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Universidade Federal de Campina Grande Campus I - Campina Grande (PB) Centro de Humanidades Programa de Pós Graduação em Sociologia Marcos Alexandre dos Santos Albuquerque O Torécoco (a construção do repertório musical tradicional dos índios Kapinawá da Mina Grande - PE)

O Torécoco (a construção do repertório musical tradicional dos índios Kapinawá da Mina Grande - PE)

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Autor: Marcos Alexandre dos Santos AlbuquerqueResumo: Esta dissertação de mestrado trata da construção contemporânea do repertório musical do toré Kapinawá. Ela investiga a dinâmica histórica que se operou na formação étnica desta comunidade e sua reverberação da ampliação de categorias culturais, principalmente musicais. Para dar conta deste fenômeno é elaborada a categoria analítica torécoco que pretende agrupar num único conceito as modificações políticas, religiosas e coreo-musicais que se uniram na criação do espaço religioso e artístico que é o toré. A partir da perspectiva reconhecida como hibridismo, são apresentados os elementos culturais que se uniram na produção do espaço social torécoco. Estes elementos são o próprio toré com seus toantes, o culto da jurema como manifestação religiosa e o ingresso da brincadeira laica do samba-de-coco no espaço religioso do toré. Também são consideradas neste texto as condições biográficas e religiosas da emergência do “Dom” para compor. A partir da experiência da limpeza espiritual, emergem no espaço do toré novas composições, que são compreendidas do ponto de vista da emergência de um “Dom” divino para compor. Recupera-se esta historicidade cultural e política e sistematiza-se uma dinâmica do universo cultural do toré Kapinawá.

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Universidade Federal de Campina Grande Campus I - Campina Grande (PB)

Centro de Humanidades Programa de Pós Graduação em Sociologia

Marcos Alexandre dos Santos Albuquerque

O Torécoco

(a construção do repertório musical tradicional dos índios

Kapinawá da Mina Grande - PE)

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O Torécoco

(a construção do repertório musical tradicional dos índios

Kapinawá da Mina Grande - PE)

Marcos Alexandre dos Santos Albuquerque

Dissertação de Mestrado apresentada em atendimento às exigências do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS), para a obtenção do grau de Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Campina Grande, Campus I, Campina Grande em fevereiro de 2005.

Orientador: Rodrigo de A. Grünewald

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B A N C A E X A M I N A D O R A

____________________________________________________________

Prof° Dr°. Rodrigo de Azeredo Grünewald (PPGS – UFCG/UFPB)

(Orientador)

___________________________________________________________

Profª. Drª. Elizabeth Cristina Andrade Lima – (PPGS – UFCG/UFPB)

(Examinadora)

__________________________________________________________

Profª. Drª. Sílvia Aguiar Carneiro Martins – (PPGS/CHLA - UFAL)

(Examinadora)

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SUMÁRIO

Introdução........................................................................................................07

Capítulo I – O toré............................................................................................43

Capítulo II - O “culto de jurema”....................................................................57

Capítulo III – O samba-de-coco.......................................................................96

Capítulo VI – A Composição........................................................................116

Considerações Finais......................................................................................150

Bibliografia....................................................................................................164

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“Isso tudo só veio depois que a gente começou a

trabalhar, que veio a força. Se tivesse parado tudo

não tinha vindo nada, o fruto só veio depois que nós

começemo a trabalhar”.

(Zé Caetano, um dos compositores Kapinawá).

1 O autor registra um toré no grupo escolar da aldeia Mina Grande, 15/07/02. (foto: Estêvão Martins Palitot).

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Ao Amor...

De meus pais (que me ensinaram a gostar de música...)

De meu irmão (que dividiu comigo a experiência de aprender e fazer música...)

Do pajé Kapinawá Arlindo (que me ensinou um pouco de sua música e de seu povo...)

De Waleska

(porque juntos cerramos os olhos para ouvir música...)

À Música (que une... significando tanta coisa... que nos pacifica... ensina...

Ao que se aprende na viagem... ).

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O Torécoco

(a construção do repertório musical tradicional dos índios

Kapinawá da Mina Grande - PE)

Marcos Alexandre dos Santos Albuquerque

Resumo

Esta dissertação de mestrado trata da construção contemporânea do repertório musical do

toré Kapinawá. Ela investiga a dinâmica histórica que se operou na formação étnica desta

comunidade e sua reverberação da ampliação de categorias culturais, principalmente

musicais. Para dar conta deste fenômeno é elaborada a categoria analítica torécoco que

pretende agrupar num único conceito as modificações políticas, religiosas e coreo-musicais

que se uniram na criação do espaço religioso e artístico que é o toré. A partir da perspectiva

reconhecida como hibridismo, são apresentados os elementos culturais que se uniram na

produção do espaço social torécoco. Estes elementos são o próprio toré com seus toantes, o

culto da jurema como manifestação religiosa e o ingresso da brincadeira laica do samba-de-

coco no espaço religioso do toré. Também são consideradas neste texto as condições

biográficas e religiosas da emergência do “Dom” para compor. A partir da experiência da

limpeza espiritual, emergem no espaço do toré novas composições, que são compreendidas

do ponto de vista da emergência de um “Dom” divino para compor. Recupera-se esta

historicidade cultural e política e sistematiza-se uma dinâmica do universo cultural do toré

Kapinawá.

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Introdução

“O que se encontra no começo histórico das coisas não é a identidade ainda preservada da origem – é a discórdia entre as coisas, é o disparate.”

Foucault (2000: 18)

Dedico-me aos índios Kapinawá (Buíque - PE) desde minha monografia de conclusão de

curso2 (Albuquerque, 2002a). Lá destinei algumas páginas para descrever a utilização da

“Jurema” 3 nos rituais de toré realizados por eles. Agora, neste texto, procuro descrever a

construção do repertório musical tradicional Kapinawá, a partir da organização social

destes índios, em torno do reconhecimento de sua distintividade étnica. Como símbolo das

mudanças culturais que se operaram nesta comunidade, forjei a categoria analítica torécoco

- para contrapor-me à categoria nativa toré -, no sentido de permitir a um único termo

contemplar as mudanças de ordem religiosa, musical e política.

Na composição deste texto tentei construir um diálogo constante, tanto com meus

informantes, quanto com minha bibliografia, eu gostaria que ele fosse lido por esta

perspectiva, - a de um diálogo. Ao resgatar nas entrevistas com o grupo que denomino aqui

de comunidade ritual (ver adiante), procuro averiguar quais elementos de cultura - os fluxos

de cultura4 (Hannerz, 1997), ou correntes culturais - (Barth, 1984; 2000) que se confluíram

na produção deste espaço social - torécoco. E a partir disto revelar seu hibridismo (Barbosa,

2 Bacharelado em Ciências Sociais com concentração em Antropologia, pela Universidade Federal de Campina Grande-PB (UFCG) em outubro de 2002.

3 A jurema é um arbusto considerado como um enteógeno. Enteógeno é um termo cunhado por Gordon Wasson e equipe, (apud Mota, 2002: 11), que pretende enfatizar com ele a idéia de que existem plantas usadas como “inebriantes xamânicos e que são consideradas pelos que as usam como sacramentos ou plantas-mestre”. Grünewald (2002: 102) entende enteógeno como “o advento de Deus no homem”. Ao contrário de alucinógeno que produziria apenas alteração de percepção ou consciência, o enteógeno produziria “comunhão e êxtases”. Enteógeno significa En: dentro; Téo: Deus; Geno de Gênese: nascimento. Assim daria o nascimento/advento de Deus no homem. (Albuquerque, 2002a: 22-3)

4 “A noção de fluxo pode ser usada de duas maneiras. A primeira parece mais afinada com o uso corrente, referindo-se ao deslocamento de uma coisa no tempo, de um lugar para outro, uma redistribuição territorial. (...) A segunda é essencialmente temporal, sem implicações espaciais necessárias” (Hannerz, 1987: 11).

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2003) e sua legitimidade como cultura autêntica (Sapir, 1970) do ponto de vista de uma

tradição inventada (Hobsbawn, 1983; Linnekin, 1983; Handler, 1984; Handler & Linnekin,

1984), ou seja, da constituição contemporânea de um repertório de músicas de toré como

símbolo de uma tradição indígena. 5

Quem são os Kapinawá

Os Kapinawá se reconhecem como a rama nova, isto é, descendentes diretos de

índios que foram aldeados na Serra do Macaco ainda no século XVIII, e cujos títulos de

posse da terra estão registradas em um documento datado de 18746. As aldeias Kapinawá

são: Mina Grande, que é a sede do Posto Indígena Kapinawá, Ponta da Várzea (Vargem),

Riachinho, Pau-Ferro Grosso, Tabuleiro, Quiri d'Alho, Lagoa, Marias Pretas, Santa Rosa,

Maniçoba, Areia Grossa, Macaco, Palmeira e Julião. E as novas áreas são: Coqueiro,

Caldeirão, Coloral e Malhador.

A Terra Indígena Kapinawá teve o seu processo de regularização fundiária durante

as décadas de 1980 e 1990. Até o começo dos anos 80 não eram reconhecidos oficialmente

como índios, ocupando de forma livre e tradicional as terras que se estendem entre os

municípios de Buíque, Tupanatinga e Ibimirim, na área de transição entre o Agreste e o

Sertão de Pernambuco, no Vale do Ipanema, no sertão do Moxotó. Em fins dos anos

setenta, os Kapinawá começam a ser pressionados pelo avanço de uma frente latifundiária e

procuram, então, se organizar para conseguir a regularização de suas terras. O

reconhecimento do grupo foi longo e marcado por vários conflitos, tanto com posseiros e

fazendeiros, como entre os próprios índios que vivenciaram um doloroso processo de

faccionalismo. Resultado desses conflitos foi a demarcação da área, que contemplou apenas

uma parte do seu território tradicional.

5Este texto é a única dissertação de mestrado realizada sobre os Kapinawá, eu sou o único pesquisador na área desde Sampaio (em 1986), - o que contrasta enormemente com os grupos indígenas vizinhos (Xucuru, Pankararu, Kambiwá e Pipipã), que tem a atenção de diversos pesquisadores, inclusive estrangeiros. 6 “Em todos esses povos (indígenas nordestinos), a metáfora arbórea tem se prestado à apreensão cognitiva das relações que os unem num destino comum (...) Aos antepassados que finalmente submeteram-se aos cuidados dos padres jesuítas, capuchinhos, carmelitas e outras ordens religiosas menos importantes no sertão nordestino, formando aldeamentos missionários, multiétnicos desde o princípio, concebem como suas muitas ‘ramas’. Foram essas unidades sociais que deram origem aos atuais grupos étnicos indígenas da região – auto-concebidos, por sua vez, como ‘pontas de rama’” (Nascimento; s/d.: 11).

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Segundo a memória do grupo, suas terras, doadas por D. Pedro II e pela Princesa

Isabel, ainda no século XIX, formavam uma figura retangular cujos limites eram, ao sul, do

lado de Tupanatinga, a Baixa da Quixaba, o Serrote do Moxotó, o Olho D'água da

Gameleira, a Imburana do Vento caindo na Lagoa do Puiú; pelo lado oposto, Palmeira,

Amargoso Grosso, fazendo ponto na serra do Pititi, ao riacho do Catimbau, caindo no

riacho do Coqueirinho e daí até a lagoa do Puiú, ao poente. Ao nascente o limite segue pela

serra do Pinga. Dentro desse território tradicional estariam ainda as serras do Macaco, do

Quiri d'Alho e a Serra Grande. A área demarcada pela FUNAI, no entanto, possui uma

forma triangular com base na serra do Pinga, seguindo uma linha pelo riacho do Catimbau e

a outra pelo riacho do Macaco, até a confluência de ambos, o que forma o vértice da figura.

Desse modo, ficam de fora da área indígena o Catimbau, ao norte, a Lagoinha, ao sul, a

maior parte da serra do Quiri D'Alho, ao oeste, e uma fazenda de propriedade de um

regional conhecido como Estácio, ao leste.7

8

7 Dados retirados de Albuquerque & Palitot (2002). 8 Mapa do Estado de Pernambuco.

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TERRA INDÍGENA:

9 Mapa com a localização da área Kapinawá no centro (cedido por Edmundo M. M. Pereira, a quem agradeço). 10 Mapa da área indígena Kapinawá (PETI; 1993: 20).

Kapinawá

Mapa com a localização da área Kapinawá no centro (cedido por Edmundo M. M. Pereira, a quem

Mapa da área indígena Kapinawá (PETI; 1993: 20).

11

Mapa com a localização da área Kapinawá no centro (cedido por Edmundo M. M. Pereira, a quem

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Dados Gerais

Grupo(s) Indígena(s): Kapinawá

Superfície (ha): 12.403

Perímetro (Km): 56

População: 1600

Município(s): Buíque

UF: PE

Situação Fundiária: Homologada por Decreto s/n° de 11.12.98

Resumo Histórico

Estudos de identificação procedidos em 1984, chegando à proposta de

uma superfíciede 12.260 ha, por equipe constituída pela Portaria n°

1.647/E/FUNAI, de 05.06.84

Declarada pela Portaria n° 307 / MJ, de 17.05.96

Demarcada em 1998

Homologada por Decreto s/n° de 11.12.98

Situação Atual Homologada por Decreto s/n° de 11.12.98

11 Os antecedentes Os Kapinawá, como,

“todos os atuais povos indígenas no Sertão do Nordeste são segmentos sociais originários de aldeamentos implantados por ordens missionárias católicas ao longo dos séculos XVII e XVIII, a maioria deles transferidos à administração das Diretorias de Índios ao longo do século XIX e em seguida extintos de direito, mas nem sempre de fato. Estes agrupamentos foram freqüentemente formados com população de origens culturais e lingüísticas diversas, muitas vezes deslocadas dos seus territórios originais (...) Foi também através daquelas administrações coloniais -religiosa ou estatal- que tais territórios lhes foram destinados e regularizados, sob formas diversas, nos períodos colonial e ou imperial” (Sampaio, 1994: 03).

Nos documentos referentes a essas missões é que se poderia pesquisar uma história

ancestral dos Kapinawá. “No caso em apreço, todos os pesquisadores que estiveram entre

os Kapinawá antes da criação do Posto Indígena, inclusive eu próprio, ouviram dos seus

velhos informantes serem eles descendentes do ‘povo da aldeia de Macacos’, localidade

11 Fonte: www.funai.gov.br Acesso em 10 de agosto de 2002 .

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que conserva este nome e está situada dentro do território que pleiteiam como indígena”

(ibid.: 03-4).

Deste modo Sampaio (ibid.: 04) encontra duas referências quanto à existência da

aldeia de Macacos no século XVIII em documentos publicados nos Anais da Biblioteca

Nacional (Anônimo, 1749 e Couto, 1757).

“Aí se informa ser, a aldeia, de índios Paratió (ou Prakió), sua população de 182 índios e o fato de ter tido missionário Clérigo de São Pedro. (...) Outra informação importante contida nestas fontes diz respeito à localização da aldeia: com base nelas e com suas datas, os Paratió estão assinalados exatamente na área onde vivem hoje os Kapinawá, em uma publicação de conhecimento obrigatório de qualquer pesquisador de história indígena: o ‘Mapa Etno-Histórico de Curt Nimuendaju’ (1946)”.

Em Rosa (1998, apud Mendonça, 2003) encontra-se uma referência aos Paratió (ou no

caso, Paraquiós) no vale chamado de Ipanema, onde hoje estão os atuais Kapinawá, “Uma

representação da Câmara do Penedo, de 02.08.1746, refere-se a rebeldia, mesmo dos índios

aldeados, e sua ‘barbaridade’, que tem levado ao despovoamento e destruição de fazendas,

como ocorre na ribeira do Ipanema, sob a ação dos Carnijós, Xocós e Paraquiós”12.

Sampaio (ibid.) e Nascimento (s/d.: 11)13 lembram que o Marquês de Pombal no

século XVIII criou uma política extrema contra os jesuítas, e na Capitania de Pernambuco

todas as ordens religiosas missionárias foram expulsas, por isso, a aldeia de,

“Macacos original muito certamente não perdurou -independentemente de qual tenha sido o seu sítio- além dos meados do século XVIII (...) Pela mesma razão, não podemos esperar contar com a documentação missionária para acompanhar a história desses aldeamentos nas décadas finais do século XVIII e até as iniciais do século seguinte, quando se estrutura a administração estatal sobre os aldeamentos sobreviventes” (Sampaio; ibid.: 05).

Um elo que pode servir para ligar algum fragmento da história Kapinawá é,

“um documento do governo de Pernambuco, datado de 1875 (referido em Carneiro da Cunha, 1992: 154), contém determinação para que os índios das aldeias recém extintas na província fossem reunidos em apenas duas: Nossa Senhora da Assunção, no São Francisco, e Cimbres, ainda hoje aldeia Xukuru, vizinha aos Kapinawá. Não sei se tal determinação se

12 Ordens Régias, 08, fl. 115 (arquivo da APEJE – Arquivo Público Estadual Jordão Emericiano). 13 Após a expulsão dos jesuítas os aldeamentos indígenas foram, “entregues a não menos caótica, porém mais venal, administração civil, a partir do período pombalino, que, ao contrário dos padres, não tinha sequer o interesse na reprodução social das ‘aldeias’ enquanto tais, senão na total assimilação e brutal exploração dos índios” (Nascimento; s/d.: 11, nota 25).

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cumpriu. Provavelmente se tentou cumprí-la, com sucesso relativo, o que pode explicar a presença de Paratiós oriundos de Macacos entre os Xukuru no século XIX, como relatam informantes Xukuru de Hohenthal Jr (1954), já em 1951, e o cronista regional Barbalho (1977)” (ibid.: 06).

Sampaio afirma que os Kapinawá atuais não se auto identificam pela designação

de Paratió, sendo este termo desconhecido da maioria deles, eu mesmo pude confirmar este

fato quando do meu trabalho de campo.

“Me parece que os Kapinawá de fato não conhecem as expressões Paratió ou Prakió como designações étnicas. Jamais as havia mencionado diante deles até ter ouvido a segunda delas espontaneamente mencionada por um velho informante de origem Kambiwá -Dôca, que houvera sido o primeiro cacique Kapinawá- para se referir a uma localidade rural no médio curso do Moxotó. Indagado do seu significado, contudo, nada soube informar além de que seria muito antiga, não sendo inclusive mais utilizada para designar o local” (ibid.).

Para a formação étnica contemporânea dos Kapinawá de fato o que marca uma

revolução na história do grupo é um documento datado de 1874,

“do qual conhecemos apenas uma cópia datilografada de certidão cartorial, muito truncada, tornada pública pelos próprios Kapinawá e que se encontra anexada a quase todas as ‘peças’ do processo do seu ‘reconhecimento oficial’ (...) Trata-se de uma doação imperial das terras do antigo aldeamento de Macacos aos ‘herdeiros’ dos ‘índios’, que são aí nomeados com respectivas esposas e localidades de moradia ou ‘sítios’: Macacos, Julião, Palmeira, Queimada Velha, Lagoinha, Brejo de Fora e Mina Grande. Os limites externos do território, ainda que descritos com a imprecisão própria à época e tipo de delimitação, balizada fundamentalmente em marcos naturais, são hoje perfeitamente reconhecíveis. Quanto à origem da dita cópia, é certo que os Kapinawá da Mina Grande só vieram a conhecê-la diretamente uma vez deflagrada sua ‘luta para levantar a aldeia’ ao final dos anos setenta, trazida pelo índio José Antônio dos Santos, o Zé Índio, de origem Xukuru, personagem central deste processo e, possivelmente, o único que poderia esclarecer em definitivo as condições da sua obtenção” (ibid.: 06-7).

De fato, a obtenção do documento de doação das terras datado de 1874 tem um

enredo complexo que será detalhado no capítulo seguinte. Por hora é importante destacar

que os Kapinawá se apresentam enquanto índios para o Estado brasileiro, e especialmente

para o órgão indigenista – a FUNAI (Fundação Nacional do Índio) – somente após

acirrados conflitos com grileiros de suas terras. Os conflitos emergem de forma turbulenta

desde os anos cinqüenta, mas somente no ano de 1979,

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“a FUNAI e a imprensa de Pernambuco foram surpreendidas com o ‘aparecimento’ dos Kapinawá que, naquela ocasião, ‘procuraram’ seus direitos junto às ‘autoridades competentes’, no meio de uma terrível luta em que, sem armas e sem nenhuma cobertura política, tentavam defender sua aldeia da Mina Grande, no município de Buíque, do ataque do influente fazendeiro Romero Maranhão e seu testa-de-ferro local, o grileiro Zuza Tavares, sogro do então prefeito, que comandava um cerco armado a aldeia para que os Kapinawá cedessem as terras que ocupavam há séculos” (Sampaio, 1993: 01). “Apenas diante da iminente perda das terras, dada a aparente inviabilidade da sua defesa jurídica e ao avanço das invasões, o conjunto das cerca de cinqüenta famílias ‘mina-grandistas’ atingidas decidiu indicar Dôca e Zé Índio respectivamente como ‘cacique’ e ‘pajé’ e, através destes, ‘entregar o caso à FUNAI’, o que, para surpresa desta, foi feito no Recife a 22 de janeiro de 1980, conforme fartamente documentado administrativa e jornalisticamente” (ibid., 1994: 10).

As autoridades governamentais fizeram pouco caso ou foram incluídas nos acordos

político-econômicos que cercavam o controle das terras dos Kapinawá. As situações de

conflito perduraram até o evento no Catimbau, vila próxima à Mina Grande, “a 7 de

fevereiro de 1982, em um confronto armado na vila do Catimbau –onde os Kapinawá

costumavam fazer a feira e estavam ‘proibidos’ de ir pelos jagunços de Zuza Tavares- que

redundaria na morte de dois simpatizantes de Zuza (Levay, 1982)” (ibid., 1994: 10-11).

Deste modo, o grileiro se retrai e esmorecem os conflitos e “apenas no segundo semestre de

1983 seria finalmente criado o Posto Indígena Kapinawá” (ibid.: 11). As terras dos

Kapinawá foram identificadas pela FUNAI somente em 1984, com 12.260 hectares

aproximadamente (Sampaio, 1993: 02; PETI, 1993: 20).

“Enquanto isto, ameaças de grilagem persistem preocupando os Kapinawá: quando desistiu da "briga", Romero Maranhão vendeu sua fazenda ao deputado federal pefelista Ricardo Fiúza que, certamente, acreditou ter mais cacife para bancar o botim, mas desistiu temendo ‘sujar’ a imagem em época eleitoral, passando as terras a um terceiro proprietário que, somente em 1992, após mais uma rodada de tensões e ameaças, concordou em colocar sua cerca nos limites determinados pelos índios” (Sampaio, 1993: 02-3).

Entre os anos de 1974-5 um senhor chamado de Zé Galego, natural da Mina

Grande - que morava na já área indígena Kambiwá- travou contato com Dôca – influente na

emergência étnica Kambiwá –, e Zé Índio – que por algum tempo foi pajé dos Kambiwá.

Ao explicar-lhes as condições de conflito e violência pela qual passava a Mina Grande,

uma série de fatores (que serão explicados no capitulo seguinte) levou estas duas lideranças

indígenas à Mina Grande. Lá reconheceram indícios de tradições indígenas, vestígios

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arqueológicos e recuperaram o documento de 1874 – que doa as terras dos Kapinawá aos

descendentes dos índios de Macacos, sítio ainda hoje com este nome na área Kapinawá.

Assim, estes dois índios que saem da área Kambiwá passam a organizar a

comunidade do sítio Mina Grande na construção do ritual indígena conhecido como toré.

Certamente estes índios conheciam os trâmites políticos e burocráticos pelos quais

passavam as comunidades que pleiteavam o reconhecimento de sua identidade como

indígenas. Como lembra Grünewald (2004: 14),

“o reconhecimento desses grupos indígenas se deu por intermédio da informação nas sociedades nativas de que havia um espaço na sociedade brasileira para eles ocuparem enquanto indígenas e foi, mediante a difusão dessa notícia, que vários povos emergiram no cenário nacional. (...) Papel importante nesse processo foi o do chefe da 4ª Inspetoria Regional do SPI (Serviço de Proteção ao Índio), Raimundo Dantas Carneiro14 que reconhecia o ouricuri como espaço sagrado de exclusividade dos Fulni-ô, onde se dançava o ‘primitivo’, o ‘verdadeiro toré’. Raimundo adota então esta prática ritual como referência e passa a exigir o desempenho do toré pelos índios que reivindicassem reconhecimento de sua indianidade, na medida em que ele acreditava que o toré era ‘a conscientização de que eles eram índios’. Não é difícil de imaginar que, a partir deste momento, os grupos indígenas buscaram reatualizar essa tradição em busca de recursos da União, especialmente o próprio território”. 15

Os Kapinawá, e principalmente os moradores do sítio Mina Grande, passam a

freqüentar o toré realizado por Dôca e Zé Índio em um “terreiro” construído quase no

centro da área. Os moradores - que até então mantinham como prática religiosa o canto de

benditos, de rezas católicas e de novenas; e como prática lúdica a brincadeira do samba-de-

coco na tapagem das casa de barro – começam a trabalhar este novo espaço social, ao

mesmo tempo que aprendiam sua estrutura geral, o reconfiguravam de acordo com suas

próprias visões da religião, dança e música. “Na medida em que o toré não é um fenômeno

estanque, ele deve ser apreendido primariamente como um processo ordenador da vida

indígena no Nordeste” (Grünewald, 2004: 24). Este toré Kapinawá será construído na união

de variados elementos de tradições culturais diferentes (catolicismo, umbanda, samba-de-

coco, etc), e para entendê-lo em toda sua pluralidade, é preciso reconhecer que o toré como

espaço de ação social, “tem também histórias descontínuas, difusas, esquecidas e

14 Vale conferir Grünewald (1993) onde o autor entrevista Raimundo Dantas Carneiro. 15 Nascimento (s/d.: 16) procura minimizar a ação do referido inspetor, “o critério de reconhecimento da condição de indígenas dessas populações utilizado pelo órgão tutor oficial era a presença de manifestações rituais indicativas de uma cultura indígena. De fato, o que na época se entendia como tal na região era, basicamente, a dança do toré, o que não se devia, obviamente, ao acaso ou às idiossincrasias do inspetor regional do SPI”.

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lembradas, recontadas, reinterpretadas, construídas, imaginadas e, obviamente, vividas”

(ibid.: 14).

Etnicidade: as pedras no caminho

Para se referir à sociedade indígena penso, tal como apontou Oliveira (1999b: 176), que o

antropólogo deve,

“evitar contemporizações, explicitando que considera e reconhece como sociedade indígena toda aquela coletividade que por suas categorias e circuitos de interação se distingue da sociedade nacional, e se reivindica como ‘indígena’, isto é, descendente – não importa se em termos genealógicos, históricos ou simbólicos – de uma população de origem pré-colombiana”.

Ainda segundo Oliveira (ibid.: 117), “para constituir, por abstração analítica, uma cultura

indígena é preciso partir do que pensam, fazem e sentem os seus portadores atuais. Não é

possível nem justificado estabelecer parâmetros exteriores e arbitrários para definir o que é

(ou o que deva ser) uma cultura (ou uma cultura indígena específica)”.

A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho de 1989, da qual o

Brasil é signatário, diz (item 2, art. 1°), “a consciência de sua identidade indígena ou tribal

deverá ser considerado como critério fundamental para determinar os grupos a que se

aplicam as disposições da presente Convenção”. (DCN, 27 de agosto de 1993).

Embora eu possa realizar minha investigação aceitando que os índios Kapinawá são

descendentes diretos dos índios Paratió (ou Prakió) de Macacos. E concorde que é legítima

uma investigação que alcance os dados históricos e proceda à conclusão de que os

Kapinawá atuais são descendentes diretos dos índios Paratió, prefiro me concentrar na

questão inversa. Prefiro registrar uma história Kapinawá que remonte não à sua “história

antiga”, mas a recente, àquela que permitiu a formação étnica atual, neste sentido eu

trabalho com uma antropologia histórica, tal como aponta Oliveira (1999: 08), “uma

compreensão das sociedades e culturas indígenas não pode passar sem uma reflexão e

recuperação críticas de sua dimensão histórica”. Já que a história de um grupo étnico é

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constituinte do próprio grupo, meu problema é fornecer subsídios para construir a lógica

que organizou a formação étnica Kapinawá, e principalmente identificar dentro deste

campo social16 (Bourdieu, 2002) os elementos de cultura que possibilitaram a constituição

de um repertório original no toré Kapinawá.

Neste problema devo compreender a profundidade ideológica da descendência

histórica, contudo, afirmo que esta condição é uma plausividade histórica, e a existência ou

não deste evento não compromete a legitimidade da condição étnica atual. As populações

indígenas do Nordeste brasileiro não foram objeto de interesse da etnologia clássica

brasileira porque muitos autores não acreditavam que na região ainda houvessem índios que

não aqueles “aculturados”:

“Na década de 1950, Eduardo Galvão percebia os índios do Nordeste como ‘integrados’ (e inclusive mestiçados) no meio regional e notando a perda de suas tradições, como a língua. Darcy Ribeiro refere-se a ‘resíduos da população indígena do Nordeste’ que ‘continuavam identificando-se como índios, mesmo depois de esquecerem a língua tribal e a maior parte da cultura antiga’” (Grünewald, 2001a: 02).

Oliveira (1999b: 172) afirma que “a única continuidade que talvez seja possível

sustentar é aquela de, recuperando o processo histórico vivido por esse grupo, mostrar

como ele refabricou constantemente sua unidade e diferença frente a outros grupos com os

quais esteve em interação”. E Santos (2003: 22), “o que os funda não é a diferença cultural:

são produto de fatores históricos e políticos, de um processo que envolve a reelaboração do

16 Bourdieu (2002: 156-7) “Toda a história do campo social está presente, em cada momento, em forma materializada – em instituições (...) – e em forma incorporada – nas atitudes dos agentes que fazem funcionar estas instituições ou que as combatem... Todas as formas de identidade coletiva reconhecida- (...) – são produto de uma lenta e longa elaboração coletiva: não sendo completamente artificial, sem o que a operação de constituição não teria sucesso, cada um destes corpos de representação que justificam a existência de corpos representados dotados de uma identidade social conhecida e reconhecida, existe por todo um conjunto de instituições que são outras tantas invenções históricas, (...) Esta representação, produto das lutas que se desenrolaram, no seio do campo político e também no exterior dele, a propósito sobretudo do poder sobre o Estado, deve as suas características à história particular de um campo político e de um Estado específico (...) Para evitar que se seja iludido pelos efeitos do trabalho de naturalização, que todo grupo tende a produzir em vista de se legitimar, de justificar plenamente a sua existência, é preciso pois reconstruir em cada caso o trabalho histórico de que são produto as divisões sociais e a visão social dessas divisões. A posição social adequadamente definida é a que dá a melhor previsão das práticas e das representações; mas para evitar que se confira (...) à identidade social (...), a função de uma essência de que derivariam todos os aspectos da existência histórica – (...) – é preciso ter em atenção de modo muito claro que este status, como o habitus que nele se gera são produtos da história, susceptíveis de serem transformados, de modo mais ou menos difícil, pela história”.

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passado e a resignificação de crenças e elementos culturais, resultando de uma nova

identidade social”. Por isso mesmo, “A descontinuidade que instaura os povos indígenas

no nordeste não é portanto conseqüência de uma diferença cultural, mas sim uma produção

da instância política, calcada em fatores históricos” Oliveira (1993: vii).

Para dar conta do fenômeno dos “nascimentos” indígenas no Nordeste

contemporâneo, um conceito geral utilizado é o de emergência étnica. O conceito de

emergência étnica apareceu primeiramente com Lester Singer, em 1962, (apud Banton,

1979: 158), para se referir ao processo de criação de um povo. Outros aceitam a criação do

termo como tendo sido cunhado primeiramente por Gallagher (1974), (tal como

Grünewald, 2001a: 02) e posteriormente o de etnogênese por Goldstein (1975) e Sider

(1976), tal como também aceitam (Grünewald, 2001a: 02; Barbosa, 2003: 14 e Oliveira,

1999a: 28). O conceito de emergência étnica ou etnogênese “inversamente ao conceito de

aculturação, acabou por fornecer subsídios para que diversos pesquisadores, investigassem

os processos de construção cultural dessas populações indígenas nordestinas face ao

reconhecimento de suas terras e de sua condição de índios pelo Estado”. (Grünewald,

2001a: 02).

Grünewald (1993: 52),

“ao substituirmos portanto uma orientação provida pela noção da aculturação por outra, ligada à idéia de etnogênese, percebemos, ao invés de perdas numa cultura autóctone, a reinvenção histórica de um grupo em questão. (...) E, de fato, a etnogênese não aponta mais para uma apreensão dos índios em foco como remanescentes de ‘selvagens puros’ (e pertencentes a um único grupo), que vieram, simplesmente, sofrendo perdas culturais ao longo de seu contato com o homem branco. Inclusive, a essa visão essencialmente aculturativa, denominamos de ilusão autóctone, pois é uma falácia pensar em índios apenas com referência aos nativos, aborígines que se apresentam a nós como exóticos em sua língua, seus trajes, seus costumes; como os descendentes diretos dos mesmos”.

Sider (1976) pensa exatamente o mesmo com relação ao chamado “Red Power” dos índios

norte-americanos, para ele, o “process of ethnogenesis (é) – the historical creation of a

people who often begin, after generations of dominations, with little more than a sense of

their collective identity. Ethnic nations struggle not just to persevere and preserve, but to

create” (ibid.: 161).

No Brasil a FUNAI (Fundação Nacional do Índio), - desde o SPI (Serviço de Proteção

aos Índios), - exigia das populações nordestinas que se autodenominavam indígenas a

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exibição de um “traço indígena” como parâmetro para o reconhecimento étnico. A exibição

do toré, como o mais característico dos “traços indígenas”, é a garantia frente ao órgão tutor

(FUNAI) de legitimidade étnica17. No nordeste brasileiro, as sociedades indígenas,

“De fato, eram sociedades reconhecidas como formadas por “caboclos” que pretendiam ascender à condição de índios tendo suas terras demarcadas pelo Estado (...) para ser reconhecida como indígena, tais populações deveriam apresentar essa dança (o Toré), que foi, em diversos casos, gerada especificamente para esse fim.” (Grünewald, 2001a: 02).

Deste modo, o toré passa a ser reconhecido nas produções antropológicas brasileiras

como um exemplo do conceito de sinal diacrítico (Barth, 1998). Barth explica que o uso

emblemático de sinais diacríticos eleitos pelos membros do grupo é fundamental na

consolidação de suas fronteiras étnicas. As sociedades mantêm suas diferenças ao

selecionarem elementos de cultura para tornar legível uma fronteira étnica. Esta fronteira

não necessariamente separa padrões culturais distintos, muitas vezes presentes em ambos os

lados delas, ela separa sim organizações sociais específicas; estas são portanto reconhecidas

como formas organizacionais em fluxo. As sociedades que lançam mão de sinais diacríticos

- de traços de cultura - tem como implicação a emergência de formas organizacionais em

fluxo, que se auto determinam politicamente como condição de operacionalidade de sua

organização social. Ao elaborarem distintas formas de se identificarem como um grupo,

estes dialogam com expectativas externas e internas, modificando continuamente sua

natureza cultural, suas tradições, acordando para o movimento perene da transformação das

relações sociais de grupos entre si, o que ocasiona, a transformação da natureza dos valores

associados aos elementos de cultura dos grupos em contato.

Seguindo Barth, os “sinais diacríticos” são exibidos pelos atores, portadores de

determinada cultura, a partir daquilo que os próprios consideram mais importante como

exemplo da natureza de seus padrões culturais. “As características que são levadas em

consideração não são a soma das diferenças ‘objetivas’, mas somente aquelas que os

próprios atores consideram significantes” (Barth, 1998: 194). Com isto, podemos crer que a

natureza dos traços culturais expostos numa situação de contato é marcada pela disciplina

com a qual eles foram trabalhados para fruir como representação padrão de um grupo.

Somente “alguns traços culturais são utilizados pelos atores como sinais e emblemas de

17 Ver acima.

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diferenças, outros são ignorados, e, em alguns relacionamentos, diferenças radicais são

minimizadas e negadas.” (ibid.).

O conteúdo das dicotomias étnicas para Barth segue duas ordens. A primeira, os

sinais ou signos manifestos “- os traços diacríticos que as pessoas procuram e exibem para

demonstrar sua identidade, tais como o vestuário, a língua, a moradia, ou o estilo geral de

vida” (ibid.), e eu acrescentaria a música. E a segunda, “orientações de valores

fundamentais” (ibid.), a moralidade, juízos de valor etc. Cabe acentuar que ao se propor

tratar o problema da formação de identidades em contato, diálogo, deve-se atentar para o

fato de que,

“a natureza da continuidade dos traços étnicos é clara: ela depende da manutenção de uma fronteira. Os traços culturais que demarcam a fronteira podem mudar, e as características culturais de seus membros podem igualmente se transformar- apesar de tudo, o fato da contínua dicotomização entre membros e não membros permite-nos especificar a natureza dessa continuidade e investigar a forma e o conteúdo da transformação cultural” (ibid.: 195).

O que deve ficar mais preciso é a idéia de que os grupos se transformam

continuamente, aquilo que é perene é a necessária persistência de traços de cultura que

demarquem fronteiras, que legitimem a autonomia e marquem o patrimônio de um grupo

com relação ao que se reconhece como tradição. Sua identidade é por isto continuamente

refeita na relação histórica com outros grupos. Deste modo, o termo “tradição” deve ser

entendido de forma relativa, não no sentido de ancestralidade, mas sim no sentido

construtivista, “a percepção da criação de determinada substância cultural coaduna-se com

uma postura construtivista, que vê os elementos produzidos como sinais diacríticos gerados

para a etnicidade”. (Grünewald, 2001b: 10). O que permite entender a formação de etnias

sob o ponto de vista de sua produção interna, “o fenômeno da geração de tradições se refere

à criação de uma substância histórica ou cultural que será operada pelo grupo criador em

sua etnicidade” (ibid.), para a condição de atualização da própria identidade.

Se para Barth (1998: 195), “o ponto central da pesquisa torna-se a fronteira étnica que

define o grupo e não a matéria cultural que ela abrange”, e para Moerman (1965) o que no

fundo demarca a característica étnica seria a inteligibilidade do grupo, mais do que a

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religião ou outras características culturais18, para Lapierre (1998: 14), a descoberta de

sentido da cultura e etnicidade de um grupo não deve ser encontrada na relação com os

processos de organização social, “mas muito preferencialmente na relação com os

processos de criação e de interpretação do imaginário social, ou seja, no sistema poético

dos agrupamentos humanos”. Em meu trabalho analisarei o modo como um novo conteúdo

cultural19, aquilo que denomino analiticamente de torécoco - espaço público de atualização

étnica e exibição da cultura tradicional Kapinawá -, uma tradição inventada (Hobsbawn,

1983; Linnekin, 1983; Handler, 1984; Handler & Linnekin, 1984), de uma intemporalidade

situacionalmente construída20 (Linnekin, 1983: 242), foi erigida a partir do

compartilhamento de elementos de cultura (religiosa e musical) diversos que foram

acionadas na configuração étnica contemporânea.

Etnicidade: o caminho das pedras

Um primeiro momento para reconhecer uma etnicidade Kapinawá, como um fenômeno

social legítimo, vem da linha de estudiosos reconhecidos como “primordialistas”, para este

grupo de pesquisadores, a interação social dos grupos étnicos tem sempre por base

sentimentos de afinidade compartilhados subjetivamente; “the label ‘primordialist’ has

been applied to those who assume that some types of social interation must be interpreted

with reference to something which is given prior to the initiation of these interections”

(Keyes, 1976: 211, nota 02).

Para Keyes (1976) a descendência dividida seria o principal componente da

etnicidade - “The Idea of shared descent, abstracted from the web of kinship, is basic, I

18 Moerman (1965: 1219), “It is widely recognized that the label by which people identify themselves and identified by others are important and convenient signs of ethinic membership”. E, “Since mutual intelligibility and contatc communities are commun causes and frequent consequences of ethinic unity, they probably are more often diagnostic of ethnicity than religion or log-racing” (ibid.: 1220). 19 “As mudanças nas relações sociológicas devem ser expressas – e são expressas – em termos de cultura” Gluckman (1987: 317). 20 “Tradition is fluid; its content is redefined by each generation and its timelessness may be situationally construted” (Linnekin, 1983: 242).

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wold insist, to the concept of ethinic group” (ibid.: 205) - mas deve-se levar em conta

sempre que, “While ethinic groups are based fundamentally on the idea of shared descent,

they take their particular form as a consequence of the structure of intergroup relations”

(ibid.: 208), deste modo precisaríamos sempre refazer o histórico do contato interétnico.

Já para outras linhas de pensamento a questão étnica tem implicações particulares;

para Weber (1998: 270), por exemplo,

“A crença na afinidade de origem- seja esta objetivamente fundada ou não – pode ter conseqüências importantes particularmente para a formação de comunidades políticas. (...) chamaremos grupos ‘étnicos’ aqueles grupos humanos que, em virtude de semelhanças no habitus externo ou nos costumes, ou em ambos, ou em virtude de lembranças de colonização e migração, nutrem uma crença subjetiva na procedência comum, de tal modo que esta se torna importante para a propagação de relações comunitárias, sendo indiferente se existe ou não uma comunidade de sangue efetiva”.

De modo semelhante pensa Bentley (1987) que aponta o peso do fator subjetivo no

fenômeno étnico. A etnicidade é erigida em meio a determinações políticas, mas apenas se,

ao mesmo tempo, essas determinações pragmáticas tenham como respaldo sentimentos de

identificação comuns anteriores.

Epstein (1978) acredita que não se pode definir um grupo étnico em termos opostos

de cultura ou interesse. Um grupo étnico é antes de tudo uma implicação dos dois termos.

Interesse e cultura estão ambos envolvidos em situações políticas e sociais complexas. Para

esta autor a “etnicity is a matter of classification, the separating out and pulling together of

the population into a series of categories defined in terms of ‘we’ and ‘they’” (ibid.: 100). O

envolvimento político pressupõem que haja já uma estrutura social que permita o

incremento político. A mobilização política depende do senso de comunidade, este mesmo

sentimento pode ser recuperado numa situação de crise política ou econômica. Os laços

primordiais são importantes mas dependem para seu funcionamento da dinâmica impressa

pela realidade sócio-política do grupo,

“My point is rather that political ethnicity presupposes, and grows out of, a particular kind of structuring of the social enviroment” (...) It is because these bons are so strong that people readily come to perceive that they share interests of an economic or political kind, and leads them to mobilize for political ends.The emergence of interest groups in this way feeds back on and intencifities the sense of ethnic identity” (ibid.: 105).

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Ahmed (1982), para além dos primordialistas (ou substancialistas) e dos

circunstâncialistas (ou pragmatistas)21, procura focar a etnicidade como um meio termo

entre demandas internas e externas, para isso forja o conceito de etnicidade distrital,

“The formation of district ethnicity is neither a result of political alliances pursuing defined interests (circumstantialist) nor an expression of traditional loyalties (primordialist). Distric ethnicity is artificially created and fostered as a consequence of externally imposed administrative arrangements by a powerful central government”. (ibid.: 105).

Assim, em situações nas quais a etnicidade aparece sob o foco do pragmatismo, deve ser

reconhecida a especificidade histórica e social desta etnicidade, apontando para a presença

do Estado como interlocutor privilegiado. Deste modo, deve-se entender a etnicidade não

como um produto da pura ação racional política, nem tampouco de um suposto sentimento

de afinidade ancestral, mas sim como um produto da relação destes dois elementos com o

Estado.

Semelhantemente para Oliveira (1999a: 21), “é importante refletir mais detidamente

sobre o contexto intersocietário no qual se constituem os grupos étnicos”. Diferentemente

de Barth, Oliveira se detém no fato de que a emergência étnica das sociedades indígenas no

Nordeste ocorre “dentro de um quadro político preciso, cujos parâmetros estão dados pelo

Estado-nação. (...) A dimensão estratégica para se pensar a incorporação de populações

etnicamente diferenciadas dentro de um Estado-nação é, ao meu ver, a territorial” (ibid).

Deste modo forja o conceito de territorialização, definido como um processo de

reorganização social, que pode ser entendido como “o movimento pelo qual um objeto

político-administrativo (...) vem a se transformar em uma coletividade organizada,

formulando uma identidade própria, instituindo mecanismos de tomada de decisão e de

representação, e reestruturando as suas formas culturais” (ibid.: 21-2), inclusive o universo

religioso22. E de indianidade23 (1988: 14) “modo de ser característico de grupos indígenas

21“Primordialistas” - vêem a etnicidade centrada nos laços primordiais (por exemplo, parentesco, língua, origem, etc.) dos grupos sociais (ver acima), - e os “pragmatistas” preferem recorrer ao viés político e organizacional da etnicidade. 22 Pode-se definir territorialização ainda como um processo de reorganização social, que implica em: “i) a criação de uma nova unidade sociocultural mediante o estabelecimento de uma identidade étnica diferenciadora; ii) a constituição de mecanismos políticos especializados; iii) a redefinição do controle social sobre os recursos ambientais; iv) a reelaboração da cultura e da relação com o passado” (Oliveira, 1999a: 20).

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assistidos pelo órgão tutor”, que tem, no caso do Nordeste, na esfera cultural a presença

quase hegemônica do toré (possivelmente ou pela postura do já citado Raimundo Dantas

Carneiro, ou pela presença deste tipo de ritual no sistema religioso do nordeste brasileiro –

ver adiante o “complexo da jurema”). Já o conceito de situação histórica24 (Oliveira, 1988)

ajuda a lembrar que o enredo das transformações culturais está intimamente ligado à

mudanças políticas, - assim, qualquer transformação nos elementos sociais de uma

comunidade está dialogando com projetos políticos e culturais amplos.

Assim, com relação aos substancialistas e aos pragmatistas, Oliveira (1999a:

30) acredita que “ambas as correntes apontam para dimensões constitutivas, sem as quais a

etnicidade não poderia ser pensada”. Portanto, “o que seria próprio das identidades étnicas

é que nelas a atualização histórica não anula o sentimento de referência à origem, mas até

mesmo o reforça. É da resolução simbólica e coletiva dessa contradição que decorre a força

política e emocional da etnicidade”. (ibid).

A cultura moldada à mão é artesanato

Neste momento já se sabe que os moradores da Mina Grande lideraram o movimento de

emergência étnica Kapinawá. O toré foi a grande novidade neste espaço social de luta e

mobilização do grupo. Mas junto ao toré como evento político, tornou-se patente a

introdução de novas modalidades culturais, dentre elas a principal me parece foram as

23 “Em função do reconhecimento de sua condição de índios por parte do organismo competente, um grupo indígena específico recebe do Estado proteção oficial. A forma típica dessa atuação/presença acarreta o surgimento de determinadas relações econômicas e políticas, que se repetem junto a muitos grupos assistidos igualmente pela FUNAI, apesar de diferenças de conteúdo variadas das diferentes tradições culturais envolvidas. Desse conjunto de regularidades decorre um modo de ser característico de grupos indígenas assistidos pelo órgão tutor, modo de ser que eu poderia chamar aqui de indianidade para distinguir do modo de vida resultante do arbítrio cultural de cada um” (Oliveira, 1988: 14. Em itálico no original). O toré seria um elemento comum aos índios do Nordeste, só que, ao mesmo, com diferenciados conteúdos e performances. 24 “A noção de situação histórica poderia ser definida pela capacidade que assume temporariamente uma agência de contato de produzir, através da imposição de interesses, valores e padrões organizativos, um certo esquema de distribuição de poder e autoridade

entre os diferentes atores sociais aí existentes, baseado em um conjunto de interdependências e no estabelecimento de determinados canais para resolução de conflitos” (Oliveira, 1988: 59).

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religiosas e as musicais. Assim, a dinâmica do hibridismo (Barbosa, 2003)25 se impôs na

constituição daquilo que denomino de torécoco, ou seja, o toré Kapinawá como produto do

incremento étnico e a constituição de uma tradição indígena - um sincretismo religioso

(catolicismo, tradições indígenas e afro-brasileiras) e musical (benditos, toantes, sambas-

de-coco e pontos de umbanda).

Ao freqüentarem o toré, muitos Kapinawá começaram a manifestar uma

mediunidade até então desconhecida. Os incentivadores Dôca e Zé Índio orientaram

aqueles que passaram a irradiar26 no toré a fazerem banhos de limpeza. Estes banhos

tinham a intenção de “limpar as correntes”, de modo a permitir que uma certa qualidade

sagrada indígena (a “doutrina”) pudesse emergir. A fim de fazerem estas limpezas, os

Kapinawá procuram curadores (os donos de casa de espírito, de terreiros, ou torés, ou

mesmo de trabalhos27) de variadas tradições religiosas e mesmo particularmente bastante

sincréticos (com forte presença de elementos culturais afro-brasileiros e indígenas, que será

chamado mais na frente de “cultos de jurema”, Nascimento, s/d.), a maioria deles de fora da

comunidade Kapinawá. De modo que ao acionar uma identidade de indígenas, os Kapinawá

tiveram que realizar uma viajem para além das fronteiras da tribo, além dos limites de suas

próprias práticas religiosas, impondo ao espaço de exibição de suas tradições (torécoco) a

perspectiva do hibridismo cultural (Barbosa, 2003). Tudo isso ficará mais claro no decorrer

do texto, para tanto é importante observar as referências teóricas abaixo que indicam o

caminho da pesquisa.

Se o espaço social da etnicidade Kapinawá se desdobra para fora e arregimenta

tradições diferenciadas, num quadro social e religioso plural (o “complexo da jurema” -

Mota & Barros, 2002; Nascimento, 1994, s/d.- por exemplo), seguindo Barth (2000: 123),

concordo com a idéia de que “a construção cultural que fazem da realidade não surge de

25 “Entre os povos indígenas atuais, o projeto étnico (Oliveira 1997) de reelaboração de tradições específicas comporta diversas concepções nativas de cultura, com variados graus de compatibilidade entre si. (...) Entendidas como variantes de um mesmo projeto étnico, as formas de objetivação cultural fundamentalistas pretendem circunscrever seus respectivos universos culturais a um número limitado de práticas e representações que lhes seriam específicas, rejeitando os empréstimos. Por sua vez, a perspectiva híbrida está mais propensa à incorporação de novos elementos e à ampliação do repertório de práticas e representações culturais. Ambas tendências, no entanto, configuram-se na forma de um projeto, de um plano ideal, que não necessariamente corresponde ao comportamento ordinário dos membros do grupo e que, ao rejeitar determinados empréstimos culturais e aceitar outros, revela um pouco de sua história”. (Barbosa, 2003: 183). 26 Termo nativo que expressa a situação ritual de contato com os espíritos. 27 Trabalho é um termo nativo que se refere a qualquer tipo de atividade ritual religiosa (Para uma conceituação mais precisa para curandeiro e trabalho ver adiante).

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uma única fonte e não é monolítica”. E que se deve ter em mente que: “we need to depiet

the whole context in which they are realized, especially how the cultural materials are

distributed outside them in the large plural society and not just within them”. (ibid, 1984:

86).

O espaço social no qual a tradição e a etnicidade Kapinawá se instauraram, e a

forma como eles construíram um toré a partir de tradições diferenciadas, disponível no

plano regional, remete a uma lição de Barth (2000: 217), “se estivermos seriamente

interessados em mapear a distribuição da cultura entre as pessoas, devemos deixar de

enfatizar tanto a etnicidade”, pois esta, “provides only a very oblique and deceptive

framework for investigating the actual bods end belifts, values, and practices that are

distributed in a population, thougts is no doubt serves to identify one set of forces that

affects this distribution”. (ibid., 1984: 80). Já que os Kapinawá participam de outras

comunidades de cultura, “a etnicidade é um dos padrões de compartilhamento de

características culturais, e pode ser que represente apenas um pequeno setor da herança

cultural de uma determinada pessoa”. (ibid., 2000: 217).

Assim, imagino que os atores estejam posicionados diferentemente com relação a

correntes (streams; Barth, 1984; 2000), ou fluxos (cultural flows; Hannerz, 1997)28

culturais. “Procurando ver a cultura como conhecimento, pensá-la como conhecimento, em

vez de, mais genericamente, como cultura” (Barth, 2000: 117), a circulação e

reconhecimento de valores religiosos, por exemplo, deve levar em conta que “Para

descobrir significados no mundo dos outros precisamos ligar um fragmento de cultura e um

determinado ator (a) à constelação particular de experiências, conhecimentos e orientações

desse/dessa ator(a)”. (ibid.: 128). A cultura é distributiva, os fenômenos sociais que a

envolvem são diferentemente vividos pelos atores, por isso, “Precisamos incorporar ao

28 “Se para certos fins parece válido pensar a cultura como fluxo, não é preciso acreditar que ela seja uma substância que se possa colocar dentro de uma garrafa. (...) Certamente não se deve interpretá-la como uma questão de simples transposição, simples transmissão de formas tangíveis carregadas de significados intrínsecos. Ela deve ser vista como originando uma série infinita de deslocamentos no tempo, às vezes alterando também o espaço, entre formas externas acessíveis aos sentidos, interpretações e, então, formas externas novamente; uma seqüência ininterrupta carregada de incertezas, que dá margem a erros de compreensão e perdas, tanto quanto a inovações. O que a metáfora do fluxo nos propõem é a tarefa de problematizar a cultura em termos processuais, não a permissão para desproblematizá-la, abstraindo suas complicações” (Hannerz, 1997: 15).

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nosso modelo de produção da cultura uma visão dinâmica da experiência como resultado da

interpretação de eventos por indivíduos”. (ibid.: 129).

Grünewald (2001a: 5), seguindo Barth, afirma:

Deixando de lado uma preocupação exclusiva com a identidade étnica e enfatizando a dinâmica do pluralismo cultural, surge a necessidade de perceber como co-tradições se organizam numa situação plural formando uma determinada tradição, a qual deve ser compreendida não apenas pelos costumes — ou itens de idéias e cultura —, mas pela ação dos sujeitos que afirma os valores da tradição.

E ainda que “a duplicidade de códigos culturais atuando sobre a mesma população

exorciza qualquer possibilidade de se pensar a cultura dos indivíduos como desvinculada

desses códigos culturais mais amplos” (ibid., 1993: 42). E o próprio Barth (1984: 79)

lembra que, “Any resident in a plural community needs to know much more than what

belongs in one of the coexisting cultures. He must be capable of interpreting the acts end

symbols of more than his ‘onw’ kind in the community”. E, devemos deixar claro que,

“The things that are assossiated in a pluraly – the cultures or traditions or streams – are things that change both their bondaries and their contents. Most of our concepts – inappropriate and perhaps question-begging even in more monocultural situations – entice us strongly to distort and deny this essential empirical fact”. (ibid.: 85)

A tradição de(o) novo

Depois de realizadas as limpezas espirituais, muitos Kapinawá que freqüentavam o toré e

tiveram contato com a mediunidade, passaram a compor músicas para serem executadas

durantes os trabalhos. Tais músicas seriam o reflexo da presença na pessoa de um “Dom

Divino” para compor, fruto do trabalho de limpeza espiritual - e da “doutrina” - realizado

com os curadores da região, e mesmo do próprio trabalho no toré. Aliadas a essas

composições individuais, como já indiquei acima, uma série de transformações ocorreram

em todo o repertório do toré, incluindo aí o ingresso de músicas de samba-de-coco e até

mesmo da “umbanda”. O fato é que esta mistura de gêneros musicais e a

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contemporaneidade das novas composições neste espaço são representados pela

comunidade como sendo a “tradição” Kapinawá.

Tal como se expressou Grünewald (2001b: 10) com relação a “invenção de

tradições Pataxó” numa “arena turística”,

“O termo tradição surge no discurso Pataxó em duas acepções e, em ambas, possui o significado de uma cultura própria ao grupo étnico: mesmo que sua formação histórica inclua elementos externos, a partir de sua incorporação eles passam a ser próprios do grupo, ou seja, de sua tradição. Além disso, mesmo criadas no presente, essas tradições devem se referir a conjunturas culturais (...) ou narrativas históricas (...), a fim de tornar legítimo seu caráter tradicional, de cultura histórica. São inevitavelmente, portanto, tradições em mudança” (itálicos no original).

Do mesmo modo a tradição Kapinawá é pensada como sendo sua cultura própria, mesmo

que criada com empréstimos de fora, e ainda que contemporânea, ela se remete a

“conjunturas culturais ou narrativas históricas”, ou seja, ao passado como história ou

elementos culturais (exemplo é o samba-de-coco). Por isso, o termo tradição deve ser

problematizado e repensado para poder desvincular-se de pré-noções.

Oliveira (1999a: 25) assegura que “O patrimônio cultural dos povos indígenas do

Nordeste, afetados por um processo de territorialização há mais de dois séculos, e depois

submetidos a fortes pressões no sentido de uma assimilação quase compulsória, está

necessariamente marcado por diferentes ‘fluxos’ e ‘tradições’ culturais (Hannerz, 1997;

Barth, 1988 [2000])”. O mesmo autor (1999b: 117) continua,

“as manifestações simbólicas dos índios atuais estão marcadas comumente por diferentes tradições culturais. Para serem legítimos componentes de uma cultura, costumes e crenças não precisam ser exclusivos daquela sociedade, freqüentemente sendo compartilhados com outras populações (indígenas ou não). Tais elementos culturais também não são necessariamente antigos ou ancestrais, constituindo-se em fato corriqueiro a adaptação de pautas culturais ao mundo moderno e globalizado. A incorporação de rituais, crenças e práticas exógenas não necessariamente significa que aquela cultura já não seria ‘autenticamente indígena’ ou pertencesse a ‘índios aculturados’ (no sentido pejorativo de ‘ex-índios’ ou ‘falsos índios). Operadores externos são ressemantizados e fundamentais para a preservação ou adaptação de uma organização social e um modo de vida indígena”.

Da mesma forma para Linnekin (1983: 241), “The selections of what constitutes tradition is

always made in the present; the content of the past is modified and redefined according to a

modern significance”; tradição sempre significa algo que está no presente, mesmo que se

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30

remeta ao passado, acentuo, imaginado ou não. Os elementos que formam uma tradição

devem ser compreendidos na mesma perspectiva, mesmo que retirados de outros contextos,

para Linton (1963: 489), “Borrowed elements, even when they retain their original form

with little modification, may be put to quite new uses by the borrowers and may acquire

associations very different form those which they had in their original context”.

Deste modo,

“Toda tradição é essencialmente dinâmica, posto que construída em situação. Em processos como esse, saberes e práticas culturais são ressignificados de modo a demonstrar, para os outros, a distintividade do grupo em face da sociedade nacional, transformando-se em símbolos de uma etnicidade a ser politicamente exibida inclusive em virtude das exigências ‘informais’ do reconhecimento oficial” (Santos, 2003: 127-8, em itálico no original).

E Grünewald (1993: 42),

“Além disso, devemos ter em mente que a história de uma tradição não visa alcançar um ponto de difusão, mas se trata somente da história da corrente cultural em si. (...) tanto a organização social quanto esses itens de cultura surgem contextualmente – e para que este contexto seja percebido plenamente, devemos incorporar a ele também a ‘experiência de vida’ dos indivíduos”.

Então, se toda intemporalidade das tradições é uma idéia construída numa determinada

situação histórica e social, - “Tradition is fluid; its content is redefined by each generation

and its timelessness may be situationally construted” (Linnekin, 1983: 242)- a experiência

de vida dos indivíduos atuais é o conteúdo delas, pois, “Tradition includes elements from

the past, but this ‘past’ is equivocal: it does not correspond to the experience of any

particular generation” (ibid.: 242)..

Barbosa (2003: 38-9), pensando a partir de Bhabha, entende que,

“As diferenças sociais não são mais simplesmente dadas à experiência por meio de uma já autenticada ‘tradição cultural’. Tornaram-se signos de emergência de uma comunidade almejada como ‘projeto’ – por vez, visão e construção -, que toma os sujeitos para além de si mesmos, a fim de retornar, em um espírito de revisão e reconstrução, às condições políticas do presente”.

Por isso, “É sob o signo da invenção de cultura que devem ser pensados os povos indígenas

do nordeste, com um resoluto movimento de afastar o viés etnológico de buscar no presente

culturas autênticas (ou ainda fontes culturais específicas da etnicidade)” Oliveira (1993:

viii).

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31

Deste modo eu recupero o conceito de “cultura autêntica” de Sapir (1970) e o

reinterpreto no sentido de perceber, através dele, a existência de um imperativo nas culturas

que impõe os indivíduos à ação29. “A cultura que não se constrói com os interesses e

desejos centrais de seus portadores, que opera partindo de fins gerais até o indivíduo, é uma

cultura externa. (...) A cultura autêntica é interna, ela opera do indivíduo para os fins”

(Sapir, 1970: 293), toda cultura teria por isso uma imperiosa contemporaneidade, que

incluiria mesmo o interesse pelo passado, “O indivíduo ou sociedade genuinamente culto

não rejeita desdenhosamente o passado. (...) Isto vale dizer que o passado é de interesse

cultural, só quando é ainda o presente ou pode tornar-se o futuro (ibid.: 304). Assim,

“Não existe real oposição, em última análise, entre o conceito de uma cultura do grupo e o conceito de uma cultura individual. Os dois são interdependentes. Uma cultura nacional saudável não é nunca uma herança do passado, passivamente aceita, mas implica a participação criadora dos membros da comunidade, implica, por outras palavras, a presença de indivíduos cultos” (ibid.: 299).

Estes indivíduos porém, “precisa(m) assimilar muito do background cultural de sua

sociedade, muitos dos sentimentos correntes de seu povo, para evitar que a sua auto-

expressão degenere em esterilidade social”. (ibid.: 303). Handler e Linnekin (1984: 287)

também usam este termo de Sapir no sentido de,

“Sapir’s notion of genuineness refers to the possibility of creativity. Genuine cultures provide individuals both with a rich corpus of pre-established (traditional) forms and with the opportunity to ‘swing free’ (1949: 322) in creative endeavors that inevitably transform those forms. For Sapir, genuine culture has a dialectical quality, for it embodies the seeds of its own transformation”.

Outros pesquisadores também refletiram sobre o indivíduo e a produção original de

tradições, para Fortes (1938: 84) “Culture contact is not the cause of individualism’, but

merely provides new channels of expression for that kind of behaviour which is commonly

labelled ‘individualistc’”. E para Linton (1963: 478), “The integration of new culture

elements depends upon the ability of individuals to learn and to change their preexisting

habits and we know that they can do both very rapidly when the incentive is strong

enough”, e mais radicalmente, “The general phenomena of culture change may be 29 Deste modo procuro evitar o dualismo fácil e estéril entre uma pretensa cultura autêntica (interna) versus uma cultura espúria (externa); considero que toda cultura é “autêntica” no sentido que apresento acima, toda cultura é, por assim dizer, “acionada” por seus membros contemporâneos. Lembro que ação também é um conceito weberiano, que entende a sociedade a partir da ação dos indivíduos enquanto sujeitos sociais.

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32

summarized as follows: The basic processes of culture change are individual psychological

ones of learning and forgetting” (ibid.: 481).

A História como genealogia

Foucault (2000: 18) lembra que, “O que se encontra no começo histórico das coisas não é a

identidade ainda preservada da origem – é a discórdia entre as coisas, é o disparate”, e que

por isso mesmo, dada uma impossibilidade epistemológica de atingir o passado como

“história real”, “O sentido histórico, tal como Nietzsche o entende, sabe que é perspectivo,

e não recusa o sistema de sua própria injustiça” (ibid.: 30), injustiça essa que governa uma

historicidade oficial, sempre contestada, já que, “os saberes dominados são estes blocos de

saber histórico que estavam presentes e mascarados no interior dos conjuntos funcionais e

sistemáticos e que a crítica pode fazer reaparecer, evidentemente através do instrumento da

erudição”. (ibid.: 170)

Neste sentido,

“Delineou-se assim o que se poderia chamar uma genealogia, ou melhor, pesquisas genealógicas múltiplas, ao mesmo tempo redescoberta exata das lutas e memória bruta dos combates. E esta genealogia, como aclopamento do saber erudito e do saber das pessoas, só foi possível e só se pode tentar realizá-la à condição de que fosse eliminada a tirania dos discursos englobantes com suas hierarquias e com os privilégios da vanguarda teórica”.

Deste modo, “Chamemos provisoriamente genealogia o acoplamento do conhecimento com

as memórias locais, que permita a constituição de um saber histórico das lutas e a utilização

deste saber nas táticas atuais” (ibid.: 171), entendendo os Kapinawá como sujeitos

históricos neste sentido, “a genealogia é a tática que, a partir da discursividade local assim

descrita, ativa os saberes libertos da sujeição que emergem desta discursividade” (ibid.:

172).

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33

“Música como sistema cultural”

A música é um objeto antropológico antigo. Depois de muitas conceituações, tanto de

antropólogos quantos de musicólogos, “por volta de 1950 o musicólogo holandes Jaap

Kunst introduziu o termo ethno-musicology. A partir de 1956 esta designação da disciplina

consagrou-se internacionalmente com a fundação da Society for Ethnomusicology nos

EUA” (Oliveira Pinto, 2001). Depois dele, muitos estudos começaram a ser feitos

procurando entender a música pela cultura, esta “teia de significados” (Geertz, 1978) no

qual a música tanto pode revelar sobre seus nós. Segundo Oliveira Pinto (2001: 4):

“Música é definida por Merriam como um meio de interação social, produzida por

especialistas (produtores) para outras pessoas (receptores); o fazer musical é um comportamento aprendido, através do qual sons são organizados, possibilitando uma forma simbólica de comunicação na inter-relação entre indivíduo e grupo”.

O pesquisador interessado em entender a riqueza musical de um povo deve sempre

se remeter a cultura deste povo, “para entender a música enquanto produto e estrutura

construída seria necessário, de acordo com Merriam, aprender a entender conceitos

culturais, que fossem responsáveis pela produção destas estruturas” (ibid.). Assim,

“Merriam caracterizou a pesquisa etnomusicológica como ‘the study of music in culture’

para, na década seguinte, acentuar ainda mais o paradigma cultural, definindo a área de

pesquisa como ‘the study of music as culture’” (ibid.).

Mais recentemente a antropologia passa a se interessar pelo estudo da música na

formação das “novas” culturas, das “novas” tradições, especialmente junto às populações

marginalizadas, como as minorias30 urbanas, camponesas e indígenas. Este texto, sobre a

constituição do repertório tradicional Kapinawá, se insere nos estudos das emergências

étnicas e indígenas do Nordeste. Abordando a problemática do antigo frente ao moderno,

no momento em que um e outro se afirmam num só lugar, no espaço que caracterizo como

torécoco (ver adiante). O foco do texto será a constituição contemporânea da música

30 “We may define a minority as a group of people who, because of their physical or cultural characteristiecs, are singled out from the others in the society in which they live for differential and unequal treatment, are who therefore regard themselves as objects of collective discrimination” (Wirth, 1945: 347).

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tradicional dos índios Kapinawá, recuperando a memória da emergência étnica aliada à

reconstituição da cadeia de eventos que culminaram no estabelecimento de um repertório

original de toré na comunidade de sitiantes da Mina Grande - PE.

Segundo alguns pesquisadores, “pode não ser sustentável qualificar de composição

a aquisição de novos cantos por visões mágicas ou sonhos entre muitos povos indígenas. Os

que criam esses cantos podem não conceber estar compondo, no sentido mais geral que

damos a essa atividade”, (Béhague, 1992; apud, Nascimento, 1998: 104). Nascimento

(1998:104) revela que “os Fulni-ô desconhecem o conceito de composição e entendem o

aparecimento de uma ‘nova’ melodia como algo coletivo e espiritual que faz parte de um

conhecimento comum já existente, embora de fato possa ser uma melodia nova”. Entre os

Kapinawá algo se passa diferentemente, a ampliação do repertório do toré com novas

composições individuais é um símbolo da própria identidade étnica, que se reflete na noção

mais individualista de “Dom” como condição da emergência destas músicas.

Neste texto procuro apresentar o contexto político e cultural que permitiu que a

comunidade mina-grandense criasse um espaço de valorização étnica onde um repertório de

novas composições musicais se tornasse símbolo de um patrimônio tradicional. Com a

noção de genealogia (Foucault, 2000) procuro recuperar, - a partir de entrevistas com os

Kapinawá da Mina Grande -, o contexto histórico que permitiu a valorização do “fazer

musical”, da composição, como um símbolo maior da própria etnicidade Kapinawá.

Metodologia

É importante destacar que neste texto estou preocupado em tentar mostrar a cadeia de

sentidos que gerou o repertório tradicional do toré Kapinawá, e não dar explicações,

apresentar as conexões históricas e culturais, e não avaliá-las, detectar suas categorias, não

do ponto de vista de alguma pretensa qualidade, mas sim da ordenação de seu sentido. Para

isso sigo Santos (2003: 65-6), que no estudo da identidade indígena de um grupo em Minas

Gerais (os Caxixó), ao analisar os relatos acerca de seu passado, enfatizou “o propósito de

tomá-los em si mesmos, na tentativa de apreender a lógica de sua articulação interna e os

sentidos atribuídos às categorias que os conformam”.

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Em seu esboço de uma etnografia da música, Anthony Seeger (apud Oliveira Pinto,

2001: 18) sugere que a base desta etnografia se encontra no espaço entre tradições e

transformações culturais. Neste tipo de texto se procura descrever e interpretar a música de

determinado grupo sob a ótica de sua produção histórica, o que retoma o problema da

mudança, por isso, a música dos Kapinawá deve ser entendida como cultura - “music as

culture” – (Merriam, apud, Oliveira Pinto, 2001:4), e cultura por sua vez pode ser pensada

também como tradições em mudança (Grünewald, 2001b: 10).

Oliveira (1999b: 118) propõe três pontos fundamentais para novas etnografias sobre

populações indígenas do nordeste: 1°) tematizar a situação etnográfica. Perceber que o

lugar do pesquisador tem implicações na produção do conhecimento antropológico junto ao

objeto, isso significa que o espaço do pesquisador é um dos universos da própria pesquisa.

2°) o papel do estudo da memória, com suas técnicas e perspectivas específicas. Como

tentei inferir na análise do conceito de tradição. 3°) “a dimensão utópica e projetiva (e não

apenas política) presente na construção do fenômeno da etnicidade”, como indica, por

exemplo, a minha atenção à constituição contemporânea do repertório musical tradicional

do toré Kapinawá.

Barth (1984: 86) propõe também três pontos importantes nos estudos modernos de

identidades e culturas; 1°) a partir do momento em que se sabe que os componentes

culturais ou as correntes culturais fazem parte de uma fronteira fluída, “we need to depiet

the whole context in which they are realized, especially how the cultural materials are

distributed outside them in the large plural society and not just within them” (ibid.). 2°)

levar em conta a história, “not in the sense of the origin of the tradition or the origin of its

contents, but an account of the nature of continuity insofar as it can be ascertained”. E,

3°) Look for the main processes that affect transmission and change, both the larger world impinging and local context affeting the prospects of eache coexisting tradition. The former, I wold suggest, is furthered by moving upward and outward form a local community, pursuing each of contradictions in their full distribution and scale. The latter is furthered by moving donwward into the stuff of a local community and investigating above all the structure and praxis of persons in their compound and partly contraditory memberships”. (ibid.: 86).

Da mesma forma, Marcus (1991) propõe uma etnografia modernista. Esta

etnografia estaria pautada pela atenção a três pontos principais. (1°) ao espaço:

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“A identidade de alguém, ou de um grupo, se produz simultaneamente em muitos locais de atividades diferentes, por muitos agentes diferentes que tem em vista muitas finalidades diferentes (...) Uma abordagem modernista da identidade requer que este processo de dispersão da identidade em muitos lugares de natureza diversa seja apreendido” (ibid., 204).

(2°) ao tempo:

“O passado que continua presente é construído a partir da memória, que é o agente fundamental da etno-história. Numa etnografia modernista, a memória coletiva e individual, nos seus múltiplos sinais e expressões, é tomada de fato como prova do auto-reconhecimento, ao nível local da identidade” (ibid, 206).

Para Marcus, a memória coletiva é filtrada de melhor forma pela memória individual, e são

as autobiografias que podem melhor exprimir as experiências históricas particulares.

Barth (1984: 83) lembra que as “experiências de vida” são importantes no

entendimento da cultura,

“Basically, i subscribe to the widely shared view that the meaning of cultural itens arises contextually. But I would argue that the enlightening context is not adequately represented in logical / configurational terms alone; it is not only a matter of ‘structure’ but also of ‘life experience’: meaning is experience-induced”. (ibid.: 83).

E Fortes (1938: 82) “a sociological census and individual case histories can used

complementarily to elucidate the mechanism of contat with a contact milieu”.

Por fim, (3°) à perspectiva (voz), que implica na “aceitação da montagem da

polifonia como problema ao mesmo tempo de representação e de análise” (Marcus, 1991:

207). O problema da escrita se volta para “a apreensão das dialógicas, de todo o

conhecimento antropológico, que tem sido transformados e ofuscadas pelos processos

complexos da escrita (...) e das relações diferenciais de poder que dão a forma final aos

meios e modos de representação do saber” (ibid.: 207-8). Uma etnografia modernista,

“ao reconhecer propriedades do discurso tais como dominância, residualidade e emergência (ou possibilidade), poderia mapear as relações entre estas propriedades (...), não através de apropriações estruturais imediatas das formações discursivas, mas pela exposição, tanto quanto possível, da qualidade das vozes por meio de categorias metalingüísticas (tais como narrativa, figuras de linguagem etc.) As vozes não são vistas como produtos de estruturas locais, baseadas apenas na comunidade e na tradição, nem como fontes

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privilegiadas para a definição de perspectivas, mas como produtos de conjuntos complexos de associações e experiências que as constituem”. (ibid, 208).

Clifford (1998: 43) sugere que a etnografia dialógica seja usada como recurso

metodológico: “Um modelo discursivo de prática etnográfica traz para o centro da cena a

intersubjetividade de toda fala, juntamente com seu contexto performativo imediato”. Por

isso, Clifford (ibid.: 47) pôde dizer que: “O diálogo ficcional é de fato uma condensação,

uma representação simplificada de complexos processos multivocais”, deste modo cabe ao

pesquisador apresentar o contexto no qual o conhecimento antropológico foi construído.

Imagino que vale a pena citar algumas recomendações de Grünewald (2004: 21-2)

sobre o objeto antropológico “comunidades indígenas” no Nordeste contemporâneo,

“Primeiramente, portanto, na medida em que cada comunidade tem seu contexto histórico em que o toré se liga moldando sentidos e formas distintas, deve-se ter em mente as particularidades históricas de cada toré de cada grupo. (...) Aliado a isso, questões de distribuição geográfica e de difusão cultural valem ainda ser mapeadas: os grupos que ensinaram outros a fazer torés e as trocas culturais atuais (as músicas de um grupo, por exemplo, são tiradas por vários outros, muitas vezes com adequações próprias para cada um). A formação atual dos grupos de toré em seus aspectos interno (organização das pessoas) e externo (conjunturas das arenas públicas para exibições, por exemplo). Os papéis hierárquicos dos atores no toré. Os sentimentos ou emoções associados a ele. (...) A coesão social da comunidade e as pessoas e grupos (facções) que podem promover uma negação do toré” (os itálicos são meus).

Há ainda,

“paralelamente, um largo campo de pesquisa para uma estética do toré – se percebida tanto nas suas apresentações públicas quanto nas suas realizações nas comunidades e nos ritos íntimos. A etnomusicologia do toré, desde as denominações das músicas (“toantes”, “cantigas”, “linhas”, “torés”, “benditos”, “sambas” etc), passando por seu acervo na tradição oral e nos registros passados até as composições recentes (constituição do corpus musical). Além disso, as próprias formas de composição (pelo indivíduo, ou através de “encantados” ou “antepassados”), ou ainda as influências musicais regionais como o samba de coco, ciranda, marujadas, linhas de umbanda, benditos etc” (ibid.).

A disposição deste texto procura proceder ao modelo de etnografia dialógica, “As

formas de escrita etnográfica que se apresentam no modo ‘discursivo’ tendem a estar mais

preocupadas com a representação dos contextos de pesquisa e situações de interlocução”

Clifford (1998: 44). “Uma série de recentes trabalhos tem escolhido apresentar os processos

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discursivos da etnografia sob a forma de um diálogo entre dois indivíduos” (ibid.: 45). E,

“Uma maneira cada vez mais comum de realizar a produção colaborativa do conhecimento

etnográfico é citar os informantes extensa e regularmente” (ibid.: 54). Procuro narrar a

constituição do toré Kapinawá a partir de colagens de trechos das entrevistas que realizei.

Distribuindo as vozes no texto e mesclando-as conforme a oportunidade, tentando

apresentar as enunciações nativas. Com este exercício eu imagino que resguardo as

diferentes representações da cultura e clarifico os acordos. O texto está disposto do seguinte

modo: os trechos das entrevistas aparecem sempre entre aspas, endentados; minha voz em

fonte itálica e negrita e a do(s) entrevistado(s) em fonte não itálica. Os trechos de texto de

outros autores (a bibliografia) aparecem do modo convencional, ou endentados, ou dentro

do corpo do texto. Os trechos com entrevistas sempre esclarecem quem está falando.

Para construir este texto, eu centrei as entrevistas no que passei a chamar de

“comunidade ritual”, ou seja, o grupo de Kapinawá mina-grandensse que assistiu a

instauração do toré na área e esteve, ao longo deste período, participando de suas

atividades. Oliveira (1988: 39), seguindo Gluckman (1987), entende que a idéia de

comunidade “não supõem limites espaciais bem delimitados, nem unidades em termos de

código de orientação cultural, mas somente que sejam partilhados determinados padrões de

interação no comportamento cotidiano dos indivíduos uns para os outros”. E Gluckman

(1987: 303, nota 08) entende a palavra “community não como um grupo harmonioso e bem

integrado, e sim um conjunto de pessoas cooperando e disputando dentro dos limites de um

sistema estabelecido de relações e culturas”. E dentro deste grupo, realizei a maior parte das

entrevistas com aqueles que identifiquei como sendo os compositores de músicas para o

toré.

O grupo de entrevistados é: (mulheres) Pedinha (Pedinha Bezerra de Moura),

mulher do cacique Zé Bernardo (José Bernardino Barbosa). Lilia (Maria Antônia da

Conceição), filha dos mais memoráveis e lembrados dançadores e “tiradores de versos” de

samba-de-coco da Mina Grande, tem uma linda voz. Dôra (Maria das Dores de Moura; 57

anos), mulher do pajé, trabalha junto com o marido no toré. (homens) Arlindo (Arlindo

Florêncio de Moura; 58 anos), o pajé, é o dirigente do toré, além de ser curador também.

Zé Caetano (José Caetano da Silva; 58 anos), compositor de muitos toantes. Jaime (Jaime

Antônio de Moura; 57 anos), foi pajé por dez anos, também tem muitas composições. Há

ainda entrevistas com importantes informantes: Zé Moisés (José Moisés Monteiro; 46

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anos,- ex-pajé, ocupou o cargo por cerca de quatro anos); Zé Bernardo (cacique há mais de

dez anos); Nivaldo de Tupanatinga (importante curador da região do Vale do Ipanema);

Elias de Ibimirim, 80 anos (o mais famoso curador do agreste e sertão pernambucanos); e

Assis Calixto (compositor, cantor e instrumentista – triângulo – do grupo “Samba-de-Coco

Raízes de Arcoverde”) 31. Uma série de entrevistas foram realizadas com outras pessoas,

dentro e fora da comunidade Kapinawá, elas servirão de complemento em alguns

momentos do texto, com a devida indicação do portador da voz.

Foram ao todo seis viagens que realizei aos Kapinawá. A primeira foi na elaboração

da pesquisa de campo que originou o “Relatório de Viajem: Índios do Nordeste (AL, PE,

PB)” (Albuquerque e Palitot, 2002), patrocinado pelo LACED (Laboratório de Pesquisas

em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento) do Museu Nacional/UFRJ e coordenado pelo

professor Dr. Rodrigo de A. Grünewald, orientador desta pesquisa32. Estive na área durante

os dias 15 e 16 de julho de 200233. Além de capturar imagens para um vídeo que eu

realizava sobre a jurema34, colhi dados para a confecção de minha monografia de conclusão

de curso em Ciências Sociais (Antropologia) pela UFCG (Albuquerque, 2002a).

A segunda (23 e 24/11/02) e terceira (07 e 08/03/03) vez foram na companhia de

Rodrigo Grünewald e Edmundo Pereira (doutorando do MN/UFRJ), para a captura de

áudio para a gravação de um CD com o repertório tradicional da etnia Kapinawá. O Cd está

na fase de acabamento em estúdio esperando patrocínio para ser prensado35.

A quarta vez (08 e 09/10/03) foi na companhia de dois estrangeiros, residentes nos

Estados Unidos, que viajavam juntos pelo Brasil. Um egípcio, Ali Zeiton, e um norte-

americano, Mark, amigos do professor orientador desta pesquisa. Acompanhei-os a área

indígena Kapinawá, eles tiveram o prazer de conhecer um pouco do universo indígena do

nordeste. Estas quatro vezes foram importantes para que eu pudesse fazer o contato com os

informantes mais qualificados a falar da experiência com a instauração do toré. durante

31 As idades dos demais entrevistados estão na média de 56 anos. 32 O texto está disponível no site “http://lacemnufrj.locaweb.com.br”. 33 A equipe de viajem era formada por mim, pelo citado coordenador, orientador deste texto e por Estevão Martins Palitot, colega hoje doutorando do PPGS/UFPB. Nosso objetivo geral era recolher dados sobre a condição de vida das populações indígenas do Nordeste, e a partir destes dados construir um relatório para o LACED (Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento) do Museu Nacional/UFRJ. 34 O vídeo, “Jurema: Raízes Etéreas”, de fevereiro de 2003, recebeu a “Menção Honrosa” do Prêmio Pierre Verger de vídeo e fotografia 2004, da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). 35 Conferir os textos de Pereira (2002; 2004)

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estas idas à área, eu pude ir construindo uma amizade com meus informantes e discriminar

dentre eles aqueles que poderiam me fornecer subsídios para esta pesquisa.

Assim, viajei uma quinta vez (30/04/04 a 09/05/04) e uma sexta e última ida a

campo (24/09/04 a 04/10/04). Nestas ocasiões eu fui sozinho e permaneci na casa do

cacique na primeira vez e na casa do pajé na segunda. Permaneci estes dias na área

realizando entrevistas com aqueles informantes que eu já detectara anteriormente. Cumpri

uma agenda de entrevistas e conheci lugares e eventos importantes para a vida da

comunidade ritual Kapinawá.

Realizei entrevistas abertas com um gravador (Portable minidisc recorder MD-

MS720 da Sharp), e com uma câmera de vídeo Sony Mini-Dv (Digital video camera

recorder – TRV 19). O emprego de filmadora ou vídeo na pesquisa abre possibilidades para

três maneiras de registro: (1) gravação no contexto, (2) gravação analítica e (3) o emprego

da filmadora como “bloco de anotações”, (Oliveira Pinto, 2001:18). O uso deste

instrumento de pesquisa ainda permitiu uma maior interação com o público do toré, e com

os entrevistados, a imagem tem uma forte atração para a comunidade. Todas as imagens

gravadas foram assistidas junto com o grupo, momentos ricos de dados para esta pesquisa.

Retratar o universo pesquisado desta maneira permite ao público interessado uma maior

possibilidade de crítica e intercâmbio entre o pesquisador, seu objeto e público maior36.

O torécoco Kapinawá (esquema do texto)

A disposição dos capítulos da dissertação procura organizar o quadro dos elementos de

cultura que formaram o espaço público de exibição das tradições Kapinawá, - que

denomino analiticamente de torécoco -, terminado por conhecer as composições criadas na

ampliação do repertório musical tradicional indígena Kapinawá. Por isso, criei a categoria

analítica torécoco, para significar num plano geral de expressão, as mudanças que se

operaram na comunidade da Mina Grande com a implementação do espaço ritual chamado

por eles de “toré”. Para contrapor-me a esta categoria nativa de classificação, forjei o termo

torécoco para, distanciando-me da categoria nativa “toré”, poder representar, com uma

36 Produzi e dirigi um vídeo sobre os Kapinawá intitulado “Joguei a Semente pra Cima”, de 2004.

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única expressão, as modificações políticas, religiosas, e coreo-musicais operadas na

formação da etnicidade indígena contemporânea. O termo, portanto não se resume às

transformações reconhecidas no espaço do “toré”, ela pretende ir além deste evento como

objeto espacial e temporal. A categoria torécoco se propõe representar as modificações

citadas acima por todo o conjunto de elementos que, confrontados com estas mudanças,

dialogaram e produziram respostas originais. Assim, o termo torécoco – como categoria

criada a partir da junção de categorias de classificação de elementos da cultura, o “toré” e o

“samba-de-coco” - se desdobra para representar um plano mais geral de modificações, que

terão neste texto sua representação a partir da análise histórica da construção do ritual

“toré” na comunidade da Mina Grande, com a conseqüente valorização de elementos de

cultura (interno e, - ou -, importados) reconhecidos como a “tradição Kapinawá”, que se

revela, uma vez37, na sua condição de contemporaneidade através da ampliação de seu

repertório musical pelas composições criadas no presente. O torécoco, pois, é um espaço de

exibição e atualização da tradição indígena Kapinawá, e é entendido como espaço social

vigoroso que se apresenta a mim do ponto de vista de seu “hibridismo” (Barbosa, 2003).

Deste modo, as partes da dissertação podem ser assim apresentadas. Uma

Introdução com a apresentação da comunidade indígena Kapinawá no seu aspecto mais

geral e posteriormente nas condições históricas que confluíram na “emergência étnica”

Kapinawá. A seguir faço uma análise de algumas formulações teóricas que dirigiram as

idéias que norteiam, e dão sentido, a este texto. Por fim procedo a anunciação de aspectos

metodológicos que conduziram o trabalho de campo, e a formulação do texto.

No capítulo I exploro a introdução do “toré” na vida social da comunidade

Kapinawá. Descrevendo sua introdução como um processo político e histórico que

implicou numa re-configuração de alguns elementos de cultura da Mina Grande. No

capítulo II descrevo a formação do espaço “toré” como uma introdução de um tipo de

sistema religioso denominado analiticamente de “cultos de jurema” (Nascimento, s/d.), que

se utiliza de elementos de cultura religiosa disponíveis no que aqui reconheço como o

campo religioso do “complexo da jurema” (Mota & Barros, 2002; Nascimento, 1994; s/d.).

E analiso algumas categorias étnicas criadas neste espaço. O capítulo III trata da

incorporação do samba-de-coco no toré Kapinawá. O capítulo IV investiga o

37 Uma vez porque, a condição de contemporaneidade destas tradições Kapinawá, revela-se em todo o conjunto social dirigido para a formação do espaço social torécoco.

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desdobramento do fenômeno da irradiação (mediunidade), aliada às limpezas espirituais,

na constituição do que é reconhecido como o “Dom” para compor. E após isso, analiso

essas composições a partir da representação de sua produção por seus próprios autores.

Todos estes elementos unidos dão a característica de abertura e vigor do torécoco como

espaço de produção/exibição de uma tradição indígena Kapinawá. Nas considerações finais

problematizo a expressão “compositor indígena” e reforço, com mais alguma incursão à

teoria, o caráter vigoroso do espaço social torécoco.

Agradecimentos

Foram muitas as pessoas que me ajudaram nesta pesquisa. Com certeza alguém seria

esquecido se eu as enumerasse uma a uma. Por isso gostaria de agradecer de modo sintético

aos meus amigos Kapinawá, que me acolheram e se disponibilizaram para me ajudar. Ao

pajé Arlindo e Dôra que me hospedaram, à Zé Moisés e família, Zé Caetano e família,

Dona Lilia, Dona Pedinha, Dona D’Alzira e família, Jaime e família, Dona Mariquinha,

Germano e família, Chico Machado e comunidade do Julião, Edson e comunidade da Ponta

da Várzea. As aldeias Santa Rosa, Quiri d’Alho, Pau Ferro Grosso. Aos curadores Elias de

Ibimirim e Nivaldo de Tupanatinga. A Assis Calixto, Damião, Ilma e Ivan e a todos que

fazem o “Samba-de-Coco Raízes de Arcoverde”. Agradeço ao Programa de Pós-Graduação

em Sociologia (UFPB/UFCG) e a CAPES pela bolsa de estudos. Aos colegas antropólogos

Estevão Martins Palitot e Edmundo M. M. Pereira pelas contribuições a minha pesquisa.

Ao orientador desta pesquisa, Rodrigo de Azeredo Grünewald. E à minha família (pai, mãe,

Ny, Dona Avany e Waleska).

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Capítulo I - O toré

“Nessa noite eu vesti a farda, quando eu vesti, quando eu vesti a farda, mas dei uns três ou quatro pinotinho da altura

desta casa.”

(Dôra, sobre a impressão de um dos primeiros trabalhos)

O documento

Pode-se começar a entender o conteúdo e a construção histórica do toré Kapinawá a partir

de um evento singular, a obtenção de uma cópia do documento de doação das terras

habitadas pelos Kapinawá aos herdeiros dos índios da aldeia Macacos, de 1874.

“Quanto à origem da dita cópia, é certo que os Kapinawá da Mina Grande só vieram a conhecê-la diretamente uma vez deflagrada sua ‘luta para levantar a aldeia’ ao final dos anos setenta, trazida pelo índio José Antônio dos Santos, o Zé Índio, de origem xukuru, personagem central deste processo e, possivelmente, o único que poderia esclarecer em definitivo as condições da sua obtenção” (Sampaio, 1994: 07).

Sampaio apresenta algumas hipóteses para esclarecer como os kapinawá conseguiram

adquirir a cópia do documento citado.

A primeira hipótese afirma que,

“a certidão teria sido obtida ‘há muito tempo’, por um cidadão residente na cidade de Tupanatinga -antiga Santa Clara- interessado em regularizar posses suas nessa localidade. Com a morte do dito cidadão, um dos seus herdeiros, desinteressado do objetivo original e tomando o ‘documento’ como simples curiosidade, o teria entregue a Chico Machado, reconhecidamente um descendente em linha direta do "alferes" Félix da Costa Machado, nome que encabeça a relação de beneficiários no documento.” (ibid.).

O texto continua e afirma que Chico Machado na época morando em Boa Vista teria

recebido a visita de Zé Índio que buscava com ele a cópia do documento.

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A segunda hipótese parece não contradizer a anterior, mas ampliá-la. O dito

documento seria de conhecimento dos Kambiwá que o descobriram na época da luta deles

pelo reconhecimento de sua etnicidade pelo Estado, dez anos antes dos Kapinawá o

apresentarem. "Zé Índio, de quem se diz ter sido, por algum tempo, pajé dos Kambiwá,

deteria ou conheceria o documento desde então”. (ibid.). Porém, “os Kambiwá sabiam

contudo que as terras ali declaradas não eram as suas e, na verdade, sequer tinham

conhecimento das localidades ali designadas como "terra indígena". (ibid.). Mas

seguramente reconheciam alguns marcos geográficos citados no documento, além do fato

de que muitos habitantes da área Kapinawá atual estarem na época morando na região

vizinha a área Kambiwá como trabalhadores na construção da BR 110 (rodagem de Paulo

Afonso). O que levou Pedro Manuel, o Dôca38, um dos líderes do movimento de

emergência étnica Kambiwá, a desconfiar da constante presença, “de um sobrenome raro na

região: ‘Pelonha’, encontrado em alguns daqueles forasteiros, e que ele próprio identificava

em ascendentes paternos seus que já supunha originários, como parecia se confirmar, da

região dos municípios de Buíque e Tupanatinga, onde está Macacos.” (ibid.).

Em entrevista a mim concedida, Chico Machado apresentou uma nova versão dos

fatos que cercam a obtenção do documento de 1874. Segundo ele,

“O finado anjo Profílio, meu tio, que é Machado também, ficou com a escritura. Ele morava aqui no Olho d’Água, ele morre e ficou com uma irmã dele, tô esquecido do nome dela. Flurório Leitão tinha propriedade coligada com a nossa aqui, e essa escritura nossa fazia frente com a gente e fazia a dele lá, mais ou menos assim, e através disso ele ficou com a escritura, deu 500 mil réis. Ficou com ele mas nunca teve nada. Flurório Leitão morreu, ficou Mané de Flurório, ele foi quem entregou para cumpadre Elias de Ibimirim, ficou na mão dele e na de Zé Índio, e se junta com Dôca na Alexandra e entraram aqui, botaram dentro de FUNAI, foi a nossa escritura, ela nunca foi perdida.”

Dôca e Zé Índio trouxeram uma fotocópia do documento que foi lida e relida pelos

Kapinawá.

Sampaio (1994: 08) revela que Chico Machado e Zé Índio tinham ambos terreiros e

eram curadores na cidade ou nas vizinhanças de Ibimirim. E que,

38

Barbosa (2003: 161) em entrevista com Dôca diz que este “afirmou ter papel fundamental no levantamento da aldeia (Kambiwá) e que nela já existia Toré antes da chegada de João Tomaz”, João Tomaz foi o pajé Pankararu que “ensinou” o toré aos Kambiwá, (conferir Barbosa, 2003).

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“na verdade, Zé Índio e Chico Machado, bem como dois outros ‘donos de trabalho’ em comunidades hoje incorporadas aos Kapinawá -Antônio, do Quiri d'Alho, e Cazuza, de Santa Rosa, este último hoje também com prestigioso terreiro em Ibimirim, compunham uma relativamente ampla e flexível rede de centros rituais mais ou menos interligados e que se estende pelas áreas urbana e rural de Ibimirim, Quase todos filiados à ‘Federação de Cultos Afro-Brasileiros e Aborígines de Pernambuco’, dentre os quais o mais prestigioso ainda hoje parece ser o comandado por um certo Elias que é, como Zé Índio, de origem xukuru.39

Em entrevista com Elias, pude descobrir algo mais que ampliaria a rede de ajuda aos

Kapinawá. Segundo Elias, o processo de “levantar a aldeia” Kambiwá teve participação

sua:

“Aí eu soube o causo dessa aldeia aí por causa da minha família dizia, foi quando eu meti os pés e vim pra qui, me empreguei no DENOCS, trabalhei seis anos no DENOCS, mas depois dos seis anos, antes dos seis anos, eu comecei a entrar em ação com essa aldeia (Kambiwá). A uns dois anos atrás, um menino tava metido com problema de família ai eu retirei ele lá pro pé da serra do outro lado, aí eu disse a ele pode botar o nome da Pipipã. Pipipã Serra Negra”.

Elias esteve na hoje aldeia Quiri d’Alho em 1952 para 1953. Ele teria sido

encaminhado para lá pelo “pessoal de cima”, um pedido dos espíritos,

“E quando o senhor chegou lá pra ensinar o ritual do toré?

Aí deu trabalho. Ninguém sabia de nada? Ninguém sabia não, eu só fui pra lá porque um rapaz de lá chamado Antônio Vicente . Antônio ele enlouqueceu, aí eu fui reparar o que era, chegando lá era uma idioma, que ele tinha dentro da aldeia e nunca foi doutrinado, ele recebia espírito essa coisa toda. Aí foi quando eu legalizei o causo, fui pra retirar o que ele tinha, coisa de pacto com o diabo, porque ele era um índio e era endemoiado. Então o senhor sabia que lá era área de índio? Não, sabia não. Fui somente pra conhecer, aí quando entrei lá disse, a causa aqui é diferente é tudo indígena.

39“De resto, a Serra do Ururubá parece ser o grande pólo difusor do ‘complexo ritual da jurema’ (Nascimento, 1994) por todo o Agreste e Sertão Oriental pernambucanos, centro de uma rede que excede em muito os limites territoriais e simbólicos das comunidades indígenas formalmente diferenciadas. Há ‘terreiros’ mantidos por xukurus ou por especialistas formados por estes em cidades como Caruaru, por exemplo.” (Sampaio, 1994:08). Ver adiante a problematização do “complexo da jurema” (Mota & Barros, 2000; Nascimento, 1994; s/d.) no caso Kapinawá.

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O senhor soube como? Pensamento... e os passo”.

Elias recorda que comunicou o fato de existir índios na área Kapinawá ao chefe

Kambiwá na época, chamado de Willian. Este chefe concordou em ir com Elias até a furna

na Mina Grande, de onde Elias teria retirado, “um saco de ossos de índio, um taco de fumo

de índio antigo, bem alvino dentro de uma furna, e dali eu fui abrindo o ramal”. Deste

modo Elias teria levantado um terreiro na hoje aldeia Quiri d’Alho ainda nos anos

cinqüenta, e deixado Antônio, já “doutrinado”, tomando conta do trabalho. Assim, uma

parte da população da Mina Grande passou a acompanhar, mesmo que muito raramente,

estes trabalhos de Antônio. Quando a presença dos grileiros na Mina Grande transformou-

se em violência, Elias teria convocado Dôca e Zé Índio para “domesticar” a “aldeia”,

“Foi o senhor que disse pro Dôca e o Zé Índio ir lá pra Kapinawá? O Dôca é filho natural da Kambiwá, pra o Zé Índio não entrar só eu declarei pro Dôca ir também, porque o Dôca aqui já tava feito, e o Zé Índio também tava feito aqui. Então eles foi domesticar lá a aldeia, explicar tudo como era, fazer um cruzeiro, essas coisas todas, abrir linha em idioma, essas coisas todas. Todos os idiomas eles já são prontos”.40

Os Kapinawá atuais afirmam que foi um morador da Mina Grande chamado Zé

Galego, que na época residia na área Kambiwá, que trouxe Dôca e Zé Índio. Assim eu

falava com D. Lilia sobre o caso:

“Quem foi que trouxe o Dôca e o Zé Índio pra cá?

40Em entrevista, Lilia lembra da atuação de Elias: “Eu soube, ele quem deu jeito, porque Antôni tava doente e doutor não dava jeito, era coisa de índio. Seu Elias foi quem deu jeito, nós vamos no toré dele de vez em quando. Antes da FUNAI vim pra cá vocês já iam lá? Não. Foi depois da FUNAI que agente veio a conhecer ele, ele vinha aqui com a Sessé”. Sessé é uma puxadora e liderança nas aldeias Santa Rosa e Quiri d’Alho, foi “doutrinada” por Elias antes da emergência Kapinawá, ajudou na introdução do toré na Mina Grande. Há uma referência a ela no texto de Sampaio (1993: 02)

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Foi o Zé Galego, foi ele quem deu a indicação. Por que ele achava que eles deviam vir pra cá, por que ele achava que aqui tinha índio? Via alguma coisa na furna, seu Dôca vio e falou vamos dar uma olhada”.41

Também nisso concorda o texto de Sampaio (1994: 08-9),

“Dôca visitaria pela primeira vez seus amigos já retornados a Julião e Mina Grande na segunda metade dos anos setenta”, (e) “identificou a inequívoca presença de ‘ciência de índio’ na área, especialmente na grande rocha da serra da Mina Grande, cujas furnas guardam cemitérios indígenas. Apesar do que refere como ‘grande tolice’ dos moradores locais a respeito de uma tal ‘ciência’, estes autorizam-no a convocar o ‘compadre’ Zé Índio para ‘ajudar na luta’”.

Com o apoio de Elias e o contato que Dôca criou com Zé Galego e outros que conheciam

algumas “histórias” da Mina Grande, e pela apresentação do documento de 1874 trazido

por Zé Índio42, os Kapinawá da Mina Grande começaram a acionar os mecanismos legais

de reconhecimento étnico.

Assim, os dois índios de fora começam a articular a população da Mina Grande

em torno do aprendizado do ritual do índio, o toré. Assim,

“a maioria daqueles que agora ‘aprendiam’ o Toré, de fato re-significavam e re-arquitetavam enquanto mais definidas e legitimadamente ‘indígenas’ um conjunto de ‘informações’ até então de certo modo desconexas mas de modo algum estranhas. De resto, alguns dos habitantes mais velhos da Mina Grande haviam, quando jovens ou crianças, participado de torés -ou de algo que agora ‘sabiam’ identificar como tal- na própria Macacos, ou nas localidades próximas de Lagoa dos Teixeira -município de Itaíba - ou Quiri d'Alho, que têm, ainda hoje, seus nomes e histórias muito diretamente associados a estas práticas rituais”. (ibid.).

Lilia recorda que,

41 Conversei rapidamente com Zé Galego, mas não pude conseguir melhores informações sobre sua participação real na vinda de Dôca e Zé Índio para a área Kapinawá. 42 “Desde sua primeira visita à Mina Grande, o que seguramente ocorreu em algum momento do ano de 1978, Zé Índio trouxe consigo a ‘escritura de Macacos’, organizando uma sua primeira leitura pública, prática que se repetiria por muitas vezes nos anos seguintes, seja entre os da própria comunidade, seja diante dos muitos forasteiros -antropólogos, missionários e funcionários- que a visitariam entre 1979 e 1982, paralelamente a sessões do recém elaborado Toré Kapinawá”. (Sampaio, 1994: 09).

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“Mãe dizia que dançava o toré em Lagoa de Teixeira, dançava mas não sabia que era toré. Ela cantava: ‘o caminho da Serra Grande vou mandar e-ladrilhar, é de ouro e prata fina pra Joaquina caminhar’43, mamãe dizia que dançava isso lá em Lagoa de Teixeira, aí dizia que era parte de toré, mas nós não sabia porque era pequenininho. Mas ela já sabia que era coisa dos índios, coisa antiga? Sabia, depois que ela viu que Zé Índio chegou aqui, foi aí que ela se alembrou: ‘há, quando eu era pequena mãe cantava mais a tia dela’; ficaram gostando deste toante. Ela sabia outros toantes? Ela só sabia essa cantiga, tinha uma outra que Cícero Gomes diz que ouviu lá pra furna, dentro da furna: ‘Abelha tempo de seca só trabalha no agreste Trabalha abelha miúda no rojão da abelha mestre dandeia hô dandeia hô dandeia’ Ele trabalhava assobiando, diz que era da furna, os caboclo da furna cantando, aí peguemo cantar no toré. Ele sabia antes dos dois índios virem pra cá? Era, Cisso Gomes cantava, ele ia pra roça aí disse que tinha visto, uma voz cantando, assobiando, aí quem sabe não era os caboclo, ele não dizia pra ninguém. Aí depois quando se entendemo de gente aí vimos eles cantando, aí aprendemos. Mas o pessoal não dava muita conta não? Não, a gente não sabia que era índio de jeito nenhum. O povo não desconfiava? É diziam que era coisa de velho. Depois que o Dôca e Zé índio vieram pra cá, aí o povo via muita coisa aí na furna, uma luz pra riba do mundo, outros via bater zabumba, outros via o galo cantar. Eu não cheguei a ver, mas luz eu via, na furna, daqui de casa a gente via uma tocha na furna, mas não sabia o que era, mas era os caboclo”.

43 Jaime também tem memória do mesmo toante cantado acima por Lilia, “Nós conhecemos uma velhinha, a mãe de João, avó de Lilia, ela cantava esse ponto, o mais velho nos anos 55. È o principal. O mais antigo daqui de vocês? É o mais antigo, nós sabe só por um meio: ‘heiando heiá heiando heiá hoandeia hoá hodandeia hoá ho landeia ho landá ho lande ho la -isso é idioma, vou traduzir em palavra agora...- o caminho daquela furna já mandei o ladriá é de ouro e prata fina para os meus índios passeá heiando heiá heiando heiá hoandeia hoá hodandeia hoá’ Nós aprendeu vendo ela cantar...A velhinha de João Mariano foi que herdou”.

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Em uma visita a Furna da Mina Grande o ex-pajé Jaime me mostrava os ossos que a

maioria dos Kapinawá reconhecem como sendo dos ancestrais do grupo.

“Quando virou aldeia aqui vocês já sabiam que tinha esses ossos aqui? Já, desde criança que a gente vem aqui. Mas antes de virar aldeia vocês sabiam que tinha coisa de índio aqui? Sabia, de vez em quando, quando o povo passava por essa estradinha aí via escutava cantar, o zabumba, ouvia o galo cantar, mas era um galo encantado, mas quem chegava aqui não avistava não”.

Em Sampaio (1994: 09), lê-se que, “a 15 de janeiro de 197944 foi ‘erguido o

cruzeiro da jurema’, signo da consagração do novo terreiro, e ‘pisado’ o primeiro grande

toré dentro da furna da Mina Grande, onde estão enterrados os ‘antigos’. Nesta mesma

ocasião ‘revelou-se’ o etnônimo Kapinawá, doravante adotado pela comunidade social e

ritual”. A única correção ao texto citado de Sampaio é o fato de que nas entrevistas que

realizei o nome Kapinawá foi escolhido e não “revelado”, e teria sido o próprio Dôca que o

escolhera por achar que combinava com Kambiwá, esta é pelo menos a versão mais comum

que ouvi do fato45.

O toré por Dôca e Zé Índio

Zé Bernardo (o cacique Kapinawá) lembrou comigo o início do toré na área,

“Quando foi fazer o toré foi porque disseram que tinha que fazer o toré pra ser reconhecido?

44 O curador Nivaldo de Tupanatinga lembra que, “Já fui na Mina Grande pra fazer trabalho, duas vezes, fui no batismo do cruzeiro... Fui eu quem fiz o batismo do cruzeiro da Mina Grande, foi em 78.” Possivelmente a data pode ser o 1979 que cita Sampaio. 45 Oliveira (1999b: 172) lembra com relação a isso que, “Longe de ser uma profunda expressão da unidade de um grupo, um etnônimo resulta de um acidente histórico, que freqüentemente é conceitualizado como um ato falho, associado a um jogo de palavras ou a um chiste”.

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Ele falou que o índio tinha que dançar o ritual, que a cultura do índio era o ritual, não existia escritura, a escritura é o ritual, a escritura era a cultura. Quando foi na inauguração do terreiro tinha uns 300 índios assim, foi quando ele fez a jurema. Foi três dias de ritual, só agente mesmo”.

Arlindo lembra que Dôca e Zé Índio perguntaram sobre o conhecimento do toré na Mina

Grande, ao que ele teria respondido,

“Nossos avós falavam só que nunca explicaram pra gente, falavam que primeiro nós dançava o toré de caboclo, do índio, tinha a tradição deles, inclusive tem uns toantes véio que ainda hoje a gente sabe que meus avós ensinaram. Daí pra cá nós tivemos conhecimento, os índios vieram pra cá, sentamos o cruzeiro e botamos nós pra dançar, vestir o caruá, maracá na mão, através deles tivemos conhecimento”.

Dôra recorda o primeiro toré em que foi,

“Apareceu um velho sabido (Dôca) e diz que de noite é pra todo mundo ir pra casa de Isaura pra dançar toré. E a senhora sabia o que era toré? Sabia não, eu disse, vou olhar, e Arlindo meio assim, e aquele negócio já pedindo, a natureza já pediu que eu fosse. Não tem quem diga, eu vou olhar, que eu nunca vi. Já brincaram ontem e hoje vai ter de novo, me disseram, vou olhar, vou olhar, não tem quem me segure, se Arlindo não for eu vou. Aí ele disse assim (o Zé Índio) ‘olha, nós vamos brincar aqui, mas quem, eu sei que vocês têm as suas coisas’, aí explicou, que era da furna, tudo... ‘Mas quem ficar com a dor, tremendo, quem ficar como quem tá zonzo é pra vim procurar’ ele e cumpradre Dôca ‘que nós vamos rezar na pessoa pra ficar bom’. Eu me escondi logo, aí Arlindo ficou assistindo, e eles cantando, e eu me escondendo por detrás deles, mas deixa que eu já tava tremendo, um negócio dentro deu assim, aquele negócio tremendo vai tomar meu corpo todinho, e eu com medo. A senhora sentiu que tinha coisa ali? Eu senti que tinha coisa (risos) Rapaz! Mandei fazer a farda de caruá, mas menino, você acredita que na primeira noite que foi o toré, ele já tinha feito o terreiro, nessa noite eu vesti a farda, quando eu vesti, quando eu vesti a farda mas dei uns três ou quatro pinotinho da altura desta casa... Pra me pega... Foi a experiência deles lá. Quando bebia a jurema às vezes dava uma força, Ave Maria! Pelo amor de Deus, caía de estera. Aí quando o povo caía ai ele dizia ‘deixa aí, deixa todo mundo dormindo um soninho’”.

O primeiro grande evento que se apresenta no toré e constitui uma novidade que

angariou prestígio de uns e desprezo de outros foram as irradiações. O fenômeno da

mediunidade que era até então algo desconhecido nas práticas religiosas dos mina-

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grandistas. Independentemente da ingestão de jurema, como lembra o cacique, “pra falar a

verdade Dôca e Zé Índio dançavam ritual, mas beber jurema não, só foi naquele dia, na

inauguração do terreiro, mas em nenhuma outra vez não”. E o ex-pajé Zé Moisés, “só foi

feita a jurema na época na festa do terreiro”.

Em entrevista com Lilia ela recordou o ingresso do ritual no grupo.

“Antes de ter o ritual ninguém trabalhava com os encantado não né? Não, não tinha não, de jeito nenhum. A senhora também irradia? É tenho as minhas proteção, assim, dá aquela vontade de cantar e dançar. Quando foi que a senhora sentiu que tinha essa coisa? Foi quando Zé Índio chegou. Assim que ele começou a cantar as cantigas e dançar aí foi, quem tinha alguma coisa aí sentiu. A senhora não achou estranho não? A primeira vez eu achei, achei assim; meu Deus o que é isso, acho que não vou gostar muito não. Aí Dôca disse que tem sentir alguma coisa que vá lá pra casa pra gente ver o que é, aí eu fui. Ele rezava, olhava, fazia a medicina dele, aí dizia que a gente tinha radiação.

O Zé Índio explicou que essas força era dos índios? Já era a força natural da terra, de rezar, dançar o samba-de-coco, fazer artesanato, muitas coisas, já era força da terra mesmo. Zé Índio reconheceu a força mesmo. Nós não somos índio limpo mesmo, somos descendentes, Zé Índio foi na furna e viu, provou que a terra é mesmo dos índios. Quando o Dôca e o Zé Índio tavam aqui as pessoas brincavam o ritual mas muita gente passava mal, caia, num tinha? Tinha, se sentiam mal mesmo, quando ele via aí parava, mas era mais Zé Índio, que era danado, Dôca não, mas pra mim a parte de Zé Índio era outra. Seu Dôca não gostava dos trabalhos de Zé Índio. Era pesado os trabalho de Zé Índio. Era pros dois lados? Era. Dôca não gostava de jeito nenhum, eu fui pro trabalho do Zé Índio. E era coisa pesada mesmo. Seu Dôca era outro dizia não faça isso, aquilo. Seu Dôca não trabalhava pra esquerda”.

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A presença de um tipo de trabalho do Dôca e um tipo de trabalho de Zé Índio seriam

notados com distinção. Zé Caetano lembra que existia um toré diferente dependendo de

quem o dirigia. Dôca ensinou os toantes de abertura do toré que são ainda hoje os

utilizados,

“Para abrir é uma oração, ‘meu sagrado coração de Jesus’46, foi o Dôca, o Zé Índio abria com outro canto, a gente usou só o do velho, o de Zé Índio a gente deixou pra lá. Quando Dôca tava, era ele que começava o trabalho, se ele não tava aí Zé Índio fazia, abria o terreiro com um toante para D. Jandainha. Um era cacique (Dôca) e o outro pajé (Zé Índio), respeitava os dois, mas sempre ficamos com a parte do velho Dôca. A parte do velho era mais certa, ele gostava das coisas mais direito, já o Zé Índio gostava das parte de candomblé, dava despacho o Zé Índio”.

Assim, muitas pessoas envolvidas na produção do toré Kapinawá apontam as

diferenças na organização do ritual e das crenças de Dôca e Zé Índio. D. Pedinha lembra

que, “Zé índio tinha trabalho de mesa, acendia vela, puxava toante de trabalho. Zé Índio

fazia o galo cantar e as garrafas de cana estourarem nas prateleiras dos vendedores ilegais

na área”. Zé Caetano que, “Dôca fazia trabalho no chão com velas, sem jurema, e Zé Índio

fazia na mesa sem jurema. O toante de abertura era batendo palmas47”. Arlindo afirma que,

“Zé Índio era xangozeiro, trabalhava até com Exu. Dôca cortava a umbanda no toré de Zé

Índio”.

Nivaldo, que fora acionado no batismo do primeiro cruzeiro e é um importante

curador da região lembra que,

“Houve um problema na aldeia quando Zé Índio começou a dançar o ritual. Em forma que depois ele foi embora e deixou a aldeia com problema. Como trabalhava o Zé Índio? O Zé Índio era problema de dando passe, era problema ritual, ele trabalhava com jurema e umbanda.

46 “Meu sagrado coração de Jesus, Meus encanto de luz, Dei-me força nossos índios, Pelo amor de Jesus, Haeina- haeina – hoa” (3x) 47 “Minha barca vem, vem de mar afora bate palma dê-lhe viva que as corrente vem agora”

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O trabalho dele era de jurema na umbanda ou dançando como os índios? Ele fazia a dança com os índios”.

Elias, que parece ter “doutrinado” Zé Índio, e foi quem o encaminhou a área,

conhecia muito bem o trabalho deste, e - sabendo da missão que o esperava na Mina

Grande -, Elias após dar o primeiro passo no plano espiritual, encaminha Zé Índio para a

área Kapinawá,

“Mas quando eu finalizo tudo, eu mandei o Zé Índio tomar conta. E digo, você vá e abra a corrente, agora vai dar muito trabalho. É a corrente da jurema? É. Quando ela metesse dentro você vai ver, vai cair muita gente. Foi dito e feito (risos). O pessoal lá me disse que o Zé Índio tinha o trabalho no terreiro e outro reservado onde tinha uma cachaçinha. Ele trabalhava de todo jeito, o Zé Índio trabalhava com umbanda, trabalhava com saravá, os diabo, que quisesse ele trabalhava lá. Dependia do serviço. Ele trabalhava pras esquerdas então? Era, na esquerda bruta. Ele era chegado em dinheiro”.

A história da emergência Kambiwá também tem a participação de Zé Índio como

um articulador e conhecedor do toré, embora a presença de trabalhos reconhecidos como de

esquerda não tiveram permanência longa no toré Kambiwá como teve no toré Kapinawá.

Barbosa (2003: 180) relata que para a área Kambiwá, “a eventual ocorrência de manifestos

entre participantes de um Toré ou de referências conspícuas a entidades associadas aos

cultos afro-brasileiros (tidas como estranhas ao que seria estrito ou específico da tradição

indígena) é considerada indesejável”. Talvez por isso o trabalho de Zé Índio fora rechaçado

pelo grupo Kambiwá. Segundo Luís Pereira, um importante informante de Barbosa (2003),

o pajé Pankararu João Tomaz - que ajudava o grupo Kambiwá a se preparar para a visita

dos representantes do governo - ficaria vindo quinzenalmente e enquanto isso eles

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treinariam o Toré, Anìsio que fora chamado para liderar o ritual passou a missão para Zé

Índio, que era “um xangozeiro”, ainda este mesmo informante dizia,

“Aí seu João me perguntava: ‘E aí, seu Luís?’. Eu respondia: ‘Seu João, é muito diferente!’. ‘Diferente como?’. Eu dizia: ‘Quando o senhor chega aqui, nós canta a noite toda, canta o dia e não cai ninguém! Ninguém vê um manifesto! E quando o homem de Anísio se apresentou aí, o povo só falta torar o pescoço! Ele pula no meio do terreiro, ele joga terra pra riba! Ele açoita, ele roda, e o povo só vê é gente descangotado’. Aí ele respondeu: ‘E o senhor acha que tem diferença?’. E eu respondi: ‘Eu acho que tem, né?’” (Barbosa, 2003: 181).

Assim, João Tomaz aparece no trabalho de Toré comandado por Zé Índio e

promove uma “discussão dentro da ciência” (ibid.), porque Zé Índio teria “‘amarrado a

força das matas no pé do cruzeiro’ e, assim fazendo, ‘ficava tudo nas linhas dele’” (ibid.), o

que impedia o contato com os encantos. Luís Pereira afirma que “Zé Índio amarrou o dono

do mato no pé do cruzeiro. Assim a gente chamava as forças das matas e não vinha porque

‘tava amarrada!’ E não tinha como fazer as visitas... Só dava o outro lado: dos manifestos e

da confusão.” (ibid.). João Tomaz parece ter disputado na força do trabalho a liderança do

Toré, e protagonizou uma disputa espiritual no centro do terreiro de modo a soltar as forças

da mata. “Os que Zé Índio puxou eram todos abrindo os portões do inferno! (Risos) olha,

pelo amor de Deus, puxaram Lúcifer com toda a família! E o velho João era sempre com a

mãe de Deus e os capitão do Ouricurí” (ibid.: 182). O resultado foi o afastamento de Zé

Índio desta atividade e a supervisão ficou por conta mesmo de João Tomaz até a chegada da

primeira equipe de pesquisa da FUNAI.

No caso dos Kapinawá, Zé Índio ficou como pajé enquanto Dôca era o cacique.

Ambos ensinaram aos Kapinawá como trabalharem a mediunidade, como visto, cada qual a

seu modo. E quando tinham problemas espirituais dos quais não davam conta,

encaminhavam principalmente a Elias ou a outros curadores. Durante o período que Zé

Índio e Dôca estiveram na Mina Grande, um processo de limpeza espiritual ocorreu com

muitos mina-grandistas. Incentivados a participarem no toré, os Kapinawá também foram

estimulados a se limparem espiritualmente. Somente a partir destas limpezas é que eles

poderiam de fato realizar um ritual indígena sem atrapalhações (as incorporações que

derrubam). Este processo será descrito nos seus pormenores no capítulo seguinte.

Por hora basta saber que o toré que passou a ser realizado na Mina Grande tinha as

variadas características dos trabalhos tanto de Dôca quanto de Zé Índio, e que eles foram

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“expulsos” da área Kapinawá principalmente porque, lembra Arlindo, “Zé Índio (que era

baixinho e manco de uma perna) ‘mexeu’ com uma mulher casada mãe de 5 filhos, ela se

separou para ir viver com ele. Mesmo assim as coisas não sossegaram e Zé Índio caiu fora

da tribo”. O mesmo se passou com Dôca, que já idoso arranjou uma nova mulher na área

Kapinawá, e com ela teve filhos. O que me pareceu pelas entrevistas é que depois de um

tempo, os Kapinawá mina-grandistas ficaram chateados com o que acharam que fosse uma

espécie de desrespeito da parte dos dois índios de fora de arranjarem mulher nova e

confusão, mesmo porque o próprio Zé Índio não se contentou apenas com uma mulher.

Além do fato de Zé Índio ter ficado preso três meses em Buíque depois de participar do

violento conflito no Catimbau que acabou desestruturando o líder da grilagem das terras da

Mina Grande. E também porque os Kapinawá acharam que os dois se alçaram ao

monopólio do poder, e com isso criaram antagonistas.

Zé índio passou dois anos como pajé e transferiu o cargo para João Salu

(Salustiano), Dôca ficou um pouco mais de tempo, mas depois passou o cargo para Santo

de Vidal (João Soares Monteiro). “Quem ficou segurando o ritual? Foi mãe, Florinda , Zé

de Caetano, outras; cacique era o Santo, o pajé era tio João Salu, irmão de mãe” (Lilia).

Arlindo lembra que,

“Antes nós brincava direto com Zé Índio, e depois dele continuamos fazendo depois com Salu e João Soares que era o cacique. O Salu não entendia de nada, só tinha nome de pajé. Quem fazia o toré? Era com as graças de Deus mesmo só... Não tinha nenhum enfrentante forte? Tinha nós dois mesmo (Arlindo e Dôra), até que cresceram a ambição e começaram a desentender do cacique, porque ele era quem mais entendia de toré. Eu incentivava o povo pra ir pro cruzeiro, mas em vez de ir pro toré no sábado o povo ia pro terreiro lá de casa; nós brincava lá em casa, eu dizia pro povo ir lá pro toré.”.

Embora o toré tivesse a atenção de Antônio do Quiri d’Alho, que o fazia

constantemente na sua aldeia e algumas vezes na Mina Grande,- “Pra toré era o Antônio,

nós ia pra lá ele vinha pra cá de quinze em quinze dias” (Lilia). E também de Cazuza, que

chegou a realizá-lo na Mina Grande, segundo Sampaio (1994: 18),

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“Por falta de especialistas qualificados e por se ter tornado um foco de brigas, o Toré Kapinawá deixou longamente de ser praticado com a regularidade necessária, ocasionando uma certa insegurança emocional e mesmo sentimentos de culpa e fracasso em muitos. Uma solução ainda insatisfatória foi a de alçar o Sr. Cazuza, de Santa Rosa, à condição de ‘pajé de todos os kapinawá’, embora este permaneça a maior parte do tempo na longínqua -especialmente para a Mina Grande- Ibimirim”.

O toré Kapinawá de fato parece ter se resolvido na orientação que Arlindo impôs. É

ele que até hoje leva o ritual com o auxílio de sua esposa Dôra. Esta é a parte que quero

detalhar adiante, de modo a permitir um olhar do ritual tal como é feito hoje. Apoiando-me

na representação de Arlindo e Dôra de um ritual ocorrido na Furna dos Caboclos. Para isso,

não devo esquecer que,

“quinze anos após ‘levantado’ o ‘cruzeiro da jurema’ na ‘aldeia Kapinawá’, as representações em torno do ‘ser do índio’ permanecem - talvez hoje mais que nunca - em franco processo de elaboração, em todo o território indígena, na intensa busca de soluções organizativas e cosmológicas adequadas a todo um contexto ainda em plena revolução: qual é mesmo ‘a lei do índio’? Ou: como fazer para ‘trabalhar em aldeia’? São seguramente indagações repetidamente feitas no íntimo de muitos, o que comporta inclusive resoluções pessoais e idiossincráticas” (Sampaio, 1994: 18).

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Capítulo II - O “Culto de Jurema”

“É... É um negócio... meio... desmantelado, só não é pra quem

entende, quem não entende né?! Quebra no pau”.

(Elias de Ibimirim, sobre o pluralismo religioso de seu trabalho)

Que sistema religioso seguem os Kapinawá? O toré? O toré é uma religião? Se for uma

religião, qual seu conteúdo? Esse conteúdo é comum a todos os torés? Se como visto mais

atrás, tanto Dôca quanto Zé Índio passaram a realizar os trabalhos na área Kapinawá, e

segundo revelam os entrevistados, eles guardavam nítidas diferenças entre si, podendo-se

mesmo pensá-los como opostos - na perspectiva de um “fundamentalismo” (Dôca) versos

um “hibridismo” (Zé Índio) (Barbosa: 2003). Essas questões podem levar a uma confusão

com relação ao que de fato constitui o universo religioso do toré Kapinawá. Para evitar

conflitos com termos e conceitos que podem, e evidentemente acabam levando a uma

reificação de categorias nativas (por exemplo, toré, umbanda) que não teriam valor

analítico neste tipo de situação social, recupero a categoria “cultos de jurema” elaborada

por Nascimento (s/d.), e a noção de “complexo da jurema” elaborada por Mota & Barros

(1990; 2002)48, e Nascimento (1994; s/d.).

Para Mota & Barros (2002), a noção de “complexo da jurema” é forjada a partir de

uma perspectiva histórica da formação de um determinado campo religioso nordestino.

Segundo os mesmos,

48 MOTA, C. N. & BARROS, J. F. P. de. Jurema: Black-Indigenous Drama and Representation. In: Etnobiology: Implications and Aplications. Vol. 2. Belém, Museu Goeldi, 1990. “Mota e Barros (1990: 171) definem o ‘complexo da jurema como um grupo de representações que não apenas inclui plantas chamadas de Jurema, mas também as concepções que existem em volta delas. Esse complexo é a demonstração da mistura afro-indígena no Brasil e da troca entre elas em termos de seus sistemas de crença e cura, sistemas de classificação botânica, representações e epistemologia” (Grünewald, 2002: 102, nota 10).

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“No Brasil atual sobrevivem sistemas de crença diversos, provenientes das culturas que integram a formação social brasileira, como a africana e a indígena. Co-partícipes de nossa história, negros e indígenas brasileiros tiveram seu momento de encontro, conflito e de troca.(...) Neste trabalho, reportamo-nos a um aspecto específico do entrelaçamento dessas culturas, focalizando no que chamamos de ‘complexo da Jurema’ (Mota & Barros, 1990, 1995): um conjunto de representações que envolvem concretamente plantas chamadas Jurema e as concepções que sobre elas recaem. (...) Apresentamos o complexo da Jurema como parte da ideologia indígena e africana, e como um fenômeno social que resistiu às incursões da dominação européia, subordinando-se à mesma, sem, no entanto, perder suas características e unindo elementos dos rituais indígenas e negros, que se adaptavam às condições crescentes de urbanização e envolvimento na sociedade nacional brasileira”. Mota & Barros (2002: 19)

Neste espaço social,

“Os sistemas de crença representados no complexo da Jurema foram formas de resistência cultural e estratégia de sobrevivência, tanto no nível ideológico como no econômico. Ao confrontarem-se, desde o século XVI, entre batalhas, onde ora eram inimigos, ora eram solidários, negros e índios brasileiros foram reformulando suas táticas de sobrevivência, emprestando seu conhecimento ancestral sobre o uso do meio-ambiente. (...) ao usarem suas plantas no contexto mágico-religioso, negros e índios as integraram em um sistema cheio de significação cultural, ao mesmo tempo utilitário e simbólico” (ibid.: 20).

O etnobotânico Ulysses P. de Albuquerque (2002: 177), utilizando-se da definição de

Mota & Barros reforça o quadro que estou montando,

“A ‘jurema’, como árvore sagrada, detém toda uma mítica e ganha todo um simbolismo resultante das representações que porta. Representações essas geradas pelos grupos indígenas, difundidas e repensadas nos cultos afro-brasileiros. Mota & Barros (1990) definem, com base nisso, o complexo da jurema, como o grupo de representações e concepções que envolvem as plantas conhecidas por este vernáculo. (...) O acontecer da jurema nas religiões afro-brasileiras é inequivocamente um traço forte da influência ameríndia. (...) A ‘jurema’, ao nosso ver, define o que é da terra, o que é americano, e o que se americanizou. Desse modo, a sua presença nas religiões afro-brasileiras representa a divisão com cessão ritual de um espaço pertencente aos deuses africanos para os deuses da terra”.

Do mesmo modo, Nascimento (1994; s/d.), constrói um termo semelhante a partir

de sua própria pesquisa. Em Nascimento (s/d.:) o autor infere a partir do questionamento da

categoria religiosa soteropolitana de “candomblé de caboclo”, a existência de um campo

religioso pouco referido na antropologia brasileira. De que forma ele o faz? Primeiro,

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“pode-se muito bem perguntar, com toda legitimidade, se a presença do culto ao caboclo nos candomblés soteropolitanos, em praticamente todos os terreiros da cidade, ao lado do emprego de uma categoria como ‘candomblé de caboclo’, tão amplamente usada pelo povo-de-santo de Salvador, não conformaria um conjunto amplo de fatos indicativos de um encontro de variedades religiosas e rituais, concreta e historicamente ocorrido no processo de composição demográfica e étnica da cidade” (Nascimento, s/d.: 04).

Se o povo-de-santo de Salvador reverência em quase todos os terreiros os “caboclos”,

“Ora, por que não imaginar um encontro histórico, se não de etnias perfeitamente constituídas e delineadas, pelo menos de etnicidades em seus respectivos processos de constituição simbólico – organizacionais? De um lado, teríamos uma etnicidade indígena latente (...) vinda do sertão nordestino para os centros urbanos, (...) juntamente com os seus portadores, os ‘caboclos’. De outro, teríamos uma etnicidade ‘negra’, forjada no seio da escravidão” (ibid.: 05)

Deste modo, poderia-se imaginar a existência de três vertentes que constituíram, a

partir do século XIX, o que se chama em Salvador de “candomblé de caboclo”,

– e, na verdade, em muitos outros processos análogos que se deram em outras partes da região nordeste também. (...) 1) índios remanescentes do ‘encontro missionário’, que aqui chamamos de ‘caboclos’ (...) 2) populações negras – inclusive, ou, talvez principalmente, aquilombadas – que já mantinham contatos estreitos no campo, desde muito cedo, com os assim caracterizados ‘caboclos’. (...) 3) o povo-de-santo de Salvador, basicamente jejes e nagôs” (ibid.: 06)

Assim, é imperioso questionar se,

“a própria introdução de práticas mágico-religiosas características dos índios do sertão nordestino no interior do campo religioso afro-brasileiro de Salvador (...) não teria exigido, desde o princípio e de modo progressivamente mais intenso, sua conformação às exigências de uma clientela urbana cujas expectativas estariam pré-conformadas por uma experiência religiosa prévia?” (ibid.: 08)

Se existem candomblés que são de caboclo, onde está o “caboclo”? Que presença

histórica é esquecida ao imaginar que por se inserirem num espaço social já delimitado por

um campo religioso rico, nos centros urbanos, os cultos aos caboclos são simplesmente

desmembrados, desconfigurados? Para Nascimento (ibid.: 09),

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“Trata-se de problematizar o entendimento do campo religioso afro-brasileiro não como um fim em si mesmo, mas para, ao fazê-lo, ressaltar suas conexões com um outro campo religioso, praticamente desconhecido da antropologia brasileira. (...) Trata-se, esse é o ponto, de expor a existência de um campo religioso especificamente indígena, o qual abrange e interrelaciona rituais praticados por boa parte dos povos indígenas, (...) habitantes da região nordeste do Brasil. Campo esse que, quando analisado conjuntamente com todo um universo de rituais urbanos e rurais que estão, numa perspectiva histórica, sob sua influência e alcance, mas têm sido tradicionalmente entendidos como afetos ao campo dito afro-brasileiro, constitui o que achamos por bem nomear de ‘complexo ritual da Jurema’” (grifo no original).

Assim, o autor detecta a presença de um campo religioso indígena que esteve

historicamente unido ao que usualmente é expresso pela ampla categoria (nativa e

academicamente reificada) de cultos afro-brasileiros. Índios e negros, como sujeitos sociais

que compartilharam, no Nordeste, destinos comuns (por exemplo, os quilombos, os

aldeamentos, e mesmo núcleos populacionais mistos), hoje ainda identificáveis,

construíram neste trajeto uma comunicação, uma linguagem ritual que possui muitos

elementos comuns, onde, de fato, a presença da jurema como símbolo religioso49 (se não

central, também não periférico) pode levar a categorização de um conceito mais legível. Já

que a jurema, como símbolo religioso, é em qualquer lugar em que apareça sempre referido

ao universo indígena, deste modo,

“todas as tradições tidas como ‘afro-brasileiras’, (...) nas quais apareça qualquer referência à jurema, não necessariamente a planta em si, mas a palavra, um ícone, uma entidade espiritual, (...) devem ser reportadas, ao menos historicamente, ao conjunto dos rituais dos povos indígenas do nordeste” (ibid.: 14).

Nascimento (ibid.: 16) imagina que no toré, “seus elementos constituintes e categorias

cognitivas denunciam mais claramente sua comunicação com o campo religioso afro-

brasileiro”. Mas não no sentido de puros empréstimos de elementos deste universo

49 “o que também podemos afirmar de imediato (...) é a enorme difusão desse símbolo, a Jurema, por uma variedade de cultos espalhados por todo o nordeste rural, não explicitamente vinculados a uma etnicidade indígena particular, mas presentes, hoje, nos grandes centros urbanos, assim como em várias cidades de pequeno e médio porte da região” (Nascimento, s/d.: 11).

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religioso, já que categorias como “médium”, “aparelho”, “coisa ruim”, “espírito” (de

mortos), “mesa”, ou “incorporar”, são de uso comum tanto no espaço religioso indígena

quanto no propriamente afro-brasileiro,

“a presença (dessas) categorias poderia, por um lado, levar-nos a pensar em, simplesmente, uma influência direta sobre o toré, de fora pra dentro, vinda do que já se chamou de ‘baixo espiritismo’ (cf. Andrade, 1983), do kardecismo ou da umbanda, pensamos, por outro lado, que tais expressões antes representam, de modo mais fundamental, uma atualização léxica construída no contato e comunicação que se vem estabelecendo com estas formas religiosas ao longo deste século (XX), quando as mesmas floresceram e difundiu-se seu vocabulário” (ibid.: 18).

Já que os elementos diacríticos indígenas nordestinos reduzem-se, na maioria das

áreas, a características culturais construídas na esfera ritual,

“é aí mesmo que vamos encontrar as categorias comparáveis que organizarão as oposições articuladamente, numa espécie de gramática interétnica. Assim, se as ‘mestras’ ‘incorporam’, entretanto não incorporam ‘espíritos de mortos’ – como acontece ‘nessas coisas de negro’, como referem-se, por vezes, aos xangôs ou aos centros espíritas -, mas somente ‘encantados’, isto é, entidades ‘vivas’, que já são da natureza, habitantes dos olhos d’água, das matas, do fundo dos rios, etc., ou que são antepassados, sábios curadores, que pela sua ‘ciência’ ‘encantaram-se’ sem passar pela experiência da morte. De fato, boa parte da ‘ciência do índio’ está em saber afastar essas ‘coisa ruim’, precisamente o que representa a não-indianidade. Desse modo, verifica-se (...)que um campo religioso indígena encontra-se nitidamente delineado” (ibid.: 18)

Se assim entendido, nesta religiosidade indígena, elementos de cultura deste próprio campo

religioso fornecem os meios de construção de fronteiras, que aqui são entendidas como

étnicas,

“percebe-se com clareza que esse campo religioso indígena existente na região nordeste, particularmente na área que inclui o norte da Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco e Paraíba, está intimamente conectado com o campo religioso maior da sociedade nacional envolvente, particularmente com aquele seu segmento que designamos de campo afro-brasileiro, cujas categorias de entendimento da própria experiência religiosa são homólogas, porque construídas em uma comunicação recíproca, e são, por isso mesmo, facilmente oponíveis em um sistema de distinções” (ibid.: 19).

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Dentro deste sistema, negros e indígenas dividem categorias de entendimento

religiosas comuns, e mesmo uma linguagem semelhante. Nestes mesmos conjuntos de

representações são construídas as categorias de oposição, que embora recorram a uma

linguagem franca, a fazem no sentido de tornar legível uma fronteira, mais ou menos fluída

dependendo do caso. Deste modo, Nascimento realiza a crítica à algumas denominações

nativas (muitas vezes reificas por pesquisadores) que entende os “cultos aos caboclos”

como uma derivação dos cultos afro-brasileiros, para não operar analiticamente com

categorias como estas, o autor constrói a categoria analítica “cultos de jurema”50,

“se classificamos todas essas formas rituais como ‘cultos de jurema’ – tomando-se o cuidado, insistimos, para não reificar também essa categoria (sob pena de ofuscar as muitas diferenças entre umas e outras variedades) -, e considerando-os como formas rituais pertencentes a uma unidade de análise abrangente, o ‘complexo ritual da Jurema’, teríamos a vantagem de poder analisar a todos esses cultos segundo critérios comuns, baseados tanto em aspectos empíricos, quanto em escolhas analíticas” (ibid.: 22).

Com esta categoria, que pretende abranger todos os cultos religiosos nas quais a

jurema se integra, e entendendo o “complexo da jurema” como o quadro maior no qual

uma espécie de sincretismo operou (e opera) podemos passar por cima da hipótese de

“contaminação” da cultura indígena pela chamada de afro-brasileira. Como categoria

analítica, e não nativa, “cultos de jurema” não é uma religião, mas sim todo o conjunto de

formas religiosas que utilizam este símbolo: a jurema. A partir desta constatação percebo o

toré Kapinawá como um espaço social que utiliza elementos religiosos presentes neste

grande quadro do “complexo da jurema” -, que se configura de um modo específico como

um “culto de jurema” -, e que retira daí categorias religiosas que pretendem revelar uma

religiosidade especificamente indígena. Por isso, Nascimento (ibid.: 22) acredita que,

50 “‘cultos de jurema’. Essa categoria serviria para agrupar – (...) – todos os conjuntos de formas rituais acima mencionados que, no momento, se encontram agrupados sob os rótulos de outros conjuntos rituais, articulados entre si, respectivamente, como candomblés, xangôs, catimbós, etc. (...) os ‘torés misturados’ de Alagoas e Sergipe” (Nascimento, s/d.: 21). “Mata (1992) descreve alguns dos torés dançados pelos participantes dos cultos à Jurema. Estes cantos e danças se apresentam em sincretismo com as práticas afro-brasileiras e o catolicismo europeu. Tal sincretismo se revela nos cantos e nas imagens de santos e personagens sagrados que decoram as casa indígenas. Entre os santos cultuados pelos Cariri-Xocó estão os ‘pretos velhos’ da Umbanda e do candomblé de Angola, onde também a Jurema é constantemente louvada” (Mota & Barros, 2002: 40).

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“Pautados, por isso mesmo, no pressuposto de uma origem comum, poder-se-ía verificar, assim, em que medida essas semelhanças e diferenças nos falam de um todo maior, o qual, precisamente, poderia revelar uma lógica subjacente, a guiar vários pressupostos diferentes de ressignificação e de articulação simbólicas em diferentes contextos sócio-culturais. E de onde poderia emergir, talvez, uma outra teoria do sincretismo, não mais em termos exclusivamente culturalistas, mas articulada a uma outra teoria do sincretismo. Em que pese estabelecer, para cada caso, as conexões entre o campo político que subjaz e confere sentido ao fenômeno étnico, onde quer que ocorra, e o campo religioso que freqüentemente define a linguagem na qual essa etnicidade se expressa. Campos que, embora interdependentes, apresentam certa autonomia um em relação ao outro, possuindo determinações intrínsecas algo distintas, mas cujo traçado, em cada caso, talvez possa estabelecer o porquê de certas escolhas culturais”.

O que é realmente introduzido na área Kapinawá com a performance do toré? Ora,

um tipo de “culto de jurema”, que não é propriamente o toré com mistura de elementos da

umbanda, mas sim a utilização, num espaço religioso que tem a jurema como símbolo

sagrado, de elementos religiosos que estão unidos a muito tempo e que inclusive tem uma

origem comum. Por isso, os “cultos de jurema” seriam práticas religiosas que teriam a

jurema como símbolo dos quais seus conteúdos seriam adquiridos dentro deste espaço

social religioso nordestino que a noção de “complexo da jurema” engloba.

Embora denominações nativas não devam ser esquecidas (por exemplo, “toré”,

“umbanda”, etc.), usá-las em si mesmas as reificaria, recompondo uma pretensa “pureza”

versos “sincretismo”. Prefiro trabalhar com o conceito analítico de “cultos de jurema”

(Nascimento, s/d.) porque nele os elementos religiosos presentes no toré Kapinawá não são

entendidos como elementos “sincretizados” – numa perspectiva culturalista -, mas sim

como um conjunto de elementos religiosos, retirados de dentro de um quadro de referência,

- o “complexo da jurema” -, e elevados à condição de étnicos dentro de um determinado

tipo de “culto de jurema” – no caso o toré Kapinawá. Ou seja, toma-se um conjunto de

elementos religiosos, incluídos no “complexo da jurema”, como sinais diacríticos (Barth,

1998) na produção de uma fronteira étnica, opondo categorias culturais comuns a este

campo religioso na constituição de opostos (é o caso das “atrapalhações” reconhecidas

como provenientes do universo “umbandístico”). De dentro desta linguagem religiosa

comum (franca), que o “complexo da jurema” engloba, seriam retirados os elementos de

cultura que permitem a visualização de uma fronteira étnica, de uma religiosidade indígena.

Assim, numa linguagem comum a muitos tipos de “culto de jurema”, seriam construídos,

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em oposição, neste mesmo campo, os elementos diacríticos estrategicamente utilizados para

a afirmação étnica, entre uma religiosidade especificamente indígena e outra afro-brasileira.

Por isso, ao se falar de “umbanda”51 neste texto, deve-se reconhecer que ela é,

“uma religião sabidamente constituída a partir de várias tradições religiosas, e na qual aparecem, embora de modo bem mais discreto, referências à Jurema (...) as semelhanças formais podem redundar tanto de uma origem comum quanto de um processo de convergência – em função, por exemplo, das implicações de um campo religioso comum. Todavia não é impensável, ou contraditória, inclusive a coexistência de ambos os processos, pelo menos em princípio” (ibid.: 12).

Pinto (1995, apud Nascimento, s/d.: 12, nota 26) revela que nos ‘cultos de jurema’

associados aos xangôs em Recife, de fato, é comum a coexistência de dois pejis distintos,

mas com igual destaque e, às vezes, um ao lado do outro, um para as entidades da jurema e

outro para os orixás”. Eu mesmo (Albuquerque, 2002a: 55-68) observei a presença de um

espaço religioso para a jurema em terreiros de umbanda na cidade de Campina Grande. No

caso do “Terreiro de Umbanda Oxum Talademi”, há um altar para os Santos/Orixás, dentro

de uma sala constantemente de portas fechadas, e um altar da jurema visível no espaço

aberto do terreiro. Neste tipo de umbanda, há uma divisão entre os Santos e a jurema, com

um papel hierárquico bem visível no qual os Santos são a representação do “puro/celeste” e

os seres da jurema do “impuro/humano”. No espaço da jurema estão os mestres, os

caboclos, os Canindé (índios crianças), as pombas-gira e os pretos velhos. Deste modo,

entendo que,

“A umbanda encontra no culto da jurema o lugar dos índios, dos pretos-velhos, do povo em si. É a jurema cultuada pelos índios brabos, pelos escravos e pelo povo caboclo das primeiras cidades. São estes personagens que a jurema representa na umbanda. São estes os seres que a umbanda reconhece como fundadores do elemento brasileiro específico da crença, a jurema. A jurema é a brasilidade do culto, é ela que recebe os primeiros habitantes do país. Todos os seres, os espíritos que a jurema traz estão em processo de evolução espiritual, a jurema trabalha com os seres mais inclinados às coisas mundanas. São ainda participantes dos desejos humanos, da carne, do conforto, da briga, do conflito, do amor desmedido, são amantes das beberagens, da embriagues, da alteração de consciência, são finalmente aqueles que trazem como obrigação a beberagem da jurema, o momento mais dionisíaco do culto umbandista, a distribuição ritual da bebida” (Albuquerque, 2002a: 66).

51 A palavra umbanda grafada com as aspas se refere à categoria nativa.

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Para Grünewald (2003: 11-12), referindo-se ao mesmo espaço religioso acima (o

“Terreiro de Umbanda Oxum Talademi”), “o mito da jurema como árvore que deu proteção

a Jesus é incorporado e a planta passa a significar uma árvore dotada do sangue do Cristo.

Apesar disso, a jurema representa a parte indígena da cosmologia umbandista que acolhe

também entidades africanas e brasileiras”. Ulysses P. de Albuquerque (2002: 177) acredita

também que, “A ‘jurema’, ao nosso ver, define o que é da terra, o que é americano, e o que

se americanizou. Desse modo, a sua presença nas religiões afro-brasileiras representa a

divisão com cessão ritual de um espaço pertencente aos deuses africanos para os deuses da

terra”.52 Assim, a umbanda tal como demonstrado, apresenta diferenças entre si, variando

sua estrutura ritual e o conjunto de seus símbolos religiosos. Em Pernambuco e Paraíba é

latente a presença do espaço religioso da jurema nos terreiros de umbanda, e muito

semelhantes são as referências àquilo que denominei acima de a brasilidade do culto.

Se de dentro deste “complexo da jurema”, um determinado tipo de “culto de

jurema”, o toré Kapinawá, retira categorias lingüísticas de oposição, as categorias retiradas

deste conjunto de representações religiosas podem apresentar as estratégias de manipulação

do étnico. As “perturbações”, como espíritos de mortos, relacionados a “coisa de

umbanda”, por exemplo53, são reveladores de uma etnicidade Kapinawá, acionada neste

espaço religioso que é o toré, por isso as “perturbações” acabam ganhando alto status na

vida tribal54. Isso se revela na necessidade dos mina-grandistas de fazerem suas limpezas

espirituais, realizadas tanto dentro como fora da área Kapinawá. Do lado de “fora” se

apresenta toda uma “comunidade religiosa” maior (os curandeiros), na qual a “possessão” é

“tratada”, “curada”.

52 Para um outro espaço, o candomblé Angola, Mota & Barros (2002: 32) detectam que, “no sistema classificatório banto (os santos contrapõem-se a)os ‘encantados’, ou espíritos de índios que também, segundo nos informam, ‘habitam as aldeias dos terreiros de Angola’”, e mais adiante, “É nos candomblés de Angola que, ao terminarem os louvores aos Orixás africanos, ouve-se os toques dos atabaques, saudando os espíritos dos caboclos chegando das aldeias brasileiras míticas ou de Aruanda52” (ibid.: 40). 53 Também são concebidas categorias de distinção opostas não exclusivamente ao que se chama de “umbanda”, mas também a aspectos psicológicos, como por exemplo, referências à fé versos o ceticismo (ver adiante).

54 “se as ‘mestras’ ‘incorporam’, entretanto não incorporam ‘espíritos de mortos’ – como acontece ‘nessas coisas de negro’, como referem-se, por vezes, aos xangôs ou aos centros espíritas (...) De fato, boa parte da ‘ciência do índio’ está em saber afastar essas ‘coisa ruim’, precisamente o que representa a não-indianidade” (Nascimento, s/d.: 18), a não-indianidade das “perturbações” contra a comunidade ritual, no caso Kapinawá.

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Estas curas aparecem como um mecanismo de afirmação étnica, cristalizado na

categoria nativa “doutrina”. Essa limpezas portanto foram acionadas a partir da constituição

do espaço torécoco, e realizadas por curadores com diferentes visões do “culto de jurema”,

é o que se verá pela descrição dos espaços religiosos da cura, através do exemplo dos dois

curadores mais citados em minhas entrevistas: Elias de Ibimirim e Nivaldo de Tupanatinga.

Neste lugar que denomino de espaços religiosos da cura, estão já presentes as

mesmas distinções de caráter étnico que encontrei no discurso Kapinawá sobre o toré.

Categorias étnicas são construídas nestes espaços religiosos de cura a partir da

manipulação de uma distinção que se organiza internamente a este universo do “complexo

da jurema”. Estes curadores refletem a condição histórica dos símbolos religiosos e suas

implicações comuns e distinções. O que caracteriza aquilo de identifico como uma

categoria étnica de afirmação de uma indianidade é a distinção, dentro deste quadro

religioso, de uma religiosidade indígena, que não necessariamente existe separada de outros

elementos religiosos, muito pelo contrário, é a partir da constatação histórica de suas

interdependências que são organizados, não obrigatoriamente no mesmo sentido, uma

representação da condição do indígena dentro deste espaço social religioso nordestino.

Como categoria de afirmação étnica, entendo o termo “doutrina” como o mais

importante. É para que se possa ter “doutrina” que são realizadas as curas. Para “limparem-

se”, ou seja, organizar simbolicamente uma substância indígena, que “estava encantada,

presa”, os Kapinawá mina-grandistas procuram curadores. Como na aldeia não se tinha

condições suficientes para regularizar, por assim dizer, a situação espiritual, muitas pessoas

acabaram recorrendo ao que já sabiam de antemão representar uma possível cura, alguém

para os “doutrinar”. Encontraram então vários curadores, dois deles assumem importância

maior, porque também tiveram alguma relação política com a formação da área Kapinawá.

Entrevistei Elias de Ibimirim e Nivaldo de Tupanatinga, de nossas conversas extraí algumas

informações e passo agora a uma pequena nota destes dois espaços religiosos da cura.

Antes, porém, passo aqui a definir trabalho55 como sendo tanto um espaço

religioso, - uma casa, um terreiro -, quanto sua atividade nele, e ainda como uma categoria

nativa para o que mais acima classifiquei, a partir de Nascimento (s/d.), como “culto de

55 “‘Trabalhar’ significa, para os cultos afro-brasileiros, ‘qualquer atuação dos médiuns em estado de possessão, no terreiro ou fora dele” (Velho, 1977 apud Mota & Barros, 2002: 55, nota 14).

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jurema”56. Já curandeiro também é uma categoria nativa que engloba a função e a atividade

de pessoas que dirigem algum tipo de trabalho – algum tipo de “culto de jurema” – onde

se tem como objetivo principal reconstituir um self, ou seja, produzir através da

manipulação de elementos religiosos incluídos no “complexo da jurema” um processo de

restauração da saúde física, emocional e (ou) espiritual.

Dois curadores

Elias de Ibimirim

Elias de Ibimirim nasceu na área indígena Xucuru (Pesqueira - PE). Tem como parente

famoso Chicão Xucuru57 (as avós dos dois eram irmãs). Nesta área indígena ele viveu até os

doze anos, idade em que começou a curar pessoas. Elias afirma que sua “doutrina” não foi

ensinada por ninguém, ele “já nasceu pronto”. Pergunto a ele sobre o toré que assisti em

Boa Vista, sob sua direção,

“Todo ano em setembro tem aquela festa mesmo (festa de Cosme e Damião58)? Mas todo ritual que tem lá é de índio? É, é todo, lá não pode entrar ritual de candomblé nem Xangô. O senhor não trabalha com essas coisas não? Deus me livre, agora tem um documento propositado pra lutar com tudo porque da vez que eu tô sentado aqui que entra um idioma aqui de um xangozeiro, eu tenho que meter a cara

56 Há vários tipos de trabalho quanto de “cultos de jurema”, prefiro utilizar no entanto este último para evitar em algum momento reificar o termo nativo em alguma classificação mais interessada. Há, por exemplo, o trabalho do cacique José Bernardo, de cunho próprio, diferente daquele organizado pelo grupo de toré. Aparentemente seu pai passou o modo de realizá-lo, são “linhas” próprias que caracterizam o seu trabalho. Numa segunda e terceira vezes tentei entrevistar o cacique sobre este assunto, ele desmentiu que fazia algum tipo de trabalho, contradizendo portanto as poucas informações que deu sobre isso na nossa primeira entrevista. 57 O cacique Xucuru, símbolo da resistência indígena no Nordeste, assassinado por posseiros em 20/05/1998. 58 A festa de Cosme e Damião ocorre no terreiro ao lado da casa onde Elias realiza os trabalhos de “mesa”, em Boa Vista onde mora, vizinho à cidade de Ibimirim.

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dentro, tenho que retirar. Tá vendo aí (mostra o Diploma da Federação Espírita Pai Oxalá, da qual é sócio contribuinte, datada de 2002). Essa doutrina do senhor é só de índio? É só. O senhor trabalha com outros guias também? Trabalho. Mestre, preto-velho também? Também. A questão é precisar. Mas Exu não? Ou também? Num pode! Num pode mexer com Exu. Quais são as linhas que o índio pode trabalhar? Canindé? Canindé é a pura jurema, aquilo que você viu lá (na festa de Cosme e Damião). Só trabalha com os guias da linha da jurema? Só pode lutar com aquilo ali. Padre Cícero também? Tá na linha da jurema? São Cosme e São Damião? É... É um negócio... meio ... desmantelado, só não é pra quem entende, quem não entende né?! Quebra no pau. O índio trabalha com essa linha da jurema que a umbanda trabalha? Não! Mas tem o preto velho... A umbanda trabalha com a jurema, mas a jurema você trabalha com ela pelo guia dela, só por meio do guia, se não tiver o guia se desmantela ligeirinho. O guia da jurema é que mantém tudo ali, porque se baixar um esquerdo maléfico a jurema derruba. O senhor não brinca terreiro de bater tambor? Deus me livre! Mas o senhor incorpora? Não, incorporo não, eu não vou receber um espírito mau intencionado, que não sei o que fez por ai, sou vidente, mas pra recebê-lo...

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Os mestres da furna, os índios, o senhor incorpora? Qualquer um. Preto velho também? Qualquer um. O preto velho tem ligação com os índios? Não! O senhor trabalha outra parte sem ser os índios? Espiritual qualquer uma que eu precisar, pode ser preto velho, pode ser um Exu que eu precisar, quem quer que eu queira, se precisar... Trabalho com Ogum; Oxalá, tem ligação com os índios, Oxalá tudo é da África. Então o índio pode trabalhar com eles? Se precisar pode. Os pretos velhos estão na linha da jurema? Não! Fora. Quem tá na linha da jurema? É só o índio mesmo! Todo trabalho do senhor é com toante, mas se precisar canta ponto de umbanda também? Canta, tudo, eu sei de todo de fundagem, se precisar... O senhor já freqüentou terreiro de umbanda? Já!59”. Parece bastante visível uma conceituação de seu trabalho como um trabalho

indígena. Dentro de um quadro religioso complexo, plural, Elias cristaliza uma “linha”

indígena que se entrelaça num conjunto de símbolos religiosos comuns a uma linguagem

que identifiquei como própria do quadro de referência do “complexo da jurema”. No seu

trabalho, Elias utiliza-se de todo o conhecimento “espiritualista” que detém, e não nega

59 Aqui Elias me conta algumas histórias bastante impressionantes sobre suas passagens e exibições de mediunidade em terreiros de Xangô no Recife.

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este conhecimento, mas pelo contrário, sua posse é condição para impor por contraposição

uma religiosidade indígena visível. A “linha” da jurema, que parece convocar a uma

religiosidade indígena, se contrapõem a um conjunto entendido como “afro-brasileiro”.

Parece que o termo concentra uma “religião indígena”, mas ela não se constrói sem

manipular o que, neste espaço dividido, acaba se contrapondo. A “linha” indígena é que

governa o espaço religioso da cura em Elias de Ibimirim, ela governa ainda as outras

“linhas” presentes neste espaço, que sendo inferiores (“de bater tambor”, afro-brasileira,

por exemplo) são recuperadas em determinados momentos para realizar uma limpeza,

através de sua manipulação, em favor de alguém, eliminando o que, visto como o “mal”, ou

“sujo”, impõem barreiras à constituição de uma “doutrina”, da pratica religiosa indígena.

Neste espaço religioso louva-se uma indianidade, nunca esta outra “linha” não

indígena. Assim, mesmo que aparentemente haja um sincretismo, como, por exemplo, na

expressão, “Oxalá, tem ligação com os índios”, tal sincretismo não deve ser visto como a

naturalização da mistura histórica de elementos religiosos, mas sim a manipulação, do

ponto de vista de uma organização étnica de elementos religiosos, dispostos num espaço

social religioso comum, o “complexo da jurema”, na cristalização de uma religiosidade

especificamente indígena. Elementos de cultura não respondem por si mesmos, eles são

organizados estrategicamente na elaboração de fronteiras étnicas, que não necessariamente

corroboram com quadros de referência culturalista. O índio, “só pode lutar com aquilo”,

“lutar” deve ser entendido por conhecer com, trabalhar com, e “aquilo” é exatamente a

“linha” da jurema, a “linha” indígena.

Nivaldo de Tupanatinga

Nivaldo de Tupanatinga nasceu na Queimada da Onça, no município de Buíque - PE. Sua

avó nasceu na Mina Grande. Nivaldo mora já há muito tempo em Tupanatinga, cidade

vizinha a Buíque, onde é vereador num segundo mandato. Nivaldo conheceu a “ciência do

índio” pela avó, mas que não o “doutrinou”, porque sua “doutrina”, tal como a de Elias,

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veio da “natureza”, sem ser ensinada por ninguém. Segundo Nivaldo, “o meu trabalho é

uma parte doutrina, doutrinar”, e, “o trabalho de Seu Elias é diferente do meu porque ele

trabalha com danças mas não bate o tambor”. Nivaldo afirma que não bate o tambor

somente porque o espaço de seu terreiro é “muito pequeno”. Como ficará mais claro a

seguir, Nivaldo tem uma melhor impressão sobre a “umbanda” do que Elias, e inclusive a

concebe de forma diferente. Se, entretanto, “onde bate bumbo chama candomblé, o

trabalho do índio chama-se ciência”, e, “aqui eu só recebo as pessoas pra curar, doutrino

aqui quando chega um problema. As pessoas que são médiuns, de origem indiana, doutrino

também”; de que forma Nivaldo concebe o espaço religioso da cura do qual é o dirigente?

Primeiro é curioso reconhecer seu conhecimento sobre a variedade de trabalhos,

“Já assisti trabalho de candomblé, de umbanda, já assisti a trabalho de Allan Kardecs60, só as doutrinas. Já fui casa de umbanda visitar, já trabalhei em São Paulo, na Bahia, no Maranhão, na Paraíba (Umbuzeiro, Monteiro). Eu tenho a carteira de sócio, pra trabalhar no Brasil (mostra o Diploma da Confederação Espírita Social dos Cultos Afro Aborígines do Estado de Pernambuco, datado de 1971), antes, porque hoje não precisa mais, hoje eu sou índio, sou independente, onde eu quiser trabalhar ninguém mexe comigo mais, mas antes, tinha que ser sócio das confederações espíritas do Brasil61. O povo não reconhecia o trabalho do índio, então onde você chegava numa cidade diziam aquilo é isso, diziam nomes que chegavam até a ir além”.

Nivaldo conhece muitos tipos de trabalho, tendo inclusive participado deles, e mais, como

curador, com terreiro registrado e diploma. Deste modo, a “umbanda” não representa o que

é exclusivo e se opõem, tal como para Elias, aqui há uma representação do espaço religioso

mais flexível, mesmo híbrido, que na sua “mistura” apresenta distinções,

“O que o senhor chama de umbanda é o que? Umbanda chama-se santo (missão) católica, na linguagem da gente, umbanda é santo. A umbanda ela se divide em santo, umbanda é santo, a palavra umbanda é santo na nossa língua. Todas as pessoas têm um santo, seja médium ou não, tem o santo de cabeça e o anjo da guarda. Iemanjá representa Nossa Senhora da Conceição, aqui em Recife, em Pernambuco,

60 Segundo Nivaldo, “Allan Kardecs é o lugar aonde não acende vela, onde não fuma, não bebe, chama-se Allan Kardecs”. O “s” no final de Kardec é um modo de falar do próprio Nivaldo, por isso o mantive na grafia. 61 A Lei n° 7669, de 17/07/1974, do Estado de Pernambuco isenta de licença a prática de Cultos Afro-Brasileiros. O texto diz “Art. 1° - As sociedades que praticam o culto afro-brasileiro poderão exercitar as formas exteriores de sua confissão religiosa independentemente do registro ou obtenção de licença junto às autoridades públicas”.

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em cada estado representa diferente o nome, mas que a santa é uma só. Oxum é Nossa Senhora da Glória, e representa o rio São Francisco, a água doce, chama-se Oxum na palavra de umbanda. Na palavra umbanda vem também Santa Bárbara que representa Iansã, representa o raio, o corisco e o trovão. Na umbanda existem nove santos católicos: São João Batista representa Xangô, São Jerônimo representa Xangô, Santa Bárbara representa Xangô, São Jorge é Ogum. A parte de Xangô se representa em nove santo católico, é tudo uma coisa só. Xangô é nome de santo, que representa a umbanda é santo católico. E umbanda é aquela que louva a Deus, vamos supor, louva a Deus então são os santos católicos que você venera.

Antigamente os índios tava na aldeia e relampeava e eles diziam “Tupã tanatinga”, louvava Iansã. Quando eles diziam “Tupã tanatinga” louvavam a todas as entidades, sem saber eles já louvavam a Santa Bárbara, Santa Bárbara faz parte da ciência do índio. São Sebastião representa os índios, ele era índio, foi um soldado de Cristo, ele foi crucificado por causa ser um defensor de Cristo e dos índios, os índios e a África são uma coisa só, são indianos. Os primeiros habitantes do Brasil e do mundo foram os índios, depois veio os brancos, aí tomaram posse das terras dos índios. Cada lugar tem a origem África, Brasil, tudo é indiano. A umbanda, o candomblé, o ritual (o Toré), Allan Kardecs, tudo é uma mesma origem só. O trabalho do senhor é um trabalho de índio, só que na verdade junta... Junta com outras partes outras comunidades, todas as partes indígenas, africanas. O que vale no mundo hoje chama-se civilização. Hoje o problema espírita é uma civilização, é uma doutrina, onde recebe-se, cada pessoa, cidadão, tem que ter uma religião, ou espírita, ou católica, ou evangélica”.

O trabalho de Nivaldo é principalmente indígena, porque a jurema detém o maior

espaço religioso. Mas é um trabalho, de um tipo de “culto de jurema”, que mantém unidos

o que historicamente, parece, nunca estiveram separados, pensando no quadro de elementos

religiosos disponível no “complexo da jurema”. O trabalho de Nivaldo é um tipo de uso

deste universo religioso que entende sua origem e legitimidade pelo hibridismo.

Se, “o trabalho do índio chama-se ciência”, e se, “eu só recebo as pessoas para curar,

doutrino aqui quem chega com problema”, quem é doutrinado? “As pessoas que são

médiuns, de origem indiana”. “Indiana” lê-se indígena. A indianidade é por isso a

“doutrina”, o modo de ser, a substancia indígena, uma religiosidade indígena que se separa

de outras religiosidades. Existe uma “religião indígena” que a categoria nativa “doutrina”

parece apontar. “Doutrina” é uma ferramenta de constituição de uma substância indígena,

de uma qualidade especial, que advém do trabalho, e que não é religião, mas uma condição

étnica, construída num espaço religioso, no qual se destaca uma religiosidade

especificamente indígena. Se há no mundo hoje, o que o termo “civilização” parece

apontar, ou seja, uma globalização das doutrinas religiosas, Nivaldo se insere neste mundo

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como indígena, não apartado do “global”, mas responsável pela continuidade de um tipo de

“doutrina” espírita: a indígena. Esta religiosidade indígena não se apresenta separada de

outras religiosidades, elas estão entrelaçadas historicamente, e mesmo hoje convergem

como “doutrinas” específicas, às vezes no mesmo espaço do trabalho, como é o caso da

“doutrina” “africana”. Aqui também o sincretismo cultural é interpretado do ponto de vista

da organização, em termos étnicos, de elementos religiosos disponíveis num quadro amplo

(o “complexo da jurema”), de onde surge, uma distinção -, em categorias étnicas, não

culturais -, entre uma religiosidade indígena e outras “linhas”, “doutrinas”.

Dentro do espaço religioso da cura, como espaço social, de elementos religiosos

mistos -, o “complexo da jurema” -, há a distinção de um espaço de religiosidade

especificamente indígena, que mesmo não representado de forma homogênia, é destacado

por ambos os curadores. Estas distinções religiosas, entre uma “linha” indígena e outra,

“afro-brasileira”, por exemplo, guardam semelhanças com o que é expresso nos discursos

dos Kapinawá sobre seu toré.

Se há um elemento étnico que se configura no espaço religioso da cura, uma

religiosidade indígena, há por isso, um circuito de categorias étnicas que se apresentam

também no espaço religioso Kapinawá, no toré, que são próprias do espaço social torécoco.

São categorias que demarcam uma especificidade religiosa indígena, dentro de um quadro

religioso amplo e mesmo comum, o “complexo da jurema”. Essas categorias são

“facilmente oponíveis em um sistema de distinções” (Nascimento, s/d.: 19), já que

construídas num espaço histórico e social comum. E são também, como se verá adiante,

categorias construídas contra outros elementos sociais, como, por exemplo, o ceticismo.

Assim, encontra-se uma religiosidade indígena Kapinawá que se estrutura, em

termos étnicos, por categorias de opostos a uma parte do conjunto de elementos religiosos

afro-brasileiros. Essa religiosidade é, por sua vez, pensada como “a tradição Kapinawá,

nossa cultura”. Há, por isso, uma etnicidade erguida dentro do espaço religioso (o toré) que

se revela na produção de categorias que enfocam a solidariedade da comunidade ritual, e

em termos étnicos, entende este espaço religioso como o símbolo maior da indianidade

Kapinawá, sua cultura.

Para demonstrar isso, farei uma análise do espaço religioso do toré Kapinawá

abordando primeiramente uma pequena nota biográfica do dirigente do trabalho o pajé

Arlindo, dando ênfase a suas representações religiosas. Após isso farei então uma análise

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de uma situação social (Gluckman, 1987), um toré Kapinawá realizado no lugar mais

sagrado para o grupo, a Furna dos Caboclo, onde aparecem nitidamente os elementos de

afirmação étnica e de solidariedade do grupo ritual através da categoria “perturbado”.

Pequena biografia de Arlindo

Arlindo nasceu na aldeia Julião62, ele, “não tava bem habituado a tradição indígena”, mas,

“tinha o Dom, cada um tinha o Dom, a gente tava com ele guardado, preso”, esse “Dom”

Arlindo o teve de, “nascença porque eu nunca tive doutrina de ninguém”. Para auxiliá-lo a

desenvolver esse “Dom” -, que era até a formação da etnicidade Kapinawá -, um “Dom”

para “a reza63”, Arlindo comprou, “uns livros pra ver como era, o que podia seguir64”, eram

livros, “mais de oração forte”, livros católicos de cunho popular.

Arlindo reconhece, mesmo assim, que teve a ajuda do pajé Pankararu João Tomaz

para penetrar mais profundo no mundo da espiritualidade. Enquanto morava em Petrolândia

– PE (de 1989 a 2001), Arlindo e Dôra freqüentavam os torés que ocorriam na aldeia

Espinheiro, no Brejo dos Padres, área Pankararu65. Lá travaram contato com João Tomaz,

“Nós já dançava toré lá antes, mas ela (Dôra) não falava o que sentia (as irradiações), depois foi que ela disse assim, assim, ele convidou a gente pra ir uns oito dias, que ele ia preparar a jurema pra gente, pra gente ir lá oito dias pra ele ver. Quando a gente chegou lá ele fez a mesa do índio66, preparou a jurema, eu num canto ela no outro, só nos três na mesa. Ele mandou nós dois botar a mão na bacia de jurema. Assim que nóis dois botamos a mão na jurema ela se concentrou e recebeu os mestres dela67. Ele fez as preces lá, o mestre se suspendeu e ele fiou

62 Aldeia Kapinawá próxima à Mina Grande. 63 A “reza” refere-se aos benditos, ladainhas e orações católicas. Principalmente, a “reza” se refere às novenas, sendo a de Nossa Senhora a mais importante (isso antes da emergência étnica). 64 Arlindo comprou o primeiro livro de oração em São Paulo, entre 1977-8, antes porém do “levantamento da aldeia”. 65 De fato eu conheci alguns índios Pankararu residentes hoje em São Paulo que estiveram com Arlindo tanto na área Pankararu quanto na cidade de Petrolândia. 66 Para a “mesa do índio” coloca-se sobre uma toalha, estendida no chão, o aribé (bacia) com a jurema (a bebida), ao redor são colocados objetos religiosos, como velas, imagens, etc. 67 A jurema na ocasião não foi ingerida. Ainda hoje no toré Kapinawá a jurema é pouco utilizada como bebida sagrada, sendo rara sua presença no espaço religioso Kapinawá (entendendo-se este espaço como o toré e os trabalhos de cura -, este último em desfalque na minha análise, mesmo porque é raro ser realizado).

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comigo, e eu com a mão na bacia, ele dizia ‘e aí, não tá sentindo nada?’, ele dizia ‘se concentre bem, firme o pensamento aí’, mas eu só sei me concentrar e ver meu Pai Tupã, ele di novo, e eu do mesmo jeito. (Dôra interrompe e complementa) Ele disse (João Tomaz), ‘olha você tem corrente da jurema, agora ele, ele tem essas coisas, mas ele vai trabalhar numa casinha, feito uma casinha de oração, e o dele é reza e curar o povo, e quem ele for pra ele botar a mão na cabeça sai curado, na força de Deus, e não tem quem possa com ele não’”.

Enquanto morou em Petrolândia Arlindo era um curador, nunca cobrava. Usava

vela, alfazema, rezava com a cruz de caravaca (que usa no rosário que carrega sempre ao

pescoço) e rezava usando mato cheiroso com flor em criança e outras rezas. Arlindo

também realizava trabalhos de cura, fazia a “mesa do índio” (sem jurema), só para a cura,

em sessões para duas ou três pessoas, usava velas, toantes (há aqui alguns toantes

específicos para este tipo de trabalho), toalha no chão, o mesmo tipo de trabalho que

aprendeu com os Pankararu, com o pajé João Tomaz.

Nesta cidade Arlindo realizava também um trabalho de toré (sem o uso da jurema),

no terreiro de sua casa. As pessoas que freqüentavam este trabalho eram “na maior parte

branco”, e do mesmo modo, “nós freqüentava lá um toré, mas pra caboclo mesmo, cabra

vestia caruá, balançava maracá”,

“Era pessoal índio também? Não, branco mesmo, só porque era médium assim e trabalhava na umbanda com os mestre da jurema. Mas era como toré. Mas quem dirigia o trabalho era branco? Era branco, por isso que eu digo, o caboclo é da umbanda, e a umbanda é dos caboclo, e a jurema é dos caboclo, e todo caboclo é de umbanda e da jurema, a umbanda tá ligada ao índio. Tem muitos pontos da umbanda, de caboclo, que não pode cantar porque é muito pesado para o índio no ritual certo. A umbanda limpa que eu falo é no tambor (de matriz africana), não no maracá. Quando você vê umbanda com maracá ali é a parte mais indígena. O senhor sabe como os brancos lá de Petrolândia aprenderam o ritual? Não sei não, cheguei lá já encontrei eles... Essas coisas Marco, todo canto existe, todos os lugares. Duvido você tenha uma comunidade, toma conhecimento de uma comunidade que no outro dia pra você não saber, aqui brinca isso assim.

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Esse pessoal branco que fazia toré lá, também tinha os pontos de umbanda que eles cantavam? Que misturavam? Misturavam. Mas eu não. Mas aí o senhor via como eles faziam né? Ia lá? É, eu ia e já conhecia, quando eles puxavam aqueles pontos, tô vendo que é de caboclo, mas de caboclo limpo, da umbanda mesmo. Aqui mesmo de vez em quando eles puxam, eu não dou valor nada. Mas o senhor chegou a ir a terreiro de umbanda ou candomblé? Deixa eu ver, hummm, já fui sim em Petrolândia, mas era toré de caboclo, mas puxava uns pontos de candomblé. O que vi também foi um trabalho nas águas em São Paulo por uns dias, até Sexta-feira da Paixão, nós assistimos um pouco, eles trabalhava era despacho nas águas, era de umbanda, mas eu não gosto daquilo não”.68

É visível a distinção que Arlindo constrói entre uma “umbanda” mais “pesada”, ou

“limpa”, de cunho afro-brasileiro mais marcado, “no tambor”, e uma “umbanda” mais

indígena, “no maracá”. Estes dois tipos de trabalho acabam, muitas vezes, se misturando,

“era toré de caboclo, mas puxava uns pontos de candomblé”, o que não desqualifica sua

opção por um tipo de trabalho, eles (os brancos), “misturavam, mas eu não”, ainda que,

“aqui mesmo (Mina Grande) de vez em quando eles puxam, eu não dou valor nada”. E se

os trabalhos em Petrolândia tinham, na sua maioria, como dirigentes “brancos”, isso, não

impedia que a distinção entre “brancos” e índios fosse esquecida, mesmo porque, “o

caboclo é da umbanda, e a umbanda é dos caboclo, e a jurema é dos caboclo, e todo

caboclo é de umbanda e da jurema, a umbanda tá ligada ao índio”, já que, caboclo é o

termo para índio, e é enquanto caboclos que os índios, e a jurema, entram na constituição

da “umbanda”, como visto mais acima. Por isso, mesmo que comuns, esses trabalhos se

68 Para demonstrar como o trabalho é algo comum nas cidades do agreste e sertão do Nordeste, e principalmente na região do sertão do Moxotó, Arlindo lembrou como construiu uma amizade com um homem que se dizia índio Atikum e mantinha, também em Petrolândia, um centro ritual onde praticava uma espécie de trabalho. João Olímpio era curador, cobrava consulta, fazia beberagem de gengibre e cachaça, tinha o Diploma da Federação de Cultos Afro-Brasileiros e Aborígines de Pernambuco e era fiscal de centro. João Olímpio soube que Arlindo fazia trabalho em casa e foi lá, acabou cobrando o “Diploma” (citado acima), o que Arlindo não tinha, o antagonismo acabou transformando-se em amizade, o que inclusive permitiu que João Olímpio introduzisse toantes Kapinawá em seu próprio trabalho. Arlindo também lembra que João Olímpio, mais outro dono de terreiro em Tupanatinga chamado Zé Fulor, estiveram algumas vezes na Mina Grande na época da introdução do toré na área. Pelo fato desta informação ter sido expressa somente por Arlindo, prefiro apresentá-la de modo cauteloso.

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distinguem do ponto de vista étnico, o que não deixa de assumir o sincretismo cultural que

os preenche.

Enquanto morava na Mina Grande, em períodos alternados de viagens para trabalhar

em São Paulo, Arlindo foi se aprimorando no toré,

“Quando o Dôca e o Zé Índio vieram aqui, o senhor já tinha noção de como era aquilo ali (o trabalho espiritual)? Eu já tinha idéia, eu já tinha, no pensamento. Mas o senhor ficou brincando com eles aqui? Eu comecei puxando os toantes logo assim que começou aqui, me botaram de fiscal do terreiro (o Zé Índio). Eu me acostumei a cantar, nem mesmo o maracá eu sei balançar direito, daqui a pouco eu paro e tô cantando com ele parado, porque eu comecei assim, a turma cantando e eu vigiando; e aqueles pontos, toantes, que eu achava bonito eu começava a remedar, em pé cantando, aí fui aprendendo e tal. Quando deixei de trabalhar de fiscal, fiquei cantando, e nisso fiquei”.

Em 1989 Arlindo e Dôra mudam-se para Petrolândia. Após este período em

Petrolândia (cerca de doze anos), Arlindo e Dôra retornam à Mina Grande no ano de 2001,

já tendo sua situação espiritual entendida como “limpa”,

“Quando o senhor voltou pra cá, já estava tendo trabalho de toré? Tava parado uns tempos. Antes de nós ir pra lá (Petrolândia) brincava direto com Zé Índio, e depois dele continuamos fazendo, depois com Salu e João Soares que era o cacique. O Salu não entendia de nada, só tinha nome de pajé. Quem fazia o toré? Era com as graças de Deus mesmo só... Não tinha nenhum enfrentante forte? Tinha nóis dois mesmo, até que cresceram a ambição e começaram a desentender do cacique, porque ele era quem mais entendia de toré. Eu incentivava o povo pra ir pro cruzeiro, mas em vez de ir pro toré no sábado o povo ia pro terreiro lá de casa. Nós brincava lá em casa, eu dizia pro povo ir lá pro toré. Quando o senhor voltou quem era o pajé?

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Era Zé de Ulça (Zé Moisés69), ficamos brincando direto. Quando foi a primeira vez que o senhor fez o trabalho sozinho? Eu não lembro não. Comecei no toré junto com o povo cantando, depois quando eu, a gente cismava através dela que recebia os mestre dela, cantava em casa, se juntava gente. Dona Dôra começou a receber em casa? Foi, é, começou a se doutrinar. Aí a gente ficava cantando os toante, passados os tempos ela tinha a doutrina dela, e eu passei a ser o chefe dela, fiquei como se fala o pai-de-santo dela, tudo tinha que ser comigo no frente”.

A “doutrina” de Dôra começa a se apresentar pelas incorporações de “mestres” e

“encantos”, que a direcionavam para um tipo de mediunidade, que é reconhecida como

irradiação. Para Arlindo, a mediunidade se apresenta pela vidência, que entende as

irradiações não pela incorporação, mas pela percepção do contato mediúnico. Esta vidência

também tem caráter de dádiva, já que ela o torna um curador, e como um “Dom”, esta

dádiva deve ser solidária, doada também, como cura para as pessoas. Ambos os tipos de

mediunidade são considerados como produtos da “doutrina”, e só foram possíveis pela

constância de suas presenças em trabalhos, participando e realizando a “ciência do índio”.

Arlindo torna-se pajé em 2003, sem consulta prévia a ele, sendo o indicado pela

comunidade para cumprir esta função (que já exercia de fato). Arlindo impôs-se, como

obrigação, instruir toda a tribo no “trabalho do índio”, imprimindo ao cargo de pajé, além

do óbvio caráter religioso, também o político-, se entendido como a legitimidade de seu

conhecimento religioso e as implicações deste na cristalização do que é reconhecido na área

como a cultura religiosa tradicional Kapinawá.

69 Que no ano de 2003, sem prévia consulta, foi destituído do cargo de pajé que passou a ser ocupado por Arlindo.

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O “culto de jurema” segundo Arlindo

Neste espaço eu quero descrever um pouco da cosmologia e das representações religiosas

de Arlindo, de modo a permitir uma visão mais profunda dos elementos religiosos que

interagem na construção do toré Kapinawá. Essas representações não são entendidas como

“a” cultura religiosa Kapinawá, mas sim como um espaço da cultura Kapinawá, que aqui

percebo dentro desta categoria analítica que criei, o torécoco, que pode e é lida de maneiras

diversas dependendo do lugar, da posição de quem lança interpretações e problematiza este

lugar da cultura. Arlindo é o pajé, e, além disso, demonstrou confiar em mim, o que me

permitiu trazer problemas do debate religioso que dificilmente pude manter com outros

informantes. Aqui, definitivamente, estou explorando as representações de um informante,

mas que sendo uma liderança religiosa, e tendo reconhecido conhecimento do trabalho, me

permite desenvolver o tema até um ponto bastante abrangente.70

Aqui espero apresentar as categorias étnicas que cristalizam uma religiosidade

indígena, mesmo que esta religiosidade seja construída no entrelaçamento de tradições

religiosas diversas presentes no “complexo da jurema”. Assim, não se destaca aqui um

sincretismo cultural, mas partindo dele, destaco as distinções étnicas -, que superam o

antagonismo cultural (negro versos índio) em pró de uma religiosidade indígena, sincrética

em termos culturais, separada em termos étnicos. Por isso a “umbanda” está presente no

“trabalho do índio”, e está também ausente.

Arlindo divide, classifica, e hierarquiza em superior e inferior a denominação de

algumas entidades, assim, Xangô é como se chama o santo na terra, no céu ele chama-se

São João. São Jorge na terra chama-se Ogum. Santa Bárbara é Iansã. E nossa Senhora é

Iemanjá. A nomeação superior é a “católica” e está no “Céu”, a inferior é a “umbandista” e

está na “Terra”. Embora através desta classificação a nomeação às entidades inferiorize a

umbanda, diminuindo assim sua posição com relação ao sentido de ascensão religiosa, ele

sintetiza toda a miscelânea religiosa dentro de um quadro no qual separadas, elas estão

unidas por identificarem, mesmo que em posição diferente, as mesmas entidades. Se, “Jesus

70 Lembro, e enfatizo, que realizei essas entrevistas com Arlindo e na maioria delas Dôra (sua esposa) estava presente. Por isso, aqui deve-se levar em conta o contexto em que esse discurso foi colhido. No texto há ocasiões em que a voz dos dois entrevistados se complementam, outras vezes se contradizem, espero tê-las apresentado de forma clara.

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é Tupã na língua indígena, na língua dos pais-de-santo Jesus é Oxalá”; uma “língua

indígena”, ou uma religiosidade indígena, e uma “língua dos pais-de-santo”, encontram-se

historicamente associadas nas denominações religiosas do branco-católico com o negro e o

indígena. Arlindo concebe separado e o que historicamente deu-se na união, reconhecendo

esta historicidade.

Mesmo que a nomeação das entidades na “umbanda” seja reconhecida como

inferior, estes nomes constantemente aparecem em toantes, pontos, ou mesmo no samba-

de-coco, o que pode caracterizar não uma relação direta com os nomes dos santos no

catolicismo, mas uma distinção que claramente revela uma opção por estas denominações

tidas por “umbandistas”. Além de nomes, também certas “linhas” são operacionalizadas

neste sentido, é o que revela a situação de entrevista abaixo.

Ao procurar conhecer os toantes que cantavam no ritual Dôra lembrou de um,

“Pode cantar de Ogum, tá na minha mente. (Arlindo canta e Jaime acompanha), ‘Eu tava trabalhando debaixo de um aratikum; tava chamando meu mestre, o meu mestre é rei de Ogum.’ “Esse é antigo? (Arlindo) Esse é um toante antigo, é dos mestre das águas, dos Orixás das águas, de Ogum. Foi antes de ser aldeia? Foi feito depois que tá brincando aqui, outros índios trouxeram de fora. Tem muitos índios que trabalham com a águas, com os Orixás das águas. Esse mestre Ogum trabalha com as águas, mas está presente em todas as aldeias, porque ele é o rei dos invisíveis, dos encantos, a não ser o nosso Pai Tupã, ele é o chefe, Ogum é São Jorge, é muito forte.”

Se há realmente uma distinção entre uma religiosidade indígena (“invisíveis”,

“encantos”), e uma afro-brasileira (“Ogum”, “linha das águas”), há porem o intercâmbio

entre estas religiosidades, que no plano da cultura, numa espécie de sincretismo, não

constrange as distinções étnicas, já que esta religiosidade indígena sustenta que, “Esse

mestre Ogum trabalha com as águas, mas está presente em todas as aldeias, porque ele é o

rei dos invisíveis, dos encantos, a não ser o nosso Pai Tupã, ele é o chefe”.

Ainda nesta entrevista, durante o assunto “Ogum”, Dôra interrompe Arlindo e diz, “é

o meu ori”, “o senhor sabe seu ori? Parece que não tem não, se tiver certo no meu signo é

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Xangô. É meu guia de frete na terra é Xangô, mas no céu é São João. Agente tem que ser

firme em Deus, se eu fosse depravado pras essas coisas eu era xangozeiro”. Dôra

novamente intervêm e lembra que “Lilia, é do mesmo signo dele, só quer cantar coisa de

xangozeiro da Bahia”. Arlindo,

“Se fosse na minha linha pra seguir eu era Xangô. Se eu fosse cantar na linha de Xangô71. O senhor prefere a linha do índio?72 Eu tento dominar ele até onde der, mas na hora da minha reza uso a força de meu guia de frente. Eu firmo não nele, mas em São João que é quem tá no céu, que é meu santo, meu guia de frente, aqui na terra é Xangô, prefiro chamar o chefe logo. Mas o senhor conhece né? (Dôra) Não vamo mexer com quem tá quieto. (Arlindo) O negócio Marco é saber dominar, ter fé em Deus. Às vezes tão cantando um ponto pode saber que eu tô cantando esse que cantei agora (o ponto de Xangô); às vezes dou espaço pro meu mestre de frente, e o povo nem sabe. Não vou deixar meu guia de frente só, tenho que agradar um pouquinho, ninguém nota, ninguém sabe”.

Como para Elias e Nivaldo, “o negócio é saber dominar”, é saber destas outras

“linhas”, e usá-las conforme a necessidade, atentando para o fato de que este uso deve ser

cauteloso, porque, como lembra Dôra, “não vamo mexer com quem tá quieto”, já que esta

“linha” não é a “linha” do “trabalho do índio” -, ela até auxilia neste trabalho, mas não é o

foco de sua devoção.

Para Arlindo, a “umbanda” tem uma ligação com o ritual indígena, ambos

trabalham com caboclos e com a jurema. Há, porém, ao mesmo tempo, uma série de

71 “Lá na padreira eu vi pedra rolar,

Afirma o ponto que ele é filho de Xangô,

Afirma o ponto que ele é filho de Anagô;

Xangô, ego, ego, na Bahia leri-ô,

Ego, ego, ego, saravá meu pai Xangô” 72 Há a nomeação de muitas “linhas” dentro deste “culto de jurema”: linha da jurema, linha das águas, linha de Xangô, preto velho, etc. Nascimento (s/d.: 17), revela que no toré, “o aspecto etnicamente mais relevante, é a ativação pelas ‘linhas’ (...) de todo um imaginário caboclo condensado nos milhares de versos de uma tradição oral muito rica e centenária”. O que leva a pensar a presença destas “linhas” no já amplo quadro revelado pela noção de “complexo da jurema”.

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ambigüidades que estão tão interconectadas no quadro religioso do trabalho, que a pura

lógica dos termos (enquanto culturais apenas) não pode superar, como demonstra o trecho

da entrevista abaixo,

“Quer dizer que a umbanda tomou a coisa que já era do índio? É, o índio trabalha com a jurema, a força dos índio é os caboclo da jurema. Todo caboclo é da umbanda e o índio trabalha na jurema, e a jurema é dos índio, a jurema pertence aos índios, e todo caboclo é da jurema, como é que fica? Os índios são caboclo, quer dizer que a umbanda é ligado com os índios, com o trabalho do índio. Só tem é que o índio trabalha com os caboclo da jurema, que estes mesmo caboclo é os que trabalha na umbanda. Agora a diferença que tem é que o pai-de-santo trabalha com os caboclo da umbanda, e ali no trabalho deles eles puxam todas as partes, eles misturam candomblé, com os Exus, no meio dos caboclos tem até Exu, nome de caboclo mas é quase Exu, ele só faz o mal. Esse caboclo é índio? Não, os índio não trabalham com eles não. Pode fazer prece, mas se concentrar não. Pode fazer pedido, acender vela, pode dar cachaça a ele, usar só se for assim, caboclo Vira Mundo, tem nome de caboclo, mas é meio Exu. Não posso dar presente a ele dentro de casa, só usa vela vermelha; se quero uma profissão mais leve pra não pegar no pesado eu uso ele, sou curador só pra pegar o dinheiro do cabra. O índio trabalha com a força da jurema, mas a força dele mesmo vem dos antepassados de quatro mil anos, dos encanto de luz, eles são preparados por nosso Pai Tupã, então eles são os espíritos de luz. Mestre Jiribina, cabocla Joaquina, não trabalha na “umbanda” não? Né? Não, estes já são os encantos de luz, irmão de luz, encantado. O índio trabalha com caboclo, Oxossi é caboclo, Ogum é Orixá das águas, mas o índio trabalha nas águas. Oxossi, Ogum, são Orixás ou caboclos? São Orixás. Mas é caboclo também? Oxossi é caboclo. Caboclo e Orixá também? Na língua mesmo é Orixá, recebe o nome dos Orixás, mas Oxossi é caboclo das matas. Oxossi é dos índio ou é da umbanda também? É da umbanda e os índios usam. Os índios trabalham com ele também, por causa que ele é caboclo, ele é da jurema. Mestre Carlos, Oxossi, Ogum, todos são da umbanda e o índio trabalha?

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Se pega a linha deles trabalha. No toré se puxar toante pra Oxossi pode? Pode, porque Oxossi é caboclo, é da jurema. Oxossi é o caçador mais, da jurema. É um dos mestres que o índio tem que confiar mais, porque ele é caçador, rei das matas. Oxossi é da umbanda, por isso eu digo que a umbanda pertence ao índio. A umbanda pertence ao índio porque a umbanda é dos caboclo, todo caboclo é da umbanda, e todo caboclo é da jurema, e a jurema é do índio. A umbanda que os índios não trabalham é a dos Exu? É. Exu, Pomba-gira o índio não trabalha? Não. O índio trabalha com Preto-velho? Tem índio que trabalha, se pegar na linha, ele é um Orixá guerreiro; pode ter na linha, mas ele tem que trabalhar pra não precisar dele, tem que pedir força a Deus pra não usar ele, não precisar de força deles. Eles não tem a força que tem os caboclo? De jeito nenhum! (Dôra) Eles mentem, dizem que são isso assim. (Arlindo) Não tem muita garantia, o índio pode trabalhar com isso tudo, mas o Dom dele tem que vir da natureza divina, o Divino Espírito Santo, Nosso Pai Tupã, porque sem essa força, o índio não tem força nenhuma. Tem de se concentrar é na força da natureza, porque tá dominando tudo, a força acesa do índio vem da natureza”.

Na “umbanda” estão os índios, os primeiros brasileiros, o caboclo é o termo que liga

o “trabalho do índio” ao da “umbanda”. Os caboclos da jurema trabalham na “umbanda” e

no “trabalho do índio”, mas o índio não trabalha na umbanda, porque este caboclo da

umbanda não é o índio, embora o índio seja caboclo, o índio está na umbanda porque lá

está o caboclo. Enquanto compreensão histórica e cultural, o caboclo é o agente do

sincretismo. Há dois tipos de caboclos: caboclos-índios e caboclos “vira-mundo”, Exu. Os

primeiros trabalham no “trabalho do índio” e na “umbanda”, e os segundo apenas na

“umbanda’, já que os índios os usam apenas se precisarem, “se quero uma profissão mais

leve pra não pegar no pesado eu uso ele, sou curador só pra pegar o dinheiro do cabra”.

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Estes caboclos de segunda categoria, “Eles mentem, dizem que são isso assim. Não tem

muita garantia”, o que é certo, sempre, é que, “a força acesa do índio vem da natureza”.

Os caboclos da jurema trabalham no ritual indígena, “estes mesmo caboclo é os que

trabalha na umbanda. Agora a diferença que tem é que o pai-de-santo trabalha com os

caboclo da umbanda, e ali no trabalho deles eles puxam todas as partes, eles misturam

candomblé, com os Exus”, misturam, também pode ser lido como louvam ou veneram, e os

índios não, “os índio não trabalham com eles não. Pode fazer prece, mas se concentrar

não”, ou seja, irradiá-los é vetado, trazê-los para o trabalho só se for uma necessidade,

constrangida ao máximo (tal como por exemplo os pretos-velhos).

O caboclo é uma categoria de entidade que muitas vezes se mistura com “encantos”

e “mestres”, estes, por assim dizer, sinônimos, não estão presentes na “umbanda”, neste

espaço somente os caboclos, da “tradição indígena”, é que figuram. Os termos ausentes na

“umbanda” são a base do “trabalho do índio”, enquanto uma “linha” religiosa específica.

Não é só a presença da jurema e dos caboclos que torna legítimo o “trabalho do índio”, mas

sua relação histórica com a indianidade enquanto uma “ancestralidade” -, “o índio trabalha

com a força da jurema, mas a força dele mesmo vem dos antepassados de quatro mil anos”

-, que não é puramente de sangue ou de parentesco real, mas espiritual, porque estes

antepassados são também “os encanto de luz”.

De fato, “Oxossi é caboclo”, não é um “encanto”, por isso presente na “umbanda”

quanto no ritual indígena. 73 Como Oxossi, os pretos-velhos podem ser usados se “pegar na

linha”, ou seja, se o momento ritual necessitar. Enquanto Exu e pomba-gira são negados.

Na elaboração deste sistema religioso -, um “culto de jurema” -, são utilizados elementos

do universo simbólico do “complexo da jurema”, e são dispostos neste sistema, em

correspondências, entidades indígenas e negras, que se unem e distanciam, não numa

correspondência em termos culturais (de um puro sincretismo religioso, afro-indígena74),

mas sim no sentido de especialização de um tipo de trabalho, identificado como indígena,

que supera as contradições culturais para construir, de um ponto de vista étnico, um

73 “Uma estratégia mais reveladora está em estabelecer a conexão entre os fenômenos (...) Todo esse que poderia, de modo mais abrangente, ressaltar não somente simetrias, oposições, ou correlações simbólicas discerníveis nos cultos ao caboclo dos candomblés baianos. (...) A exemplo das que Santos (1995: 135-46) estabelece entre o caboclo e o orixá Oxossi, ou entre o caboclo e Exu” (Nascimento, s/d.: 03). 74 Não se pode naturalizar o sincretismo afro-indígena, as variedades de tipos de trabalho devem ser levadas em conta.

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“trabalho de índio” legítimo -, e que é, por sua vez, um aspecto da cultura religiosa

tradicional Kapinawá.

Sobre a “doutrina”, a condição para brincar no toré, o desenvolvimento da

mediunidade, Arlindo responde como entende o processo de limpeza espiritual que alguns

membros da comunidade ritual realizaram.

“Esse povo eles tinham (o Dom), mas viviam perturbado, tavam com eles preso ali, encantado, mas tava ali encantado que eles não sabiam. Quer dizer que era o povo perturbado, qualquer coisinha tava pegando no ar, e era valente, ignorância. Aquilo era a força deles preso, sem ter quem soltasse, livrasse as corrente. Foi o tempo que os velhinho vieram (Dôca e Zé Índio), agente brincava o ritual, chamava as corrente, quer dizer que eles ali, eles nasceram, eles nasceram, saiu pra fora. Quem tinha as corrente se adoutrinou, e se interessou, quem não se interessou foi dar valor a outra parte, procurar centro de candomblé e Xangô pra se alimpá e ficou pior. Como tem deles aí que quer dizer que trabalha só que sem trabaiá, só recebendo força negativa. E tem deles que tá com vinte anos ou mais e fica na mesma”.

Arlindo lembra de Zé Pedro, morador da área que fez sua limpeza espiritual no

ritual, na própria aldeia,

“Começou a limpar dançando toré, bebendo jurema, tomando uns banhos. Ali ela (a doutrina) já começa a se desenvolver, não precisa aquele negócio de despacho, galinha, não sei o que, levar pras águas, não. Dançando toré e rezando os perturbado vão se afastando e os encanto chegando. Muita gente foi procurar o Nivaldo, umbanda... Agora me pergunta qual o que tem limpo, até agora não tem. Se eles tivessem ficado aqui, ou já que não tinha naquela época nenhum, o pajé não sabia nem o cacique, tivesse ido pra outra aldeia, saísse ali pra Kambiwá, Xucuru, outro índio”.

Arlindo lembra então que um dos meus melhores informantes, que é cantor e compositor de

toantes, Zé Caetano, teve várias investidas em centros rituais a fim de fazer sua limpeza,

“Foi em Nivaldo, Antônio, Elias. Começou em Antônio, depois os índios de fora (Dôca e

Zé Índio), dançava toré, mas era mais mesa, teve em centro, Nivaldo, em Buíque, em

Arcoverde, e continua o mesmo, ele não tá doutrinado, mas ele recebe os encantos, mas de

vez em quando uns perturbado”.

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A “doutrina” é a condição da indianidade, ela pode até ser construída em

“umbandas” ou “Xangôs”, mas não é indicado, a “umbanda” não é por assim dizer negada,

mas inferiorizada. Como sistemas religiosos que utilizam uma linguagem franca, ambos

permitem a realização de limpezas espirituais, mas etnicamente falando, a aposta de

Arlindo se resume no espaço religioso indígena por excelência, o toré. Assim me parece ao

seguir a afirmação de Arlindo, com relação à “doutrinação” de Zé Caetano, “ele não tá

doutrinado, mas ele recebe os encantos, mas de vez em quando uns perturbado”, a

“doutrina” de Zé Caetano está entre uma indianidade (os “encantos” que “recebe”) e uma

não indianidade (os “perturbados”).

De dentro das categorias religiosas comuns ao “complexo da jurema”, Arlindo

utiliza estrategicamente algumas delas para cristalizar uma “linha” do trabalho do índio

que, como visto pretende contrapor-se ao que, na maior parte das vezes, é reconhecido

como da “umbanda”, ao mesmo tempo em que elementos da própria “umbanda” são em

outras situações do discurso entendidos como próprios do trabalho do índio. Efetivamente,

para caracterizar uma identidade indígena no trabalho, é legítima a utilização de categorias

distintivas, mesmo que elas não reflitam linearmente uma concepção culturalista do

sincretismo afro-indígena, ou seja, mesmo que não o naturalizem. Como já se percebe, a

categoria “perturbado” separa aquelas pessoas que não tem “doutrina”, no sentido de uma

indianidade, opondo-se a uma não-indianidade (“perturbado”). Na análise do ritual da

Furna dos Caboclos estes elementos tornam-se ainda mais claros.

Análise do ritual na Furna dos Caboclos

A solidariedade da comunidade ritual

O trabalho como cristalização de uma etnicidade Kapinawá

Nesta análise de uma situação social (Gluckman, 1987), um toré, que ocorreu na Furna dos

Caboclos, na Mina Grande, no dia 26/09/0475, eu continuo a demonstrar a constituição de

categorias étnicas. Neste toré as irradiações se tornaram bastante visíveis, com

75 Documentado em vídeo (Mini-Dv).

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manifestações muito entusiásticas. Em dois momentos eu conversei com Arlindo e Dôra

sobre o evento, no mesmo dia à noite e no dia três seguinte. As impressões e explicações

sobre os eventos que ocorreram em tal ocasião implicaram mais uma vez na cristalização de

algumas categorias étnicas delimitadoras de uma fronteira que opõem os “doutrinados”

(indianidade) aos “perturbados” (não indianidade), aquilo que é reconhecido como o

“mau”.

Nesta ocasião, a solidariedade da comunidade ritual é colocada a prova nas

interpretações que emergem do fenômeno mediúnico. Divisões e questionamentos dentro

da área indígena, que identifico como a disputa entre uma visão cética e outra religiosa da

etnicidade, são colocados em questão a partir da discussão em torno do comportamento de

Dona Mariquinha no ritual. Momento curioso para demonstrar que o grupo de toré não

detém o domínio de representação da cultura, quando se torna expresso a desconfiança de

alguns. A solidariedade do grupo ritual impõem o enfrentamento de questões como a

dúvida e o ceticismo de parte da comunidade Kapinawá.

O caso de Dona Mariquinha

Dona Mariquinha é uma senhora (de cerca de sessenta anos) que tem uma participação

constante nos torés, de toda a família ela é a mais interessada, e seu marido (Germano) é

extremamente cético com relação ao ritual. Esta divisão em casa, que gera represálias por

parte de Germano, tem implicações na performance de D. Mariquinha no trabalho.

Germano foi uma das poucas pessoas que contribuiu financeiramente na constituição da

área indígena, ainda hoje ele é, aparentemente, o mais rico da área. Pude perceber em

nossas conversas que ele teve “prejuízo” com a formação étnica, já que detinha, e detém,

como propriedade sua, um “bom pedaço de chão” -, terrenos grandes espalhados por toda a

Mina Grande. Impossibilitado de vendê-los, Germano procura utilizá-los para a criação de

gado. A identidade de indígena não é sua principal preocupação, ele é extremamente crítico

com relação à constituição de área, e mostra claramente isso ao desprezar os eventos

religiosos.

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Ele não é o único, o próprio cacique (Zé Bernardo) também está sempre ausente das

atividades religiosas, e uma boa parte dos Kapinawá mina-grandistas não reconhecem o

toré como uma atividade insubstituível, não reconhecem este espaço social como símbolo

da etnicidade Kapinawá. Esta é muitas vezes construída em outros lugares, por outros

discursos, no espaço da política (Zé Bernardo), ou mesmo na memória do samba-de-coco,

ou ainda em mobilizações sociais, em reuniões com outros grupos indígenas, ou apenas no

discurso pedagógico, numa questão fundiária, de herança, e etc.

Há, por isso, muitos discursos diferentes sobre a etnicidade Kapinawá. Aqui vou tratar

somente de uma visão do étnico, aquela que se realiza na constituição de categorias

distintivas do indígena Kapinawá construídas na representação do trabalho de toré. Dentro

deste espaço religioso cristalizam-se categorias étnicas que implicam numa diferenciação,

entre o que chamo de indianidade e sua impossibilidade, uma não indianidade. Assim,

indianidade será reconhecida àqueles que tem “doutrina”, estão conscientes do “trabalho do

índio”, e não indianidade àqueles que se recusam a participar do ritual, ou melhor, de sua

lógica religiosa.

Durante o trabalho na furna, Dona Mariquinha, além de outras mulheres,

apresentaram, o que Arlindo chamou de “irradiações negativas”. Estas irradiações se

caracterizavam pela falta de controle do corpo, por tonteiras e mesmo quedas. A este tipo

de mediunidade Arlindo credita à ação dos “atrapalhos”, das “perturbações”, segundo o

mesmo,

“O senhor tava dizendo que as “perturbações” é coisa das pessoas mesmo, às vezes não é coisa dos encantos? né? É porque já tá errada os pensamentos, porque o pensamento positivo, porque tudo o que vem, vem naquele pensamento positivo, na hora que muda o pensamento já tá negativo, já vem negativo. Os encantos de luz não chega pra deixar ninguém “atrapalhado”? Não, a pessoa, o médium, você pode estar com bom pensamento, firme em Deus, então a força dos mestre de luz tão chegando na sua mente, assuntos bons que pertencem a Deus. Na hora que você muda os pensamentos um pouquinho, digamos que eu sou um médium e trabalho com a força encantada, nesse momento trabalho mas tô pensando em fazer o mal, fulano me fez uma raiva vou me vingar dessas raiva. Enquanto penso isso já vai mudando o pensamento que eu tava firme em Deus, aí chega a atrapalhação, já mudou pras esquerdas, pro pensamento negro.

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É isso que são as esquerdas? É isso que eu entendo, já tá pensando em fazer o mal. Quando D. Mariquinha tava com aqueles “atrapalhamentos” na furna não era os caboclos não? Era perturbação que ela teve raiva da outra noite, porque o marido fez raiva a ela. O trabalho mostra o que a gente tá sentido? Se ela tava com forças dos caboclo na outra noite anterior, mas o marido acha que ela tá de safadeza, tá fazendo aquilo pra se amostrar, então quer dizer que ela recebe aquela raiva, aquele ódio, então os caboclo já se afasta e vem a parte negativa, e fica dominado ela ali. E passa os dias com aquela angústia até eles chegar. Aquilo é uma irradiação? Irradiação negativa. E como é que é? Não tem guia nenhum que vem nela não? De luz não, só vem o mau, as perturbação. (Dôra) O mestre vem, só que ele não pode porque ela não tá limpa... (Arlindo) Então! (Dôra) Aí ele vai e fica com a força negativa, mas os mestre chega. Quando eu peguei nela eu reconheci que ela tava com as força dos mestres, só que ela não é limpa, é suja, então, bota pra frente”.

Se há uma “irradiação negativa”, que se apresenta quando alguém no trabalho está

com “mau pensamento”, “com raiva”, há então uma irradiação positiva, que se relaciona

ao “pensamento positivo”, está mais convicto da sacralidade do ritual, está “firme em

Deus”, e por isso, “a força dos mestre de luz tão chegando na sua mente”. Se o “mestre

vem”, tenta incorporar, mas, “ele não pode porque ela não tá limpa”, como se ela não

tivesse naquele momento em condições de “recebê-lo”, devido aos “maus pensamentos”,

ela está indisponibilizada de trabalhar. Se os “encantos” não trazem “atrapalhações”, o

que de fato a fazia sofre? Somente sua indisposição para com o ceticismo do marido?

Para além do conflito em casa, e da repercussão deste no trabalho da furna, Dôra

explica que isto também tem outros fundamentos, associados ao que se passa

cotidianamente, há elementos de natureza puramente espiritual, e que devem ser tratados

sob um outro ponto de vista. Assim, ela tentava explicar-me,

“Quando o pai dela morreu aí ela se manifestava aí nunca ninguém limpou as correntes dele, o finado João Velho ele nunca foi doutrinado, aí, depois que ele morreu aí ela ficou

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recebendo. Agora tem que ela fazer uma limpeza, pra saber se é um obcessor ou se é corrente que ela tem mesmo. Aí se for corrente tem que tirar aquele obcessor que ela tem, e ficar as corrente, pra ela começar a trabalhar. O obcessor é sempre um espírito de alguém que morreu? (Arlindo) É. (Dôra) Naquela hora que ela mandou tirar76, como é que ela tá irradiada com um caboclo mesmo e o caboclo manda os outro tirar? Como é quer pode? (Arlindo) Não, tem que firmar o pensamento em Deus, não é encanto não, é um obcessor. Quando a pessoa tá irradiando que tá “atrapalhada” assim é um obcessor? (Ambos) É sim, um obcessor... (Dôra) Que dá trabalho, fica tomando a frente coisas assim. D. Mariquinha tem que rezar pra Nossa Senhora do Desterro pra ela desterrar asquela coisa ruim que tá nela, aquele mau pensamento dela porque na hora que ela tiver raiva, ou dizer que ela tá se fazendo, que é mentira, que é verdade, ela tem que firmar o pensamento em Deus, mas não ficar aí chorando, coisando, porque, pra fazer o que, não tem condições. Ela tem corrente boa, ela é do Macaco77, ela é do tronco, da rama... Aí se nós tem, se Dalzira tem, essas outras daí tudo tem, porque ela não tem?”

Aqui Arlindo se demonstra contrário à lógica da esposa, e inverte o sentido

essencialista que Dôra apresenta com relação à mediunidade dos Kapinawá, “Não é

obrigado ela ter também não”. (Dôra) “Eu sei que ela não é obrigada a ter, mas ela tem”.

Se ela não é obrigada a ter, significa que imediatamente Dôra concorda com Arlindo e

também se critica na sua postura essencialista. Arlindo reconhece que não há

correspondência direta entre ser nascido na área e ter a mediunidade, mas concorda com a

esposa no sentido de assegurar a mim que D. Mariquinha tem mediunidade, mas que esta

está em conflito, “Ela tem, mas Germano não gosta, xinga muito, ele não dá muito valor e

ela chama (atrai a espiritualidade), pior, ele só diz que é safadeza dela”. O “obcessor”

trabalha contra a indianidade, contra as “correntes”, contra a “doutrina”.

D. Mariquinha está em conflito, pois ela, “chama” os “encantos”, tem mediunidade,

mas é constrangida pela postura cética do marido. Se a mediunidade a legitima uma

indianidade, já que se apresenta, mesmo que de modo pífio, nela uma certa “doutrina”, as

“perturbações” a colocam sob suspeita, em risco de assumir uma não indianidade. Assumir

a mediunidade é assumir um valor étnico, é assumir uma “doutrina”, uma imagem da

identidade, que se contrapõem a outras concepções da identidade indígena, existentes no

76 Pediu à assembléia que “puxassem” uma “linha”, cantassem um toante. Se ela estava com um espírito incorporado, este deveria saber sua “linha”, sua cantiga, já que é de praxe que todo espírito que incorpora traga já sua “linha”, seu toante. 77 Aldeia Kapinawá que é o sítio mais antigo citado de no documento de 1874, ver capítulo I.

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plano político ou laico. A mediunidade assim clarifica uma opção, uma imagem da

identidade.

Os “encantos” são “limpos”, eles não derrubam ninguém, eles “vem limpando”,

trazem paz, conforto e são reconciliadores. O “obcessor” separa, “suja”, inibe. O

“obcessor” é sempre o espírito de alguém que morreu, enquanto os “encantos” não

passaram pela experiência da morte, eles simplesmente se “encantaram”. O “obcessor” é

um espírito “vadio”, sem “doutrina”, ele chega pra perturbar, “às vezes até derruba”. Se

“receber” os “encantos” se caracteriza pela “doutrina”, há uma exibição de indianidade. Um

“obcessor” representa o contrário, a não indianidade. Dona Mariquinha parece ter recebido

como herança a presença do pai, sua não indianidade expressa em sua não “doutrinação”.

Enquanto um espírito sem “doutrina”, seu pai está “perturbado”, se Dona Mariquinha tem

“corrente”, e acesso a mecanismos de limpeza espiritual, ela deveria acessá-los, de modo a

converter as “atrapalhações” e dar ao pai um melhor destino. Finalmente, ela deveria se

conscientizar do trabalho e desenvolver sua “doutrina”.

Neste mesmo trabalho outras duas mulheres (Roseana e Jacira) apresentaram as

“atrapalhações”, e de modo semelhante estas “atrapalhações” são entendidas como a

presença de “obcessores”, no caso de tipos diferentes,

“Porque a Roseana não sabia qual toante puxar? Porque o obcessor não tem toante pra cantar não. Quando baixa canta seu ponto, a sua linha, a gente não ia cantar porque ele não tem nada pra cantar, o obssessor não tem ponto pra cantar. Ela cantou de São Miguel78 porque é o aparelho que sabe, a menina que sabe, tudo tapeação, é o aparelho que sabe, o cavalo que sabe. E chamou mais Jacira pra ajudar não foi? Quando chamou a Jacira ela também começou a irradiar não foi? É porque era dois. Um tava com a Roseana e o outro veio perturbar, tá na sombra de Jacira. A senhora sabe, D. Dôra quem era o espírito obcessor que estava na Jacira? Aquele da Jacira é um companheiro ruim, que vem já perturbando ela a muitos dias. Ela vinha dizendo no caminho que a muitos dias tá com isso, que quando ela começa a cantar se a gente

78 “A barquinha de São Miguel ela balanceou (ai) ai São Miguel foi ela que me salvou”

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tomar a frente dela, ela disse que cria aquele ódio, aquela raiva, pra ela cantar sozinha. É um perturbado, ela tem corrente... (Arlindo) Agora o de Roseana pode num ser não, mas eu acho que é o finado Wilson, que sempre persegue ela, ele morreu de morte, de tiro, faz seis ou sete anos que ele morreu. Mas aquele da Jacira aquele é só uma irradiação do mal, um perturbado, um tipo de um Exu, pra mim não é espírito que morreu aqui não”.

Detecta-se aqui dois tipos de “obcessores”, o primeiro, de Roseana, era, tal como o

anterior, um espírito de um parente morto, também o pai, também um espírito sem

“doutrina”. O segundo era, “só uma irradiação do mal, um perturbado, um tipo de Exu”.

Deste modo, embora, se assim posso dizer, vindos de contextos diferentes, ambos

“obcessores” apontam para as interrupções do curso normal do trabalho. Ambos são

entendidos como externos, no sentido de que não devem estar presentes nos trabalhos, são

por isso exemplos da não indianidade, eles são combatidos.

Apresento por fim o texto de um “encanto” que se pronunciou a partir de Dôra no

final do trabalho. Este texto permite conhecer um grande aspecto do sentido conferido a

essas “atrapalhações”, “perturbações” e “obsessões”, levando a reconhecer alguns

mecanismos de coerção da comunidade ritual. E também, pode-se verificar que tanto a

solidariedade do grupo ritual, quanto a indianidade são questionadas no espaço público

religioso Kapinawá: o toré.

Dôra traz Jacira pra junto de Roseane, ficam as três de mão dadas no centro do

terreiro. Dôra irradiada se pronuncia,

“Jesus Cristo seja louvado (assembléia: para sempre seja louvado), quem pode mais do que Deus? (assembléia: ninguém), então viva Deus! Viva o Espírito Santo. E viva quem tem força e poder. E vocês rezem meus filhos que é pra ver se afasta os perturbado. Que esse pessoal tá tudo perturbado. Essa menina aqui (Jacira) foi um perturbado com ela, essa menina aqui é filha de um perturbado, então ele só quer ver é a caveira dela. Ele não vê porque Deus não quer. Porque quando ela começa a cantar um toante que outro passa na frente dela, ele quer atrapalhar a vida dela. Jesus Cristo tem força e tem poder aqui nessa aldeia de vocês. Eles tem que arretirar esses perturbado desse pessoal. Vocês não querem dar valor as coisas aqui, mas vocês tem que dar, porque senão a aldeinha de vocês aqui vai falir, e é logo viu.

Vocês têm que acreditar na força divina, na força da jurema, na força da natureza, na força que Deus dá a vocês. Então vocês não quer acreditar? Vocês só quer saber de vaidade, mostrar, mas vocês rezem, e põem o joelho na chão, que vocês vão ter muitas lágrimas pra derramar ainda na vida de vocês. E tá começando agora. Todos aqueles que morreram aqui tão pensando em vocês agora. Então vocês rezem pra Deus, eu quero que vocês rezem na igreja, eu quero que vocês rezem nas casas de vocês, eu quero que vocês tenham mais fé em Deus, Padre Cícero, e todos os encantos da terra e do céu. E vocês deixem de zombar dos encantos de luz. Muita gente zombando, mas vamos ver a dor depois. Muita gente zombando do cacique, do pajé, mas cuidado com a má vontade, a desunião aqui dentro da aldeia. Vocês têm que pisar no rastro um do outro. Só tem inveja e ambição, não façam isso, isso é uma

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traição. Vocês têm que se unirem. Essas tragédias é tudo coisa de fora. Vocês me perdoem o atrevimento, eu queria que todos rezassem o Pai-nosso aqui no pé do cruzeiro. Eu sei que vocês tem muita boa vontade”.

Imagino que está muito clara a lição que o “encanto” quis passar. A principal

questão me parece ser a solidariedade da comunidade ritual, posta à prova, contestada e

afirmada. É dentro do espaço religioso que a identidade de indígenas faz sentido. O

trabalho espiritual é que sustenta a aldeia, “vocês não querem dar valor as coisas aqui, mas

vocês tem que dar, porque senão a aldeinha de vocês aqui vai falir, e é logo viu”, neste

espaço solidário, de comunhão e doação, estão impressos os elementos éticos que deveriam

organizar a comunidade mina-grandista. Se a etnicidade está presente em situações distintas

(ver atrás), no trabalho esta etnicidade se mostra mais preocupada com valores coletivos,

ela se identifica com um passado, com a lembrança dos mortos. Ela se identifica com a

produção da cultura, da tradição, ela organiza o presente e o passado, ela organiza uma

substância indígena, ela cria o espaço da invenção, da exibição, clarifica um esforço

coletivo, separa e distingue o que é próprio, avalia e rechaça, cobra e verifica, doa e

recolhe, em nome de algo maior, que sobrepõe a todos, os ultrapassa, os acolhe, como um

grupo, como os mesmos, como únicos.

Na representação que Arlindo tem do “culto da jurema”, do toré Kapinawá no caso,

estão presentes os mecanismos de coerção do grupo ritual, estão presentes também os

mecanismos de solidariedade do grupo ritual -, a partir daquilo que Dona Mariquinha

representa pelas “atrapalhações”. Os mecanismos de solidariedade do grupo ritual estão

presentes na representação das “perturbações”.

Se o torécoco apresenta um tipo de ‘culto a jurema’, dentro do ‘complexo da

jurema’, quais são as suas características particulares? Só a demonstração empírica pôde

revelar. O torécoco instituiu a presença na área Kapinawá de um sistema religioso aberto,

no qual são produzidas variações e distintas representações. A presença das “atrapalhações”

é constante tanto na função dos curadores quanto no próprio toré Kapinawá, por isso os

elementos do culto são “escolhidos”, tematizados e trabalhados. É a partir da manipulação

estratégica destes elementos religiosos, em torno da cristalização de uma religiosidade

indígena -, sincrética em termos culturais -, que se torna visível uma fronteira étnica.

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Que espécie de toré ficou como “oficial” na área Kapinawá após a saída de Dôca e

Zé Índio? Parece que nenhum, como revelou o texto mais atrás, ficou, como visto, o que

Arlindo construiu, possivelmente um culto muito próximo à sua própria visão da

religiosidade. O toré Kapinawá, na pessoa de Arlindo, realiza um tipo de “culto de jurema”

utilizando-se de representações religiosas que foram retiradas do campo religioso amplo

nordestino -, que a noção de “complexo da jurema” revela -, e também se identificam pela

sua biografia (Livros, São Paulo, trabalhos de brancos em Petrolândia, a “umbanda”, etc.).

O toré Kapinawá sempre registrou as “atrapalhações” que pediram as limpezas

espirituais. Enquanto “inocentes”, os Kapinawá não conheciam a “ciência do índio”,

somente com o levantamento do terreiro e a introdução do “trabalho do índio” foi que eles

começaram a se “desenvolver”, se “doutrinar”. A “doutrina” é a condição da indianidade, é

a cristalização da identidade indígena, é a substância indígena que se constrói na

participação no toré. Contra ela se apresentam as “atrapalhações”, os “perturbados”, que

imobilizam o médium, obstruindo o “aparelho”, que fica assim impossibilitado de “receber

os encantos”, de trabalhar a “doutrina”. Os “perturbados” prejudicam o médium no seu

desenvolvimento, e revelam uma não indianidade ao negarem a presença no trabalho dos

“encantos”, dos “espíritos de luz”, dos “mestres da furna”. Deste modo, penso a “doutrina”

como uma categoria étnica que se apresenta possivelmente na mesma acepção do termo

“regime de índio” (Grünewald, 1993; 2002) 79, já que o toré me parece ser o espaço de

“criação” de uma substância indígena, contra a não-indianidade dos mortos, os

“perturbados”, ou os sem “doutrina”.

Assim, o “perturbado” também é uma categoria psicológica, que separa aqueles

“doutrinados” e devotados ao trabalho contra os “sujos”, ou vacilantes - com relação a

cumprir suas obrigações religiosas. Os “encantos” só incorporam em “doutrinados”, os

“perturbados” nos “sujos”, os “perturbados” são pessoas mortas, e são também os “maus

pensamentos”, aquilo que não reclama a indianidade, aquilo que se afasta, não reclama

pertencer ao evento trabalho Kapinawá. Só quem não é “preparado” é que “recebe” os

“perturbado”, quem já tem “doutrina” não sofre, operando-se assim numa espécie de

79 “Considera-se índio aqueles que participam da tradição do toré, sendo, preferencialmente regimados na mesma, detendo a ciência do índio, aqui entendida como um corpo de saberes dinâmicos sobre o qual fundamenta-se o segredo da tribo”. (Grünewald, 1993: 103, itálico no original). O autor confirma ainda que “esse corpo de saber (o conhecimento sobre o Toré) é dinâmico e seus ingredientes mutáveis, pois novos elementos surgem durante os rituais e são incorporados pelos seus praticantes” (ibid., 2002: 122).

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oposições, onde a categoria “doutrinado” reporta-se a indianidade versos a não-indianidade

da categoria “perturbado”.

Os “mestres”, os “encantos” é que afastam os “perturbados”, e também “doutrinam”

aqueles que trabalham no ritual. Contra o ceticismo, e as visões laicas da etnicidade, o

trabalho se reporta a um conjunto de elementos valorativos da comunidade, da aldeia. No

trabalho, e mais amplamente, no torécoco, distribuem-se as categorias de organização da

vida tribal, suas alianças enquanto parentes, enquanto frutos de um mesmo passado, que

precisa ser “limpo”, renovado, compreendido, trabalhado, que reclama uma “doutrina”,

uma participação, a doação. É o símbolo da solidariedade, da comunhão, da troca, da ajuda,

do amor.

Apenas os “encantos” ou “mestres” é que tem seus “pontos”, suas “linhas”, o

“obcessor” não tem ponto pra cantar, as “perturbações” não têm “linhas”. A música (os

toantes) é o motor do culto, nela estão presentes grande parte da inteligibilidade do

“trabalho do índio”, a não-indianidade dos “perturbados” revela-se também,

conseqüentemente, no seu silêncio. Assim, categoria religiosas disponíveis num campo

religioso - o “complexo da jurema” -, são utilizadas neste “culto de jurema”, que representa

o toré Kapinawá. E num plano ainda maior no espaço social torécoco, na promoção de

categorias distintivas (indianidade versos não-indianidade que elas representam) que

clarificam uma religiosidade indígena, marca maior da etnicidade Kapinawá (porque

representativa de sua cultura tradicional) e que fazem sentido a partir das representações

deste espaço social (torécoco) que tentei retirar da análise dos discursos de meus

entrevistados.

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Capítulo III – O Samba-de-coco

“O samba é movido ao ritual indígena, mas é em tradição de samba”.

(Zé Moisés)

Nesta seção eu trato da introdução do samba-de-coco no toré Kapinawá. Este elemento

lúdico, que era o espaço social de divertimento e lazer dos habitantes mais antigos da Mina

Grande, deixara de ser realizado devido a substituição das casas de taipa pelas de tijolo. A

construção de uma residência de taipa era realizada convocando-se toda a comunidade para

realizar a parte mais árdua, assentar o chão. O barro deveria ser pisado a noite toda até

amanhecer o dia, para tanto, a ingestão de cachaça “era o combustível”80. Esta brincadeira,

este divertimento que não deixava de ser também um rigoroso esforço físico, era o espaço

social de produção artística mais valorizado pela comunidade. Ainda hoje os atuais

habitantes da Mina Grande lembram de João Mariano, João Bernadino, e principalmente de

Maria de João Mariano, que “tirava” versos e dançava um “samba pesado”, “minha mãe

dava gosto ver cantar, fazia verso na hora, com uma bicada viche!” (Lilia).

Pereira (2004: 253) faz um pequeno resgate histórico da presença do coco na

literatura sobre o Nordeste. A Missão de Pesquisas Folclóricas81 que esteve no Nordeste

entre janeiro de 1938 e julho deste mesmo ano, realizou na Baía da Traição, Paraíba, atual

território Potiguara, filmagens e gravações,

80 Também na região de Arcoverde o samba-de-coco era pisado na tapagem de casa de barro. Em entrevista, Assis Calixto (compositor e cantor do Samba-de-Coco Raízes de Arcoverde) contou que o samba tinha desaparecido até os anos noventa quando foi revitalizado por Lula Calixto, o fundador do “Raízes de Arcoverde”. 81 O grupo fazia parte do Departamento de Cultura do Município de São Paulo, e foi organizado por Mário de Andrade que na época era o Diretor do Departamento de Cultura e Chefe da divisão de Expansão Cultural do Município de São Paulo. (fonte: Ayala, 2000).

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“não só de torés mas também de cocos. Curiosamente, um dos filmes editados do material recolhido na ocasião apresenta uma dança circular, acompanhada por canto e zabumba, no sentido anti-horário, registrada como ‘coco de toré’ (...) Alvarenga (1960:145) não se ocupa dos registros do toré em Pernambuco e na Paraíba, fazendo, apenas, referência ao termo dentro da sessão dedicada ao Coco: ‘No Estado da Paraíba, existe também uma dança chamada toré, perfeitamente igual ao Coco pela coreografia e pela música’” (ibid.).

Segundo Estevão Palitot, que realiza o mestrado no PPGS (UFPB) e estuda os Potiguara da

Paraíba já há alguns anos, o grupo mantêm uma separação entre o toré e o coco, embora

tenham grande atenção a este último. Para este grupo indígena, o coco seria um elemento

de cultura “emprestado” pelos “não-índios”, por isto, como prática cultural não original do

grupo, o coco não é utilizado como símbolo étnico, apesar de sua presença ser constante em

celebrações cotidianas, como também nos festejos juninos.

Pereira (2004: 253), encontra referências a elementos indígenas no coco,

“Para Cascudo (1984: 237), no coco, ‘a influência africana é visível, mas sabemos que a disposição coreográfica coincide com as preferências dos bailados indígenas’, em Araújo (1967: 239) também o coco é apreendido como ‘dança afro-ameríndia’. Andrade (1993:67), ao referir-se aos cocos do afamado cantador paraibano Chico Antonio, detectava em algumas de suas letras ‘sobrevivências totêmicas’”.

Em Ayala (2000: 22) lê-se, “Vários estudiosos assinalam a origem negra dos cocos

(africana, para uns, alagoana, para outros), (...) São fortes as marcas da cultura negra nos

cocos, especialmente nos dançados”. 82

Talvez por isso, a própria denominação do que seja o coco (ou o samba-de-coco)

seja complicada, “Mário de Andrade em ‘A literatura dos cocos’ (...) refere-se à dificuldade

de precisão através de nomenclatura: ‘o coco anda por aí dando nome pra muita coisa

distinta. (...) Coco também é uma palavra vaga assim, e mais ou menos chega a se

confundir com toada e moda’” (Ayala, 2000: 21). Pereira (2004: 263-4) refere-se aos

nomes que o samba recebe na área Kapinawá como, “Samba de coco, samba de pisada,

coco, são alguns dos termos associados a este gênero de toada, misto de canto profano e

sagrado, podendo a cada momento tender mais para um lado ou para outro”. Além destes,

também chamam de samba de pareia, samba sete e meio, samba de toré e samba de

82 Em entrevista, Assis Calixto afirmou que o samba-de-coco é uma tradição que remete a cultura negra (africana).

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caboclo83. O mesmo autor ao estudar a musicologia de um samba de coco84 apreende que

este, “em termos rítmicos, melódicos e coreográficos, é comparável as demais

manifestações do gênero coco encontrados na região, como é o caso de Arcoverde,

importante epicentro do coco em Pernambuco” 85 (ibid.).

Perguntei em entrevista a Assis Calixto se ele conhecia o samba sete e meio, “Não,

existem muitas línguas né? Já em outros lugar chama maxurca, o trupé já saiu daqui, o

trupé é uma pisada que mostra o ritmo, é uma pisada mais rápida, é como seja uma bateria”.

Ora, o trupé (ou trupé II) é como os Pipipã chamam sua nova dança/toré86. Na área

Kapinawá, na aldeia Ponta da Várzea, o enfrentante Edson, cita o trupé como característica

dos índios Kambiwá, mas nenhum desses até onde sei incorporou o samba-de-coco ao toré.

O próprio Assis Calixto lembra que conheceu um índio chamado Antônio Xucuru que

transitou pela região de Arcoverde e brincava o coco com seu Assis, ele se recorda de uma

melodia trazida por este índio, “quem quiser mangar de mim eu não me importa não,

quando eu chegar lá na mata heiá heiá”, e complementa “é um ritmo como de índio”, de

fato esta toante é cantado nos Kapinawá e também na área Atikum87.

A presença do samba no toré Kapinawá parece ser uma exceção dentro do universo

dos torés no Nordeste indígena. O toré Kapinawá é festivo e lúdico. Eu já apontara isso

uma vez em Albuquerque (2002a: 16), “A grande preciosidade e característica dos

Kapinawá, é que o grupo parece realizar tudo com um misto de satisfação e empenho. O

lúdico é a singularidade destes torés”. Também no relatório a quatro mãos que ajudei a

83 “Aos caboclos (no candomblé de Angola) também se lhes oferece uma festa exclusiva. (...) O ritual dos ‘encantados’ – ou seja, os ‘caboclos’ – é chamado de ‘samba de caboclo’” (Mota & Barros, 2002: 41).

84 Eu tava no meio das matas No tronco tirando mé (x2) Chegou caboca Paulina, Paulina, meu canindé (x2) Chamei os meus dois caboco Cabocos, meu canindé (x2) Tapuia, meus índios, Tapuia Tapuia, meu canindé (x2) Eu já chamei meus dois caboco Caboco, meu canindé (x2) 85 Veja por exemplo os CDs: UFPB. Cocos. Alegria e Devoção. Coleção do Laboratório de Estudos da Oralidade. João Pessoa: s/d; e MARINHO, Cavalo. Coco Raízes de Arco Verde. Recife: s/d; e Godê Pavão. Recife, 2002; produzido por “Samba de Coco Raízes de Arcoverde”, co-produzido por Andrew Potter, Geraldo Lima e Iran Calixto. 86 Informação pessoal fornecida por Joselito A. Arcanjo, autor da dissertação “Toré e identidade étnica: os Pipipã de Kambixuru”, defendida no Mestrado em Antropologia do PPGA, UFPE, 2003. 87 De meus arquivos particulares.

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realizar para o LACED, ali se diz, “O toré é sentido e praticado a partir da estética e da

lógica do samba-de-coco, brincadeira conhecida pelos índios há mais tempo e que, a

despeito de também ser sagrada é, em grande medida, diversão” (Albuquerque & Palitot,

2002: 26). E por último Grünewald (2003: 20), “entre os Kapinawá, a jurema assume um

caráter bastante lúdico”. O fato de o culto criar ambigüidades, mesclar o sagrado e o

profano, não nos pode permitir estranhamentos severos. Durkheim (1996) em As Formas

Elementares da Vida Religiosa apresenta a idéia de que alguns cultos religiosos são

marcados pela ludicidade, o autor compara a estrutura de alguns cultos religiosos

aborígines australianos com a idéia de “representações dramáticas”, (ibid.: 416-7)88

aproximando a experiência religiosa da experiência estética, da arte,

“É por isso que a idéia mesma de uma cerimônia religiosa de certa importância desperta naturalmente a idéia de festa. Inversamente, toda festa, mesmo que puramente leiga por suas origens, tem certos traços da cerimônia religiosa, pois sempre tem por efeito aproximar os indivíduos, pôr em movimento as massas e suscitar, assim, um estado de efervescência, às vezes até de delírio, que não de deixa de ter parentesco como estado religioso. O homem é transportado para fora de si, distraído de suas ocupações e preocupações ordinárias. Por isso, observam-se em ambos os casos as mesmas manifestações: gritos, cantos, música, movimentos violentos, dança, busca de estimulantes que elevem o nível vital, etc.” (ibid: 417-8).

Também Ayala & Silva (2000: 117) identificam o hibridismo sacro-profano na

constituição de um espaço religioso,

“Recentemente encontramos vários cocos na jurema sagrada, uma das religiões afro-brasileiras que tem muitos adeptos na Paraíba. Muitos são cantados na brincadeira do coco e, ao se instalarem no ritual religioso, mesmo que sua temática aparentemente não tenha nenhum traço sagrado, se configuram como pontos. Pode-se afirmar que se tornam cânticos religiosos, no caso, pontos de gira, que são entoados durante os rituais, relacionados com uma ou outra entidade”.

A conclusão dos autores é a de que, “Quando se vai a uma sessão de jurema (...), é possível

perceber a semelhança que o ritual guarda com os ritmos do bairro. No espaço fechado do

ritual (o do terreiro) as entidades dançam os diferentes ritmos do espaço aberto da rua em

88 Segundo o autor: “estranhas a todo fim utilitário, fazem homens esquecerem o mundo real, transportando-os a um outro em que sua imaginação está mais à vontade. Elas distraem. Têm inclusive o aspecto exterior de uma recreação: os assistentes riem e se divertem abertamente.” (Durkheim, 1996:414).

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dia de festa: do samba, das tribos e do coco” (ibid.: 122). Parece-me pois que a solução de

hibridismo une elementos culturais constituintes dos “mundos culturais” nos quais as

pessoas transitam cotidianamente. Penso que de certa forma o mesmo ocorre entre os

Kapinawá.

Pereira (2004: 263-4) informa sobre os Kapinawá que, “Ao longo do toré, como já

salientei, teremos então a intercalação de toantes com sambas de coco. Esta é uma marca

do toré Kapinawá se comparado, por exemplo, com o de seus vizinhos Kambiwá e

Xucuru”. No site da fundação Joaquim Nabuco os Kapinawá são referidos da seguinte

maneira:

“Os remanescentes Kapinawá, uma comunidade com cerca de 800 índios, vivem em sistema de aldeamento, numa área de 12.260 hectares, na localidade de Mina Grande, no município de Buíque, em Pernambuco. A agricultura e o artesanato de palha são suas atividades básicas de subsistência. Como tradição dançam o toré, que é apresentado com músicas africanas e coco, e realizado num local chamado Furna, onde são encontrados restos mortais de humanos. Há informações que foram queimados muitos índios naquela localidade. Os Kapinawá não possuem idioma próprio”89. (grifos meus).

Assim, fica clara a peculiaridade do toré Kapinawá, em foco o seu hibridismo

(Barbosa, 2003). Pereira (ibid.: 263-4) escreve que,

“O fato é que tanto o coco quanto o toré, tomados em seus aspetos musico-coreográficos e de formação sócio-histórica, se aproximam bastante, o que para o caso Kapinawá pode nos ajudar a entender tanto a constituição atual de seu toré, quanto de como esta mistura foi possível ao longo das últimas décadas”.

Parece-me que o sincretismo contemporâneo à colonização européia no Brasil é a

base cultural dos gêneros musicais nordestinos. Como assinala Tinhorão (1998: 38-9):

“segundo revela a correspondência dos padres jesuítas desde a sua chegada à Bahia em 1549, até praticamente ao fim do século (...) toda a atividade musical ligada à catequese dos índios oscila entre esses dois pólos das danças e cantos coletivos populares para o folgar, e dos hinos

89 A fonte consultada foi: SÁ, Marilena Araújo de. "Yaathe" é a resistência dos Fulni-ô. Revista do Conselho Estadual de Cultura, Recife, Ed. especial, p.48-54, 2002. (ver: http://www.fundaj.gov.br).

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e cantos eruditos da Igreja Católica (à base de cantochão e órgão) para os atos solenes rituais ou de estímulo à devoção religiosa.”

Assim, tinha-se no Brasil a mesma divisão que se operava na Europa, ou seja, dividia-se a

música entre aquela para o folgar, a brincadeira, o profano, e a música religiosa, erudita.

No Brasil, porém, acontecia que para os planos da catequese era mais fácil atrair os nativos

para a religião católica através de uma modificação dos sentidos da música européia,

oscilando-a a favor dos catequizadores entre o profano e o sagrado,

“a semelhança entre a tradição de canto e dança tribal dos naturais da terra e dos campos portugueses, caracterizadas ambas pela participação coletiva, iria determinar a opção dos padres por esta forma, inclusive porque efetivamente era a que melhor se enquadrava aos propósitos da catequese e evangelização em massa.” (ibid:39)

Ao optar por catequizar os índios brasileiros ao som das músicas populares

campesinas portuguesas, modificando-lhes a letra e impondo-as um lirismo religioso, a

situação histórica desta música aqui chegada foi rapidamente modificada para atender

rapidamente aos propósitos de catequese católica. As folias eram as grandes manifestações

do popular europeu à época do contato. Foram estas folias que aqui no Brasil se prestaram a

encenações religiosas, elas:

“constituíram a primeira concessão dos jesuítas ao natural desejo de diversão mais livre dos devotos. Segundo observaria ainda Serafim Leite, os primeiros contatos com os índios foram propiciados exatamente pela ‘música de caráter exclusivamente popular no gênero de folia’, ao que acrescentava para não deixar dúvida quanto a origem profana da criação: ‘Folia a que se não deve atribuir nenhum caráter religioso, mas de simples e honesta diversão popular’” (ibid:41).

Assim, à medida que estes grupos indígenas tomavam contato com outros grupos sob os

mesmos aldeamentos religiosos, uma cultura religiosa e musical distinta foi sendo formada

à luz da experiência sincrética entre os rituais nativos, com festa e religião, e o cerimonial

da igreja, que para se tornar legível, optou por popularizar sua estrutura musical, o que

gerou simbiose e mudanças de sentidos.

Entre os Kapinawá atualmente a visão dos folgares antigos, e sua semântica, são

empregadas nas letras das canções dos toantes e samba-de-coco. Não só entre eles mas

entre vários outros grupos indígenas nordestinos. O folgar, ou forgar é ainda expressão de

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dança e canto, a apresentação num toré, a performance da brincadeira90. Levando a pensar

se não seria o forgar já a própria representação do hibridismo sacro-profano e músico-

coreográfico, que somaria a performance do samba-de-coco à do toré. Ou seja,

possivelmente a estrutura do samba-de-coco e a do toré tenham uma base comum, que

dificilmente eu poderia detectar com exatidão.

Neste momento, porém, é curioso perceber que ao utilizar-se do aparato

ritualístico sacro e profano indígena (mesmo porque não é exato pensar que estes indígenas

separavam a vida social entre “sacro” e “profano” tão rigorosamente como o ocidente) para

divulgar o cristianismo, as ações de catequese portuguesa ajudaram a constituir no Nordeste

brasileiro uma cultura religiosa indígena que manteve em determinado grau elementos

sincréticos, profanos. Possivelmente esta cultura musical e coreográfica original deve ter se

estruturado também para outros tipos de performances, dentre elas até mesmo o samba-de-

coco, do qual os Kapinawá, que não sabiam o toré, eram exímios conhecedores. Lembro

que Zé Moisés falou, “Então pra não ajuntar o grupo e ir pra uma sala dançar o coco só, a

gente já pra não tá assim, já tamo no toré, nós canta a linha de ritual e de samba-de-coco

junto ali pra gente forga pra não perder a tradição”. A forga (ou forgar) pode ser pensada

90 Como se lê nestes toantes: “Cheguei na minha aldeia Cheguei de pé no chão Eu venho trazendo perneira Chapéu de coro e gibão Pra eu forgar com meus caboclo Lá na aldeia da missão Heina, hoa Heina, heiá-lande, heiá-landá” E também, “Lá no pé de amargoso Lá num pé de jatobá Lá era nosso terreiro Onde nóis ia forgar Lá era nosso terreiro Onde nóis ia forgar (...) Eu vim baixar aqui, mas aqui eu vim forgar Sou filho natural de aldeia da tribi Kapinawá.”

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como uma expressão que revela uma identidade comum à performance tanto do samba-de-

coco quanto do toré. Assim parece concordar Pereira (ibid.: 263-4),

“Para além de um gênero musical, podemos entender o samba de coco como expressão do que Albuquerque (2004a) chamou do forgar kapinawá, música e dança praticadas pelo grupo desde antes do aprendizado do toré, desde antes do grupo se autodenominar de Kapinawá. Nestes, brinca-se, comum ao coco no nordeste de um modo geral, mas ainda se fazendo referência no canto a encantos e à origem indígena”.

Deste modo, algum tempo antes da emergência étnica Kapinawá, as casas de taipa

começaram a ser substituídas pelas de tijolo e telha, o que comprometeu a continuidade da

brincadeira do samba-de-coco. De que modo ele sobreviveu? Como é o samba-de-coco

realizado hoje na Mina Grande? Em que ocasião e em que lugar ele é realizado? A

introdução do samba-de-coco no toré Kapinawá pode ser mais um elemento que corrobore

a minha opinião de que é legítimo reconhecer no que chamo de torécoco um espaço social

vigoroso, aberto e plural.

Eu conversava com Zé Moisés sobre a situação do samba-de-coco,

“Antes de reconhecer que era índio brincava o samba-de-coco? Antes de ser reconhecido a nossa tradição era o samba de coco, juntava a comunidade brincava na casa de um de outro. A tradição era o samba de coco. Mesmo que não tinha a casa pra tapar? Mesmo sem casa pra tapa ou aterrar tinha brincadeira. Depois da aldeia brincamos o toré e também não esquecemos a nossa tradição indígena dos nossos antepassados, que era o samba-de-coco. Brinca o samba no toré. Quando tava levantando a aldeia, brincava o samba-de-coco sem ser no toré? Brincava tudo junto, nós brincava no toré o samba-de-coco e brincava o toré; ás vezes brincava o toré no sábado e o samba no Domingo”. Lilia recorda o mesmo momento com alguma diferença,

“Mas até então só tinha o samba-de-coco? Era, samba e reza, era o mais que agente conhecia. Brincava o samba-de-coco ou já tinha esquecido?

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Não, nós dançava o samba-de-coco, quando aterrava as casa dançava, mas deixemo um pouquinho, depois desse toré aí deixemo um pouquinho”.

Também Zé Caetano relembrou comigo a história do samba, um pouco mais de

acordo com Lilia,

“Um pouco antes de levantar a aldeia aqui o povo ainda brincava o samba-de-coco? Brincava! Nunca deixamos de brincar. O samba-de-coco foi deixado depois que pegaram fazer casas de tijolo, mas nos tempos de taipa, toda tapação tinha samba. Tomava uma cachaçinha quando era tapação de casa, era o samba-de-coco e a cachaçinha. Depois das casas de tijolo deixaram. E depois que virou aldeia aqui, aí o pessoal passou a brincar no toré? Foi! O samba-de-coco acompanhou o toré, a tradição já é uma só, porque a pisada é quase igual. Dança samba-de-coco agora só quando tem toré. Quer dizer que quando virou aldeia além de descobrir a música do índio também trouxe de volta o samba? Foi!”.

Com relação ao fim do samba-de-coco num período anterior ao levantamento da

aldeia, Zé Moisés considera que isso ocorreu porque,

“Quem cantava mais era os poetas, os mais antigos já se foram, não tem quem tire mais o samba-de-coco, aí hoje agente brinca o samba no toré, porque não tem quem tire mais. Quem era que puxava os sambas? Era João Bernardino, João Mariano, Maria de João Mariano, Vidálio. Não passou pra ninguém? Uns pegaram uns pés, a mãe dela é que cantava (mãe de Jacira e Lilia, a já citada Maria de João Mariano) ‘o cabo da vassoura cai’. Então pra não ajuntar o grupo e ir pra uma sala dançar o coco só, agente já pra não tá assim, já tamo no toré, nós canta a linha de ritual e de samba-de-coco junto ali pra gente forga pra não perder a tradição”.

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Zé Moisés se refere ao samba-de-coco como uma tradição indígena, de que

modo ele a concebe?

“O samba-de-coco é uma tradição de todos os índios ou só dos daqui? Toda aldeia tem samba-de-coco, mas só que aqui é diferente de outras aldeias. Porque? Porque aqui nós temos o samba 7 ½ (o sete e meio)91, e a outras áreas dança, mas é esquisito, não é como aqui, não tem a pisada daqui. Mas nas outras áreas o povo tem a pisada do samba no toré ou só fora? Nas outras áreas a pisada é fora do toré e aqui não. Só aqui, aldeia que tem toré e samba. Porque o samba era uma tradição de tempos anterior. Quando nos tivemos o fundamento da nossa área indígena na frente aí pegou o ritual e samba-de-coco, tudo uma linha só”.

Para Jaime, que como Zé Moisés também foi pajé, o samba-de-coco é

inegavelmente uma tradição dos índios Kapinawá.

“Os Fulni-ô, os Xucuru não perderam a tradição deles. Mas aqui vocês perderam? Foi, acabou-se tudo. O samba-de-coco é tradição de vocês? É, é antigo. Mas o samba é tradição do índio? Dos negro, acho que vem do negro, é considerado o samba-de-coco sete e meio, eu desde criança na tapagem de casa, antes da aldeia, eles iam dançar lá na serrinha. Mas aqui tinha negro? Não. Mas como veio parar aqui, o senhor sabe?

91 Procurei saber como é exatamente o samba-de-coco sete e meio, pelo que Zé Moisés e outros me mostrassem, o distinguem pelos passos, pela marcação dos pés no chão, que pela minha conta de músico amador dá exatamente sete tempos (às vezes seis) com uma pequena pausa para batida final mais forte, recomeça a conta.

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Não, mas é dos mais velho. Mas o senhor considera o samba-de-coco de hoje é tradição do índio? É sim, é tradição do índio. Eu tenho cinqüenta e seis anos e já nasci nessa tradição. Esse samba que eu cantei ali92 eu via de criança essa velhinha Totonha cantando ele ali e eu não sabia o que era, agora depois de 81 pra cá a filha dela cantava, no ritual sagrado, no idioma”.

Não importando a origem do samba-de-coco, importa sua ancestralidade como elemento

cultural, sua referência a uma prática “dos antigos”. O samba-de-coco é tradição do índio

Kapinawá porque o samba tem uma presença histórica na área, e como tradição que remete

ao passado, - já que aqui a tradição é entendida como presente e passado -, a tradição é

sempre renovada, com isso, o samba também ganhou novos arranjos e novas composições,

ainda segundo Jaime,

“O samba vocês compõem ou é tudo tradição antiga? Tem muita gente que compõem, um exemplo, um velhinho dali fez assim, quando os branco queria tirar tomar, ‘a Mina Grande é minha já tomei tá tomado, a Mina Grande é minha já tomei tá tomado’, ele fez um samba; tem outro, ‘eu dei um tombo nessa serra ela virou, nunca mais ela endireitou pro outro lado’, fala da retomada da mão dos brancos”.

E novos, os sambas narram a vida dos Kapinawá, um pouco do conflito, da conquista, e da

memória desta história.

Zé Moisés reconhece a presença do samba-de-coco no toré como uma tradição, “do

toré pra cá foi que veio a tradição, veio o samba-de-coco, veio o ritual indígena. Dança aí

naquele meio entra o samba-de-coco, aí entra no toré, na frente mais samba-de-coco, aí

pula prum outro linha ritual, é assim, vai trocando”. Ao unir-se ao toré, o samba-de-coco

passa a ser reconhecido como uma tradição, não mais dos antigos apenas, mas ao ser

incorporado ao toré, ganhou o status de tradição indígena, ao mesmo tempo presente e

passado Kapinawá.

De “brincadeira” o samba passa a representar uma tradição dos índios Kapinawá, e

passa, deste modo, por algumas transformações, para Lilia, “O samba é um o toré é outro, 92“O caminho daquela furna já mandei-o ladriá é de ouro e prata fina para os meus índios passeá heiando heiá heiando heiá hoandeia hoá hodandeia hoá”

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depois que inventemo o toré aí inventemo o samba-de-coco em toré também”. Se assim foi,

pareceu-me oportuno perguntar uma vez a Zé Moises se,

“Quando levantou a aldeia que começou a brincar com os toantes, teve gente que começou a criar uns sambas novos que não existia? Quando começou a aldeia, o ritual, não foi criado o samba, a gente sempre via coisa anterior. Aí, no ritual foi lançado esse samba a cabocla Paulina93, que é samba-de-coco, mas sendo ritual indígena, mas sendo em samba, a pisada é em samba. Tem outros, tudo no ritual indígena samba, só que a pisada do ritual indígena pega samba e tem o toré que é só. Quer dizer que tem toante com a pisada do samba? É, e tem o toré que é outra pisada, a pisada tem o toante que pisa normal e seguido, já o samba não é seguido, a pisada completa, pega dois empariado e o pau come”.

Zé Caetano também reconhece que o samba sofreu algumas transformações ao ser

introduzido no toré.

“Desde que o samba-de-coco que canta pra aterrar uma casa é outro, diferente do toré, aí esse samba-de-coco já é tradição do toré: ‘caboclo saia da mata caboclo’, olha, já tá falando de caboclo, o de antigamente não fala em caboclo não. O samba de caboclo é diferente, mas parece. Tem um samba de caboclo que é de mim mesmo, que eu nunca vi na minha vida, ‘mas ô mando-a o mandá, mas agora eu vou cantar, o mando-a o mandá, agora eu vou cantar, mas pensava que eu não sabia, canto sexta e canto sábado até domingo ao meio-dia’; fui eu que fiz, esse samba nós canta falando assim dos caboclo”.94

Lilia o segue, embora de maneira menos clara,

93 Eu tava no meio das matas num tronco tirando mé Chegou cabocla Paulina, Paulina, meu canindé Chamei os meus dois caboclo, caboclos, meu canindé Tapuia, meus índios, Tapuia, Tapuia, meu canindé Eu já chamei meus dois caboclo, caboclo, meu Canindé”. 94 “vale lembrar que os cocos que costumeiramente são encontrados na brincadeira do coco, ao serem cantados na jurema (Jurema Sagrada, “religião afro-brasileira”) da Torre (bairro da cidade de João Pessoa - PB), ganham algumas alterações na letra” Ayala & Silva (2000: 134).

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“Eu mesmo acho que o samba-de-coco é um, e sendo da parte de toré é outro, tem diferença. O samba tem a brincadeira mas tem gente que irradia não tem? Sendo cantado na parte do toré a pessoa sente qualquer coisa, mas sendo só a parte de samba mesmo não. Mas tem samba que canta pra caboclo, meio toré? Tem. Quando brincava só o samba ninguém nunca tinha sentido essas coisas não né? Não”.

Ou seja, as irradiações podem ocorrer se o samba for cantado dentro do toré, no ritual, fora

dele o samba é só pra brincar. Pedinha recorda que a mesma Lilia recebe “uns caboclo” no

samba, “Tem caboclo que irradia quando o pessoal tá cantando samba? Tem, tem uma

cabocla que é quem baixa nela que canta samba (fala de Lilia). Quer dizer que os encanto

vem tanto no toré quanto no coco? Vem, quando canta o samba da cabocla Dalila95 é difícil

não manifestar três ou quatro”.

Para Zé Moisés, porém, há um limite para o intercâmbio do samba com os encantos

do toré.

“O samba não tem a parte do toré, a jurema; a jurema traz a ciência, os nossos mensageiros, aqueles que tão brincando ficam lá no terreiro do cruzeiro, quando eles saem aí a gente brinca o samba-de-coco. Quer dizer que o samba-de-coco é uma brincadeira sem trabalhar com os encantos? É uma brincadeira da gente mesmo, é uma tradição só nossa aqui. É um divertimento. É uma tradição só nossa sem precisar de nada, é a força cultural da origem da terra. Quer dizer que não canta samba no começo do toré? Não canta samba no começo do toré, só no meio ou no fim. E não pode beber jurema sendo o samba?

95 “Foi a cabocla Dalila que chegou pra leriá (2x) Ela é cabocla ela é flecheira, ela é faceira no andar, Por cima de pau e pedra só baixa pra trabaiá”.

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Só no samba não pode beber jurema, mas no ritual se já tiver no ritual e cantar o samba pode beber jurema. É porque tem a linha da jurema. O samba-de-coco não trabalha com essa linha? Não, o samba não trabalha com a linha da jurema. Só tem a linha da caboclinha Paulina, é um samba-de-coco, é um encanto, é um samba. A cabocla Paulina é um encanto? É um encanto; o samba é movido ao ritual indígena, mas é em tradição de samba. Esse samba é coisa antiga ou é mais nova?

Já vem coisa nova, depois da aldeia, quando a gente começemo a brincar este samba foi do ritual pra cá”.

Embora ele diga que o samba não trabalha com a jurema, apresenta exatamente um samba

para uma cabocla que “trabalha na jurema”, um “encanto”. É um encanto trazido, “movido

ao ritual indígena”, mas apresentado na “tradição de samba”, que por sinal aqui é uma pura

tradição indígena Kapinawá. Nossa conversa continua,

“Tem samba que serve pra fechar o trabalho? Não, o samba não serve pra isso, porque o samba não é registrado por memória de jurema. O terreiro é registrado com a memória da jurema aí não tem. Brinca os sambas e por último é que é um toante pra fechar o trabalho? É, abrimos com a jurema fecha com a jurema, no meio pode brincar, cantar o que vim no meio da idéia, só não pode esquecer que tem o começo e o final”.

E eu não posso aqui discordar, esta regra que possivelmente os dois índios Kambiwá (Dôca

e Zé Índio) devem ter deixado, e eu mesmo a observei sendo cumprida.

Mas de que modo eles (Dôca e Zé Índio) receberam o samba-de-coco no toré

Kapinawá? Zé Moisés continua respondendo,

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“Quando o Dôca tava ajudando vocês no toré, ele não falou nada não? Não, ele não reclamou nada. Ele dizia que era tudo uma coisa só. Ele reconhecia que era uma tradição de vocês? Mesmo que não fosse índio tava comprovando como tem a cultura indígena pelo samba-de-coco. Zé Índio achou normal também. Eles também brincavam com vocês? O Zé Índio também cantava um sambinha, mas ele já era velho não agüentava trupé de home novo no samba. Ele dizia quando tava cantando, ‘vocês agora canta aí um sambinha daqueles, pra nós brincar’”.

Lilia acentua o caráter do étnico a minha pergunta,

“Mas eles não acharam estranho dançar o samba no toré não? Eles gostavam, sabiam que essa era a missão do índio. Então o samba é do índio? É. Ele nunca falou nada, desse jeito era. Dôca achava bonito, ele cantava toante que dava pra dançar o samba-de-coco. O Zé Índio explicou que essa força era dos índios? Já era a força natural da terra, de rezar, dançar o samba-de-coco, fazer artesanato, muitas coisas, já era força da terra mesmo. Zé Índio reconheceu a força mesmo. Nós não somos índio limpo mesmo, somos descendentes, Zé Índio foi na furna e viu, provou que a terra é mesmo dos índios”.

Fica muito claro neste trecho da entrevista de Lilia e Zé Moisés como eles remetem

a idéia do que considero como étnico, ou eles tradição, ao samba-de-coco. Como se a

presença desse elemento comprovasse uma solidariedade de grupo, uma singularidade, um

“sinal diacrítico” (Barth, 1998), um elemento demarcador da fronteira, já que “mesmo que

não fosse índio”, como uma categoria estática, que remete a uma ancestralidade, “tava

comprovando como tem a cultura indígena pelo samba-de-coco”, como símbolo de um

grupo, como se indígena aqui revelasse uma presença histórica de uma fronteira, mesmo

que não expressa, ainda, em termos étnicos. Já que mesmo antes de levantarem a aldeia, os

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moradores da Mina Grande eram conhecidos na região pelos sambas que cantavam, sendo

mesmo chamados de “os caboclos do samba da Mina Grande”96.

Arlindo conta que,

“A gente não recebia o nome de índio assim, nem entendia, era os caboclo, nome de índio era esquecido pra nós. A gente sabia que existia índio, só que índio adonde? Lá pro lado da Amazônia, aquelas quebrada lá. Agora caboclo a gente era caboclo, os caboclo da Mina Grande, pra todo canto que a gente saia, aí nóis recebia o nome dos caboclo. Vocês aqui sabiam que tinham uma diferença pro povo dos outros cantos? É, que nós tava no meio dos brancos, só que nós tinha uma diferença, que nós tinha o nome de caboclo, no meio dos brancos, nós chegava, nós era conhecido não como branco, mas como caboclo, os caboclo da Mina Grande. Os caboclo do samba-de-coco, do trupé pesado? É. (Dôra) Tinha o nome dela, de cabocla Dalila, cabocla Jacira. Tinha já esses nomes aqui? Já, tinha a cabocla Joaquina, caboclo Antônio, que é irmão de Joaquina, os caboclo era Jiribina, Tropiá, era meio mundo de caboclo. (Arlindo) Só nome de caboclo, agora de índio não. Esses nomes de caboclo era de que, dos caboclo que tinha vivido aqui e morrido? É, os antepassados. E vocês sabiam que eram seus antepassados? Sabia, sabia que tinha tido tiroteio na furna e tinham matado muitos caboclos, e cadê? Não, os caboclo fugiram, outros morreram. Os caboclo foram mortos pelos brancos na furna né? É. Mas já tinha essa historia antes da luta né? É, só que não com o nome de índio, com nome de caboclo. Inclusive, a furna é chamada a Furna dos Caboclo, nós recebemos o nome de índio, só que a furna é a Furna dos Caboclo, não sai nunca. Nós pensava que nós era caboclo porque nós era moreno, e eles lá eram branco alvo, mas a historia não é bem assim, caboclo é no sangue e não na cor”.

96 Como me explicou o Sr. Alvino, a comunidade da Mina Grande era mesmo chamada para apresentações fora, de modo a comprovar a famosa pisada deles no samba-de-coco.

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A categoria caboclo além de permitir a continuidade histórica de uma fronteira

étnica entre os Kapinawá e os sítios e cidades vizinhas, permitiu que o samba-de-coco

assumisse um “ar” de mistério, sendo enaltecida uma impressionante performance na

“pisada pesada dos caboclos”97. A música do samba-de-coco pôde inclusive ser um dos

vetores étnicos, já que o samba dos caboclos da Mina Grande era um diferencial. Embora

ele fosse também, como o catolicismo (benditos e rezas), um elemento de cultura comum

na região, o samba na Mina Grande era muito valorizado, talvez mesmo pela presença de

ótimos rimadores (as) e dançarinos (as), como revela a sua constância na memória e nos

discursos nativos.

O étnico para Zé Moisés, penso eu, é entendido como tradição, e como tradição, a

presença dos sambas no toré remete ao passado, quando o samba os identificava em

algumas circunstâncias como um grupo. E como singularidade, ao mesmo tempo antiga e

nova, o samba entra no toré, “já tamo no toré, nós canta a linha de ritual e de samba-de-

coco junto ali pra gente forga pra não perder a tradição”, visto que agora a tradição do

samba ganhou um novo espaço pra se realizar, um espaço que não coincidentemente é o

espaço da invenção da tradição Kapinawá. A tradição remete ao passado, mas é sempre

preenchida por um senso de coletividade, e a coletividade não é puramente imaginada, mas

vivida contemporaneamente, estando talvez aí o argumento final para caracterizar o samba

como um elemento de cultura tradicional da comunidade indígena Kapinawá.

Talvez por isso mesmo, as irradiações de Edson (jovem rapaz morador da aldeia,

vizinha a Mina Grande, Ponta da Várzea) são mais vibrantes quando ele puxa um “samba

de caboclo”, como ele chamou ao explicar-me o assunto. Edson transita entre a área

Kapinawá e a vizinha Xucuru, onde também “trabalha” no toré. Lá, “eles não cantam o

samba no toré”, mas aceitam que Edson puxe um, e mesmo que ele irradie e trabalhe com

essa linha. Para Edson, portanto, não há diferença dentro do trabalho espiritual o toante ou

o samba-de-coco. Ele lembra que os próprios Xucuru incorporaram sambas como toantes,

ou seja, permaneceu a letra dos sambas, mas modificou-se o ritmo para o de toante. No

trabalho que assisti com ele na Ponta da Várzea, pude constatar a forte presença das

97 Ouvi histórias da época em que os “caboclos da Mina Grande” iam se apresentar em algum sítio fora da área e impressionavam os anfitriões com performances de improviso de versos e com pisadas que “derrubavam o reboco das paredes”.

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irradiações quando ele cantava os “sambas de caboclo”, ou seja, sambas no ritmo, mas com

a lírica dos toantes, tal como lembrado por Zé Caetano, Lilia e Pedinha nas entrevistas

acima. O contrário dos Xucuru, mas que aqui faz, a partir desta construção histórica que

tentei mostra, todo o sentido.

Como está transcrito acima os Kapinawá se referiam aos parentes e moradores

antigos pelo nome de caboclos, “Os caboclo do samba de coco, do trupé pesado? É. (Dôra)

tinha o nome dela, de cabocla Dalila, cabocla Jacira. Tinha já esses nomes aqui? Já, tinha a

cabocla Joaquina, caboclo Antônio que é irmão de Joaquina, os caboclo era Jiribina,

Tropiá, era meio mundo de caboclo. (Arlindo) Só nome de caboclo, agora de índio não”.

Esta referência ao meu ver reforça a idéia de que o samba-de-coco contribuiu no toré com

elementos culturais além da música em si. Isso permitiu aos Kapinawá retirarem de um

espaço de tradição antiga, o coco, um elemento que se adequou ao discurso religioso e

étnico, ou seja, nomes de caboclas como, por exemplo, Dalila e Paulina são cantados em

sambas-de-coco, ao mesmo tempo em que reconhecidos como moradoras antigas da área.

Porque os antigos são lembrados em sambas-de-coco? Ao identificarem em nomes

como Dalila, Paulina, os caboclos, os antepassados, ou apenas os moradores antigos da

área, e citá-los em sambas-de-coco, os Kapinawá recuperam referências a cultura do coco, e

também a sua história, sua memória. Recordo minha conversa com Pedinha, “Quer dizer

que os encanto vem tanto no toré quanto no coco? Vem, quando canta o samba da cabocla

Dalila é difícil não manifestar três ou quatro”. Zé Moises também filiou uma cabocla, um

antepassado Kapinawá segundo Arlindo e Dôra, ao samba-de-coco, “Quando levantou a

ladeia que começou a brincar com os toantes, teve gente que começou a criar uns sambas

novos que não existia? Quando começou a aldeia, o ritual, não foi criado o samba, a gente

sempre via coisa anterior. Aí, no ritual foi lançado esse samba a cabocla Paulina, que é

samba-de-coco, mas sendo ritual indígena, mas sendo em samba, a pisada é em samba”.

Já a cabocla Joaquina98 tem um enredo mais intricado. Joaquina é o nome da avó de

Lilia, - Lilia é apelido, seu nome é Maria Antonia da Conceição. Joaquina é mãe de João

Mariano, pai de Lilia, que é lembrado, tal como a mãe, como um ótimo tirador de verso no

samba. Jaime diz que ela (Joaquina) é que cantava o toante mais antigo que os Kapinawá

conhecem, - ver adiante. Muitos “tiradores de versos”, que eram bons no samba traziam

98 “Ô Joaquina, ô Joaquina, Maria da Conceição, baixa aqui nesse terreiro pra afastar as perturbação”. Este no caso não é um samba-de-coco, mas sim um toante.

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também de memória alguns trechos de toantes, e mesmo muitas melodias que não eram

reconhecidas como toantes. Deste modo o samba trouxe para o toré mais que uma

participação no espaço da dança e música, ele promoveu inclusive o aumento do panteão de

entidades que trabalham no toré, ao mesmo tempo em que afirma a história e a memória,

tanto da comunidade quanto deste gênero musical, e mesmo de seus melhores intérpretes.99

Este é um dos pontos mais fortes nesta demarcação dos elementos que compõem o

toré Kapinawá. O samba-de-coco é um elemento comum na região, por isso mesmo o

samba dos Kapinawá pode ser divulgado com certa pompa, visto que eles estão na região

brasileira que mais caracteristicamente tem o samba por tradição100. O torécoco Kapinawá,

ao incorporar o samba como elemento do rito e da própria crença (vide as linhas de samba

de caboclo, por exemplo), permitiu que o elemento de tradição musical dos antigos

continuasse, ao mesmo tempo em que este elemento se modificasse, e permitisse suas

próprias mutações a fim de se adequar ao novo quadro histórico, social e porque não

artístico que se produziu na Mina Grande e principalmente na esfera pública da tribo que o

termo torécoco quer englobar.

Se o toré é, “‘trabalho, no mesmo sentido de ‘trabalho espiritual’ dos cultos

chamados mediúnicos, mas é também uma ‘brincadeira’, espécie de festa e encontro social

de todas as semanas” (Nascimento; s/d.: 18), o forgar é por isso trabalho e “brincadeira”101,

e o samba-de-coco como “brincadeira” ao se incorporar no espaço ritual do toré, passa a ter

na sua maneira de forgar, o sentido de trabalho também. Deste modo, a forga aparece

como um elemento estrutural de união, não só pelas características coreo-musicais comuns

99 Em Mendonça (2003; 57) há uma referência a “dança do coco”, num sítio (Jurubeba) da hoje área indígena Pankará. Segundo os informantes da pesquisadora, o coco é uma tradição que remete a presença negra na área, e era praticado nos quintais das casas ou durante o processo de produção da farinha. Na citação que faz de uma linha aparece algo curioso, a linha é: “Coco dendê trapiá/Coco dendê trapiá/Tá na hora de cantar/Tá na hora de cantar”, (ibid.). Trapiá, transformado em Tropiá, pois semanticamente próximo, é reconhecido por alguns Kapinawá como um caboclo da furna, um encanto, um antepassado seu, possivelmente assassinado por brancos na mesma Furna dos caboclos. Arlindo inclusive o cita na composição (toante, não samba-de-coco) que fez sobre este evento, a partir da incorporação do mestre Jiribina - outro caboclo assassinado na furna pelos brancos – em Dôra (ver capítulo IV). 100 Vide o grupo “Samba-de-Coco Raízes de Arcoverde”, da cidade homônima, vizinha a área Kapinawá; talvez um dos grupos do gênero mais conhecidos no Brasil hoje. Ver também nota 06. 101 “Na história oral dos Xocó de Sergipe há um incidente com representantes da Igreja Católica que obrigou os índios a transformarem seus torés religiosos em danças e cantos de ‘brincadeira’, perdendo sua sacralidade. (...) O canto deixou de ser língua indígena, que se perdeu, para ser uma cantiga em português e ‘de brincadeira’, passível portanto de ser entendido e controlado. O termo ‘brincar’, no entanto, remete a outras instâncias do ritual, que é chamado ora de ‘trabalho’, ora de ‘brincadeira’, tendo um carácter sacro, portanto, sem perder a dimensão do prazer, pois o estado de possessão espiritual, presente nos ‘trabalhos’, é considerado prazeiroso” (Mota & Barros; 2002: 55).

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ao samba e ao toré, mas também como expressão que supera o dualismo sacro/profano.

“Brincadeira” e trabalho estariam unidos pelos termos forgar e “pisar”102, que são usados

tanto para descrever o trabalho no toré, quanto a “brincadeira” no samba-de-coco. Deste

modo, constrói-se uma dialética no espaço torécoco, constitutiva do espaço do étnico, onde

o torécoco é, por isso mesmo, o espaço por excelência de exibição do étnico.

102 Este samba de caboclo é cantado por Zé Caetano, “Ô mando-a, ô mandá, Mas agora eu vou cantar Mas eu agora vou forgar E agora eu vou chamar Os caboclo pra vim forgar Mas eu sou filho dessa aldeia E da aldeia Kapinawá Eu quero ver mais meus caboclo Eu quero ver ele pisar Mas a pisada é da índio Ô da aldeia Kapinawá”

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Capítulo IV - A Composição

“Vou contar como surgiu, a música é uma história.”

(Jaime, ex-pajé Kapinawá)

Este capítulo trata da composição. A composição marca uma grande novidade na cultura

musical dos Kapinawá. O canto e a dança são indiscutivelmente pontos altos de qualquer

toré, são em si “o ato” que permite ao ritual acontecer. Mas aqui é fundamental reconhecer

que o toré só existe porque existem as linhas ou os toantes,e são os cantos criados pelos

próprios Kapinawá que constituirão parte do repertório de seu toré. Cantar e dançar eram já

coisas comuns aos Kapinawá, isso porque ambos eram praticados e refinados nas rezas e

nas brincadeiras do samba-de-coco na tapagem das casas de barro. Eles não compunham

músicas antes de levantarem a aldeia, somente a geração dos pais dos compositores

contemporâneos é que faziam sambas, e rimavam, por isso, a composição aparece de

maneira bastante original.

Para contar a história da constituição do repertório musical do toré Kapinawá,

selecionei algumas etapas deste processo que considero mais relevantes. Assim, este

capítulo divide-se nas seguintes seções:

- Irradiação no toré

- Limpezas espirituais com curadores / “doutrinadores”

- Recebendo o Dom (o que é o Dom?)

- Compondo

- Toré ampliado

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Irradiação no toré

O primeiro evento que escolhi como símbolo da gênese das composições é o fenômeno da

irradiação. Pela história da emergência étnica Kapinawá sabe-se que o toré não era um

evento na vida dos moradores da Mina Grande. Quando os dois índios de fora, Dôca e Zé

Índio, começaram a ensinar o toré, ergueram um cruzeiro e fundaram um terreiro, o

fenômeno da mediunidade começou a se apresentar em algumas pessoas que brincavam o

toré. D. Lilia lembra que ninguém de fato mexia com a mediunidade na área Kapinawá

antes da entrada destes índios, “antes de ter o ritual ninguém trabalhava com os encantado

não, né? Não, não tinha não, de jeito nenhum”. D. Dôra também concorda que a

mediunidade era-lhes desconhecida,

“Antes de virar aldeia D. Dôra, a senhora trabalhava com espíritos? Não, esse negócio meu foi quando Zé Índio chegou aqui. Só que eu senti uma coisa que eu tinha, mas, desde solteira, desde criança, que tinha dia que eu tava dum jeito de dia de outro. Tinha mas não sabia o que era? Não sabia o que era, quer dizer que tava que nem uma coisa encapado, que nos não sabia o que era, porque no ano que me casei não podia falar nada que eu já partia pra riba dele (do marido), pra comê-lo de dente, que era nisso eu? Com aquele nervoso, aquilo não era normal”.

Dona Lilia passou a conhecer sua mediunidade a partir da participação no toré.

“A senhora também irradia? É tenho as minhas proteção, assim, da aquela vontade de cantar e dançar. Quando foi que a senhora sentiu que tinha essa coisa? Foi quando Zé Índio chegou, foi assim que ele começou a cantar as cantigas e dançar, aí foi, quem tinha alguma coisa aí sentiu. A senhora não achou estranho não? A primeira vez eu achei, achei assim, meu Deus o que é isso, acho que não vou gostar muito não. Aí Dôca disse que quem sentir alguma coisa que vá lá pra casa pra gente ver o que é, aí eu fui. Ele rezava olhava, fazia a medicina dele, aí dizia que agente tinha radiação. Aí depois eu fiquei meio assim, e fui pra casa de um home em Buíque, perguntei se era certo, pra dar

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um jeito de arretirar, aí ele disse que não tinha jeito não, que é de nascença, que era corrente de nascença, não pode tirar que a pessoa fica se sentindo mal. É de nascença mas a senhora só descobriu depois com a aldeia aqui né? Depois que ele tava aqui. Quando brincava só o samba ninguém nunca tinha sentido essas coisas não né? Não, antes de descobrir não; tinha a vontade de rezar, quanto mais melhor”.

Do mesmo modo, D. Dôra sentiu na participação no toré algo que nunca

experimentara, desde sua primeira participação no evento (ver capítulo I) ela reconheceu

que naquele espaço sagrado algo ocorria de diferente ao espaço da igreja e das novenas.

“Desde que apareceu um velho sabido (Dôca) e diz que de noite é pra todo mundo ir pra casa de Isaura pra dançar toré. E a senhora sabia o que era toré? Sabia não, eu disse ‘vou olhar’, e Arlindo meio assim, e aquele negócio já pedindo, a natureza já pediu que eu fosse, não tem quem diga, eu vou olhar, que eu nunca vi, já brincaram ontem e hoje vai ter de novo, me disseram, vou olhar, vou olhar, não tem quem me segure, se Arlindo não for eu vou. Aí ele (Zé Índio) disse assim: olha, nós vamos brincar aqui, mas quem, eu sei que vocês tem as suas coisas, aí explicou, que era da furna, tudo; mas quem ficar com a dor, tremendo, quem ficar como quem tá zonzo, é pra vim procurar ele e compadre Dôca que nos vamos rezar na pessoa pra ficar bom. Eu me escondi logo, aí Arlindo ficou assistindo e eles, cantando e eu me escondendo por detrás deles, mas deixa que eu já tava tremendo, um negócio dentro deu assim, aquele negócio tremendo, vai tomar meu corpo todinho, e eu com medo. A senhora sentiu que tinha coisa ali? Eu senti que tinha coisa (risos), Rapaz! Mandei fazer a farda de caroá, mas menino, você acredita que na primeira noite que foi o toré, ele já tinha feito o terreiro, nessa noite eu vesti a farda, quando eu vesti, quando eu vesti a farda mas dei uns três ou quatro pinotinho da altura desta casa, pra me pega foi a experiência deles lá. Quando bebia a jurema, às vezes dava uma força, Ave Maria, pelo amor de Deus, caía de esteira, aí quando o povo caía aí ele (Zé Índio) dizia, ‘deixa aí, deixa todo mundo dormindo um soninho’”.

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Limpezas espirituais

Num segundo momento Dôca e Zé Índio propõem aos Kapinawá mina-grandistas

que procurem ajuda de pessoas capacitadas a fazerem as suas limpezas espirituais,

necessárias então para uma completa compreensão do trabalho e da constituição da

“doutrina”. Nivaldo de Tupanatinga foi um dos curadores da região que recebeu a visita de

alguns dos Kapinawá envolvidos no novo toré.

“Muita gente na Mina Grande não tinha experiência com o ritual, caía, e tudo mais, e muitas vieram procurar o senhor. Houve um problema na aldeia quando Zé Índio começou a dançar o ritual, em forma que depois ele foi embora e deixou a aldeia com problema. Quando o pessoal da Mina Grande veio procurar o senhor, o senhor já sabia que eles eram índio? Já, eu fui fazer pra que libertassem os índios do mal, pra que eles pudessem trabalhar no toré, fazer umas danças sem irradiações negativas; que a Mina Grande era contaminada com espíritos negativos. Como era com o povo da Mina Grande? Aqueles que era problema espiritual, chamva-se endemonização. Eu doutrinava e ia embora, aqueles que era doente curava com reza, com banhos e remédio do mato. Como era o trabalho pra quem caía nos torés? Eu passava plantas e banhos. As plantas são em conjunto, as que a gente receita é arruda, pião roxo, capim santo, erva cidreira, eucalipto, manjericão e laranja, essas são as ervas que libertam de problemas espirituais. A jurema é pra chegar ciência, o jucá representa a cura pra quem tem dores, angico pra quem tem tosse. Eu ensinei na aldeia como era que se levantasse quando caísse, é um segredo, é uma coisa muito fina”.

Elias de Ibimirim também foi procurado. De fato, Elias é ainda hoje o mais

respeitado curador da região.

“Eu conversei muito com o pessoal na Mina Grande e eles me disseram que quando o Dôca e o Zé Índio tavam lá pra erguer a aldeia muitos passavam mal no toré, caíam, não tinham controle do trabalho não.

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É porque tavam tudo sujo dessas coisas, bebedor de cachaça103, levantador de falso, essas coisas todinhas, e a idioma indígena era limpa, aí já viu, quando eu mandei ele tomá conta lá, e abri aquilo ali, tava no terreiro e caía gente por brincadeira. Mas foi o senhor que encaminhou o Zé Índio pra lá? Foi. Foi! Ele não foi por conta própria não. Mas quando Zé Índio finalizo tudo, eu mandei tudo, mandei o Zé Índio tomar conta, e digo, você vá e abra a corrente, agora vai dar muito trabalho. É a corrente da jurema? É, quando ela metesse dentro você vai ver, vai cair muita gente, foi dito e feito (risos). O que eles tiveram que fazer pra se limpar? Depois que abre a corrente e eles começar a receber aquelas mensagens, aí passa um tipo de banho de erva, aqueles banho limpa todas as coisas más, é o banho de sete ervas, é banho de arruda, banho de alecrim de caboclo, pião roxo”.

D. Pedinha, por exemplo, procurou Nivaldo de Tupanatinga. Ela lembra que antes,

“pesava quarenta e quatro quilos, hoje eu peso sessenta e um. Eu vivia em cima de uma

cama, tinha dia que a minha vida era chorar, dia e noite, não tinha força pra fazer nada,

nada. Depois que eu comecei a dançar toré e receber, esses negócio se acabou tudo”. O

cacique levou o retrato de D. Pedinha e Nivaldo identificou a doença como problema de

nervos e corrente espiritual. Eu perguntei a Pedinha,

“Quem foi que disse que era pra fazer isso? Foi o finado Dôca. Começou com o toré, dançar, aí essas pessoas que tinha problema de corrente, ninguém sabia que tinha, daí só vivia doente pra morrer em cima de uma cama, ia pros médico e não ficava bom, tomava medicamento mas não ficava bom; era do modo das corrente que tava amarrada, ninguém sabia que tinha corrente, que era descendência de índio. Aí teve que limpar todo mundo? Sim. Como eram essas limpezas? É tipo um banhi, vela. Sete banho de colônia, de água limpa, veste roupa limpa, acende uma vela pro anjo da guarda e reza um Pai Nosso e uma Ave Maria, mais sete banho de arruda,

103 A cachaça era consumida nas tapagens de casa, durante a brincadeira do samba-de-coco, embora não direta, a referência a esta brincadeira como tradição antiga aliada à cachaça não pode ser desprezada.

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três de arroxo com sal de pedra pra afastar os mal, e o derradeiro é o de deslinhar as corrente, sete de espinho feroz, de juá, facheiro, mandacaru, de todo pau de espinho até completar sete. E defumador de alho, de café com açúcar”.

Lilia esteve em muitos lugares atrás de sua limpeza espiritual. Além do trabalho de

um senhor em Buíque, ela foi em Nivaldo, esteve com Antônio (aldeia Quiri d’Alho), e,

“Fui pro trabalho do Zé Índio, era coisa pesada mesmo, seu Dôca era outro, dizia não faça isso, aquilo. Foi o Zé Índio que passou os banhos? Era mais Dôca, era banho de erva, banho cheiroso, alecrim, de hortelã, arruda; de limpeza é um, e tirar a sujeira é outro, porque tem mato fedido, de espinho, que a pessoa tá meio atrapalhado é de espinho. Mas já tinha aqui a tradição de tomar banho de ervas? Não, foi depois que ele chegou, ele disse que o povo tava tudo sujo pra poder dançar, tava atrapalhado, ele mandava tomar esses banhos, sal de pedra também. Dizia ele que é uma descarga pra limpar”.

Zé Caetano também tomou banhos de limpeza104, ensinados por Dôca, “ele ensinou

uns banho, tomei banho de alecrim de caboclo ensinado pelo Dôca, tomei num sei quantos

banhos, ainda hoje eu tomo”. Dôca disse a Zé Caetano para que ele fosse se doutrinar à

parte, não no toré, que ele tinha que se desenvolver espiritualmente primeiro, para depois

poder se segurar no ritual. Zé Caetano foi muitas vezes em Antonio, mas não se doutrinou

no trabalho dele. Foi em Elias uma única vez, este fez um trabalho pra ele, ensinou-lhe

banhos. Zé Caetano ainda foi duas vezes em Nivaldo. Esteve três vezes no trabalho de Zé

Índio, “mesa” sem jurema. Em todos estes lugares Zé Caetano não conseguiu se “doutrinar”

– digo não completamente por assim dizer -, sendo ainda um grande esforço certos

momentos e certos tipos de trabalhos, de torés.

Lembro que Dôra e Arlindo transitavam pela na área Pankararu onde assistiam a

alguns rituais e tiveram uma sessão especial com o pajé Pankararu, na época João Tomaz.

104 Zé Caetano foi o único de meus entrevistados homens que afirmou ter tomando os banhos de limpeza espiritual. Todas as mulheres entrevistadas tomaram este tipo de banho.

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Foi este senhor que realizou para o casal um trabalho de jurema, momento em que ambos

têm a mediunidade reconhecida (ver capítulo II). Dôra recorda o que João Tomaz dissera

após o trabalho, “olha você tem corrente da jurema, agora ele (Arlindo), ele tem essas

coisas, mas ele vai trabalhar numa casinha, feito uma casinha de oração, e o dele é reza e

curar o povo, e quem ele for pra ele botar a mão na cabeça sai curado, na força de Deus”.

Dôra, além do trabalho com João Tomaz, teve a ajuda de outros curadores perto da área

Kapinawá, “teve um velhinho aqui, Pedro da Baixa Grande, acho que foi o primeiro, teve

um outro velhinho de Tupanatinga, que eu acho que ele é até cego, ela andava pra lá e ele

rezava muito, com as rezas, com os banhos vai recebendo a força dos irmão de luz, e vai

aprendendo, eles é que acaba de dar a doutrina”.

Assim, quando estavam já retornados à Mina Grande, Dôra começa a “receber”

algumas entidades, e Arlindo começa a acompanhá-la nestes eventos, assistindo e rezando,

tal como ele lembrou, “Passados os tempos ela tinha a doutrina dela, e eu passei a ser o

chefe dela, fiquei como se fala o pai-de-santo dela, tudo tinha que ser comigo no frente”.

Arlindo apresenta uma mediunidade que reconhece como “vidência”, a qual não se realiza

por “doutrina” ensinada, ou por banhos, esta mediunidade é simplesmente “natureza de

Deus mesmo, pronto”, como Arlindo costuma dizer, “o Dom do índio vem da natureza do

Dom de Deus, da natureza de Deus”.

Arlindo compreende as limpezas de uma maneira própria, que eu diria ser bem mais

individualizada,

“Esse povo eles tinham (o Dom), mas viviam perturbado, tavam com eles preso ali, encantado, mas tava ali encantado que eles não sabiam. Foi o tempo que os velhinho vieram (Dôca e Zé Índio), agente brincava o ritual, chamava as corrente, quer dizer que eles ali, eles nasceram, eles nasceram, saiu pra fora. Quem tinha as corrente se adoutrinou, e se interessou, quem não se interessou foi dar valor a outra parte, procurar centro de candomblé e xangô pra se alimpá e ficou pior, como tem deles aí que quer dizer que trabalha só que sem trabaiá, recebendo força negativa. E tem deles que tá com vinte anos ou mais e fica na mesma. Zé Pedro começou a limpar dançando toré, bebendo jurema, tomando uns banhos. Ali ela já começa a se desenvolver, não precisa aquele negócio de despacho, galinha, não sei o que, levar pras águas, não; dançando toré e rezando os perturbado vão se afastando e os encanto chegando. Muita gente foi procurar o Nivaldo, umbanda... Agora me pergunta qual o que tem limpo, até agora não tem, se eles tivessem ficado aqui, ou já que não tinha naquela época nenhum, o pajé não sabia nem cacique, tivesse ido pra outra aldeia, saísse ali pra Kambiwá, Xucuru, outro índio. Zé Caetano mesmo, foi a Nivaldo,

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Antônio, Elias, começou em Antônio, depois os índios de fora, dançava toré, mas era mais mesa, teve em centro, Nivaldo, em Buíque, em Arcoverde, e continua o mesmo, ele não tá doutrinado, mas ele recebe os encanto, mas de vez em quando uns perturbado”.

Esta visão é singular, porém não a única, para o ex-pajé Jaime, “o índio é a natureza,

não tem esse negócio de ir pra casa de pai-de-santo, ele se domestica dentro da mata,

pedindo uma força a Tupã, aos invisíveis, não carece de índio ir pra casa de santo. Que pai-

de-santo não tem nem pra eles. Sem Tupã nós não somos ninguém, mas homem da terra?

Não”. Como se vê, até mesmo as limpezas são objeto controvertido, que mesmo dentro da

comunidade ritual não é experimentado de forma homogênia, havendo inclusive

repreensões e vigilâncias, discursos de purismo e ambigüidades. Parece-me que há uma

distinção entre mulheres e homens, visto que “a parte da mulher é mais fraca”, como

afirma Arlindo com relação às irradiações, “é porque o homem é mais forte, se chegar

neles só baixa se eles quiserem. Ela é mais provável porque o espírito dela é fraco, tanto

espírito quando na força mesmo”. E a “doutrina”, portanto é construída de diferentes

formas, em diferentes locais, por diferentes biografias.

Recebendo o Dom (o que é o Dom?)

Após as limpezas espirituais os Kapinawá mina-grandistas passaram a trabalhar no toré, e

como conseqüência alguns começaram a apresentar a mediunidade mais “controlada”, ou

seja, a “doutrina”; e um grupo menor uma peculiaridade desta mediunidade/“doutrina”, um

“Dom Divino”, que se cristalizaria na produção de toantes.

Jaime revela,

“Como o senhor recebe esses toantes, o senhor recebe ou compõem da sua cabeça? É, aquilo ali é um Dom que Deus dá, assim de repente chega aquele Dom na mente. Isso sempre aconteceu com o senhor ou foi depois que virou aldeia aqui? Depois.

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Antes o senhor nem cantava? Nóis nem sabia o que era índio, nós sabia que era a furna dos caboclo, a furna dos caboclo, de 1981 pra cá que a gente ficou sabendo o que é índio, nossos antepassado não passava pra nóis. Isso de vim na mente é a memória ou é um Dom divino? É um Dom divino, é um Dom que Deus dá pra gente. Dôra me lembra que antes, “agente tava que nem uns inocentes aqui”, e para Arlindo, “Já se chama encanto né, quer dizer que tava encantado, tinham (o Dom) por aí mas quer dizer que tava encantado, tava preso, guardado. Foi tempo que chegou esses dois home aí (Dôca e Zé Índio), puxar, quer dizer que eles saíram pra fora, tava enterrado num cantinho, mexeu e saiu pra fora, saiu, quer dizer que sair é nós receber. O Dom a gente já tinha, mas era um Dom privado, mais da gente aqui, que a gente não procurava, todos nós já nascemos com esse Dom, só que nós não tinha conhecimento da história indígena, cada um tinha o Dom, a gente tava com ele guardado, preso.”

Zé Caetano acredita que,

“Isso tudo só veio depois que a gente começou a trabalhar, que veio a força; se tivesse parados tudo, não tinha vindo nada, o fruto só veio depois que nós começemo a trabalhar. Esses toantes que o senhor fez, o senhor acha que foi o senhor que fez ou foi uma coisa assim que veio do ar para o senhor? Eu acho assim, que foi assim, porque eu não vejo, mas é uma força assim que vem, eu sinto que é. Eu só não faço é ver porque, vê eu não vejo não, mas sinto que é uma força, num sei, no momento vem aquele tom, assim, pra gente formar ou cantar ou for pra rezar, aí eu digo que uma dessas partes daí é de Jesus né. Vocês acham que foi depois que vocês descobriram que eram índios, o senhor acha que isso ajudou? Eu na minha mente assim eu quero é que seja. E se já tinha isso na mente da gente mas tava que nem preso né, porque ninguém num lutava, num trabalhava com essas coisas, eu acho que aí aquilo tava só, mais longe, a gente que frequentemo aquilo num tava tão longe, veio mais, chegou na pessoa mais. É um Dom que Deus dá, fica caçando no esforço no pensamento, aí chega aquele Dom da gente cantá, aquela lembrança. Aí vai juntando os pés. Aí depois eu canto pros outros verem, esse ponto veio na minha mente, por isso ninguém sabe. Esse Dom é só pra quem é índio?

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É como quem pega a corrente, não chega pra todos, é difícil ouvir um dizer que ascutei toante da pessoa mesmo, da mente. Mas o senhor acha que tem a ver quando abriu as coisas pro índio, pra natureza? Antigamente nós não sabia, do antes nós não sabia, desde que já tinha a descendência de nós, mas ele tava presa. Nós não tava envolvido com ela, aí a gente desenvolveu a luta, mexeu no trabalho, aí veio na mente da gente. O senhor acha que é um Dom da natureza ou dos espíritos? É um Dom prometido por Jesus. De livre vontade a gente não recebe nada não. A gente só canta lembrando de Jesus. É uma força dada por Jesus”.

Assim, pode-se ler a partir deste trecho de entrevista que as “correntes” estavam

sujas, não podiam permitir o advento de uma “doutrina”, só depois das limpezas espirituais

é que as “correntes” ficam livres e a pessoa adquire sua “doutrina”. Compor é ter

“doutrina” e trabalhar as “correntes”. A “corrente” é ao mesmo tempo uma condição de

indianidade e uma condição de “doutrina”, o advento do “Dom” para compor é resultado da

prática do trabalho no toré, não dado a qualquer um, possivelmente uma dádiva merecida,

um acordo entre céu e terra.

Arlindo tem uma percepção mais individualista do “Dom”, o “Dom” como uma

dádiva do trabalho, da devoção, tal como explicitado no trecho abaixo,

“Tem que trabalhar com os encantos pra ter o Dom? Não, o Dom tá no seu pensamento, se você tá no pensamento firme nestas coisas, então vem aquele Dom, você nunca dançou o toré, mas só em pensar, o Dom pra vir você precisa ter o coração e a mente aberta, a natureza, e dando valor, tem que acreditar; você vai pra roça viu toré ontem, não dança, mais tá achando bonito, dando valor, sua natureza tá abraçando aquilo ali, com pouco chega no seu pensamento. Aí vem o Dom e você inventa o toante. Não precisa irradiar pra ter o Dom? Não, é só dar valor e ter o Dom, receber o Dom de Deus, daqui a pouco você tá cantando toante. Às vezes até copia e dá pros outros. O Dom tem que vir da natureza divina, o Divino Espírito Santo, Nosso Pai Tupã, porque sem essa força, o índio não tem força nenhuma, tem de se concentrar na força da natureza, porque tá dominando tudo, a força acesa do índio vem da natureza”.

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O “Dom” para Arlindo, como a “doutrina” podem ser construídos pela própria

consciência da pessoa, de sua consciência do trabalho. A indianidade, como valor étnico, é

representada na religião, e cristaliza-se de forma mais forte na composição musical, menos

do que na mediunidade expressa pela irradiação. Compor é expressão mais visível do

assumir-se índio, do esmero por este espaço sagrado, o “Dom” para compor é portanto uma

dádiva.

A composição

As músicas do toré Kapinawá provêm de lugares diferentes. Muitas delas são composições

que simplesmente alguém ouviu em algum lugar, em alguma festa ou reunião com outros

grupos indígenas. Outras são apresentadas pelos encantos ou pelos caboclos, que

incorporados nos participantes médiuns do ritual tiram o seu toante, a sua linha. Há um

grande número de toantes que foram feitos pelos Kapinawá contemporâneos. Embora haja

um bom número de toantes, de outras áreas indígenas, que simplesmente tiveram alguma

parte da letra modificada - de modo a permitir a inclusão do nome Kapinawá no lugar do

nome da etnia que teve seu toante angariado. Há também um bom número de toantes que

são próprios dos Kapinawá, e são reconhecidos como dádiva divina, possíveis pela

presença, através da “doutrina”, de um “Dom Divino” para compor. São toantes, na maior

parte das vezes, feitos de forma individual, e alguns poucos casos de toantes feitos em

dupla. As composições individuais ganham destaque na minha análise, e são a maior parte

dos meus exemplos.

Nesta análise eu busco recuperar, através de entrevistas, o contexto em que

determinadas composições foram feitas, isto tem o interesse de apresentar as diferentes

fontes de inspiração dos integrantes do grupo ritual. Ao destacar o contexto de produção

destas peças musicais, procuro sublinhar o pluralismo e a dinâmica destas produções,

tentando demarcar as somas e as escolhas que foram realizadas dentro de um quadro de

variadas tradições culturais: dentre o próprio universo do toré, os cantos de benditos, os

sambas-de-coco e os elementos dos cultos afro-brasileiros, em especial a umbanda; além de

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pequenas singularidades. Aqui apresento um conjunto de composições que meus

informantes puderam determinar o contexto em que foram realizadas.

O toante mais antigo “heiando heiá heiando heiá hoandeia hoá hodandeia hoá ho landeia ho landá ho lande ho lá (isso é idioma, vou traduzir em palavra agora) O caminho daquela Furna já mandei-o ladriá É de ouro e prata fina para os meus índios passeá heiando heiá heiando heiá hoandeia hoá hodandeia hoá”

Esta é a versão que Jaime mais de uma vez me apresentou do toante mais antigo, na

verdade é quase uma cantiga. Lilia me apresentou uma outra versão, embora idênticas na

melodia há uma pequena alteração na letra, em vez do trecho “O caminho daquela Furna já

mandei-o ladriá, é de ouro e prata fina para os meus índios passeá”, Lilia canta, “o caminho

da Serra Grande vou mandar e-ladrilhar, é de ouro e prata fina pra Joaquina caminhar”.

Jaime sempre repete que, “é o mais antigo, nós sabe só por um meio, nós aprendeu vendo

ela cantar, a velhinha de João Mariano foi que herdou, Maria de João Mariano, ela

aprendeu com os bisavós dela, ela já morreu. A mãe de João Mariano, avó de Lilia, ela

cantava esse ponto , o mais velho nos anos 55, é o principal”.

E Lilia (ver capítulo I) lembra que, “Mamãe dizia que dançava isso lá em lagoa de

Teixeira, aí dizia que era parte de toré, mas nós não sabia porque era pequenininho. Mas ela

já sabia que era coisa dos índios, coisa antiga? Sabia, depois que ela viu que Zé Índio

chegou aqui, foi aí que ela se alembrou: ‘há, quando eu era pequena mãe cantava mais a tia

dela’, ficaram gostando deste toante”. Este toante parece ter atravessado muito tempo se

contarmos que a genealogia pelo relato de Jaime já ultrapassou os tataravôs deles. Ele

mesmo lembra que o ouvia em 1955, da avó paterna de Lilia. Lilia também o remete a um

tempo distante, a tia avô de sua mãe já conhecia este toante.

Eu pergunto durante uma entrevista com Jaime, Arlindo e Dôra, se teria sido a

própria Maria de João Mariano que os ensinara a cantar também na língua usual, no

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português, já que Jaime me apresentara uma “tradução” do toante, que como ele mesmo

disse é original “na idioma”. Arlindo respondeu, “foi sim, foi da cabocla Joaquina, dos

antepassados dela, ela é uma das que estão ali, ela foi sepultada na Furna. Quando tem uma

perturbação assim no terreiro aí a gente canta, ‘Ô Joaquina, ô Joaquina, Maria da

Conceição, baixa aqui nesse terreiro pra afastar as perturbação’”. O nome de Lilia é Maria

Antônia da Conceição, e por isso é plausível imaginar que na sua memória, ou na própria

versão que lhe permaneceu na memória o caminho da Furna só poderia ter sido mesmo

ladrilhado com ouro e prata para a cabocla Joaquina, ou Maria da Conceição. É interessante

notar aqui como o nome de família permanece ligado à memória de um toante, de uma

melodia. E como esta memória é utilizada na produção de novos toantes, “Quando tem uma

perturbação assim no terreiro aí a gente canta (ver o toante acima). Esse é antigo? É, não,

esse aí saiu da mente de um daqui, acho que de nós mesmo num trabalho, nem lembro

mais, da minha mente acho que não foi não.” Importa menos, o mais importante é que a

memória de um nome de família, ligado a memória de um toante, uma cantiga indígena,

legitima a identidade de indígenas aos Kapinawá e lhes dá um escopo histórico e afetivo

legítimos. Ao mesmo tempo em que esta relação histórica é investida de sentido na

produção de novos toantes, mesmo neste toante coletivo, “anônimo” segundo a memória de

meus entrevistados.

Este toante prova ainda que o hall de entidades que habitam o universo religioso

destes Kapinawá é formado inclusive por seus antepassados, que são nomeados e tem uma

linha, seu toante pra puxar. Estes caboclos e encantos são também os antepassados dos

Kapinawá, tal como a cabocla Dalila, Paulina (ver capítulo II), os “reis” Jiribina, Tropiá

(ver adiante), são também nomes que identificam um passado de violência, de luta contra

os brancos (uma luta ancestral), que foi também a luta contra os grileiros, uma luta

contemporânea. “Os antigos”, os antepassados dos Kapinawá, são os novos elementos

nativos que enriquecerão o toré, além de permitir a continuidade da memória, através da

nomeação de um nome de família da área – como Conceição-, através da lembrança das

mortes violentas – Tropía e Jiribina -, ou mesmo da “tradição” antiga do samba-de-coco –

cabocla Paulina -; permitem fundamentalmente preencher um espaço social com conteúdo

próprio, construído a partir de múltiplas tradições culturais, organizando e dando um

sentido original a um espaço também original.

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Por fim, resta o problema da “idioma”, como se realiza esta “tradução”? Embora eu

tentasse saber mais detalhes deste exercício de “tradução”, não os consegui. Esta

“tradução” já fora assim ensinada, de qualquer forma é interessante observar que de fato

esta “tradução” é também uma composição. Nascimento (1998: 103) assinala que entre os

Fulni-ô, “o cântico sem letra é relacionado com o início da humanidade”, nesta área

indígena todos os cantos de “Tolê” são feitos a partir da entonação de “sílabas

onomatopéicas como o he, ‘a, ke e e, que não apresentam um sentido semântico” (ibid).

Ainda, para o grupo, estas músicas “se encontram no espaço e durante a realização do Tolê

entram na mente das pessoas presentes no evento” (ibid, 104). O que significa que “os

Fulni-ô desconhecem o conceito de composição e entendem o aparecimento de uma ‘nova’

melodia como algo coletivo e espiritual que faz parte de um conhecimento comum já

existente” (ibid).

Ora, é por isso mesmo que a “tradução” dos Kapinawá é uma composição. Se há,

sem dúvida, a participação do espiritual na composição, há também claramente as

interpretações e as individualizações dos toantes. A “tradução” de Jaime é diferente da de

Lilia, e ambas apontam para representações próprias, ou o nome que representa a família,

ou o sentido geral que “índio” traz. Se em Fulni-ô (que fala um idioma próprio, o yaathê) o

“idioma” dos cânticos não tem tradução, sendo que o sentido deles apenas é reconhecido

pela “consciência indígena” (ibid, 103), por que os Kapinawá o “traduziriam”?

“Traduziriam” o que já se sabe ser intraduzível, já que estas sílabas por si só não

constituem um idioma strito senso.

Do mesmo modo é que eu entendo este outro toante que foi composto por Zé

Caetano.

Aldeia de índio

“Aldeia de índio, aldeia de índio Eu quere, querô-a (4x)”

Zé Caetano aprendeu este toante ouvindo uma fita K7 que o cacique ganhou de presente em

alguma reunião indígena. A fita em questão continha o CD intitulado “Memória viva

Guarani”, que é, logicamente, cantado em Tupi-guarani. Zé Caetano “traduziu” para a

nossa língua (o português) e o canta no toré tal com acima descrito. Eu pude ouvir com ele

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uma cópia deste CD que lhe dei de presente depois de uma segunda viajem. Nesta audição

ficava claro que a “tradução” se dava por onomatopéia, tentando encontrar sentido naquelas

palavras intraduzíveis. Este sentido foi construído, é a própria composição. E mesmo uma

parte intraduzível, vigora como parte da “idioma”, permitindo os exercícios de melodias a

partir de certas sílabas onomatopéicas.

Embora baseada em outra, e mesmo apenas “traduzida”, entendo que o sentido de

composição que trabalho implica na (re)produção desta música num formato que pudesse

se tornar legítimo no toré Kapinawá. E ao mesmo tempo porque tem um compositor,

alguém que nela inspirado construiu algo novo e válido, como representativo da tradição

musical Kapinawá. Imagino que ao “traduzir”, realiza-se uma espécie de composição, e se

compõe como se “traduzisse” para tornar próprio, aumentar os sentidos e significados, ter

de fato o domínio, possuir. O idioma do toante é ao mesmo tempo passado e presente,

intraduzível e ao mesmo tempo legível, recorte, colagens, e definitivamente criatividade e

invenção. 105

Cacique Invisível “Eu tava no alto da serra do outro lado de lá Nosso Cacique Invisível agora mandou nos chamar Pra nós dançar o toré do cruzeiro juremá heia heia, heiô-a heia heia, hei-á Vem que o índio é bonito você pode acreditar Todo vestido de pena, coberto de caroá heia heia, heiô-a heia heia, hei-á Hoje eu fiz a jurema braiada com anjucá Pra todos índios beber Pra poder trabalhar (aqui na idioma) heia heia, mandoá hena hei-á mandá”

105 Há neste exercício de “tradução” uma aproximação, que imagino poder chamar de étnica, através do idioma tupi-guarani – que alguns Kapinawá reconhecem como seu idioma original – com os outros grupos indígenas do país.

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“Essa musica foi o senhor que fez? Isso foi um Dom que Deus me deu. Eu, assim,

Deus me dá o Dom e eu canto, tem vários canto”. Jaime narra uma história fabulosa sobre a

ocasião em que ele encontra-se com o Cacique Invisível na mata da aldeia, nesta época ele

era o pajé.

“O Cacique Invisível, eu tava numa elevação dentro da mata, a mata virgem, encontrei com o Cacique, com cocarzão, alto moreno, conversamos, ele disse, ‘o índio é aquele que participa do ritual, preserva a mata, os costumes, a tradição, daqui a pouco você vai ver meu povo chegar’. Andamo, e eles vieram com farda de praiá106. A mata virgem, os eucalipto não sei assim (muito alto), uma coisa linda; aí a mata estremeceu de toré, era tudo no idioma, eu nem tava dormindo nem acordado, eu disse, ‘aquilo era o Cacique Invisível’”.

Depois desta experiência extática, Jaime apresenta o toante ao público do toré,

“Quando eu comecei a cantar explodiu, gostaram tanto, recebia força no terreiro, todos gostam do Cacique Invisível, ficam pedindo pra eu cantar. O Cacique Invisível era um mestre aqui da aldeia? O Cacique Invisível era um mestre aqui da aldeia, era o cacique velho, o antigo daqui. O senhor acha que os invisíveis deram esse toante pro senhor ou foi uma homenagem a eles? Foi uma homenagem a eles. (Arlindo interrompe) Mas com a força deles, ele fez a homenagem, mas com a força deles. Veio pra ele dar uma homenagem. (Todos, Arlindo, Jaime e Dôra concordam sobre isso). Foi uma troca? (todos novamente) Foi sim”.

O Cacique Invisível é um mestre que Jaime identifica como o cacique velho, uma

liderança da comunidade dos antepassados dos Kapinawá. Na discussão sobre a

composição deste toante, foi interessante notar que embora Jaime tenha dito que o fizera

em homenagem ao Cacique Invisível, Arlindo imediatamente o lembra que o toante,

embora composto por Jaime, teve a força dos “encantos” para ser realizado. E a partir desta

colocação todos parecem concordar, e reafirmam que a composição é feita por um “Dom”,

que cada um trata de tentar conhecer. E este “Dom” para compor é devido ao contato com o

106 Vestimenta ritual de origem Pankararu. Embora os Kambiwá a utilizem, entre os Kapinawá, seus vizinhos, nunca houve seu uso.

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mundo espiritual, é do contato com este espaço sagrado que as composições normalmente

tratam, narram. Esta experiência é então entendida como um processo de penetração, de

“troca”, onde não existe propriamente uma doação de músicas vindas do mundo espiritual,

mas sim a capacidade deste mundo dos espíritos de inspirar as composições. Assim, as

composições acabam sendo individualizadas, mas sempre entendidas como resultado deste

espaço religioso que é o torécoco, que é coletivo e que vai até mesmo além.

Nos toantes seguintes, feitos por Jaime também, há todo um novo modelo de

inspiração, mesmo laico se comparado a este acima. Neste seguinte, são as recordações da

infância, aliadas a memória do espaço religioso, que se tornam temas de inspiração para o

toante.

O amargoso “Lá no pé de amargoso Lá num pé de jatobá Lá era nosso terreiro Onde nóis ia forgar Lá era nosso terreiro Onde nóis ia forgar Abre o terreiro eles começam a chegar Nossos encantos de luz e nosso Papai do ar (2x) Eu vim baixar aqui, mas aqui eu vim forgar Sou filho natural de aldeia da tribi Kapinawá.”

Neste toante a memória tem lugar de destaque,

“Vou contar como surgiu, a música é uma história. Nós tinha aqui um pé de jatobá bem alto que era que nem açúcar, aí a gente só escolhia dele quando era criança, nós levava pra olho d’água, dos índios, pra toma com água, cada um enchia o bisaco. E tinha um amargosão dentro da área que era um limpo debaixo, aí veio na minha mente pra eu fazer um ponto, aí eu cantei assim. Era o terreiro lá? No pé de jatobá era o terreiro antigo.

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Como o senhor fez ele? Fiz ele trabalhando na roça, vem na mente da gente, quando tava trabalhando”.

As memórias da infância se aliaram a memória mais recente do lugar onde já existiu um

terreiro de toré, embora contrastivas, e separadas por um tempo grande, ambas as situações,

como situações de afetividade, se tornaram próximas e unidas na realização desta

composição.

Eu sou índio e sou guerreiro “Eu sou índio e sou guerreiro Eu venho lá de Guajará Sou pajé sou de aldeia Dos índios Kapinawá heina hoa tirá lândo-a heina hoa tirá landá Já corri com os grileiro Fui até a Federar Porque invadiram as terras Dos índios Kapinawá heina hoa tirá lândo-a heina hoa tirá landá”

No toante acima, torna-se mais claro ainda a presença de outros elementos de

inspiração. “Veio na minha mente, a luta tava pesada, nós vinha no caminhão, Zé índio

disse, ‘pode cantar’”. Composto na época da luta contra os grileiros, este toante foi

elaborado na hora, dentro do caminhão, durante uma viajem em que todos cantavam toantes

e se divertiam. Feito numa situação bastante incomum, este toante demonstra que a

inspiração para compor é variada, e mesmo inesperada. Como também ilustra mais este

exemplo que tomo de Jaime.

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Nossa Senhora das Montanhas é uma santa de valor “Nossa Senhora das Montanhas é uma santa de valor, (2x) Quem buscou ela nas mata foi um índio caçador (2x) Encontrando ela pra sua horta levou, (2x) Quando foi a meia noite, Quando foi a meia noite, lá pras mata ela voltou É nossa madrinha, nossa mãe Tamainha Foi Jesus que enviou 2x heia heiá heiá heina , heina, heiá”

A situação de inspiração deste toante é a causalidade, e também o ouvido atento de

Jaime e a pura musicalidade que ele encontrou na frase de um amigo.

“Eu cheguei na casa desse rapaz (Zé Galego), ele tava dizendo, ‘nossa senhora das montanhas é uma santa de valor, quem encontrou ela na mata foi um índio caçador’, aí eu já peguei, você vê, quando a gente tá com boa vontade uma coisa puxa a outra, a força, a idéia, que ele deu já veio na minha mente e eu escrevi este ponto, ‘nossa senhora das montanhas é uma santa de valor’. Esse foi eu que escrevi, escrevi não, inventei. O senhor que fez pra santa? Zé Galego disse a frase, ‘nossa senhora das montanhas é uma santa de valor, quem encontrou ela na mata foi um índio caçador’, e eu fiz o ponto na hora, na época que eu era pajé”.

Jaime na época cumpria com seu papel de pajé não só trabalhando no toré, mas também

compondo pra ele. A maior parte de suas composições são deste tempo. É claro que o

próprio lugar social que ele ocupava serviu para incentivá-lo a compor. E acabo

concordando com ele quando diz que, “quando a gente tá com boa vontade uma coisa puxa

a outra”107.

107 Dôra tem uma versão diferente para este toante: “Nossa Senhora das Montanhas é uma santa de valor, Quem buscou ela nas mata foi um índio caçador. Quando foi a meia noite, Lá pra mata ela voltou.

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Toantes são compostos também diretamente durante o ritual de toré. Este toante de

Arlindo é um exemplo.

Eu vortei pra minha aldeia “Eu vortei pra minha aldeia, Eu voltei pra cantar toré. Oi firma o ponto, Segura o ponto, Que esse ponto, É Canindé. Oi firma o ponto, Segura o ponto, Que esse ponto, É dos reis Canindé.”

Ele lembra que “nós tava cantando toré e eu inventei na hora, lá no grupo, tava

sentado depois me levantei de vez e fiquei no meio da sala e cantei ele ali na hora. Decorei

de primeira, ficou direto”. Sem mais detalhes, o toante veio direto, inteiro. Outros também

tem a mesma origem, “Já veio toante assim na hora que o senhor nunca nem sabia? Já,

aquele ‘cheguei na minha aldeia cheguei de pé no chão’108 foi assim’”.

Aroeira ele é o mestre é o mestre curador “Aroeira ele é o mestre é o mestre curador (2x)

Nossa mãe Tamainha, ela é minha madrinha Foi Jesus quem nos enviou.” Segundo Dôra, este toante “é de autoria de Jaime, mas tem uns pé dele mas tem uns pé que eu completei. Quer dizer que é dos dois? É dos dois sim”. A versão de Dôra é diferente na letra, mas igual na melodia. Também este toante, com o mesmo verso inicial, encontra-se entre os Xucuru (agradeço a Estevão Palitot esta indicação). 108

“Cheguei na minha aldeia, Cheguei de pé no chão. Eu venho trazendo perneira, Chapéu de coro e gibão, Pra eu forgar com meus caboclo, Lá na aldeia da missão. Heina, hôa Heina, heiá-lande, heiá-landá.”

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Vem curando e vem rezando E afastando os pertubador (2x) Foi, foi, foi, foi ele que ele curou Foi, foi, foi, foi ele que ele curou”

Dôra também tem um bom número de toantes, este acima, “veio assim no meu

pensamento, no sonho. Aí eu gravo no pensamento, esqueço, depois vem de novo, aí fico

cantando, (Arlindo interrompe, ‘manda a menina copiar’), ela copiou para eu não

esquecer”. Mas, para além do fato do toante existir, ele deve ser testado e colocado a prova

no trabalho. “A primeira vez que eu cantei ele o menino (Aécio) tava manifestado, cantei,

rezei ele assim, rezei cantando, ele ficou bom. Foi bom esse toante aí pra ele, aí fiquei

sempre rezando, cantando”. O toante foi composto num sonho, decorado, ou mesmo

copiado, ele não foi feito numa situação de trabalho. Mas foi numa situação desta que ele

veio à tona, de volta para o pensamento. O movimento do ritual, e o momento necessário de

ajudar alguém que se encontrava “atrapalhado”, este espaço permitiu que o toante fosse

lembrado, fosse tornado público e como gosta de recordar Dôra, ele foi útil e ganhou a

simpatia da assembléia109.

Dôra me demonstrou como as ocasiões em que toantes são compostos são muito

variadas, e não obedecem a esquemas rígidos. O toante abaixo foi apresentado a mim de

forma bastante inusitada. Durante a entrevista que fazíamos sobre as composições, eu,

Arlindo, Jaime e Dôra, me surpreendi quando Dôra voltou apressada de dentro de casa e

falou, “me lembro de um bem miudinho”.

Nossa Senhora de Lurdes ela vem me ajudar “Nossa Senhora de Lurdes ela vem me ajudar, Pra nós dançar um toré na aldeia Kapinawá. Heiá, heio, mando-a, mando, Heiá, heio, mando-a, mandá”

109 “Meu mestre muito obrigado, o senhor nos abençoe; que a força dos bons mestres chega logo ou vem depois”. Este toante tem a mesma melodia do anterior, modificando-se apenas a letra. É um novo, com outra característica, mas possivelmente realizado a partir deste outro.

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“E a senhora compôs esse quando? Agora! Nesse instante! Fui lá dentro e voltei e

já fiz”. De fato as ocasiões em que os toantes são compostos é mesmo muitíssimo variadas.

Mais interessante que isso, talvez seja mesmo o fato de que nenhum de meus entrevistados

acharem isso errado ou estranho. Estes Kapinawá não escondem estas singularidades e

idiossincrasias de seu universo religioso e musical. Este toante composto de momento

possivelmente só será reconhecido como parte da tradição Kapinawá se ele passar a ser

cantado no toré. Mas, talvez não surpreendentemente, os caminhos da composição, e os

símbolos e ocasiões de inspiração, são múltiplos, situacionais, intempestivos e até mesmo

extemporâneos.

Já preparei meu penacho “Já preparei meu penacho, Meu veste de caroá, Que é pra quando eu chegar na aldeia Hei á heiá (2x)”

O tema que inspirou Arlindo na composição deste toante acima foi sua volta a área

indígena depois de morar cerca de doze anos em Petrolândia, há por isso um aspecto

individual, que diz respeito a sua biografia,

“Quando eu tava me aproximando pra vir de Petrolândia pra cá, vortar pra aldeia, eu dormi na casa de meu tio, na Ponta da Várzea (aldeia Kapinawá vizinha a Mina Grande). E de manhã eu subi de pé, no meio do caminho comecei a firmar o pensamento, aí já saiu! Já veio no meu pensamento, eu tava voltando, fazia mais de onze anos que meus vestes tinha se acabado pra lá, abandonei; quando digo ‘vou preparar meus veste’, já veio o toante pronto, saí andando e conversando sozinho”.

O mesmo aspecto biográfico está presente nesta composição de Jaime, que é um

hino, ou um bendito.

Olha como eu estou longe daquela comunidade

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“Olha como eu estou longe daquela comunidade, Olha como eu estou longe dos coração cheio de maldade, As vezi eu canto sozinho, As vezi eu rezo calado, As vezi eu fico sozinho, Percebendo o carinho que Jesus tem me dado. Jesus falou bem assim, Perdoe para ser perdoado, aonde tiver três pessoa falando em meu nome, Eu ali estarei do teu lado.”

Jaime o compôs quando entregou o cargo de pajé, que manteve por dez anos (de

1990 até 2000). Nesta ocasião ele passava por uns “atrapalhos”, teve algum tipo de stress

psicológico. O toante revela sua solidão, um sentimento de afastamento, “as vezi eu canto

sozinho, as vezi eu rezo calado, as vezi eu fico sozinho”. Revela também a esperança,

“perdoe para ser perdoado”. Revela ainda as distâncias, sejam elas a da estrada (seus

períodos de trabalho em São Paulo), “olha como eu estou longe daquela comunidade”.

Sejam elas as políticas (divisão política que o obrigou a ceder do cargo de pajé), “olha

como eu estou longe dos coração cheio de maldade”. Ou mesmo aquela distância em

relação à comunidade ritual, “as vezi eu canto sozinho, as vezi eu rezo calado, as vezi eu

fico sozinho”.110

Lá do ar eu venho “Lá do ar eu venho, Venho da Torre de Belém, Agora vou trabalhar, Nas horas de Deus, Amém. O meu Deus me diga os encanto adonde está (2x)

110 Um outro hino de Jaime é: “Quero no céu e num dia com toda a família que Deus ordenou, Lá no infinito quero dar o meu grito de paz e amor. Lá não se fala de guerra, não se fala de treva nem de terror, Lá só se tem alegria e falar com Deus um dia, Esse Deus de amor. É lá que ele está nos esperando, está nos aguardando, Nosso Pai criador”

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Tá na Furna dos Caboclo ouvindo uma voz chamar (2x) Heina há hoiá (2x) Vou chamar reis Jiribina, Juremeira e Tropiá (2x) Heina há hoiei Heina há hoiá (2x) Vou chamar pro grupo dois da tribo Kapinawá” (2x)

Este toante tem uma história muito curiosa. Dôra “recebeu” certa vez um caboclo

em casa, esta entidade teria se apresentado como mestre Jiribina. Este mestre contou como

fora assassinado pelos brancos na furna. Este fato permaneceu na mente de Arlindo; após

algum tempo a comunidade ritual vivenciava uma certa rixa.

“Esse toante veio no meu pensamento quando agente aqui em 1984-5, agente teve uma desavença no meio da comunidade e eu fiz, fizemos um terreiro ali, sentemo o cruzeiro e comecemos a brincar. Através disso, eu era o cabeça do terreiro, toda a vida foi assim, o povo me tem como chefe do terreiro, chegou na mente. Mas chegou na mente na hora do trabalho? Essas coisas só chegam à noite quando a gente tá dormindo, ou mesmo na roça trabalhando, quando a gente começa a firmar o pensamento, começa a subir, a cantar e daqui a pouco vem os assunto”.

Baseado na história que o mestre Jiribina contou enquanto incorporado em Dora, Arlindo

compôs o toante acima “num sonho”, uma noite antes da abertura do seu terreiro, o grupo

dois citado no toante.

Os quatro primeiros versos deste toante são retirados de um ponto de “umbanda”.

Arlindo reuniu esta parte a que compusera, aparentemente apenas por sentir uma afinidade

entre os dois trechos. Fica mais uma vez patente a reunião de tradições religiosas diversas -

presentes no que passei a reconhecer como o “complexo da jurema” - na elaboração de algo

original, que enriquece o repertório do toré Kapinawá. Este toante também demonstra a

vitalidade do processo de composição. Esta peça musical dentro do torécoco existe porque

este espaço permite que tradições culturais diversas criem pontes entre si, somando e não

subtraindo.

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Meus caboclo quando vem da aldeia traz a estrela de Davi no peito “Meus caboclo quando vem da aldeia traz a estrela de Davi no peito, Quem foi quem deu, quem dá, quem daria, Esses índios são filhos da Virgem Maria.”

A composição deste toante também é muito característica da maneira como estes

compositores trabalham a inspiração.

“E esse é de quando? Esse foi da semana passada. Não tá bem na safra. Já apresentou pro povo? Vou decorar mais pra pegar o ritmo antes de apresentar, pra turma saber responder mais compassado. Como o senhor fez ele? Fiz lendo este livro (Um livro de oração de São Crispiniano), firma o pensamento e vem, eu tenho muito livro de oração”.

Arlindo explica que lendo o livro, ou firmando o pensamento enquanto se prepara

pra dormir, ou mesmo durante o trabalho na roça, aos “poucos vai chegando aquilo no

pensamento”. A letra do toante pode ter sido construída facilmente atentando para os

símbolos religiosos que o livro decifra, “traz a estrela de Davi no peito”. Embora a

produção da melodia seja parte do mistério da própria composição, da qual não tenho senão

referências vagas. O que quero destacar é a dinâmica destas composições, sua

contemporaneidade. Arlindo estava com o livro de São Crispiniano na mão, o relia, o

estudava. Já apresentei atrás (capítulo II) o interesse de Arlindo pelos livros, principalmente

os de orações. Ora, muitos toantes não são simplesmente feitos, de imediato, embora

muitos assim sejam feitos, de fato há muitos que são elaborados, trabalhados e inclusive

ensaiados. Arlindo o pensa já com o devido espaço para as respostas do coro, e do próprio

“puxador”. Muitos toantes são sistematicamente elaborados, outros se mantém como

apresentados desde a primeira vez e muitos outros, inclusive, passam por transformações,

como por exemplo,

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Eu sou caboclo brasileiro da tribo Kapinawá “Eu sou caboclo brasileiro da tribo Kapinawá hói leriando iralandeia hói leriando iralandá”

Arlindo lembra que “esse outro não é meu todo não, mas quando eu voltei, eu cantei

diferente do que cantava. Que época o senhor fez? É de 2000, da época que vim pra cá, de

agora”. Também contemporâneo como o anterior, este foi “melhorado”, foi modificado a

partir do gosto de Arlindo, novo, pra poder responder ao espaço inédito que é o toré

Kapinawá.

Ô na chegada do bispo vamos ter todos os cuidados “Ô na chegada do bispo, vamos ter todos os cuidados (2x) Viva, viva, Deus no céu, o bispo chegou na aldeia (2x)”

A inspiração para esse toante de Zé Caetano veio de uma necessidade.

“O bispo veio aqui e eu disse que vou ver se faço um toante pra quando o bispo vier aqui, vou cantar lá na igreja, e eu nunca tinha visto ele; aí eu, aí ele disse que a abertura hoje ia ser com cantos, de toantes, cantos, num é com benditos não. Eu disse, eu tenho um, tá aqui na minha mente, e hoje mesmo veio, agora, tá aqui na minha mente agora, num foi de dia não. Quando o bispo chegou aí a audição ia ser com cantos indígenas, não é com bendito não, com a igreja. Eu cantei e deu certo, aí deu certo, todo mundo bateu palmas, veio pra mim e não pros outros, os outros ninguém num sabe”.

Os Kapinawá esperavam a presença do bispo na área, e foi proposto, aparentemente pelo

próprio bispo, que a abertura da cerimônia religiosa na igrejinha da Mina Grande fosse feita

não com os tradicionais benditos, mas sim com algum “canto indígena”. Zé Caetano

prontamente respondeu, ele tinha recebido, “veio pra mim e não pros outros, os outros

ninguém num sabe”, ou composto, “e eu disse que vou ver se faço um toante pra quando o

bispo vier aqui”, um toante naquela mesma noite, inspirado pela cerimônia que se

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realizaria. Ele também lembra que cantou sua composição ao microfone, na frente de todos,

e melhor ainda, “Eu cantei e deu certo, aí deu certo, todo mundo bateu palmas”.

Ô mando-a ô mandá “Mas ô mando-a ô mandá, mas agora eu vou cantar, Ô mando-a ô mandá, Mas agora eu vou cantar, Mas pensava que eu não sabia, canto sexta e canto sábado até Domingo ao meio dia.” Ô mando-a ô mandá “Ô mando-a, ô mandá, Mas agora eu vou cantar Mas eu agora vou forgar E agora eu vou chamar Os caboclo pra vim forgar Mas eu sou filho dessa aldeia E da aldeia Kapinawá Eu quero ver mais meus caboclo Eu quero ver ele pisar Mas a pisada é da índio Ô da aldeia Kapinawá Eu sou caboclo sou da aldeia Ô da aldeia do jurema Eu sou caboclo sou da aldeia Eu vou chamar os encantado E vem mais é de lá da Furna Me dá força pra eu cantá”

A primeira é uma versão reduzida deste samba-de-coco, a segunda é uma versão com

improvisos. Seu autor é Zé Caetano, “fui eu que fiz, é um samba de caboclo que é de mim

mesmo, que eu nunca vi na minha vida”. Este é um exemplo dos sambas recentemente

feitos, ele tem a presença dos caboclos que Zé Caetano cita serem os elementos que

diferenciam os sambas antigos dos novos, “Esse samba de casa nós canta falando assim dos

caboclo”. Zé Moisés e outros também citam esta diferença. Este samba é um daqueles

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feitos dentro do movimento de integração do universo do samba-de-coco no toré. Eu já

apontei alguns detalhes deste evento na vida da comunidade ritual (ver capítulo III).

Gostaria de destacar aqui a questão da improvisação. A improvisação é um dos mais

conceituados elementos do samba-de-coco, é o “rimador” que realmente faz o samba

existir. No caso da composição de Zé Caetano, é a improvisação que insere este samba no

toré. Isso porque a letra original do samba, “Ô mando-a ô mandá, mas agora eu vou cantar,

mas pensava que eu não sabia, canto sexta e canto sábado, até domingo ao meio dia” -,

possivelmente de um samba-de-coco antigo -, não se adapta ao universo lírico dos toantes.

Ao improvisar em cima de temas religiosos e étnicos, Zé Caetano compõem, compõem

como faziam os rimadores dos sambas, ele utiliza versos já conhecidos, simples e que estão

presentes em muitos toantes que eles já conhecem. Os versos do samba são sacros e

profanos, religiosos e políticos, e são por isso, ao mesmo tempo, um discurso sobre a

comunidade ritual, dos elementos que a compõem, no céu e na terra.

Nem todo samba é cantado no toré, este abaixo, por exemplo,

Sou Machadinho eu derrubo pau “Sou Machadinho eu derrubo pau No primeiro canto eu derrubo gaio (2x) Eu derrubo galho Deixo estende Trabalho na jurema e Trabalho no dendê.”

É um samba que Dôra compôs, mas não canta, “samba-de-coco eu não tenho não, só um,

mas é do lado esquerdo, o do seu Zé”. Há muitas composições que não passam a figurar no

toré. Muitas são consideradas impróprias para o trabalho. Mas, do mesmo modo que

percebem a “umbanda” no trabalho, estes toantes e sambas pras esquerdas existem, são

criados. Arlindo, que não demonstra atração pela “umbanda”, também tem o seu, embora a

memória o auxiliasse a se contradizer na minha frente. Durante nossa entrevista, após me

apresentar o toante “Eu vortei pra minha aldeia”, ele disse,

“tem um que é na safra dele, mas é de candomblé, diz assim,

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144

‘Quando eu venho de minha aldeia trago meus irmão de fé (2x) Oi firma um ponto, {segura um ponto}’

Como é mesmo, (tenta lembrar), esse é de candomblé”.

O esquecimento é normal, e mesmo porque não era tão importante para Arlindo que ele

fosse lembrado. Interessa identificar que o conhecimento do universo daquilo que ele

denomina de “umbanda” (ou ás vezes “candomblé”) não se restringe a saber o significado

dos símbolos religiosos, muitas vezes estes símbolos são trabalhados, testados nas

composições, e que são mesmo escondidas, “esquecidas”.

Toré ampliado

A partir da constatação das composições fica claro que o toré Kapinawá teve um grande

aumento de repertório. Mas o repertório Kapinawá também é constituído de peças musicais

originárias de outras situações, muitas são lembradas por causa da pessoa que a trouxe de

fora, ou mesmo lembradas por terem sido feitas na própria área Kapinawá por outros

índios. E há de fato um grande número de composições que já não se consegue identificar

com certeza seu trajeto até o toré Kapinawá. Um certo número de composições são

anônimas, “Esses toantes que falam dos Kapinawá, quem foi que fez? Nóis! Eles mesmos

que dança, ali quando tá dançando o ritual, vem na mente, aí eles cantam” (Zé Caetano).

Outras são, além disso, um instrumento, como ensina Arlindo, “quando o guia vem e canta,

e não diz nome, aí a gente canta assim, ‘quem foi que chegou aqui nessa gira (ou terreiro) e

não falou. Aqui só entra quem falar que o trabalho é juremar’”. Ou este já citado, “quando

tem uma perturbação assim no terreiro aí a gente canta ‘ô Joaquina, ô Joaquina, Maria da

Conceição (...)’. Esse é antigo? É não, esse ai saiu da mente de um daqui, acho que de nós

mesmo num trabalho, nem lembro mais, da minha mente acho que não foi não”.

Outros toantes são ainda criados fora mas entendidos como próprios do toré

Kapinawá. É o caso do toante abaixo,

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O rei de todas as aldeias “O rei da Serra Negra é o rei de todas as aldeias, Valei-me minha mãe de Deus, Nossa Senhora das Candeias Hae heina” (repete início)

Dôra explica que ele, “é de Zé Galego, ele mora ali. Ele tem uns toante bonito. Foi esse que

foi pra Kambiwá e trouxe os índios de lá? Foi! Ele cantou e nós aprendemos, ele puxou de

lá pra qui mas foi ele que fez. É daqui mesmo”. Ou aqueles toantes que estão em situação

inversa, criados por outro índio mas dentro da área Kapinawá, como exemplifica o toante,

do mestre Honório lembrado por Arlindo,

“tem um daqui que foi os mestre de Zé índio que puxaram, os dois índios (Zé Índio e Dôca) cantavam ele mas ele é daqui certinho, que a mata do imbé é lá no pé da serra. (O toante diz), ‘Honório tu vem da aldeia vem dançando o meu toré 2x com uma pomba de imbuá oi lá da mata do imbé. hei há hei há.’ Foi o Zé índio que trouxe, mas foi feito aqui? Veio na mente dele, porque tinha o mestre Honório daqui, o índio velho com nome de Honório, e essa mata o imbé que chama ali, é um pau”.

O toante de mestre Honório “veio na mente dele”, “mas ele é daqui certinho”, foi no

trabalho dos Kapinawá, com referência a uma mata da área e ainda por cima o nome

Honório é reconhecido como um nome antigo, de um dos índios antigos. Já na época do

levantamento da aldeia Kapinawá, toantes foram compostos por Zé Índio, e mesmo outros

índios de fora, mas são pensados como próprios dos Kapinawá, fazendo assim parte do

repertório do grupo.

O espaço torécoco é vigoroso, ele passa por cima de sistematizações e tenta vencer

a rigidez de certas ambigüidades. O repertório do toré Kapinawá é formado basicamente

por toantes e sambas-de-coco. A estes dois gêneros musicais principais unem-se benditos

antigos (eventualmente na abertura), e uns poucos novos, também chamados aqui de

“hinos”; pontos de umbanda e pontos de umbanda modificados (pontos transformados em

toantes na lírica ou na melodia). Os toantes cantados nos torés provêm de: empréstimo de

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toantes de outros grupos indígenas do Nordeste, toantes trazidos por Dôca e Zé Índio

(toantes Kambiwá) e toantes criados por eles mesmos (composição coletiva, em dupla, ou

individual). Os sambas-de-coco são de dois tipos: sambas-de-coco antigos (sambas

lembrados por aqueles que tem acima de quarenta anos), e os sambas de caboclo111,

sambas-de-coco no ritmo de toante, ou com letra semelhante, são composições

contemporâneas.

O conjunto de toantes compostos no contexto da emergência étnica Kapinawá

carrega em comum o fato de serem composições associadas à presença de um “Dom”, de

inspiração religiosa. Para além desse fenômeno, é possível ainda fazer mais a seguinte

classificação: toantes compostos por Dôca e Zé Índio quando já estavam na área Kapinawá;

toantes compostos de forma coletiva, criados no bojo das reivindicações junto à FUNAI;

toantes compostos com a colaboração de duas pessoas, onde cada uma contribui com um

“pé” (o verso de uma composição); composições individuais que são feitas nas mais

diversas situações (no trabalho na roça, em sonho, no toré, etc). Toantes compostos por

uma única pessoa também podem ser apresentados durante uma “irradiação” ou

“incorporação”, sendo cantadas por espírito incorporado no médium.

Como se vê, o repertório do toré Kapinawá é composto de gêneros musicais

diferentes, que em determinadas ocasiões até se mesclam. Estes gêneros, embora diferentes,

estão presentes num grande quadro cultural e musical no espaço social nordestino.

Enquanto os benditos eram a música religiosa tradicional do grupo antes da emergência

étnica, os toantes passaram após esta fase a dividir a atenção religiosa. Por outro lado, o

samba-de-coco, que era apenas a brincadeira dos “caboclos da Mina Grande”, ganha novo

status ao penetrar no toré e dividir o lúdico da “dança de parea” com o religioso na “linha

da jurema”. Ao mesmo tempo, o samba-de-coco é reconhecido como a tradição indígena

por excelência dos Kapinawá, seu diferencial frente aos torés dos outros grupos indígenas

nordestinos.

Num grande quadro, as músicas que compõem o repertório musical tradicional do

toré Kapinawá, provém de:

Empréstimo de toantes de outros grupos indígenas do nordeste.

Toantes trazidos (ou) produzidos por Dôca e Zé Índio. 111 Chamo de samba de caboclo porque assim este tipo de samba foi nomeado por vários Kapinawá.

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Toantes Kambiwá.

Toantes criados por eles mesmos (composição coletiva, anônima).

Toantes criados por eles mesmos (composição em dupla).

Toantes criados por eles mesmos (composição individual).

Benditos antigos (eventualmente na abertura).

Benditos novos, ou hinos (eventualmente na abertura).

Pontos de umbanda (raramente)

Pontos de umbanda modificados, pontos transformados em toantes na lírica ou na melodia, (menos

raramente).

Sambas-de-coco antigos (no meio ou no fim do toré).

Samba de caboclo; sambas-de-coco no ritmo de toante, ou com letra semelhante (durante o toré,

mais geralmente do meio pro fim).

Os toantes seriam classificados da seguinte maneira:

Toantes (de uma maneira geral o conjunto maior de toantes canta a etnia Kapinawá e um panteão

religioso que está incluído no conjunto de símbolos religiosos do “complexo da jurema”)

Reconheço ainda esta possível classificação:

Toantes de abertura (um ou dois, deixados por Dôca – ver capítulo I)

Toantes de cura (para trabalhos de “mesa” e “cura”, mas usados em algumas ocasiões no toré.)

Toantes para os mestres (são os toantes específicos para “trazer” um mestre).

Toantes de despedida (logicamente sempre no encerramento do toré)

Toantes-pontos112

Caboclinhos113

112 Categoria ainda meio incerta, que pretende reunir os toantes compostos com o auxílio de trechos ou melodias dos “pontos de umbanda”. 113

“Por cabocolinho devemos entender um tipo de encantado, de entidade espiritual, mas também, ainda que não dito de forma explícita ao longo das gravações, me pergunto se não seria um tipo especial de toante, cantado em geral no início do toré” (Pereira, 2004: 260).

“Meus cabocolinho, o que que anda fazendo aqui?

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Os toantes criados por eles mesmos poderiam ser classificados assim:

Toantes criados por eles mesmos (composição coletiva). Criados no bojo das reivindicações junto à

FUNAI, criados por Dôca e Zé Índio já na área Kapinawá.

Toantes criados por eles mesmos (composição em dupla). Toantes compostos com a colaboração de

duas pessoas, onde cada uma contribui com um “pé”, ou verso de uma composição.

Toantes criados por eles mesmos (composição individual). Composições individuais são referidas a

um “Dom Divino”, a intervenção no homem de fenômenos divinos, religiosos. Também podem ser

apresentadas durante uma irradiação ou “incorporação”, sendo cantadas por espírito encarnado no

médium. São na sua maior parte canções de mestres, os caboclos da Furna, os índios mais antigos.

Por fim, restaria fazer uma análise da afinação e da improvisação. Tanto um como,

o outro, apresentam certas dificuldades para análise, já que não domino completamente a

linguagem da etnomusicologia. Deste modo, deixo apenas a indicação de análise destes

elementos (afinação e improvisação) como constituintes de um estilo Kapinawá. Talvez

nestes elementos possam ser identificadas outras categorias étnicas, outros modos de tornar

próprio o que foi construído com elementos variados. Assim, tanto a afinação quanto a

improvisação poderiam ser pensados como um modelo nativo, uma maneira de cantar, de

tecer as melodias diferentemente, de um modo próprio, reinventá-las.

O torécoco como espaço social amplo de atualização de tradições Kapinawá, é

também espaço social da performance individual. Deste modo, a própria afinação,

improvisação e outros elementos estéticos estariam sendo trabalhados durante as

realizações do toré, e mesmo “ensaiados” em outros contextos. Por isso, existem muitas

disputas, “invejas”, no toré entre os enfrentantes, o que caracteriza o espaço do trabalho

como uma arena de disputas e valorizações pessoais, a partir das apresentações mais

Eu ando por terra alheia correndo pras aldeia, meus cabocolinho, rei

Ô eina reia reia oi rei Ô eina reia reia oi rei”

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performáticas e marcantes. A afinação, tal como a improvisação, vista como um modelo

nativo, uma forma de apropriação, de re-compor a música, isto é, a afirmação étnica através

de um estilo, um modelo próprio de fazer, deve levar em conta as preferências individuais

com relação ao que se gosta de ouvir, ou seja, às preferências mesmas das pessoas com

relação àquilo que consideram “bonito” e “gostoso” de se ouvir, estas categorias estão em

disputa no torécoco, e o modo como se cristaliza uma preferência geral me é desconhecido.

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Considerações Finais

“Meu tempo é hoje. Eu não vivo do passado,

o passado vive em mim”.

Paulinho da Viola 114 Uma constatação curiosa é a de que o canto e a dança do toré são elementos culturais

importantíssimos, mas eles significativamente não representaram a grande novidade da

emergência étnica Kapinawá, já que, como visto, canto e dança estavam presentes nos

benditos e no samba-de-coco. De fato, o evento original, foi a composição. Compor música

era uma qualidade dos “tiradores de versos, os antigos”, a grande “retomada” da tradição de

fato foi a produção original de toantes. A geração de hoje canta a tradição que engloba o

passado (sambas principalmente, e alguns benditos) e engloba o presente (toantes, sambas

de caboclo, algum bendito, até mesmo algum ponto de umbanda).

Deste modo, a composição leva a pensar numa espécie de individualismo, pois, o

que comumente se chama de “patrimônio tradicional de comunidades indígenas” pode ser

repensado a partir da perspectiva da individualização das composições, que constituem

mesmo assim, em conjunto, um patrimônio coletivo. Por serem consideradas músicas

tradicionais, são por isso também composições anônimas? Lembro que o próprio CD

Kapinawá (ver introdução) apresenta um conjunto de composições reconhecidas como a

“música tradicional Kapinawá”, evidente é, pelo exposto neste texto, que apenas parte do

repertório são de composições anônimas, outra parte são composições que tem autores

reconhecidos pela própria comunidade.

Se segundo Béhague (1992; apud, Nascimento, 1998: 104), “pode não ser

sustentável qualificar de composição a aquisição de novos cantos por visões mágicas ou

sonhos entre muitos povos indígenas. Os que criam esses cantos podem não conceber estar

114 Esta frase é repetida por Paulinho da Viola em diversas ocasiões, como, por exemplo, no filme de Isabel Jaguaribe, “Meu Tempo é Hoje” (2002), sobre o compositor; e também no texto do encarte do CD: ROB DIGITAL, Nó em Pingo d’Água interpreta Paulinho da Viola. Brasil, 2003.

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compondo, no sentido mais geral que damos a essa atividade”, deve-se reconhecer, porém,

que a própria designação de sociedades indígenas é histórica; “uma compreensão das

sociedades e culturas indígenas não pode passar sem uma reflexão e recuperação críticas de

sua dimensão histórica” (Oliveira, 1999: 08), e como sociedades de formações históricas

diferentes, as sociedades indígenas brasileiras apresentam inúmeras diferenças culturais, e

com representações diferenciadas sobre seus sentidos. Como já mencionei (ver introdução),

Nascimento (1998: 104) revela que “os Fulni-ô desconhecem o conceito de composição e

entendem o aparecimento de uma ‘nova’ melodia como algo coletivo e espiritual que faz

parte de um conhecimento comum já existente, embora de fato possa ser uma melodia

nova”. Deste modo o autor entende que,

“a observação do fazer musical Fulni-ô no Tolê remete-nos para a compreensão deste evento como estando atrelado às diversas formas de decodificação de símbolos sonoros. Decodificações essas que dizem respeito aos aspectos da cosmovisão do grupo. A estética sonora submete-se aos signos culturais, onde estes últimos são quem direcionam os indivíduos para uma determinada produção sonora (...) O indivíduo retorna ao coletivo a partir das regras pré-estabelecidas pela tradição grupal” (ibid.)115.

E retoma então mais uma vez Béhague (1992, apud, Nascimento, 1998: 104), “a idéia de

uma pessoa ser reconhecida como compositor e nada mais na sociedade em que opera

parece ser tipicamente ocidental”. E não são os Kapinawá ocidentais? Fruto da mesma

história ocidental que compartilhamos, tal como aponta Wolf (1982)116? Não teriam

também a representação individualizada da composição, embora não se apresentam

exclusivamente como compositores, ou seja, exerçam também outros papéis sociais.

Como pensar que os autores das composições Kapinawá são produtos do meio

social apenas, até que ponto? Como cada composição pode ser pensada como um produto

individual, demarcada por uma especificidade da biografia, um particularismo, uma

referência original. É assim com qualquer tipo de composição? Incluindo os autores

115 Os Fulni-ô produziram ou co-produziram três CD’s: MUSIC, Piper. Saktêlhassato. Cantos Tradicionais dos Índios Fulni-ô. Recife, s/d. RECORDS, Ciranda. FETHXA. Cantando com o sol. Recife: s/d. MUSIC, Piper. Flêetwatxya. Cantos Tradicionais dos Índios Fulni-ô. Recife: s/d. (fonte: Pereira, 2004). No encarte da compilação FETHXA, que é um CD de sambas-de-coco e cirandas com letras em yaathê, pode-se ler, “músicas baseadas na cultura fulni-ô com letras compostas por Manoel de Matos e arranjos musicais de Martinho, Boró e Virgínia Airola”. A análise de Nascimento (1998) se concentra nas cantigas que fazer parte do repertório do Tolê, o que não inclui as músicas do FETHXA. 116 “The more ethnohistory we know, the more clearly ‘their’ history and ‘our’ history emerge as part of the same history” (Wolf, 1982: 19).

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urbanos? Os Kapinawá são compositores de que gênero de música? E se há um gênero de

musica que seguem, qual é? Todo artista inspira-se num gênero de música ou em vários,

fazem assim porque são interlocutores sociais, são sujeitos que dialogam com o real social.

Os Kapinawá também são compositores que demarcam uma independência. Mas será que

eles tem, cada um, um estilo? Arlindo um? Jaime outro? Será? Se eles têm estilo,

aproximam-se dos compositores urbanos. Se não, são compositores “tradicionais”,

“rurais”? Se são compositores rurais, fazem toantes iguais a todas as áreas? Se não, o que

os diferencia, o coco? Aí então, se é diferente, é um estilo da tribo?

A Mina Grande através de seus moradores, dentro de um campo social (Bourdieu,

2002), numa situação histórica (Oliveira, 1988), produziu um estilo de música dentro do

gênero de composições rurais (camponesas, negras e indígenas) - um estilo próprio dentro

do gênero maior que são os toantes - do qual são seus compositores sujeitos do presente

histórico? Cada um através de imagens e representações próprias, numa luta pela

preferência da assembléia, como se essa preferência pudessem cristalizar a legitimidade da

composição, sua aceitação e incorporação ao repertório tradicional Kapinawá. Se assim for,

é lógico que as composições de forró de André, morador da Mina Grande, não são

reconhecidas como música tradicional, mas sim branca; embora um rico rimador,

instrumentista (sanfoneiro) e compositor, André não compõem música indígena, e nem, por

isso mesmo, música tradicional Kapinawá117.

Será então que o “mercado” é a tribo, e a aprovação é imediata, cara-a-cara no toré?

Pessoabilidade, lugar social ocupado, que estratégias se utilizam para aumentarem as

chances de aceitação de alguma composição? Os compositores urbanos variam seu “estilo”

sobre estilos, tentam assim criar uma individualidade, “uma coisa única”. Será o mesmo

entre os Kapinawá? As idiossincrasias são assumidas a esse ponto? Que individualidade há

nas composições? Que mecanismo as dá um sentido coletivo? História, religião ou a

estética da composição? Existe um denominador comum para as composições mais

executadas no toré? Após tantas perguntas é muito arriscado uma resposta rápida. Estas

questões servem pra pensar e remetem a uma agenda de estudos e pesquisas futuras.

117 “the invention of tradition is selective: only certain items (...) are chosen to represent traditional culture, and other aspects of the past are ignored or forgotten. In sum, traditions thought to be preserved are created out of the conceptual needs of the present. Tradition is not handed down form the past, as thing or collection of things; it is symbolically reinvented in an ongoing present” (Handler e Linnekin, 1984: 280).

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Por hora, posso apenas afirmar que a música dos Kapinawá não reflete apenas o uso

estratégico de um repertório de toré para consolidar uma etnicidade. Os compositores

Kapinawá como sujeitos simmelianos, - que “traduzem” sua posição no mundo através de

sua música – impõem um status bastante ambíguo ao “Dom”, ao mesmo tempo

individualista e geral, étnico, que não valeria a pena descaracterizar no sentido de perder

sua própria dinâmica e mutabilidade. A história da formação do torécoco, e a estrutura

lírica e musical tomada como um aspecto da cultura do povo da Mina Grande, apresenta

uma constituição original e própria de um aspecto de sua cultura como sitiantes, caboclos e

índios do sertão de Pernambuco. A música tem uma constituição própria, uma produção

original que respondeu e dialogou com aspectos deste processo histórico, regulando,

fiscalizando, experimentando e admitindo os impasses e as contradições. A música se

apresenta como um elemento de cultura que narra um período da história deste grupo, e a

posição no mundo de seus compositores.

A tradição como terceira margem

A tradição, como se viu, tem um significado muito curioso entre os Kapinawá. Embora em

determinados momentos a palavra remeta ao estritamente antigo, tradição também significa

a criatividade, o novo, aquilo que vem a enriquecer o ritual, tradição se configura como

uma “ambigüidade positiva” (Albuquerque, 2004a: 224). Essa construção nativa do sentido

de tradição não é um fenômeno isolado, a ambigüidade do termo (sua não linearidade

histórica) é apontada por Hobsbawn (1984) que convida a rever o conceito de tradição e

utilizá-lo no sentido de cultura em movimento, as tradições são emblemas culturais que

representam grupos, por isso mutáveis, adaptáveis. “Consideramos que a invenção de

tradições é essencialmente um processo de formalização e ritualização, caracterizado por

referir-se ao passado, mesmo que apenas pela imposição da repetição” (ibid.: 10). Ainda,

“Mais interessante, do nosso ponto de vista, é a utilização de elementos antigos na

elaboração de novas tradições inventadas para fins bastante originais. (ibid.: 14).

Ayala e Ayala (2002: 65-6) são muito perspicazes ao conceituarem tradição,

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“Observe-se que este termo não precisa ter, obrigatoriamente, a acepção de recusa à mudança, como querem muitos folcloristas. Referimo-nos à tradição com o mesmo significado que o termo tem quando é utilizado para a cultura erudita, isto é, remetendo à relação de uma obra artística com outras, anteriores ou contemporâneas, do mesmo campo artístico ou de campos diferentes. Afirmar que uma obra se insere em certa tradição significa estabelecer sua ligação com determinadas propostas, com um conjunto de elementos ou características que é específico, que se diferencia dos outros”.

Handler e Linnekin (1984: 273) pensam a tradição como um processo interpretativo

que envolve ao mesmo tempo continuidade e descontinuidade, “We have concluded that

tradition cannot be defined in terms of boundedness, givennes, or essence. Rather, tradition

refers to an interpretive process that embodies both continuity and discontinuity”. A

tradição pode ser criada no presente e muitas vezes seus elementos não correspondem de

forma direta ao passado, a autenticidade é definida no presente, “the selections of what

constitutes tradition is always made in the present; the content of the past is modified and

redefined according to a modern significance” (Linnekin, 1983: 241).

Linnekin (1983) afirma que a tradição é mutante porque ela responde a construções

sociais de identidades diferenciadas a partir da experiência específica de cada grupo. Toda

a idéia de intemporalidade das tradições é situacionalmente construída, porque a tradição é

fluída, redefinida a cada geração, tal como o passado, que também é construído no presente,

como memória positiva. Lembrando Sapir (1970), a cultura autêntica é formada por

pessoas que reconhecem o passado em suas formas, mas produzem reorganizações destas

formas no presente, permitindo à cultura uma qualidade dialética, ao mesmo tempo

contínua e descontínua.

Para Barth, a história narrada pelos atores sociais em contextos de formação de

identidades e mudanças culturais, “destaca o caráter marcadamente variável que os eventos

passados assumem, o que é uma importante idéia contra-intuitiva presente nas visões

contemporâneas da história: os atos permanecem sempre contestáveis e seu significado

pode ser reescrito” (Barth, 2000: 176). O que mais uma vez valoriza o termo tradição como

algo relativo, que antes de qualquer objetiva ancestralidade118, deve ser compreendido no

seu sentido “construtivista” (Grünewald, 2001: 5), já que a cultura do torécoco foi pensada

neste texto como tradições em mudança (ibid.: 10). 118 “The crucial point for our purposes is that their value as traditional symbols does not depend upon an objective relation to the past” (Handler e Linnekin, 1984: 286).

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Wolf (1982) chamava a atenção para a idéia de que fazer história e etno-história

deve ser parte do mesmo exercício. Não se deve entender a etno-história como história

congelada, ou separada, “Yet what is clear from the study of ethnohistory is that the

subjects of the two kinds of history are the same. The more ethnohistory we know, the

more clearly ‘their’ history and ‘our’ history emerge as part of the same history” (ibid.: 19).

Em Wolf (1988), onde o conceito de sociedade é histórico119, entende-se que as sociedades

estão em fluxos interconexos, e que estas interconexões implicam trocas, “Social patterns

always occur in the multiform plural and are constructed in the curse of historical

interchanges, internal and external, over time, not in some Platonic realm assumed a priori”

(ibid.: 757), as tradições são assim também produto destas trocas.

Para Oliveira (1999b: 55), pode-se fazer no plano analítico uma divisão entre a

narrativa histórica convencional e uma “possível história indígena, que corresponde à

atualização, dentro de determinada conjuntura, de uma forma narrativa da tradição”. Esse

autor enfatiza que o pesquisador deve estar atento para “resgatar a plena historicidade dos

sujeitos históricos, descrever como eles estão imersos e como se constituem em cada

ambiente líquido (as épocas e os ecúmenos)” (ibid.: 106).

Da história que a tradição se compõe devemos estar atentos para demarcar as

categorias e as experiências que construíram uma historicidade Kapinawá, que faz sentido

junto a suas representações culturais. Bhabha (1998: 20-1) lembra que:

“A representação da diferença não deve ser lida apressadamente como o reflexo de traços culturais ou étnicos preestabelecidos, inscritos na lápide fixa da tradição. A articulação social da diferença, da perspectiva da minoria, é uma negociação complexa, em andamento, que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais que emergem em momentos de transformação histórica”.

Na comunidade Kapinawá, a representação da cultura tem múltiplas vozes e “O

reconhecimento que a tradição outorga é uma forma parcial de identificação. Ao reencenar

o passado, este introduz outras temporalidades culturais incomensuráveis na invenção da

tradição” (ibid.: 21).

119 “It is important, therefore, to recognize that the concept of Society has a history, a historical function within a determinate context, in a particular part of the world” (Wolf, 1988: 759).

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Bhabha identifica na cultura a existência de descontinuidades nas representações

tanto espacialmente quanto temporalmente. É muito clara a não homogeneidade de

representações da cultura que emerge nas práticas sociais dos Kapinawá. O lugar de quem

fala, sua biografia, suas referências históricas e culturais, são fundamentais para

compreender como um indivíduo representa sua identidade, “nossa autopresença mais

imediata, nossa imagem pública, vem a ser revelada por suas descontinuidades, suas

desigualdades, suas minorias” (ibid.: 23). A produção de narrativas não é um texto linear

que investe na objetivação dos fatos, já que não há método historiográfico que não esteja

comprometido com uma visão de poder (Bhabha, 1998; Foucault, 2000). O discurso das

minorias é uma imposição de uma temporalidade, um mecanismo de ordenação positiva, o

resultado de uma leitura contra hegemônica. A arte destes discursos investe em:

“uma idéia do novo como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como causa social ou precedente estético; ela renova o passado, reconfigurando-o como um ‘entre-lugar’ contingente, que inova e irrompe a atuação do presente. O ‘passado-presente’ torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia, de viver”. (ibid.: 27).

Essa idéia aparentemente complexa encontra, numa frase constantemente citada por

Paulinho da Viola, uma tradução simples, “Meu tempo é hoje. Eu não vivo do passado, o

passado vive em mim”.120 O toré Kapinawá é o palco por excelência da tradição. O

repertório do toré Kapinawá, como tradição indígena da comunidade, foi criado pelos

Kapinawá contemporâneos. A tradição cultural é feita agora, tem autores, sujeitos não do

passado, mas presentes, agindo, cantando toantes gerados pela sua experiência particular

com a etnicidade. A tradição que não está apenas no passado é constantemente ampliada no

presente a partir do espaço social que denominei de torécoco. A cultura é por isso

incompleta, fragmentada, porque sempre atual, nova. Como se expressou uma vez o

curador Elias de Ibimirim - sobre a contemporaneidade do pluralismo religioso de seu

trabalho-, “é um negócio meio desmantelado, só não é pra quem entende, quem não

entende né?! Quebra no pau!”, pois é, o sentido da cultura talvez sejam os sentidos que

construímos para ela, nem sempre lógicos, mas de algum modo coerente, quando

percebidos dentro da experiência histórica, da memória e talvez principalmente, do ponto

120 Ver nota 01.

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157

de vista da vontade, aquela vitalidade nietzscheniana que Sapir (1970)121 imagina existir

nos espaços de cultura autêntica, porque quem existe elege sua biografia.

Em Arcoverde - PE (distante uns cinqüenta quilômetros de Buíque), conheci o

grupo de samba-de-coco mais conhecido da região, o “Samba-de-Coco Raízes de

Arcoverde”. Um senhor chamado Lula Calixto, ao procurar revitalizar a cultura do samba-

de-coco, que simplesmente desaparecera do cenário público da cidade, fundou o grupo em

1992. Após o falecimento deste senhor em 1998, o grupo continuou suas atividades, e lança

agora um segundo CD122, lá uma composição chamada “Quero ver no balancê”, de autoria

do simpático Assis Calixto123, diz em sua quadra final:

“o mestre Lula Calixto

sempre está na minha mente,

ressuscitou a cultura

para um mundo diferente”

Os Kapinawá também “ressuscitaram” a cultura para um mundo diferente, uma cultura a

altura das alianças com um espaço social e histórico específico; como se infere destes

versos, a cultura que “ressuscita”, está renovada, é diferente, porque o mundo que a abriga

também é diferente.

121 A Cultura autêntica, “Não é um híbrido espiritual de elementos contraditórios, de compartimentos estanques de consciência que evitam participar de uma síntese harmoniosa” (Sapir, 1970: 291). 122 Produzido por “Samba de Coco Raízes de Arcoverde”, co-produzido por Andrew Potter, Geraldo Lima e Iran Calixto. Godê Pavão. Recife, 2002. 123 Assis Calixto só descobriu seu dom para compor após uma situação jurídica envolvendo direitos autorais sobre músicas que ele considerava de domínio público, este evento pragmático, aliado à morte do inspirador Lula Calixto, transformou-se numa via de expressão da subjetividade e criatividade deste coquista/compositor.

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O novo espaço da tradição Kapinawá: o torécoco

Os Kapinawá da Mina Grande, ao elaborarem um toré para se apresentarem ao órgão tutor

(FUNAI) como índios, traduziram uma experiência coreográfico-musical anterior a partir

das músicas que já conheciam, a união destes elementos constituiu um toré próprio, uma

tradição original, um produto cultural novo que permitia a visualização da nova posição

social do grupo, da sua etnicidade. Este novo espaço de exibição da cultura tradicional dos

Kapinawá eu didaticamente nomeei de torécoco. O toré em si não é apenas dança, música

ou religião, é um espaço político, de atualização étnica. É também, e por isso mesmo, um

espaço de experiência cultural coletiva, e como espaço público é patrimônio da cultura. O

torécoco passou a ser o espaço de atualização permanente da tradição; um lugar novo, para

responder a novas experiências políticas, culturais, religiosas, e claramente musicais.

O torécoco como marca política de referência étnica não apenas muda o sentido

político do grupo, mas também exige novas retomadas do significado simbólico das

práticas religiosas e profanas, e das práticas musicais obviamente. Estas mudanças no

significado permitiram abrigar as novas exigências, incorporando ao sentido político (este

novo significado da arte – música e performance) e religioso do toré, os símbolos antes

separados da música profana e da música sagrada. É ao abrigo destes domínios da cultura

autêntica (Sapir, 1970) anterior, que a nova música se insere como tradição autêntica. O

toré enquanto apresentação política e religiosa ganha a experiência performativa e musical

da brincadeira profana do samba-de-coco, e por tabela, o samba-de-coco entra na igreja à

medida que também o toré é praticado em simbiose saudável com o cristianismo.

O torécoco Kapinawá pode ser reconhecido como uma produção nativa que se filia

a uma concepção híbrida de cultura (Barbosa, 2003). Segundo Barbosa (ibid.: 179),

“Entre os Kambiwá, produziu-se uma política fundamentalista124 no trabalho das lideranças durante o processo de regulamentação das práticas culturais legitimadas como pertencentes ao grupo (...) Essa tensão é tão evidente que se poderia falar em um

124 “Fundamentalista é uma concepção de cultura que se vale de princípios limitados, entendidos como suficientes e necessários para orientar as condutas humanas, uma determinada visão de mundo. (...) A cultura Kambiwá era concebida de modo fundamentalista no sentido proposto por Canclini (1989: 162), ou seja, a partir da idealização dogmática de um patrimônio cultural constituído por um repertório fixo de práticas e objetos valiosos”. (Barbosa, 2003: 179).

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fundamentalismo autóctone que concorre com outra posição, relativamente mais flexível, heterodoxa ou híbrida”.

A perspectiva híbrida estaria, “mais propensa à incorporação de novos elementos e à

ampliação do repertório de práticas e representações culturais” (ibid.: 183), esta seria pois a

postura que encontrei entre os Kapinawá mina-grandistas, principalmente porque “na maior

parte dos casos a noção de fundamentalismo é aplicada ao campo das religiões” (ibid.:

179), o que reforça no caso Kapinawá a adoção do termo hibridismo.

Assim, vê-se que o torécoco construído pelos Kapinawá da Mina Grande não

apenas fundou um novo modo de operar com a tradição, mas mais que isso, incrementou a

vida musical do grupo. Ao implementar um espaço social de manifestação religiosa,

política e artística, o incremento étnico abriu possibilidades de aumento de significados

inéditos da música. Como relata Pereira (2004: 265-6)

“Em termos musicológicos, creio que o material kapinawá nos permite, por um lado, pensá-lo em termos étnicos, no lugar que ocupa nesta ampla rede de fluxos e refluxos culturais em que os índios do nordeste estão inseridos, no caso em particular entre os Kapinawá e seus vizinhos Kambiwá e Xucuru”.

Mas por outro lado,

“considerações de ordem étnica não dão conta da gama de quadros comparativos em que cantos como os toantes podem entrar, em especial se forem colocados ao lado dos sambas de coco, dos benditos, das incelências, dos aboios, dos baianos, deslocando-nos para campos de inter-relação musical mais amplas, no quadro de uma música do sertão e agreste pernambucanos. Neste sentido, a presença de quarta aumentada e sétima menor em alguns dos toantes registrados podem colocá-los tanto no quadro das discussões sobre modos presentes na música folclórica ou popular do nordeste (Paz, 1994; Soler, 1997), quanto no das possíveis influências indígenas na música do nordeste (Siqueira, 1951; Peixe, 1965)”.

O torécoco como utopia

Os Kapinawá mina-grandistas venceram as estratégias de dominação simbólica e

econômica marcando a sua música com uma singularidade, uma diferença, uma síntese de

suas identidades, de camponeses, caboclos, índios, nordestinos, coquistas, juremistas e

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cristãos. Na luta pela afirmação étnica tiveram de desvencilhar as negatividades do

dualismo, sempre precário de se contornar, mas o fizeram, elegendo esta multi-linearidade

como símbolo necessário, já como tradição a se fazer valer como legítima, indispensável e

coerente. Como lembra Foucault,

“O grande jogo da história será de quem se apoderar das regras, de quem tomar o lugar daqueles que as utilizam, de quem se disfarçar para pervertê-las, utilizá-la ao inverso e voltá-las contra aqueles que as tinham imposto; de quem, se introduzindo no aparelho complexo, o fizer funcionar de tal modo que os dominantes encontrar-se-ão dominados por suas próprias regras” (2000: 25-6).

Já que o projeto étnico Kapinawá tem por base a elaboração de uma tradição, acredito

que ele se insere no quadro maior apontado por Oliveira (1993: viii),

“Com a mobilização coletiva por um território comum, ancorada na dinâmica do campo de ação indigenista, a reelaboração de tradições específicas (seja pela importação de símbolos visualizados como indígenas, seja pelo resgate de saberes locais ou regionais) poderá vir a consolidar-se em um futuro muito próximo como a dimensão propriamente cultural de um projeto étnico de grande envergadura”.

Assim, passo a concordar com este autor (1999: 32) no sentido de que, “só a

elaboração de utopias (religiosas/morais/políticas) permite a superação da contradição entre

os objetivos históricos e o sentimento de lealdade às origens, transformando a identidade

étnica em uma prática social efetiva, culminada pelo processo de territorialização”.

Acredito que a música Kapinawá, e o torécoco como espaço de possibilidade desta tradição

musical, enseja um projeto utópico. É utópico como é utópica a arte que nasce dos conflitos

e reaparelhagens simbólicas e valorativas. A música Kapinawá se instaurando entre o

moderno e o antigo no mesmo instante que é um e outro, passado e presente como modelo

para o futuro, tão incerto quanto era a possibilidade de territorialização. Aqui, vencer as

ambigüidades é já o esforço de demonstrar a natureza legítima da identidade construída.

Impermeável à linearidade, o espaço que chamo de torécoco existe como utopia, lugar ideal

onde as ambigüidades são superadas, na medida em que são produzidos discursos

coerentes, que tornam os elementos da tradição legítimos.

São posicionamentos particulares, que frente a expectativas externas e internas, se

apresentam como legítimos, fiéis na concordância com valores e símbolos de uma lógica

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real e particular. O desenvolvimento de identidades deve concordar com os dinamismos e

substâncias próprias das populações que se lançam a tal tarefa. Deve-se acreditar que a

posição assumida nunca é subalterna, ela é ativa e,

“O processo de territorialização não deve jamais ser entendido simplesmente como de mão única, dirigido externamente e homogenizador, pois a sua atualização pelos indígenas conduz justamente ao contrario, isto é, à construção de uma identidade étnica individualizada daquela comunidade em face de todo o conjunto genérico de ‘índios do Nordeste’” (Oliveira, 1999: 26).

A música no toré Kapinawá é um grande exemplo, sua diferença frente aos outros torés é

própria de um contexto singular de formação étnica. Esta música é o grande elemento de

tradição que é novo e antigo, moderno e arcaico, é por isso mesmo o elemento legítimo da

cultura, o torécoco é o novo espaço da cultura, atual, porém antigo, ele incorpora o novo e

assume a dignidade do velho, colocando os termos antagônicos (novo/antigo) num mesmo

espaço, sob a mesma lógica, assumindo a coerência histórica no momento em que assume a

história e a tradição como mudança.

Ao reconhecerem uma identidade neste novo padrão da música e de sua tradição, os

Kapinawá da Mina Grande souberam respeitar a dinâmica das transformações históricas, ao

mesmo tempo em que estavam presentes para se colocar como interlocutores privilegiados,

manipulando estrategicamente o sentido da diferença. Acredito que ao se referirem

enquanto indígenas, mantinham sua integridade histórica, ao mesmo, história passada e

presente do indígena do Nordeste brasileiro contemporâneo.

Um resumo do exposto poderia vir do seguinte modo, os Kapinawá são uma

comunidade étnica (Weber, 1998), no sentido de que se sentem subjetivamente como uma

comunidade, independente da existência de uma fronteira cultural rígida, e são índios, -

porque assim se identificam e são reconhecidos pela comunidade (Moerman, 1965) - que se

formaram numa situação histórica (Oliveira, 1988), já que os considerei aqui na sua

contemporaneidade de indígenas, e não no sentido de alguma ancestralidade, como se

fossem os mesmos índios Paratió do século XVIII.

A tradição musical do toré Kapinawá foi construída contemporaneamente, o espaço

de atualização desta cultura e tradição que chamo de torécoco é entendido como produção

utópica que ao vencer as ambigüidades se apresenta como tradição legítima. Ampliando e

reconstruindo os termos simbólicos, musicais e religiosos, o que por si só a fundamenta

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com relação às dissonâncias históricas, entre um passado e um presente diferentemente

indígenas. Música e espaço – torécoco - híbridos que vencem as ambigüidades políticas, as

expectativas internas e externas, produzindo-se como tradição original, particular e legítima

do trabalho do índio Kapinawá.

A experiência anterior do grupo com a música – sambas e benditos - continuou sendo

o parâmetro pelo qual eles construíram um toré particular. Um toré sambado, um toré de

samba-de-coco rimado, no improviso. Uma brincadeira religiosa e profana, uma festa

singular, de estilos de música em simbiose, vivendo a necessidade de superar contradições.

É ela, a música, sempre presente, que possibilita a existência de “algo a apresentar”, mais

que um toré, o espaço torécoco é a singularidade, o diferencial do grupo Kapinawá, a

tradição que feita para fora, antes de tudo teve que se submeter a critérios de dentro.

Assim, termino por concordar com Grünewald (2002: 122) que, falando dos Atikum

acerca de sua construção étnica num “regime de índio”, afirmou: “Acredito ter insinuado

aqui um exemplo de gênese de uma área da vida social que cria suas próprias questões, cria

uma ordem de preocupações, especialização e sistema de concorrências para impor uma

visão legítima da religião.” Permitindo-me imaginar que em Kapinawá esta “gênese de uma

área da vida social”, impôs uma nova ordem musical, política e religiosa, instaurando uma

“especialização e sistema de concorrências” que pretende demonstrar coerência, e nisso

impor uma visão legítima de sua cultura e, particularmente, de sua tradição musical, que se

revela no espaço de exibição e afirmação da cultura e tradições Kapinawá que aqui

denominei analiticamente de torécoco.

Por último, eu gostaria de encerrar com um coco de improviso que o pajé Kapinawá

Arlindo me apresentou uma vez. Mesmo ciente de todas as implicações sociais que

representa a música na comunidade, tal como se canta neste coco, a música em si sempre

reflete a alma, e para que a alma seja alegre e criativa sempre, a música que se canta

homenageia o encontro do homem com o verso cantado, este arroubo que espalha a vida...

“É bonito cantar,

Quem canta mata a saudade, desperta a mocidade e é melhor do que chorar,

É bonito cantar,

Quem canta mata a saudade, desperta a mocidade e é melhor do que chorar.

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163

Mas agora é malcriação, é despercetamente, caligraficadamente, vou daquele jeitão,

Cumpro com minha missão, dou conta do recado, num lar maravilhado,

Canto uma hora e um dia de acordo a cantoria num trabalho invesserrado (inveterado).

É bonito cantar

Quem canta mata a saudade, desperta a mocidade e é melhor do que chorar.

Quem canta mata a saudade, desperta a mocidade e é melhor do que chorar.

E agora é malcriação, é indespercetamente, caligraficadamente, vou daquele jeitão,

Cumpro com minha missão, dou conta do recado, num lar maravilhado,

Canto uma hora e um dia de acordo a cantoria num trabalho invecerrado (inveterado),

E é bonito cantar.

E quando Dorinha nasceu, das Dores125 nasceu, foi um dia de tristeza chorou toda a natureza, e até a

terra tremeu;

O sol se escondeu com seu divino farol,

Ela mordeu o lençol, deu na mãe mordeu a ama, comeu o colchão da cama e engoliu o urinou...

É bonito cantar,

Quem canta mata a saudade, desperta a mocidade e é melhor do que chorar...”

125 Dona Dôra, esposa de Arlindo, aqui ele cantava acompanhado dela e aproveitou para fazer-lhe esta brincadeira/homenagem.

Page 164: O Torécoco (a construção do repertório musical tradicional dos índios Kapinawá da Mina Grande - PE)

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