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ISSN 2176-1396 O TRABALHO DO PROFESSOR NO CAMPO DAS POLÍTICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS: REFLEXÕES, DIMENSÕES E SABERES Telma Romilda Duarte Vaz - UFMS 1 Eixo Formação de Professores Agência Financiadora: Não contou com financiamento Resumo A história da universidade brasileira apresenta um universo permeado por autoritarismo e contradições que perduram na contemporaneidade, vistas por meio da luta de classes e de bandeiras erguidas em prol da adoção de uma política que assegure condições de acesso das massas ao ensino superior. Visando fazer frente a esses movimentos, foram implementadas pelo Ministério da Educação no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003/2011), as políticas de ações afirmativas, com a finalidade de oferecer tratamento diferenciado a grupos sociais que sofrem discriminação histórica, seja por etnia- racial, cor, gênero, precedência nacional, socioeconômica, dentre outras, e que objetivam a correção das desigualdades e promoção da igualdade de oportunidades. Entretanto, muitos fatores ainda concorrem para se efetivar a democratização da universidade no sentido de garantir a permanência desse público nas universidades públicas federais. Argumentos relacionados as dificuldades desses alunos de se sentirem pertencentes ao ambiente universitário, a crença de alguns professores de que esses alunos não são capazes, a falta de ações mais específicas para o acolhimento desses, as dificuldades financeiras extremas, bem como, a falta de habilidade de muitos professores em lidar com esse novo público, constituem alguns dos fatores que contribuem para a elevada taxa de evasão. Nesse contexto, uma questão importante, silenciada no meio acadêmico, diz respeito a como ocorre o trabalho do professor no campo da adoção dessas políticas na universidade pública. O silenciamento da universidade sobre a participação dos docentes no processo de inclusão de grupos sociais segregados, congrega a negação e preconceito de muitos profissionais que não concordam ou não partilham dos marcos ideológicos e princípios do movimento de democratização da universidade pública como espaço para todos, independentemente de raça, cor, credo, religião, gênero, opção sexual, condição financeira, cultural, social ou política. A existência desse tipo de silenciamento no meio acadêmico reforça a exclusão e o controverso paradigma da universidade como lugar da elite. Reconhecer e discutir a importância do trabalho do professor no campo das políticas afirmativas é uma medida de democratização do acesso e da permanência na universidade. O professor não é um mero coadjuvante no interior da universidade e na vida dos seus alunos, ao contrário, é um profissional indispensável no processo de efetivação da democratização do ensino superior público e de qualidade, capaz de, por meio de seu trabalho, contribuir para assegurar o direito de todos à educação. Essa questão, constitui um tema de fronteira de conhecimento que demanda investigações mais profundas. O trabalho do professor tem mudado (ou precisa mudar) de um caráter mais prescritivo, tecnicista, voltado estritamente para o projeto capitalista para um modelo que valorize a reflexão, as interações humanas, e a ação do professor como uma 1 Docente da Universidade Federal do Estado de Mato Grosso do Sul (UFMS), Câmpus de Naviraí (CPNV), Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de São Paulo (UNESP), Câmpus de Presidente Prudente. E-mail: [email protected]

O TRABALHO DO PROFESSOR NO CAMPO DAS POLÍTICAS …Políticas de ações afirmativas – a Universidade na contramão do projeto neoliberal? A história da universidade brasileira

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ISSN 2176-1396

O TRABALHO DO PROFESSOR NO CAMPO DAS POLÍTICAS DE

AÇÕES AFIRMATIVAS: REFLEXÕES, DIMENSÕES E SABERES

Telma Romilda Duarte Vaz - UFMS1

Eixo – Formação de Professores

Agência Financiadora: Não contou com financiamento

Resumo

A história da universidade brasileira apresenta um universo permeado por autoritarismo e contradições

que perduram na contemporaneidade, vistas por meio da luta de classes e de bandeiras erguidas em prol

da adoção de uma política que assegure condições de acesso das massas ao ensino superior. Visando

fazer frente a esses movimentos, foram implementadas pelo Ministério da Educação no governo do

presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003/2011), as políticas de ações afirmativas, com a finalidade de

oferecer tratamento diferenciado a grupos sociais que sofrem discriminação histórica, seja por etnia-

racial, cor, gênero, precedência nacional, socioeconômica, dentre outras, e que objetivam a correção das

desigualdades e promoção da igualdade de oportunidades. Entretanto, muitos fatores ainda concorrem

para se efetivar a democratização da universidade no sentido de garantir a permanência desse público

nas universidades públicas federais. Argumentos relacionados as dificuldades desses alunos de se

sentirem pertencentes ao ambiente universitário, a crença de alguns professores de que esses alunos não

são capazes, a falta de ações mais específicas para o acolhimento desses, as dificuldades financeiras

extremas, bem como, a falta de habilidade de muitos professores em lidar com esse novo público,

constituem alguns dos fatores que contribuem para a elevada taxa de evasão. Nesse contexto, uma

questão importante, silenciada no meio acadêmico, diz respeito a como ocorre o trabalho do professor

no campo da adoção dessas políticas na universidade pública. O silenciamento da universidade sobre a

participação dos docentes no processo de inclusão de grupos sociais segregados, congrega a negação e

preconceito de muitos profissionais que não concordam ou não partilham dos marcos ideológicos e

princípios do movimento de democratização da universidade pública como espaço para todos,

independentemente de raça, cor, credo, religião, gênero, opção sexual, condição financeira, cultural,

social ou política. A existência desse tipo de silenciamento no meio acadêmico reforça a exclusão e o

controverso paradigma da universidade como lugar da elite. Reconhecer e discutir a importância do

trabalho do professor no campo das políticas afirmativas é uma medida de democratização do acesso e

da permanência na universidade. O professor não é um mero coadjuvante no interior da universidade e

na vida dos seus alunos, ao contrário, é um profissional indispensável no processo de efetivação da

democratização do ensino superior público e de qualidade, capaz de, por meio de seu trabalho, contribuir

para assegurar o direito de todos à educação. Essa questão, constitui um tema de fronteira de

conhecimento que demanda investigações mais profundas. O trabalho do professor tem mudado (ou

precisa mudar) de um caráter mais prescritivo, tecnicista, voltado estritamente para o projeto capitalista

para um modelo que valorize a reflexão, as interações humanas, e a ação do professor como uma

1Docente da Universidade Federal do Estado de Mato Grosso do Sul (UFMS), Câmpus de Naviraí (CPNV),

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de São Paulo (UNESP),

Câmpus de Presidente Prudente. E-mail: [email protected]

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atividade social (TARDIF; LESSARD, 2008). Considerando este contexto, o objetivo deste artigo é

refletir sobre quais dimensões e saberes do trabalho do professor devem ser desenvolvidos para que este

possa atuar no campo das políticas de ações afirmativas. O referencial teórico-metodológico utilizado é

de natureza qualitativa e exploratório, subsidiado pelos estudos de Rios (2003), Roldão (2006); Tardif

e Lessard (2008), entre outros. Espera-se que o artigo colabore para a reflexão dos professores, que

precisam enfrentar a complexidade e a diversidade que essas mudanças trazem para a universidade

pública e para o seu próprio trabalho. Assim, o professor deve mobilizar competências e saberes

necessários capazes de atender as diferenças e o interculturalismo na universidade.

Palavras-chave: Trabalho do professor. Políticas de ações afirmativas. Universidade.

Introdução

Na última década, observou-se a ampliação e intensificação da discussão sobre o acesso

de estudantes com vulnerabilidade socioeconômica ao sistema de ensino superior privado e

público no Brasil. As características gerais de desigualdades e injustiças que historicamente

marcaram o acesso de pessoas pobres ao ensino superior na sociedade brasileira podem ser

fartamente constatadas na literatura acadêmica, em muitas áreas do conhecimento, sobretudo

nas ciências humanas, em especial nas ciências sociais, na sociologia e na educação.

Dados do Instituto Nacional de Pesquisas e Estatísticas – INEP (2017), dos últimos 10

anos, evidenciam avanços importantes na questão da inclusão de pessoas de camadas menos

favorecidas ao ensino superior público federal. Entretanto, o Brasil ainda continua sendo um

país desigual, com poucas possiblidades de ascender socialmente via ensino superior,

principalmente para pobres, negros, mulheres, pessoas com deficiência, gays e outros grupos

que representam a diversidade da população brasileira e que nunca foi assistida por políticas

públicas voltadas para a educação superior. Nesse contexto, a universidade pública federal

ainda é um lugar reservado a elite branca.

Um fator relevante para a mudança dos indicadores de acesso à universidade pública,

foram as políticas de ações afirmativas implementadas pelo Ministério da Educação (MEC) no

governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011), com a finalidade de oferecer

tratamento diferenciado a grupos sociais que sofrem discriminação histórica, seja por etnia-

racial, cor, gênero, precedência nacional, socioeconômica, dentre outras, e que objetivam a

correção das desigualdades e promoção da igualdade de oportunidades. Dentre as muitas ações

que foram desenvolvidas, principalmente a partir da política da implementação das cotas para

população negra, é necessário destacar o Programa Nacional de Assistência Estudantil

(PNAES) que foi implementado em 2007 e que teve como objetivo, de acordo com o Decreto

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7.254 de 19 de julho de 2010, em seu Art. 2o, democratizar as condições de permanência dos

jovens na educação superior pública federal; minimizar os efeitos das desigualdades sociais e

regionais na permanência e conclusão da educação superior; reduzir as taxas de retenção e

evasão; e contribuir para a promoção da inclusão social pela educação.

A questão do acesso ao ensino superior público federal recebeu atenção especial no

governo de Luiz Inácio Lula da Silva, sendo reforçada no governo da Presidente Dilma

Rousseff (2011-2016), por meio do programa de Reestruturação e Expansão das Universidades

Federais (REUNI, com ampliação do número de universidades, de novos cursos, vagas,

contratação de professores, ampliação da estrutura e da infraestrutura, bem como de ações

voltadas para o acesso de pessoas oriundas de escolas públicas ao sistema universitário.

Da mesma forma, ações importantes têm sido realizadas no sentido de garantir a

permanência do estudante com vulnerabilidade socioeconômica na universidade, envolvendo

fatores como alimentação, moradia, bolsa permanência, dentre outras. Entretanto, a questão da

permanência ainda constitui um objetivo complexo para a universidade. Estudos têm mostrado

que os resultados das ações afirmativas são positivos, permitindo o acesso à universidade

pública, bem como, conquista de espaços pessoais e profissionais a uma parcela importante da

população que historicamente se viu excluída da universidade pública brasileira, um espaço

reservado para a elite. Contudo, muito ainda deve ser feito para que esses resultados sejam mais

efetivos e alcancem um número maior de pessoas. A questão é ainda mais acentuada

atualmente, dadas as características do governo federal atual, com viés totalmente neoliberal, o

que ameaça as conquistas alcançadas para a inclusão.

Muitos fatores, portanto, concorrem para explicar a dificuldade de se efetivar ações que

favoreçam a permanência dos estudantes na universidade. Argumentos relacionados à péssima

formação dos alunos oriundos de classes economicamente desfavorecidos, a dificuldade desses

alunos de se sentirem pertencentes ao ambiente universitário, a falta de ações mais específicas

para acolhimento, as dificuldades financeiras extremas, e a dificuldades dos professores em

lidar com esse novo público, constituem alguns desses fatores que contribuem para que a taxa

de evasão entre esses alunos seja elevada.

Considerando o exposto, o escopo desse artigo pretende refletir sobre o trabalho do

professor diante do contexto de ações afirmativas. O campo teórico sobre o trabalho docente

sempre despertou muito interesse de pesquisadores, principalmente quando o enfoque é dado a

formação de professores para o ensino básico, fundamental e médio. Para o trabalho do

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professor em nível superior, a discussão ainda apresenta lacunas teórico-empíricas,

principalmente quando se associa essa questão ao contexto das políticas de ações afirmativas.

Essa questão, portanto, constitui um tema de fronteira de conhecimento que demanda

investigações mais profundas. O trabalho do professor tem mudado (ou precisa mudar) de um

caráter mais prescritivo, tecnicista, voltado estritamente para o projeto capitalista para um

modelo que valorize a reflexão, as interações humanas, e a ação do professor como uma

atividade social (TARDIF; LESSARD, 2008).

Considerando as características das ações afirmativas, o trabalho do professor

universitário se reveste de maior importância para que o estudante permaneça no ambiente

universitário. É fundamental que os professores sejam capazes de enfrentar a complexidade de

convivência e compreensão de formas de pensar, visões de mundo, desejos e objetivos de uma

diversidade de grupos étnico-raciais e sociais amplamente diferentes do que a universidade e o

professor sempre estiveram acostumados a receber. É preciso que os professores sejam capazes

de rever métodos de ensino, redimensionar conteúdos, sem pretensão de simplificação, ao

contrário, com a finalidade de aprofundar conhecimentos e experiências a partir das principais

contribuições produzidas por diferentes civilizações.

Como se observa, cabe ao professor do ensino superior público, lançar mão de um

conjunto de saberes e competências que são essenciais para a realização do seu trabalho de

forma a contemplar o contexto das ações afirmativas. Considerando o exposto, a pergunta que

se coloca neste artigo é: quais dimensões e saberes do trabalho do professor devem ser

desenvolvidas e mobilizadas para enfrentar os desafios demandados pelas ações afirmativas?

Assim, o objetivo deste artigo é refletir sobre as dimensões e saberes necessários do trabalho

do professor para atuar no contexto das políticas de ações afirmativas.

Políticas de ações afirmativas – a Universidade na contramão do projeto neoliberal?

A história da universidade brasileira é um universo permeado por autoritarismo e

contradições, que ignoram “as necessidades reais da sociedade e os projetos são desviados para

atender a qualificação das elites e sustentar o poder dominante” (SOUZA 1996, p. 53). Essa

contradição é posta ainda na contemporaneidade, e pode ser vista por meio da luta de classes e

de bandeiras erguidas em prol da adoção de uma política que assegure condições de acesso das

massas ao ensino superior. A universidade pública brasileira visa fazer frente a esses

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movimentos tal como fora feito nos EUA, pioneiro no Direito a introdução de políticas de ações

afirmativas. Conforme aponta o ex-ministro do Supremo Tribunal Eleitoral (STF) Joaquim

Barbosa Gomes, a adoção dessas políticas “representou em essência, a mudança de postura do

Estado, que em nome de uma suposta neutralidade, aplicava suas políticas governamentais

indistintamente, ignorando a importância de fatores como sexo, raça, cor, origem nacional”

(GOMES, 2007, p.52).

As ações afirmativas, surgem num primeiro momento, de acordo com Gomes (2007),

como simples ação de encorajamento por parte do Estado para que àqueles com poder decisório

na área pública ou privada levassem em consideração fatores como raça, cor, sexo e origem

nacional das pessoas. Esses fatores, até então considerados formalmente como irrelevantes,

passa a ser objeto de um ideal a ser concretizado na medida do possível, cuja meta era que,

escolas e empresas refletissem em sua composição a representação de cada grupo na sociedade

ou no respectivo mercado de trabalho.

Já num segundo momento, talvez por conta da ineficácia dos procedimentos meramente

de incentivos, inicia-se um processo de alteração do conceito de ação afirmativa, que passa a

ser associado a ideia de realização da igualdade de oportunidades associado a “imposição de

cotas rígidas de acesso de representantes de minorias a determinados setores do mercado de

trabalho e a instituições educacionais” (GOMES, 2007, p. 53).

Ainda de acordo com o ex-ministro, atualmente as ações afirmativas são concebidas

como um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório e facultativo ou

voluntário. São, portanto, concebidas com o objetivo de combater a discriminação racial, de

gênero, por deficiência física e de origem nacional, além de buscar corrigir ou abrandar os

efeitos presentes da discriminação praticada no passado. Nesse contexto, cabe destacar o

aspecto da manifesta desigualdade social no Brasil reproduzida na tradicional elitização da

universidade. Segundo Chauí (2001), a sociedade brasileira conserva as marcas do colonialismo

escravista, marcada pelo predomínio do espaço do privado sobre o público. Chauí afirma que:

O autoritarismo social opera pela naturalização das desigualdades econômicas e

sociais, do mesmo modo que há naturalização das diferenças étnicas, postas como

desiguales raciais entre superiores e inferiores, das diferenças religiosas e de gênero,

bem como naturalização de todas as formas visíveis de violência; as diferenças são

postas como desigualdades e, estas, como inferioridade natural ou como

monstruosidade. Ao mesmo tempo, nossa sociedade vive fascinada pelo signo de

prestígio e de poder (CHAUÍ, 2001, p. 15-16).

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A universidade tem operado a serviço da ideologia da elite, na reprodução da cultura a

serviço de suas próprias concepções, naturalizando a desigualdade e a exclusão

socioeconômica. Entretanto, apesar do inegável panorama de elitização pontuados aqui, a

inclusão de jovens que possuem vulnerabilidade social, econômica ou cultural, seja por

questões étnico racial, de gênero ou origem, tem crescido cada vez mais nos últimos quinze

anos, e começam a transformar sobremaneira, o cenário da universidade pública no Brasil.

Na contramão dos interesses da elite, diga-se de passagem, apesar das alianças com o

projeto neoliberal, o governo Lula investiu nas políticas de cunho social, e implantou o projeto

de Reestruturação e expansão das Universidades Federais, o REUNI, instituído através do

Decreto nº 6.096, de 24.04.2007, cujos objetivos tem como meta criar condições para a

ampliação de vagas nas universidades federais, bem como, do acesso e da permanência na

educação superior, por meio da ampliação de políticas de inclusão e de assistência estudantil

(art. 2°, inc. V), que busca a articulação de ações no processo educativo, propondo melhorias

no sistema universitário, bem como, a redução do abandono e do alto índice de retenção dos

acadêmicos nos cursos das universidades públicas federais.

De acordo com esses princípios, o Ministério da Educação e Cultura (MEC), por meio

da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior

(ANDIFES), aprovou em 2007 o Plano Nacional de Assistência Estudantil, o PNAES, que

define as diretrizes que norteiam os programas e projetos de ações assistenciais estudantis. É

esse Plano que instituiu, no âmbito da Secretaria de Educação Superior (SESu), do Ministério

da Educação, o Programa Nacional de Assistência Estudantil, por meio da Portaria Normativa

n° 39, de 12 de dezembro de 2007, e tem por objetivo assegurar o combate às desigualdades

sociais e regionais, ressaltando a importância da ampliação e a democratização das condições

de acesso e permanência dos estudantes com insuficiência de condições financeiras no ensino

superior público federal, vinculados aos cursos de graduação presenciais, visando o

desenvolvimento dos acadêmicos em suas plenitudes.

Muller (2002), explica que as políticas públicas constituem espaços (fóruns) nos quais

diferentes atores constroem interpretações da realidade e exprimem uma relação com o mundo

social, definindo modelos normativos de ação. Essas políticas expressam uma visão do mundo,

produzem identidades e estão pautadas pelas relações de poder e pela busca de afirmação da

hegemonia social. Portanto, a universidade deve mudar e acompanhar as mudanças sociais, bem

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como, cumprir seu papel social de formar para a cidadania de forma plena e sem discriminação

de raça, gênero, credo ou qualquer outro tipo de preconceito.

Por fim, é necessário pontuar que ao tratar das políticas de ações afirmativas,

compreendemos que essas demandas na prática, configuram-se em uma série de outras

iniciativas, entre as quais, a necessidade de pensar condições que garantam não só o acesso a

esse nível de ensino, mas também a permanência, a participação e a efetiva inclusão e as

respectivas condições de oferta, aspectos fundamentais para se garantir a qualidade do processo.

Esses fatores solicitam um olhar mais apurado para os docentes, como agentes fundamentais na

transição da democratização do acesso e permanência desse novo contingente de pessoas que

adentram a universidade subsidiados pelas políticas afirmativas.

A permanência na universidade está associada a vários fatores, entre os quais, o trabalho

do professor, atores importantes que dialogam com as experiências dos estudantes e mais de

perto conhecem as vivências e vulnerabilidade social e cultural, suas existências étnicas raciais,

de gênero, entre outras.

É nesse contexto que, no interior de algumas universidades públicas brasileiras, cuja

comunidade acadêmica, reitoria e conselho universitário ainda insistem em se

posicionar contra as políticas de ações afirmativas (sobretudo, na modalidade de

cotas), encontram-se focos de resistência formados por intelectuais negros e brancos

que lutam pela construção da igualdade racial na educação superior (GOMES, 2007,

p. 246).

Nesse sentido, é preciso lembrar que o silenciamento da universidade sobre a

participação dos docentes no processo de inclusão congrega a negação e preconceito de muitos

profissionais que não concordam ou não partilham dos marcos ideológicos e princípios do

movimento de democratização da universidade como espaço para todos, independentemente de

raça, cor, credo, religião, gênero, opção sexual, condição financeira, cultural, social ou política.

A existência desse tipo de silenciamento no meio acadêmico reforça a exclusão, e, é necessário

um esforço no sentido de desvelar e combater os preconceitos expressos na resistência de

muitos setores no interior da universidade que tratam a política de ações afirmativas com

desdém, ou que reforçam a exclusão dos estudantes com algum tipo vulnerabilidade social.

Reconhecer e discutir a importância do papel do docente no contexto das políticas

afirmativas é uma medida de democratização do acesso e da permanência na universidade. É

preciso considerar, portanto, que o professor não é um mero coadjuvante no interior da

universidade e na vida dos seus alunos, ao contrário, são profissionais indispensáveis no

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processo de efetivação das ações afirmativas e na democratização do ensino superior público e

de qualidade, cujo objetivo maior é assegurar o direito de todos à educação.

Ações Afirmativas e o Trabalho do professor Universitário – Saberes e Dimensões

A discussão sobre o que é o trabalho do professor e que dimensões e saberes são

relevantes para sua atuação não pode ser realizada sem que se considere o contexto político,

social, cultural e econômico onde ocorre. Nesta perspectiva, não se pode perder de vista o fato

de que a educação superior no Brasil, como em quase todo o mundo, está condicionada a

operacionalização das ideias neoliberais, pressionadas pela globalização e dependência da

economia mundial, levando a crença de que a única saída seria a desregulamentação, que

pressupõe a saída do Estado não só do setor de produção, mas também dos serviços públicos.

“Os direitos sociais, tratados como mercadorias, são colocados no setor de serviços, serviços

com os quais o Estado vai se desobrigando. Dentre estes direitos sociais encontram-se a

educação e a educação superior” (PIRES; REIS, 1999, p.36).

Nesse paradigma, a universidade é vista como mais uma instituição que atua para a

produção de profissionais para o mercado de trabalho, seguindo a lógica do capital, focada em

habilidades e competências que melhor possam servir ao sistema. Discutindo sobre como a

universidade poderia atuar para contribuir com a formação de cidadãos, Arroyo (2001)

questiona a função da universidade e dos professores como educadores, o autor pergunta: afinal,

qual o oficio do professor? Qual a função do professor? Qual é o papel social do professor? A

essas questões podemos adicionar mais duas de igual relevância: como é o trabalho do professor

no contexto das ações afirmativas? Quais saberes são necessários para a atuação do professor

em um cenário que demanda a inclusão de pessoas de classes historicamente excluídas da

universidade? De partida, podemos afirmar que se trata de um trabalho desafiador, rico, de

grande complexidade e, que precisa ser pensado a partir de saberes que não estejam vinculados

apenas às determinações do mercado e do capital, mas que estejam, em primeiro lugar,

comprometidos com a formação do cidadão.

Pensar o trabalho do professor no ensino superior não é tarefa fácil, pois se deve

considerar que não existe uma formação específica de graduação voltada para esse fim,

conforme aponta Cunha (2008). De forma geral, diz o autor, o que se espera desse professor é

que ele tenha muito conhecimento e seja pesquisador. Tal perspectiva pode ser explicada por

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uma questão cultural relacionada a carreira docente que é estruturada em torno dos eixos de

pós-graduação stricto sensu, mais especificamente o mestrado e o doutorado, o que se aplica

inteiramente a condição do professor de universidades públicas.

Arroyo (2001, p. 43), defende a perspectiva de que a concepção de cidadania deve sofrer

uma reformulação que considere a “cidadania dos direitos sociais, dos direitos humanos, dos

direitos básicos do ser humano” e que tal premissa deve ser pano de fundo para o papel do

professor. Assim, todos que trabalham na universidade, ou em outros níveis de educação,

devem fazê-lo com o propósito de superar o reducionismo racional da concepção do que é

cidadania, supostamente intelectualizada, uma cidadania voltada para o intelecto, voltada para

o trabalho, para o mercado, para as caixinhas curriculares, para o individual, que não ensinam

ciência, que não são reflexivas, enfim que não prepara o profissional e, muito menos o cidadão

para as relações e questões sociais, preocupado com os direitos básicos do ser humano. Se não

existe uma formação específica para o professor do ensino superior, tão pouco a formação

obtida em cursos de mestrado e doutorado pode ser considerada adequada para dar conta de

tudo o que é ser professor. Mas então, o que é ser professor e o que é ser professor em um

contexto de ações afirmativas? Diferentes autores, com variadas perspectivas tem procurado

defender posições sobre o que é ser um professor, a seguir discutiremos algumas dessas

perspectivas que convergem para assegurar uma atuação necessária no contexto das políticas

afirmativas. Cabe esclarecer, no entanto, que grande parte da literatura que lida com o campo

teórico de ação e atuação do professor, o faz voltado para questões relacionadas a formação de

professores. Considerando essas particularidades, a discussão travada nesse artigo se dirige no

sentido de aproximar esse aporte teórico para explicar o trabalho docente no ensino superior,

claro, naquilo que o campo permite, no contexto das políticas afirmativas.

Uma segunda explicação, é que os autores aqui discutidos lidam com a questão da

atuação do professor alinhada em uma perspectiva que pode ser resumida na fala de Goergen

(2000. p.3) ao afirmar que “o professor deve a possuir competências para atuar [...] nos limites

da realidade, da utopia, de suas possibilidades como ser humano e das condições objetivas,

culturais e humanas dos alunos”. A prática docente é uma atividade complexa que exige saberes

específicos carregados de uma construção na prática, que não se repete, é sempre única, e, desta

forma, demanda a capacidade do professor de lidar com situações que não estão previstas no

manual, que não foram burocratizadas pela gestão e que dizem respeito às condições concretas

de vida dos seus alunos. É importante pontuar a dificuldade de se afirmar a existência de uma

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didática do ensino superior, mas é possível pensar características e saberes que devem refletir

o contexto social dos estudantes oriundos ou não de ações afirmativas. Tal aponta Roldão

(2006), trata-se de uma perspectiva teórica, e, está alicerçada no paradigma teórico da reflexão.

Antes da discussão sobre quais são os saberes necessários à função do professor, é

fundamental debruçar-se sobre o que é ser professor. Roldão (2006) apresenta um conjunto de

características importantes, que denominou de geradores de especificidades para compreender

o conhecimento da profissão docente, e que a distingue de outras profissões, partindo de uma

lógica normativa que expressa o “saber ideal” para ensinar e de uma lógica interpretativa da

prática concreta do professor e de sua formação, denominada por Roldão de ação socioprática

de ensinar. A primeira questão é sua natureza “compósita”, significando que o conhecimento

deve ser conceitualmente incorporado, passando a ser parte integrante de outros conhecimentos.

Conforme destaca a autora, o professor “há de transformar conteúdo científico e conteúdos

pedagógico-didáticos numa ação transformativa, informada por saber agregador, ante uma

situação de ensino” (ROLDÃO, 2006, p. 100).

A segunda característica proposta por Roldão (2006) para compreender o que é ser

professor, é a capacidade analítica e reflexiva que se contrapõe ao trabalho docente rotineiro,

racional, prescritivo, muitas vezes característico da ação do docente. Isso implica que o

professor deve ter um rigoroso domínio do saber técnico (como fazer), ao mesmo tempo, que

deve ser capaz de improvisar e criar diante das situações (capacidade artística). Entretanto, o

conhecimento profissional só existirá se o professor conseguir, sobre as valências técnicas e

criativas, exercer o poder conceitualizador de uma análise sustentada “em conhecimentos

formalizados e/ou experienciais, que permite dar e identificar sentidos, rentabilizar ou ampliar

potencialidades de ação diante da situação com que o profissional se confronta” (ROLDÃO,

2006, p. 100).

O terceiro elemento que explica o que é ser professor é sua natureza mobilizadora e

interrogativa. O professor deve ser capaz de mobilizar inteligentemente o conhecimento

adquirido em situações vividas anteriormente para aplicação em outras situações atuais, sejam

elas semelhantes ou diversas. Juntamente, deve ser capaz de questionar permanentemente a

ação prática, o conhecimento estabelecido, bem como a experiência anterior. O quarto

elemento que caracteriza a profissão do professor é o que Roldão chama de meta-análise,

segundo o qual o professor deve adotar uma postura de autocrítica, em toda sua prática docente

(conteúdo, pedagógica e didática), condição necessária à reflexão.

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Por fim, Roldão (2006) afirma que a profissão docente se caracteriza por sua

comunicabilidade e circulação. Trata-se da dimensão que mais afasta o professor de sua prática,

uma vez que o modelo operante simplifica o conhecimento a ser transmitido de forma a facilitar

o processo de comunicação, o que sublinha a circulação dos componentes tácitos que de fato

integram o conhecimento, o que implica em perdas do conhecimento produzido pelos docentes.

Ampliando a discussão para compreender os saberes necessários à constituição do

professor, uma contribuição relevante é oferecida por Goergen (2000), ao afirmar que o

professor deve possuir quatro competências como condição para atuar de forma adequada,

conforme apresentado no quadro 1.

Quadro 1 – Competências do professor segundo

Competências do Professor Características

1 - Lidar com o provisório, o

erro, a ilusão

Contrapor a ideia de que o conhecimento é um porto seguro, certo,

definitivo, o que leva a uma ditadura das teorias e ao conformismo. A

epistemologia deve ser aberta e flexível.

2 – Rejuntiva

O problema educativo é global, não devendo ser especializado, disciplinar

e dividido. O professor deve considerar a visão do todo e de forma coletiva,

geral e mais complexa. A perspectiva pedagógica deve ser do trabalho em

equipe e do interculturalismo.

3 – Comunicativa

O professor deve ser o agente capaz de comunicar a cultura que torna a

história possível. A cultura acumula em si o que pode ser conservado e

transmitido, aprendido, aproveitando o conhecimento passado para

construir novos conhecimentos de forma coletiva.

4 – Competência sensitiva e

ecológica

Está relacionada com as correlações entre a racionalidade, a sensibilidade,

e a técnica. A ciência moderna consagrou o homem como sujeito

epistêmico, mas expulsou-o como sujeito humano.

Fonte: elaborado pela autora, adaptado de Goergen (2000).

Uma questão que evidencia a necessidade de o trabalho do professor estar em

consonância com o contexto das ações afirmativas é o trabalho em equipe e o interculturalismo.

O primeiro já vem sendo integrado na prática universitária, e o segundo decorre da urgência da

internacionalização e globalização da economia e das comunicações, e na medida em que as

culturas se aproximam e se confrontam, precisam encontrar mecanismos para conviver. O

interculturalismo, portanto, propicia explorar inúmeras questões associadas a ações afirmativas,

como é caso do racismo, da homofobia (preconceito contra diversidade sexual), pessoas com

deficiência e outras formas de preconceitos historicamente presentes na sociedade brasileira e

no ambiente universitário.

O que se constata a partir das competências descritas por Goergen é que a função do

professor solicita uma capacidade de compreensão da realidade atual. As ações afirmativas

trazem para dentro da universidade uma diversidade cultural que jamais teve acesso ao

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ambiente universitário, um locus que antes era pertencente apenas a classe média. Assim, a

capacidade do professor de integrar essas realidades ao seu trabalho de ensinar e trazê-las para

o centro de sua atuação vai constituir um indicador dos saberes que o professor, não apenas

precisa ter, mas que efetivamente domina e que vão ajudar a transformar a relação do professor

e do aluno. Outra contribuição, e que é sempre atual, para compreender o que é o trabalho

docente, é oferecida por Rios (2001, p. 62) “acerca da articulação de competência e qualidade

no espaço da profissão docente”, defendendo a ideia de que “o ensino competente é o ensino

de boa qualidade” (RIOS, 2001, p. 62).

Segundo a autora, é importante que se reflita sobre os saberes que se encontram em

relação à formação e à prática dos professores. Desta forma, Rios propõe explorar as dimensões

docentes (técnica, política, ética, estética) que considera fundamental para a boa qualidade da

docência, procurando evidenciar a articulação existente entre as mesmas, que extrapolam o

campo conceitual. Nesse sentido, a autora reflete sobre o domínio do conhecimento, do alcance

da sensibilidade e da criatividade, afirmando que a educação será mais competente e plena,

quando se caracterizar por um ato de conhecimento, um ato político, um compromisso ético e

uma experiência estética. O quadro 2 apresenta uma síntese dessas dimensões.

Quadro 2 – Dimensões necessárias à qualidade docente

Dimensões Docentes Conceito

1 – Dimensão técnica

Implica a capacidade do profissional em lidar com conteúdo, conceitos,

comportamentos, atitudes e habilidade de construí-los e reconstruí-los com os

alunos. Deve estar integrada com as demais dimensões. Equivale ao suporte

de competência que se revela na ação do professor.

2 – Dimensão estética Remete ao sensível, ao perceptível e à educação da sensibilidade humana.

Deve ser voltada para o bem social e coletivo. É indissociável das demais

dimensões.

3 – Dimensão ética

Refere-se à orientação da ação constituída no princípio do respeito, da

solidariedade, buscando o encontro da realização do bem da coletividade, o

que por sua vez envolve a competência, o fazer bem e não pode ser dissociado

da competência política e demais dimensões.

4 – Dimensão política Diz respeito à participação na construção coletiva da sociedade e ao exercício

de direitos e deveres. É no espaço político que acontecem acordos, que se

estabelecem hierarquias e onde se assumem compromissos.

Fonte: elaborado pela autora, adaptado de Rios (2001)

Na perspectiva de Rios, o trabalho do professor deve compreender as quatro dimensões

para ser considerado competente e agregar valor para o professor, para seus alunos e para a

sociedade. No contexto de políticas afirmativas, os saberes propostos por Rios, considerados

inerentes ao trabalho do professor, demonstram o papel eminentemente político da educação,

evidenciando a necessidade de que o professor exerça o seu fazer pedagógico no sentido de

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promover no espaço acadêmico um encontro democrático, de permanente troca de experiências

com a diversidade oriunda das ações afirmativas.

Tardif (2002) converge com as posições aqui apresentadas por Arroyo (2001), Goergen

(2000), Roldão (2007) e Rios (2001) afirmando que a questão do saber docente deve ser pensada

de forma integrada a outras dimensões do ensino e do próprio trabalho que o professor realiza

cotidianamente. O saber docente deve ser relacionado com os condicionantes culturais e com

contexto do trabalho, de forma específica, com a história de vida do professor, sua identidade,

experiência de vida e com sua experiência profissional. Com o mesmo peso, o saber docente

vai ser influenciado pelo contexto dos alunos e suas histórias de vida, identidade, experiência

de vida, o que vai ocorrer também com os demais atores da escola e do seu entorno.

A discussão sobre os saberes docentes sempre foi fortemente marcada pela dicotomia

teoria versus prática, ou ainda, experiência versus conhecimento. Procurando fugir desta

disputa, Bondía (2002) nos convida a pensar a educação a partir do par ‘experiência’ e ‘sentido’,

como saberes importantes, de uma forma mais existencial e estética. Ao entender a experiência

como a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, e que requer um gesto de

interrupção, quase impossível nos tempos que correm, o autor alerta para a necessidade de

parar para pensar, olhar, escutar, sentir, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, o juízo,

a vontade, o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos,

falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do

encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço.

Uma inferência fundamental a ser destacada, é que a discussão sobre o que é ofício do

professor e dos saberes pedagógicos necessários a execução desse ofício, é fortemente

influenciado por inúmeras variáveis, mas que sobretudo, considerando a perspectiva reflexiva,

vão demandar do professor grande capacidade de dominar as questões técnicas da sua formação

específica de atuação, mas integrada a essa questão, o conhecimento dos aspectos sociais,

culturais, e econômicos dos alunos é um fator fundamental para o sucesso da formação a ser

oferecida na universidade. Destaca-se que o princípio da igualdade vigente no Brasil, declarado

pela Constituição Federal é compatível com o princípio da ação afirmativa, lembrando que “a

educação é a mais importante dentre as diversas prestações que o indivíduo recebe ou tem

legítima expectativa de receber do Estado” (GOMES, 2007, p. 60).

Nesse sentido, um agente fundamental para a efetivação e legitimação das ações

afirmativas nas universidades públicas é o professor. Para agir afirmativamente é necessário ter

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consciência dos problemas sociais, da segregação histórica sofrida pela população negra em

nosso país, não apenas saber que a ignorância gera o preconceito sobre as mais diversas

questões como já apontamos aqui, mas ter coragem de tomar decisões coerentes com o

imperativo que a realidade solicita. Para agir afirmativamente o professor deve incorporar os

saberes necessários para transformar a realidade, e isso significa desempenhar um papel de

respeito com a diversidade, de compromisso, que também significa mobilizar as dimensões

técnica, estética, ética e política como ensina Rios (2001), de ser capaz de mobilizar seu

conhecimento, conforme apontado por Roldão (2007), para empregá-lo em situações que

demandam sensibilidade, acolhimento e generosidade. Que os estudantes, independentemente

de sua origem, condição social, sexo, orientação sexual, raça, credo ou etnia, sejam vistos, cada

um em sua individualidade, como ser humano único e, como tal, possam receber dos

professores todo o apoio necessário para formarem-se como cidadãos plenos.

Considerações Finais

Conforme proposto neste artigo, o objetivo foi refletir sobre as dimensões e saberes

necessários ao trabalho do professor para atuar no campo das políticas de ações afirmativas. O

exercício de pensar o trabalho do professor nesse contexto, conforme foi visto, demanda

dimensões e saberes que precisam ser abordados e discutidos no âmbito da universidade, a fim

de quebrar os silenciamentos existentes sobre o assunto e promover a inclusão necessária e a

formação devida, baseada no respeito e na solidariedade para com a diversidade.

Uma questão básica a ser pontuada é que o trabalho do professor do ensino superior

federal é fundamental quando se pensa na efetivação da democratização da universidade

pública. O professor é agente primordial para que esse projeto se realize e atinja seus objetivos

de forma ampla. É nesse sentido, que este profissional deve desenvolver um conjunto de saberes

e competências essenciais para realização do seu trabalho, um trabalho que ao invés de ignorar,

de tratar com descaso ou apatia, deve contemplar e apropriar-se do campo das ações afirmativas

com vistas a promover a formação humana e a educação de qualidade.

Esperamos ter contribuído para o debate sobre o valor do trabalho do professor nas suas

relações com as políticas afirmativas, além de fomentar a necessidade de pesquisas e debates

que permitam a esse profissional repensar sua práxis, assumindo seu papel social e político,

fazendo frente as demandas que a universidade pública enfrenta, a fim de torná-la um espaço

verdadeiramente democrático.

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