que a todos

agradava, deixou automaticamente de viver. Essa morte do protagonista vem

sendo anunciada desde o primeiro parágrafo do conto através das marcações

temporais feitas pelo autor.

Logo no primeiro parágrafo, o autor menciona o tempo segundo a

periodicidade com que o protagonista vai ao médico, para, na sequência,

pontuar o tempo de vida dessa personagem: quarenta anos. Sinaliza o tempo

de convivência, quando se refere ao médico como sendo um velho amigo e

situa o tempo enquanto estação do ano: outono, o que por si só já evidencia o

decantar de sua juventude, posto que o outono é a estação da colheita, logo,

por analogia ao amadurecimento, temos a velhice do corpo.

O conto trata da dualidade vida/morte quando o elemento tempo, em

muitas das suas faces, se faz presente e conduz a narrativa da primeira à

última linha. E o narrador o encerra dizendo:

Ora si è fatta veramente notte. E la bella caligine industriale ha il colore del piombo. Attraverso i vetri, la casa di faccia si riesce a distinguere appena.144 (BUZZATI, 2002, p. 153)

O estranhamento causado pela sensação de não pertencimento a tudo

que nos cerca tanto pode conduzir ao mergulho no lugar comum a todos, como

no conto “Dal medico”, como também pode nos levar à uma angustiante

solidão, como veremos a seguir.

143

https://www.youtube.com/watch?v=3rzvOqrtWIc (acesso em 10-03-2015) Mário Sérgio Cortela

144 Agora a noite caiu por completo. E a bela caligem industrial tem cor de chumbo. Através dos vidros,

consegue-se distinguir apenas vagamente o edifício em frente. (Tradução de Fulvia M. L. Moretto)

Page 103: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

103

2.3.6- "Solidão" e seus integrantes.

O conto “Solitudini” (Solidão) é composto por seis contos integrantes:

"La parete", "La confessione", "L'autostrada", "Il sepolcro di Atilla", "Il

registratore" e "I giorni perduti".

O primeiro conto integrante, “La parete”, narra a história de um homem

que saira com seu irmão e um amigo para escalar um paredão de “ghiaccio,

roccia, sabbia, terra, vegetazione e infissi artificiali.”145 O protagonista descreve

as habitações incrustadas nas rochas da grande encosta:

Ai lati, sulle due precipitose quinte di roccia che chiudevano il canalone, finestre e porte si aprivano e chiudevano, le donne di casa dandosi un gran daffare per pulire, lucidare, mettere ordine. Ci vedevano benissimo, naturalmente, vicini come eravamo, ma sembrava che non se ne interessassero affatto.146 (BUZZATI, 2002, p. 10)

A encosta era totalmente ocupada por escritórios, casas, restaurantes

onde as pessoas moravam, trabalhavam e se divertiam. Eles continuavam a

escalada, enquanto essas mesmas pessoas seguiam suas vidas indiferentes

ao fato de eles estarem subindo o paredão, ainda que elas os vissem passar.

A un certo punto ci trovammo alle prese con un pericolosissimo muro fatto di pietroni tenuti insieme da erbacce e radici. Tutto mollava, Stratzinger propose di tornare. Noi due fratelli insistendo, lui disse che allora era meglio slegarsi. Tanto, se uno cadeva, gli altri due, non potendosi in alcun modo affrancare, lo avrebbero seguito fatalmente nella catastrofe.147 (BUZZATI, 2002, p. 10)

145

Gelo, rocha, areia, terra, vegetação e estruturas artificiais. (Tradução de Fulvia M. L. Moretto)

146 Dos dois lados, nos dois íngremes picos de rocha que fechavam a ponta, abriam-se e fechavam-se

janelas e portas, com as donas-de-casa em grande azáfama, limpando, lustrando, arrumando. Viam-nos com toda a nitidez, é claro, estávamos tão perto, mas parecia que, absolutamente, não despertávamos seu interesse. (Tradução de Fulvia M. L. Moretto)

147 Em um dado momento encontramo-nos diante de uma parede perigosíssima, feita de grandes pedras

ligadas por ervas daninhas e raízes. Tudo cedia. Stratzinger propôs que voltássemos. Como meu irmão e eu insistíssemos, disse então que era melhor nos desamarrarmos. Assim, se um de nós caísse, os outros dois, impedidos de se libertar, seguiriam fatalmente na catástrofe. (Tradução de Fulvia M. L. Moretto)

Page 104: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

104

Esse é o momento em que a personagem rompeu com os padrões

preestabelecidos e optou por permanecer onde estava. A partir daí, ele

começou a cair.

Purtroppo, sotto il peso, il telaio accennò a piegarsi cedendo. Era chiaro che stava per rompersi. Non sarebbe costato niente, a quelli là dell’aperitivo, tendermi una mano e salvarmi. Ma oramai non si occupavano più di me.

Mentre cominciavo a precipitare, nel silenzio sacro della montagna, li potei udire distintamente che discorrevano del Vietnam, del campionato di calcio, del Contagiro.148 (BUZZATI, 2002, p. 10)

O segundo conto integrante, intitulado “La confessione”, apresenta a

história da senhora Laurapaola, uma mulher que se encontrava acamada por

causa de um mal-estar que vinha sentindo há algumas semanas. O médico lhe

assegurara que não se tratava de nada grave e os familiares já não se

importavam com ela, por crê-la uma maníaca. Esse era o panorama que o

padre Quarzo encontrou, certa tarde, quando foi visitá-la, após suas rotineiras

visitas aos focômelos.

Logo de início, o padre perguntou pela “simpatica vecchietta” que

sempre o recepcionava e Laurapaola respondeu que a havia demitido porque

ela já estava muito velha e sua casa não era um asilo. A partir daí, a

protagonista começou a contar para o religioso as suas atividades durante o

último verão, ao que Quarzo ouvia sério e em silêncio. Contara sobre “il viaggio

in Spagna, le corride, il matrimonio della cognatina di Arezzo, poi la crocciera in

barca, giù fino a Cipro e all’Anatolia.”149

O padre ouvia tudo atentamente e já não se via sorriso em seu rosto:

148

Infelizmente, com o peso, o caixilho começou a dobrar-se, cedendo. Era evidente que estava a ponto de romper-se. Não teria custado nada aos que estavam tomando aperitivos estender-me a mão, salver-me. Mas agora não se preocupavam mais comigo.

Enquanto eu começava a cair, no silêncio sagrado da montanha, pude ouvi-los distintamente: falavam do Vietnã, do campeonato de futebol, do Cantagiro. (Tradução de Fulvia M. L. Moretto)

149 [...] a viagem à Espanha, as corridas, o casamento da jovem cunhada em Arezzo, depois o cruzeiro de

navio até Chipre e a Anatólia. (Tradução de Fulvia M. L. Moretto)

Page 105: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

105

Parlava, parlava, la nuova villa a Porto Ercole, le lezione di yoga (“Anche spiritualmente, padre, ci si sente trasformati, sa?”), la prossima partenza per Saas Fee, l’ultima asta di quadri, parlava parlava, si era fatta tutta accesa in volto.150 (BUZZATI, 2002, p. 10)

Em dado momento, interrompendo o discurso da mulher, ele disse:

<< Figliola,>> disse alla fine << lei ha parlato abbastanza, non vorrei si stancasse>> si alzò lungo lungo. <<Ora le darò l’assoluzione.>> <<Come?>> <<Non la vuole, figlia mia?>> <<Oh no, padre... Grazie anzi... Ma non capisco...>> <<In nomine Patris et Filii>> cominciò padre Quarzo, il volto severo. E anche congiunse le mani. Così Laurapaola seppe che le toccava morire.151 (BUZZATI, 2002, p. 10)

O terceiro conto integrante intitula-se “L’autostrada” e narra a história de

um homem que dirigia sozinho, pela auto-estrada do Sol, em uma tarde de

julho. Durante seu trajeto, ele começou a observar a sua volta e percebeu que,

estranhamente, os carros que passavam por ele estavam literalmente vazios.

Ele começou a se sentir desconfortável e confuso e questionou-se:

L’impressione fu paralizzante. Che mi avesse preso un malore? Che fossi colto da allucinazioni? Col batticuore rallentai, fermandomi sulla corsia esterna, all’estremo ciglio. E discesi, frastornato. In quell’istante passò una multipla carica sul tetto di bagagli, compresa una carrozzina da neonato. Una famigliola, probabilmente, che andava in villeggiatura. Ma la famiglia, dentro, non c’era.152 (BUZZATI, 2002, p.13-14)

150

Falava, falava, a nova casa de campo em Porto Ercole, as aulas de yoga (“Sabe, padre, a gente se sente transformada, até mesmo espiritualmente”), a próxima partida para Saas Fee, o último leilão de quadros, falava, falava, falava, seu rosto refletia a animação. (Tradução de Fulvia M. L. Moretto)

151 - Minha filha – disse finalmente – já falou bastante, não quero que se canse – levantou-se, muito alto.

– Agora vou lhe dar a absolvição. - Como? - Não quer, minha filha? - Oh, não, padre... Aliás, obrigada... Mas não estou entendendo... - In nomine Patris et Filii... – começou padre Quarzo, com o rosto severo. E ela também juntou as mãos. Foi assim que Laurapaola soube que deveria morrer. (Tradução de Fulvia M. L. Moretto)

152 A impressão foi paralisante. Estaria sofrendo de um mal súbito? Estaria tendo alucinações? Com o

coração batendo, diminuí a marcha, parei na última pista da direita. E desci atordoado. Naquele momento passou um carro com o capô coberto de bagagens, até um carrinho de bebê. Provavelmente,

Page 106: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

106

A personagem olhava ao seu redor e não via ninguém, nenhuma casa,

fato que o levou à seguinte conclusão: “la campagna dormiva assopita nel

sole.”153 Em meio a essas observações e questionamentos, ele percebeu um

cão e o reconheceu como sendo o seu, Moro, que havia deixado em casa há

dois dias, velho e doente:

Moro! Moro! Chiamai ancora. Ma lui non rispondeva più. Tremolando, cominciò a girare su se stesso come fanno appunto i cani prima di accucciarsi. Si accucciò infatti, crollando, quase le ultime forze lo avessero lasciato.154 (BUZZATI, 2002, p. 14)

Enquanto se detinha nas lembranças de seu cão ao mesmo tempo em

que o via morrer, a personagem foi surpreendida pelo barulho de motocicletas,

atrás dele. Eram dois policiais que o advertiram a respeito do perigo de se

estacionar fora do acostamento. Perguntaram-lhe se estava se sentindo bem,

ao que o protagonista respondeu pondo termo à conversa. A partir desse

momento, é como se tudo tivesse voltado ao normal e ele pode, de novo,

observar as pessoas no interior de seus carros. Quando ele procurou o cão

com o olhar, o animal já não estava lá. A personagem encerra a narrativa com

uma observação entre parênteses:

(Poi seppi che in quell’ora precisa Moro era andato a morire, solo soletto, sulla riva del Piave, più di duecento chilometri lontano.)155 (BUZZATI, 2002, p. 14)

O quarto conto integrante de “Solitudini” se chama “Il sepolcro di Attila” e

narra a trajetória de vida do arqueólogo explorador Giovani Tassol, na busca do

“leggendario sepolcro di Attila”. A narrativa é completamente pontuada com os

nomes das pessoas que o ajudaram, ou não, ao longo se sua vida acadêmica e

uma pequena família saindo de férias. Mas a família não estava lá dentro. (Tradução de Fulvia M. L. Moretto)

153 O campo dormia, entorpecido, ao sol. (Tradução de Fulvia M. L. Moretto)

154 Moro! Moro! Chamei novamente. Mas ele não respondia mais. Tremendo, começou a girar sobre si

mesmo, justamente como fazem os cães antes de se deitarem. Deitou-se realmente, quase caindo, como se as últimas forças o tivessem abandonado. (Tradução de Fulvia M. L. Moretto)

155 (Soube mais tarde que, exatamente naquela hora, Moro fora morrer absolutamente só, na margem

do Piave, a mais de 200 quilômetros de distância) (Tradução de Fulvia M. L. Moretto)

Page 107: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

107

pessoal e, invariavelmente, todos esses nomes são seguidos da frase entre

parênteses "(che non c’è più)":

Le vicissitudini accademiche, alleviate dal costante generoso appoggio del magnifico rettore professore Tullio Brosada (che non c’è più), ebbero termine con la caduta della monarchia. Dopodiché, divenuto cattedratico, egli organizzò la prima vera spedizione per la ricerca del sepolcro di Attila, affiancandosi due valorosi giovani studiosi, Max Serantini e Gianfranco Sibili (che non ci sono più).156 (BUZZATI, 2002, p. 16)

A personagem segue a sua trajetória na busca do sepulcro de Átila

elencando todos aqueles que passaram pela sua vida e que já não mais vivem.

E, finalmente, ele encontrou o sepulcro de Átila.

Il capo dello stato gli ha fatto pervenire un caloroso radio gratulatorio. I giovani assistenti, i tecnici, i lavoranti si preparano a festeggiarlo là sul posto, con mezzi di fortuna. C’è allegria.157 (BUZZATI, 2002, p. 16)

Todos comemoram sua descoberta, o felicitam, se alegram, entretanto

ele está só,

Seduto su una pietra, si guarda intorno. Alberi, alberi, alberi. Nient’altro. È solo.

“Il registratore” é o nome do penúltimo conto integrante e narra a

lembrança de um homem não nominado. Ele se recorda de quando tentava

gravar uma música do rádio, Rei Arthur de Purcell, e sua mulher fazia tanto

barulho, de toda espécie, inviabilizando a sua gravação.

Le aveva detto (a bassissima voce) l’aveva supplicata sta zitta ti prego, il registratore sta registrando dalla radio non far rumore lo sai che ci tengo, sta registrando Re Arturo di Purcell, bellissimo, puro. Ma lei dispettosa

156

As vicissitudes acadêmicas, suavisadas pelo constante e generoso apoio do magnífico reitor, professor Tullio Brosada (já falecido) acabaram com a queda da monarquia. Depois, tendo-se tornado catedrático, organizou a primeira verdadeira expedição em busca do sepulcro de Átila, tendo a seu lado dois jovens corajosos e estudiosos, Max Sarantini e Gianfranco Sibili (já falecidos). (Tradução de Fulvia M. L. Moretto)

157 O presidente enviou-lhe uma calorosa mensagem de congratulações. Os jovens assistentes, os

técnicos, os operários se preparam para festejar in loco, com os meios disponíveis... Há alegria.

Sentado numa pedra, olha ao redor. Árvores, árvores, árvores. Mais nada. Está só. (Tradução de Fulvia M. L. Moretto)

Page 108: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

108

menefreghista carogna su e giù con i tacchi per il solo gusto di farlo imbestialire e poi si schiariva la voce e poi tossiva (apposta) e poi si ridacchiava da sola e accendeva il fiammifero in modo da ottenere il massimo rumore.158 (BUZZATI, 2002, p. 17-18)

Ocorre que ela se cansou dele e o abadonou. Restaram-lhe apenas as

recordações daqueles incômodos que tanto lhe faziam falta.

Quel ticchettìo su e giù, quei tacchi, quelle risatine (la seconda specialmente), quel raschio in gola, la tosse. Questa sì, musica divina.159 (BUZZATI, 2002, p. 18)

Passava seu tempo a gravar músicas, sem importar-se com a mulher e,

por isto, só sente a falta que ela lhe faz quando é abandonado. Perdeu seus

dias com as gravações, não soube, porém, registrar que perdia, também, sua

mulher. Dias perdidos também é tema do próximo conto.

Finalmente, o sexto e último conto integrante, “I giorni perduti” ("Os dias

perdidos") nos traz a experiência vivida por Ernst Kazirra alguns dias após a

aquisição de sua “suntuosa mansão”.

Kazirra voltava para casa quando viu um homem saindo pela lateral de

seu muro, levando uma caixa nos ombros:

Non fece in tempo a raggiungerlo prima che fosse partito. Allora lo inseguì in auto. E il camion fece una lunga strada, fino all’estrema periferia della città, fermandosi sul ciglio di un vallone.160 (BUZZATI, 2002, p. 18)

158

Dissera-lhe (bem baixinho) suplicara-lhe cale a boca por favor, o gravador está gravando a música do rádio, não faça barulho, sabe que faço questão, está gravando o Rei Artur de Purcell, belíssimo, puro. Mas ela implicante sem dar bola para nada, safada, de um lado para outro, batendo os saltos só para ter o gostinho de enfurecê-lo, depois pigarreava e depois tossia (de propósito) e depois dava risadinhas e acendia o fósforo fazendo o maior barulho possível [...] (Tradução de Fulvia M. L. Moretto, 1986, p. 31)

159 Aquele tac-tac de um lado para outro, aqueles saltos, aquelas risadinhas (especialmente a segunda)

aquele pigarro na garganta, a tosse. Isso sim, é música divina. (Tradução de Fulvia M. L. Moretto, 1986; p. 31)

160 Não consegui alcançá-lo. Então tomou o carro para seguí-lo. E o caminhão rodou por muito tempo

até a extrema periferia da cidade, parando à beira de um profundo vale. (Tradução de Fulvia M. L. Moretto, 1986, p. 32)

Page 109: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

109

O homem tirou a caixa do caminhão e atirou-a no barranco já cheio de

outras tantas iguais. Kazirra aproximou-se dele e perguntou o que significavam

todas aquelas caixas, ao que teve por resposta:

Quello lo guardò e sorrise: <<Ne ho ancora sul camion, da buttare. Non sai? Sono i giorni.>> <<Che giorni?>> <<I giorni tuoi.>> <<I miei giorni?>> <<I tuoi giorni perduti. I giorni che hai perso. Li aspettavi, vero? Sono venuti. Che ne hai fatto? Guardali, infatti, ancora gonfi. E adesso...>>161 (BUZZATI, 2002, p. 19)

Ernst olhou para o imenso monte de caixas e desceu para abrir uma

delas. Abriu a primeira e viu lá dentro o dia em que sua noiva partira e ele não

tentou impedir. Abriu a segunda e viu o dia em que seu irmão estava internado,

muito mal, aguardando a visita que ele não fizera porque estava viajando a

negócios. Abriu ainda uma terceira para lá encontrar o seu fiel mastim, que o

esperava há dois anos no portãozinho da casa velha e pobre que ele não mais

visitara.

Si sentì prendere da una certa cosa qui, alla bocca dello stomaco. Lo scaricatore stava diritto sul ciglio del vallone, immobile come un giustiziere.

<<Signore!>> gridò Kazirra. <<Mi ascolti. Lasci che mi porti via almeno questi tre giorni. La supplico. Almeno questi tre. Io sono ricco. Le darò tutto quello che vuole.>>

Lo scaricatore fece un gesto con la destra, come per indicare un punto irraggiungibile, come per dire che era troppo tardi e che nessun rimedio era più possibile. Poi svanì nell’aria, e all’istante scomparve anche il gigantesco cumulo delle casse misteriose. E l’ombra della notte scendeva.162 (BUZZATI, 2002, p. 19-20)

161

O homem olhou e sorriu: - Ainda tenho mais no caminhão, para jogar fora. Não sabe? São os dias. - Que dias? - Os seus dias. - Os meus dias? - Os seus dias perdidos. Os dias que você perdeu. Você esperava por eles, não esperava? Eles vieram. E o que você fez com eles? Olhe, estão intatos, ainda cheios. E agora... (Tradução de Fulvia M. L. Moretto, 1986, p. 32) 162

Sentiu alguma coisa aqui, na boca do estômago. O carregador mantinha-se ereto à beira do vale profundo, imóvel como um justiceiro. - Senhor! – gritou Kazirra. – Ouça-me. Deixe-me ficar com pelo menos estes três dias. Suplico-lhe. Pelo menos estes três. Sou rico. Dou tudo o que quiser.

Page 110: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

110

Não podemos parar o tempo, nem fazê-lo voltar atrás. Nem os últimos

três dias, como queria Kazirra, nem o último minuto.

O Professor Doutor Clóvis de Barros Filho, professor de Ética na Escola

de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo afirma, em uma de

suas aulas163, que não há como tratar de temporalidade sem o viés da ética e

que

Os espaços sociais são, antes de mais nada, espaços de definição de rítmos de vida. [...] não tem como ter uma ética, senão a partir de uma temporalidade, de uma certa percepção da cadência do mundo [...] a tua temporalidade, enquanto percepção do passar do tempo, vai depender demais de como você vive e de como você convive, e é por isso que a percepção do tempo é uma questão ética.164

Acreditamos que seja esse um dos questionamentos que Buzzati suscita

em sua narrativa. Em Solitudini, a tônica, como o título sugere, fica por conta

da solidão que, invariavelmente, nos tocará a todos mais cedo ou mais tarde. A

experiência de Stratzinger muito se assemelha à de Gaspari, posto que ambos

são vistos pelos que os cercam, porém não são percebidos por essas pessoas.

Gaspari sentia-se morrer “e nessuno di quanti passavano si accorgeva che nel

mezzo del petto egli portava confitta una freccia”165. O mesmo aconteceu com

Stratzinger que, enquanto tentava desesperadamente evitar a queda, dando

um salto para segurar-se, ouve: “Agile, però, per la sua età! commentò

sorridendo un giovanotto affacciato all’apertura della grotta”166, como se o

tempo fosse desacelerando à medida em que envelhecemos quando, na

O carregador fez um gesto com a mão direita, como se indicasse um ponto inatingível, como se quisesse dizer que era tarde demais e que nenhum remédio seria possível. Depois esvaiu-se no ar, e, nesse momento, desapareceu também o gigantesco monte de caixas misteriosas. E caía a sombra da noite. (Tradução de Fulvia M. L. Moretto, 1986, p. 33)

163 https://www.youtube.com/watch?v=2jBZxv8Wfr8

164 https://www.youtube.com/watch?v=2jBZxv8Wfr8 (acesso em 14/04/2015)

165 E nenhum dos que passavam por ali se davam conta de que no meio de seu peito tinha uma flexa

(TN)

166 Ágil, porém, para a sua idade! Comentou sorrindo um jovem que estava próximo à abertura da gruta.

(TN)

Page 111: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

111

verdade, somos nós a reduzir o rítmo e a causar espanto quando isso não

acontece.

Percebemos a futilidade de uma vida vazia de significados morais,

quando observamos os lamentos da senhora Laurapaola em contraposição à

vida que tinha, assim como percebemos a ambição que cega aquele que se

utilizava dos benefífios fornecidos pelo paletó feito pelo senhor Alfonso

Corticella. A respeito de ética e tempo, mais uma vez nos valeremos da fala do

professor Clóvis:

[...] O que pode ter a ver uma reflexão sobre a temporalidade, a ver com a ética? [...] mas não há dúvida que se a vida é, antes de mais nada, finita, se a vida humana tem como principal atributo a finitude, isto quer dizer que a temporalidade é a condição primeira de reflexão sobre o melhor jeito de viver. Em outras palavras eu não posso prescindir de uma reflexão sobre o tempo se eu estou querendo discutir o melhor jeito de viver, porque viver é, antes de mais nada, é viver uma trajetória que termina, portanto uma trajetória finita, portanto uma trajetória temporal definida [...]167

O melhor jeito de viver para essas personagens foi o usufruir de tudo

quanto a vida lhes poderia oferecer no que tange ao prazer em suas mais

variadas representações. E essa foi a maneira utilizada por Buzzati para falar

que essa busca pelo prazer não nos basta, porque não nos plenifica sem o

elemento ético que sempre baterá às portas de nossa consciência travestido de

memória. Mais que isso, ele afirmará que o homem se expõe tanto em tantas

aventuras e desmandos exatamente por saber que a morte está, o tempo

inteiro, à sua espreita e

La cosa maggiormente temuta qui è la cosa maggiormente desiderata. Di là si capisce che è la morte che dа gusto alle cose della vita. Altrimenti la vita sarebbe la cosa più spaventosa e cretina che ci sia. Quando l’uomo sogna l’immortalitа, sogna la propria assoluta e cretina infelicità. Che cosa sarebbe il correre in automobile se non ci fosse dietro la morte? L’alpinismo, che cosa sarebbe? L’esplorazione, che cosa sarebbe? Che senso avrebbe avuto l’andare al Polo Nord se non ci fosse stato il pericolo di lasciarci la pelle? Sarebbe stata

167

https://www.youtube.com/watch?v=2jBZxv8Wfr8 (acesso em 14/04/2015)

Page 112: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

112

la cosa più ebete di questa terra. Non c’é dubbio. E, nello stesso amore, c’è fondamentalmente l’idea della morte, intesa nella forma più semplice, cioè di atto destinato a procreare una creatura che dovrà morire.168

E a parte que cabe à memória e à consciência de tempo mal vivido,

confere a Dorian Gray a decisão de queimar o quadro, assim como a

personagem buzzatiana queima o terno.

O que sobrou do passado para nós? [...] o passado só existe para nós, o passado só existe em nós, o passado só existe nas nossas lembranças, o passado só existe na memória e é por isso que o passado, que não existe no mundo, existe em nós [...] O passado é um não ser, mas o passado é ser para nós quando lembramos dele [...] A memória nada mais é do que o passado no presente.169

A propósito dessa afirmação, nos ocorre uma citação de Cícero, que

Frances A. Yates, autora já citada nesta tese, faz em seu livro A arte da

memória, quando trata do processo técnico da manutenção da memória:

A invenção é o exame aprofundado de coisas verdadeiras (res) ou de coisas verossímeis para tornar uma causa plausível; a disposição é arranjar em ordem as coisas já descobertas; a elocução é adaptar as palavras (verba) convenientes às (coisas) inventadas; a memória é a percepção firme, pela alma, das coisas e das palavras; a pronunciação é o controle da voz e do corpo para se adequar à dignidade das coisas e das palavras. (YATES, 2010, p. 25. Os grifos são nossos.)

168

O que é imensamente temido é, ao mesmo tempo, imensamente desejado. Mais tarde se entende

que é a morte que dá gosto às coisas da vida. Do contrário a vida seria a coisa mais assustadora e cretina que poderia existir. Quando o homem sonha a imortalidade, ele sonha exatamente a absoluta e cretina infelicidade. O que seria a corrida de carros se não houvesse a morte às costas? O alpinismo, o que seria? A exploração, o que seria? Que sentido haveria em ir ao Pólo Norte se não existisse o perigo de deixar lá a própria pele? Teria sido a coisa mais idiota dessa terra. Não existe dúvida. E, mesmo com o amor, tem fundamentalmente a ideia da morte, entendida na forma mais simples, isto é , de um ato destinado a procriar um ser que deverá morrer. (TN) http://rinabrundu.com/2012/01/30/a-quarantanni-dalla-morte-tutto-sullopera-del-giornalista-dino-buzzati-traverso-and-more-o-quasi/ (acesso 21/05/2015)

169

https://www.youtube.com/watch?v=2jBZxv8Wfr8 (acesso em 14/04/2015)

Page 113: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

113

Ora, essa lembrança que torna vivo o nosso passado no presente nada

mais é que “a recuperação do conhecimento ou da sensação ocorrida”170 em

dado momento de nossa existência. E é essa lembrança que as personagens

acessam e que algumas tentam recuperar sem conseguir, posto que o passado

não é.171

[...] Quem pode negar que as coisas pretéritas já não existem? Mas está ainda na alma a memória das coisas passadas. E quem contesta que o presente carece de espaço, porque passa num momento? Contudo, a atenção perdura, e através dela continua a retirar-se o que era presente. Potanto, o futuro não é um tempo longo, porque ele não existe: o futuro longo é apenas a longa expectação do futuro. Nem é longo o tempo passado porque não existe, mas o pretérito longo outra coisa não é senão a longa lembrança do passado. (AGOSTINHO, 2004, p. 337)

Essa afirmação de Santo Agostinho nos remete à personagem Ernst

Kazirra, que teve diante dos olhos a insólita oportunidade de, literalmente, tocar

em seu passado, posto que cada um de seus dias vividos estava contido em

uma caixa, e, além disso, pôde, por alguns poucos instantes, reexperienciá-los

através de outra ótica. Mensurou diante dos olhos a personificação da

quantidade de dias perdidos nos quais poderia ter feito outras escolhas que

não aquelas que lá estavam encaixotadas, como um “presente” que não tinha

sido usado (ou vivido). E, ainda assim, não pôde impedir o esvanecimento de

seu longo passado, no presente.

Também no conto integrante “Il registratore” a personagem retoma essa

ideia de personificação do passado, mas aqui o sentido a experienciar essa

revivescência é a audição. A personagem, não nominada, tentava gravar Il Re

Arturo, de Purcell, pelo rádio, mas a sua mulher não parava de fazer barulho

causando, assim, ruído na gravação. Acreditamos que a ária172 abaixo citada,

retirada da supramencionada ópera, reflita bem o sentimento da personagem:

170

YATES, Frances A. A arte da memória. Campinas: Editora da Unicamp, 2010, p. 54.

171 AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 2004; p. 323.

172 https://www.youtube.com/watch?v=MVWseQd7EmE (acesso em 01/05/2015)

Page 114: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

114

What power art thou What power art thou, who from below, Hast made me rise unwillingly and slow, From beds of everlasting, everlasting snow See'st thou not how stiff, how stiff and wondrous old, Far unfit to bear the bitter cold I can scarcely move or draw my breath, I can scarcely move or draw my breath, Let me, let me freeze again Let me, let me freeze again to death Let me, let me freeze again to death173

Assim como o Gênio do Frio, nossa personagem também foi despertada

do seu isolamento a contragosto, mesmo assim não resistiu aos encantos do

Cupido, no caso, a sua esposa e, apesar de conseguir conquistar a sua tão

desejada liberdade insular, a sua audição continuara prisioneira daqueles

“rumori, quei versi, quella tosse, quei suoni adorati, supremi. Che non esistono

più, non esisteranno mai più.”174 Mas o Gênio do Frio tinha a missão de salvar

e a nossa personagem de salvar-se.

A propósito das faces através das quais se pode observar o passado,

citaremos, mais uma vez, Jean Bellemin-Noël:

A magia, também chamada a “onipotência dos pensamentos”. Compondo há muito com o princípio de realidade, o adulto civilizado, cujos próprios olhos são desprovidos de fantasia e de gratuidade, não conhece senão dois lugares onde sopra ainda a liberdade do não-senso, onde seu espírito crítico tolera ser neutralizado: o humor e a arte. (BELLEMIN-NOËL, 1983, p. 33)

173 Que feitiço tens tu

Que feitiço tens tu, que de baixo, Fizeste-me despertar involuntária e lentamente, Do leito da neve eterna, eterna? Não vês que, rígido e excessivamente velho, Incapaz de suportar o frio penetrante, Mal consigo me mover ou respirar, Mal consigo me mover ou respirar? Deixa-me, deixa-me congelar novamente Deixa-me, deixa-me congelar novamente até a morte, Deixa-me, deixa-me congelar novamente até a morte. (Texto extraído da ópera King Arthur, libreto de autoria de John Dryden e música de Henry Purcell. Tradução de Leandro da Costa, que é formado em Canto pela UNIRIO e integra o coro do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, além de ser professor dos cursos de Canto e Canto Coral nos Seminários de Música Proarte).

174

Barulhos, aqueles resmungos, aquela tosse, aqueles sons adorados, supremos. Que não existem mais, nunca mais existirão. (Tradução de Fulvia M. L. Moretto, 1986; p. 32)

Page 115: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

115

Essa magia que nos é proibida em função da nossa suposta maturidade

é a mesma de que se servem os grandes escritores. É através dela que

podemos viajar para o mundo da fantasia, do inusitado, da ficção sem

reservas. É essa magia de que Buzzati se utiliza para compor a sua narrativa.

No conto integrante “Il sepolcro di Attila”, o autor nos apresenta a

trajetória da vida do pesquisador Giovani Tassol. Durante toda a narrativa a

personagem elenca um sem-número de pessoas que atravessaram seu

caminho ao longo dos anos e, invariavelmente, todos já estão mortos. Essa

conscientização de solidão também se dá com a personagem do conto

integrante “L’autostrada” que, enquanto dirigia seu carro, começou a perceber

que nos outros automóveis não havia ninguém, ainda que os carros estivessem

em movimento. A sua única percepção é com relação ao seu bom e velho cão,

que deixara doente em casa.

Yates nos diz “que todas as coisas se apagam com o tempo, mas o

tempo em si é perene e imortal por causa da lembrança”175. Ora, a personagem

não tinha porque se lembrar daqueles desconhecidos que passavam na

estrada, mas esse apagar não denota o desaparecimento temporal dos fatos e

sim a sensação de solidão, ainda que em meio a uma multidão de pessoas. A

relação com o cão se dá por conta da fidelidade inigualável de que é capaz

esse animal. Essa fidelidade permitiu que a personagem o visse, o percebesse,

mas a falta de afinidade com o mundo o impedira de ver as outras pessoas.

Em Solitudini Dino Buzzati nos apresenta algumas das muitas faces da

solidão que nos habita, ainda que não queiramos admitir. Em dado momento,

todos os protagonistas, das mais variadas maneiras, sentiram a presença

desse elemento solitário chamado tempo. É a percepção do tempo o elemento

que deflagra o sentimento de solidão, de perda, de morte e o inesperado surge

como o elemento catalisador da consciência temporal nas personagens. Não

há “marcas de interlocução entre a personagem-narrador e as personagens-

narratário, envolvendo o leitor no jogo ficcional, transmitindo-lhe a dúvida”176,

175

YATES, 2010, p.64.

176 GARCIA, Flavio; SANTOS, Rodrigo de Moura; BATISTA, Angélica Maria Santana, in O insólito na

narrativa ficcional: Questões de gênero literário – o Maravilhoso e o Fantástico, 2006; texto

Page 116: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

116

ou questionamentos por parte das personagens frente às ocorrências

incomuns, tampouco há o instante de hesitação de que nos falou Todorov.

O inesperado, ou inusitado, surge na narrativa de Dino Buzzati como

algo natural e perfeitamente possível dentro da realidade na qual estão

inseridas as personagens.

apresentado no III Congresso de Letras da UERJ – São Gonçalo (http://www.flaviogarcia.pro.br/textos/ acesso em 27/04/2015)

Page 117: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

117

CONSIDERAÇÕES FINAIS

"Compositor de destinos / Tambor de todos os ritmos..."177, o tempo dá

cadência e perpassa a farta narrativa do autor italiano Dino Buzzati, que

motivou a pesquisa que apresentamos nesta tese.

Para dar suporte à análise que empreendemos da narrativa de Buzzati,

dentre todos os autores que, ao longo da história, debruçaram-se sobre a

incansável e árdua tarefa de teorizar sobre tempo, optamos pelas reflexões

elaboradas por Norbert Elias, Santo Agostinho e Paul Ricoeur, principalmente,

sem desconsiderar, no entanto, outros estudiosos não menos importantes.

Nossa tese apresentou dois objetivos principais: o primeiro deles

propunha uma análise com vistas a comprovar a hipótese de que a categoria

tempo subjuga as demais categorias - personagem e espaço - dentro da

narrativa de Buzzati e serve de gatilho para as reflexões das personagens.

Para tanto, compusemos nosso corpus com contos nos quais esse

sobrepujamento fica evidente, como no caso de Cacciatori di vecchi, em que a

personagem se surpreende com o próprio reflexo envelhecido, por não ter

percebido a inevitável passagem do tempo.

O tempo, às vezes, passa de forma sutil na narrativa de Buzzati, como

pudemos observar, por exemplo, no conto I giorni perduti, no qual a

personagem só percebe que havia deixado de viver alguns momentos

importantes em sua vida, fazendo, muitas vezes, escolhas equivocadas,

quando já era demasiadamente tarde. Outras vezes, o tempo passa de forma

fatal, como em I vecchi clandestini.

As estratégias narrativas utilizadas por Dino Buzzati para representar as

marcas que o avançar dos anos pode deixar, sejam elas leves ou intensas, nos

aproximam das experiências reais que são comuns a todo ser humano. Ou

seja, Buzzati elabora sua narrativa de maneira que a realidade da vida comum

mantenha-se válida, mesmo quando insere um elemento mágico para provocar

177

Caetano Veloso. "Oração ao tempo". 1979. Álbum Cinema Transcendental.

Page 118: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

118

em nós a reflexão; mais ainda, esse elemento mágico faz parte da realidade

narrada.

O segundo objetivo desta tese foi demonstrar que a narrativa de Buzzati

se avizinha aos conceitos do Realismo Mágico, como o entendia Massimo

Bontempelli, mais do que ao Surrealismo e ao Fantástico como afirma a maior

parte dos críticos e estudiosos de sua obra. Por isto, colocamos em relevo a

presença do inesperado, ou inusitado, nos contos buzzatianos, que surge sem

causar estranhamento ou dúvida nas personagens, porque essa presença se

dá para ressaltar as dores e conflitos vividos pelo homem comum em seu

cotidiano, premissas da corrente de Bontempelli.

Dino Buzzati tece seus contos de maneira leve, se consideramos o

conceito estabelecido por Italo Calvino em Lezioni Americane178; os recursos

que utiliza para a inserção do elemento mágico como representação do real

surgem de maneira a provocar questionamentos das mais variadas ordens. A

versatilidade do autor nos conduz a reflexões que vão desde os conceitos mais

complexos da física quântica até a uma simples brincadeira infantil, tratados

sempre com a mesma profundidade.

Essa leveza na representação do real também se estende à inserção do

elemento mágico na narrativa, como pudemos observar, por exemplo, no conto

Una goccia, no qual o movimento ascendente feito pela gota causa medo e

espanto nos moradores do edíficio, ao mesmo tempo que é perfeitamente

aceita por todos que a ouvem subir as escadas. O mesmo se dá no conto La

giacca stregata, em que a magia do paletó, mais que estranhamento, desperta

o sentimento de zelo na personagem que o possui.

Uma das máximas do Realismo Mágico é associar a verossimilhança ao

fantástico de modo que a fantasia se torne uma realidade e se manifeste

harmoniosamente dentro da narrativa. Dino Buzzati constrói sua narrativa

dentro dessa premissa e se mantém nela, como pudemos demonstrar através

do nosso corpus. No conto Contestazione globale esse diálogo harmonioso

entre fantasia e realidade fica evidente quando a presença da morte,

178

CALVINO, Italo. Lezioni americane. Sei proposte per il prossimo millenio. Milão: Mondadori, 1993.

Page 119: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

119

personificada como mulher, é fato normal não apenas para Svampa e os outros

anciãos, como também para as demais personagens da história. Não há

estranhamento ou dúvida quanto ao fato de se poder impedir a atuação da

morte em seu funesto ofício de ceifar vidas.

Dino Buzzati é o artífice de obras que podem ser afiliadas à corrente do

Realismo Mágico.

Os dezenove contos apresentados nesta tese compuseram a

representação do imenso jardim a que chamamos vida, mas esse jardim

construído por Dino Buzzati tem lá suas peculiaridades, suas idiossincrasias e

não pode ser apreciado e sim experienciado. É o jardim delle gobbe.179 Nele foi

plantada a grande descoberta de Einstein, a mesma que tornou possível tudo

aquilo que nessuno crederà. Aqui cultivamos l’autostrada da vida que poderá

durar bem mais que il 12 ottobre ou ser tão breve quanto a do paciente do

Doutor Carlo Trattori e tão triste como a da signora Laurapaola, mas,

invariavelmente, é nele que todas as nossas solitudini desabrocham, e,

tenhamos ou não giorni perduti, será nele que o nosso bom e velho Giacomo

nos lembrará que em cada canteiro repousa uma parte de nossa história.

E, por fim, quando alguém nos vir como vecchi clandestini, que

possamos também, como aquele que si chiamava Dino Buzzati180, ser

lembrados em outros jardins.

E, por último, confessamos a pretensão de que esta tese possa

incentivar novas leituras da obra de Dino Buzzati e, também, contribuir para os

estudos de italianística no Brasil.

179

Aludimos ao conto Le gobbe nel giardino, de Dino Buzzati.

180 Idem

Page 120: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

120

REFERÊNCIAS

AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 2004.

AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel de. Teoria da literatura. Coimbra: Almedina, 2006.

ASKIN, I. F. O problema do tempo. Sua interpretação filosófica. Trad. Joel Silveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.

BARTHES, Roland [et al.]. Análise estrutural da narrativa. Trad. Maria Zélia Barbosa Pinto Rio de Janeiro: Vozes, 2008.

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira São Paulo: Martins Fontes, 1997.

___________. Questões de Literatura e de Estética – A teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernardini. São Paulo: Hucitec Editora, 2010.

BELLEMIN-NOËL, Jean. Psicanálise e literatura. Trad. Álvaro Lorencini e Sandra Nitrini. São Paulo: Cultrix, 1983.

BERGSON, Henri. Matéria e memória. Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes1999.

BRETON, André. Manifesto do Surrealismo. 1924.

BOCCACCIO, Giovanni. Decamerão. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo: Circulo do Livro, 1987.

BONTEMPELLI, Massimo. Realismo magico e altri scritti sull’arte. Milão: Abscondita, 2006.

BRETON, André. Manifesto do Surrealismo. 1924.

CANDIDO, Antonio [et al.]. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2007.

CHIAMPI, Irlemar. O Realismo Maravilhoso. São Paulo: Perspectiva, 1980.

CHIARELOTTO, Arivane Augusta. Massimo Bontempelli, uma aventura literária entre as guerras. Dissertação UFSC, 2011.

COSTA, Flávio Moreira da. Os melhores contos fantásticos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

ECO, Umberto. Obra aberta. Trad. Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Perspectiva, 1976.

_____________. Seis passeios pelos bosques da ficção. Trad. Hildegard Feist. São Paulo Companhia das Letras, 1994.

ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

Page 121: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

121

FERRONI, Giulio. Profilo storico della letteratura italiana. Vol. I. Eunaudi, 2000.

_________. Storia della letteratura italiana. IV. Il Novecento. Milão: Einaudi, 2001.

FINCHER, David. O curioso caso de Benjamin Button. Warner Bros, 2008.

GALLAND, Antoine. As mil e uma Noites. Trad. Alberto Diniz. 13ª edição – Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.

GARCÍA, Flavio. A banalização do insólito: questões de gênero literário – mecanismos de construção narrativa. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2007.

GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. São Paulo: Ática, 2006.

HAWKING, Stephen; MLODINOW, Leonard. Uma nova história do tempo. Trad. Vera de Paula Assis Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.

HOUAISS, Antonio [et al.]. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

MEYERHOFF, Hans. O tempo na literatura. Trad. Myriam Campello. Rev. Técnica Afrânio Coutinho. São Paulo; Rio de Janeiro: Ed. McGraw-Will do Brasil Ltda, 1976.

PIGNATARI, Décio. Semiótica e literatura. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004.

POUILLON, Jean. O tempo no romance. Trad. Heloysa de Lima Dantas São Paulo: Cultrix, 1974.

REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina. Dicionário de narratologia. Coimbra: Almedina, 2002.

RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa I – A intriga e a narrativa histórica. Trad. Claudia Berliner São Paulo: Martins Fontes, 2010.

__________. Tempo e narrativa II – A configuração do tempo na narrativa de ficção. Trad. Márcia Valéria Martinez de Aguiar São Paulo: Martins Fontes, 2010.

__________. Tempo e narrativa III – O tempo narrado. Trad. Claudia Berliner São Paulo: Martins Fontes, 2010.

SARAMAGO, José. As intermitências da morte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

SEGRE, Cesare. As estruturas e o tempo. Trad. Silvia Mazza e J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1986.

Tempo e história / Org. Adauto Novaes. São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultural, 1992.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Trad. Silvia Delpy São Paulo: Perspectiva, 1981.

Page 122: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

122

TRAVIS, Pete. Ponto de vista. Columbia Pictures, 2008.

WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. Trad. Marina Guaspari Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1964.

WHITROW, G. J. O tempo na história. Concepções do tempo da pré-história aos nossos dias. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.

YATES, Frances A. A arte da memória. Trad. Flavia Bancher Campinas: Editora da Unicamp, 2010.

1.1- Obras de Dino Buzzati

BUZZATI, Dino. Un amore. Milano: Mondadori, 1963.

_______. Bàrnabo delle montagne. Milão: Garzanti, 1969.

_______. Bestiario. Milão: Mondadori, 1991.

_______. Il borghese stregato ed altri racconti. Milão: Mondadori, 1994.

_______. La boutique del mistero. Milão: Mondadori, 1968.

_______. Il buttafuoco. Milão: Mondadori, 1992.

_______. Il capitano Pic e altre poesie. Vicenza: Neri Pozza, 1965.

_______. Il colombre. Milão: Mondadori, 2002.

_______. Congedo a ciglio asciutto di Buzzati / org. Guido Piovene. "Il Giornale", 30 de outubro de 1974. Inédito.

_______. Il crollo della Baliverna. Milão: Mondadori, 1957.

_______. Cronache terrestri / org. Domenico Porzio. Milão: Mondadori, 1972. textos jornalísticos.

_______. Il deserto dei Tartari. Milão: Rizzoli, 1940.

_______. Dino Buzzati al Giro d'Italia / org. Claudio Marabini. Milão: Mondadori, 1981.

_______. Due poemetti. Vicenza: Neri Pozza, 1967.

_______. Egregio signore, siamo spiacenti di... Milão: Elmo, 1960. Ilustrações de Siné.

_______. Esperimento di magia. Pádua: Rebellato, 1958.

Page 123: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

123

BUZZATI, Dino. La famosa invasione degli orsi in Sicilia. Milão: Rizzoli, 1945. Ilustrado pelo autor.

_______. Il grande ritratto. Milão: Mondadori, 1962.

_______. Lettere a Brambilla / org. Luciano Simonelli. Novara: De Agostinini, 1985.

_______. Il libro delle pipe. Milão: Antonioli, 1945. Com colaboração de G. Ramazzotti

_______. Il meglio dei racconti. Milão: Mondadori, 2007.

_______. La mia Belluno / org. Comunità Montana Bellunese - Assessorato

alla cultura, 1992.

_______. I miracoli di Val Morel. Milão: Mondadori, 1971.

_______. I misteri d'Italia. Milão: Mondadori, 1978.

_______. Le montagne di vetro / org. Enrico Camanni. Turim: Vivalda, 1990.

_______. Naquele exato momento. Trad. Fulvia M. L. Moretto. Rio de Janeiro:

Nova Fronteira, 1986.

_______. As noites difíceis. Trad. Fulvia M. L. Moretto Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 1986.

_______. Le notti difficili. Milão: Mondadori, 2002.

_______. Paura alla Scala. Milão: Mondadori, 1949.

_______. Poema a fumetti. Milão: Mondadori, 1969.

_______. Le poesie / org. Fernando Bandini. Vicenza: Neri Pozza, 1982.

_______. In quel preciso momento. Vicenza: Neri Pozza, 1950.

_______. Il reggimento parte all'alba. Notas de I. Montanelli e G. Piovene. Milão: Frassinelli, 1985.

_______. Romanzi e racconti / org. Giuliano Gramigna. Milão: Mondadori, 1975.

_______. Scusi da che parte per Piazza Duomo? / Introdução em versos. Milão: Alfieri, 1965.

_______. Il segreto del bosco vecchio. Milão; Roma: Treves; Treccani; Tumminelli, 1935.

Page 124: O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATIavataresantenados.com.br/formsnl/izabellimadoutorado.pdf2 O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA Tese de Doutorado

124

BUZZATI, Dino. Sessanta racconti. Milão: Mondadori, 2007.

_______. I sette messaggeri. Milão: Mondadori, 1942. _______. Siamo spiacenti di... Milão: Mondadori, 1975. Reedição de Egregio signore, siamo spiacenti di... _______. Le storie dipinte / org. Mario Oriani e Adriano Ravegnani. Milão: All'insegna dei Re Magi, 1958.

_______. Lo strano Natale di Mr. Scrooge e altre storie / org. Domenico Porzio. Milão: Mondadori, 1990.

_______. Teatro / org. Guido Bonino. Milão: Mondadori, 1980.

_______. Tre colpi alla porta, poema satirico. "Il caffé", n. 5, 1965.

_______. 180 racconti / org. Carlo Della Corte. Milão; Roma; Nápoles: Theoria, 1984.

1.2- Sítios visitados

http://www.recantodasletras.com.br/teorialiteraria/420168 (acesso em 10/04/2013)

http://rinabrundu.com/2012/01/30/a-quarantanni-dalla-morte-tutto-sullopera-del-giornalista-dino-buzzati-traverso-and-more-o-quasi/ (acesso em 10/04/2013)

http://www4.pucsp.br/revistafronteiraz/numeros_anteriores/n3/download/pdf/tensao.pdf (acesso em 22/02/2015)

https://www.youtube.com/watch?v=3rzvOqrtWIc (acesso em 10/03/2015)

https://www.youtube.com/watch?v=6xt-k2kkvb4 (acesso em 13/03/2015)

https://www.youtube.com/watch?v=9FIacd4lKPg (acesso em 15/12/2014)

http://quintanaeterno.blogspot.com.br/2009/02/mario-quintana-faleceu-em-porto-alegre.html (acesso em 31/03/2015)

https://www.youtube.com/watch?v=P3NpHryB-fQ (acesso em 14/03/2015)

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/saudeciencia/66522-a-possibilidade-do-multiverso.shtml (acesso em 04/04/2015)

https://www.youtube.com/watch?v=_uBpH6jEAbU (acesso em 04/12/2013)

http://www.antebolicas.com/seccao.php?s=historia (acesso em 19/02/2014)

https://www.youtube.com/watch?v=2jBZxv8Wfr8 (acesso em 14/04/2015)

https://www.youtube.com/watch?v=MVWseQd7EmE (acesso em 01/05/2015)

http://www.flaviogarcia.pro.br/textos/ (acesso em 27/04/2015)