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O tracoma em viagem pelos trilhos da economia: uma análise sobre a primeira comissão de tratamento e profilaxia do tracoma em São Paulo no início do século XX. Soraya Lódola 1 Introdução O tracoma ou conjuntivite granulosa é uma enfermidade oftálmica contagiosa que causou grande número de enfermos no interior do Estado de São Paulo no período compreendido entre o final do século XIX e primeiras décadas do século XX (RIBEIRO, 1991; LUNA, 1993; TELAROLLI JR., 1996). Provocada pela bactéria Chlamydia trachomatis, desencadeia inflamação crônica da conjuntiva e da córnea e, em infecções recorrentes, podem ocorrer cicatrizes provocando sequelas como a cegueira. A transmissibilidade ocorre de forma direta pelo contato dos olhos e, de forma indireta, através de objetos contaminados ou por insetos que atuam como vetores mecânicos (POLACK et. al., 2005; WHO, 2013; WHO, 2015). Os números oficiais apresentados nos Relatórios da Secretaria de Negócios do Interior apontam que, em 1907, dos 38.037 indivíduos examinados, 14.967 pessoas estavam com tracoma em uma porcentagem de 39,35% de infectados. No ano seguinte, a porcentagem chegou a 27,06% de enfermos (SÃO PAULO ESTADO, 1908). Neste período havia uma grande expansão da cafeicultura paulista 2 o que tornava o Brasil um dos maiores produtores mundiais do produto. Para manter o domínio deste marcado, era necessário criar novos campos de plantação, transportar de maneira otimizada a produção do interior para os portos e garantir mão de obra suficiente para a produção. A marcha do café foi iniciada em São Paulo pelo Vale do Paraíba no início do século XIX e aos poucos foi se deslocando para as zonas interioranas do estado. Em meados do mesmo século, a produção já havia passado pelas terras do centro-oeste e 1 Doutoranda do Programa de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Unicamp. 2 Apesar da crise do café no fim do século XIX e outra no início do século XX, a expansão para terras do oeste não cessaram. (SANCHES, 2015)

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O tracoma em viagem pelos trilhos da economia: uma análise sobre a primeira

comissão de tratamento e profilaxia do tracoma em São Paulo no início do século

XX.

Soraya Lódola1

Introdução

O tracoma ou conjuntivite granulosa é uma enfermidade oftálmica contagiosa que

causou grande número de enfermos no interior do Estado de São Paulo no período

compreendido entre o final do século XIX e primeiras décadas do século XX

(RIBEIRO, 1991; LUNA, 1993; TELAROLLI JR., 1996).

Provocada pela bactéria Chlamydia trachomatis, desencadeia inflamação crônica da

conjuntiva e da córnea e, em infecções recorrentes, podem ocorrer cicatrizes

provocando sequelas como a cegueira. A transmissibilidade ocorre de forma direta pelo

contato dos olhos e, de forma indireta, através de objetos contaminados ou por insetos

que atuam como vetores mecânicos (POLACK et. al., 2005; WHO, 2013; WHO, 2015).

Os números oficiais apresentados nos Relatórios da Secretaria de Negócios do

Interior apontam que, em 1907, dos 38.037 indivíduos examinados, 14.967 pessoas

estavam com tracoma em uma porcentagem de 39,35% de infectados. No ano seguinte,

a porcentagem chegou a 27,06% de enfermos (SÃO PAULO – ESTADO, 1908).

Neste período havia uma grande expansão da cafeicultura paulista2 o que tornava

o Brasil um dos maiores produtores mundiais do produto. Para manter o domínio deste

marcado, era necessário criar novos campos de plantação, transportar de maneira

otimizada a produção do interior para os portos e garantir mão de obra suficiente para a

produção.

A marcha do café foi iniciada em São Paulo pelo Vale do Paraíba no início do

século XIX e aos poucos foi se deslocando para as zonas interioranas do estado. Em

meados do mesmo século, a produção já havia passado pelas terras do centro-oeste e

1 Doutoranda do Programa de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Unicamp. 2 Apesar da crise do café no fim do século XIX e outra no início do século XX, a expansão para terras do oeste não cessaram. (SANCHES, 2015)

chegado à zona oeste paulista, região de terras roxas ideais pela o plantio. Na última

década de 1890 as regiões de São Carlos, Araraquara, Descalvado, Ribeirão Preto e

Jaboticabal já eram consideradas grandes centros produtores (MATOS, 1974).

Para o escoamento das safras cafeeiras do interior do estado para o porto de

Santos, a malha ferroviária desempenhou papel fundamental. Se anteriormente os trilhos

acompanhavam os cafezais, no final do século XIX, a malha passou a abrir caminhos

para a abertura de novas plantações (CAMPOS, 2011). Para Taunay (2004), a expansão

cafeeira só se configurou nas terras do oeste paulista, graças às linhas férreas da São

Paulo Railway e suas tributárias Mogiana, Sorocabana, Paulista e Ituana, que tornaram

o transporte mais rápido, seguro e com menor custo.

Em conjunto com a expansão das zonas produtoras e das ferrovias, houve uma

intensa mobilização pela busca de mão de obra. Com a crescente restrição de

trabalhadores escravos durante todo o século XIX, a imigração foi a solução encontrada.

O primeiro esforço para trazer colonos foi na década de 1840 quando, por iniciativas

particulares, entraram no país mais de 60 mil estrangeiros. Em 1886, surge a Sociedade

Promotora de Imigração (SPI) que tinha como propósito conduzir todo o processo

imigratório mediante financiamento público. Em dez anos de funcionamento, a SPI

agenciou mais de 220.000 imigrantes (RIBEIRO, 1996).

Concomitantemente, diversas doenças acompanharam o fluxo migratório

proveniente da Europa. Os imigrantes europeus ao ingressarem no país, agravaram a

proliferação de diferentes moléstias em solo brasileiro. Para ilustrar, podemos citar a

febre amarela, malária, febre tifóide, varíola, lepra, tuberculose, cólera e peste bubônica,

todas importadas por viajantes estrangeiros (SILVA L.J., 1986; BENCHIMOL, 1996;

CHALHOUB, 1996; TEIXEIRA, 2001; CABRAL, 2004; NASCIMENTO, 2011;

TASCO, 2013).

As enfermidades que encontraram no clima tropical condições favoráveis à

disseminação, não se fixaram somente nas zonas urbanas, inserindo-se também nos

campos acometendo a população rural.

Até meados da década de 1910 era eminente a preocupação das autoridades em

defender os centros urbanos das enfermidades de maior mortandade, despendendo altos

recursos financeiros em saneamento e implantação de medidas profiláticas nas cidades

(BLOUNT, 1972; MERHY, 1987).

Foram várias reformas do Serviço Sanitário até a definição, em 1917, do Código

Sanitário Rural que definiu uma legislação específica para as zonas rurais.

Podemos afirmar que esse processo de olhar para as enfermidades do

campesinato foi iniciado nos primeiros anos do século XX, por conta desses quadros

epidemiológicos surgidos após o período de grandes imigrações. Se pensarmos,

especificamente no tracoma, a enfermidade se disseminou para o oeste paulista pelos

imigrantes que, ao chegarem já infectados, passavam primeiro na Hospedaria dos

Imigrantes e, ao terem contato com recém-aportados disseminavam a doença

(TRENTO, 1989; RIBEIRO, 1991; CENNI, 2011).

A intensa transmissão do tracoma, que chegava a quase 40% dos examinados, fez

com que medidas preventivas e de tratamento fossem tomadas. Em 1906, o governador

do estado assinou um decreto criando “Comissões de Tratamento e Profilaxia do

Tracoma” para atender as diversas zonas atingidas pela enfermidade (SÃO PAULO –

ESTADO, 1906).

Essa medida foi pioneira, onerosa e audaciosa, dispendendo uma verba que não

havia sido prevista no orçamento do estado. Para Hochman (1998), o Serviço Sanitário

estadual criou uma “novidade com o estabelecimento de uma comissão para prevenção

e tratamento do tracoma, na população rural” (p. 217).

Com altos custos, as comissões foram extintas em 1908, dois anos após sua

fixação. Em 1911, observando ainda a endemia na zona rural, uma nova iniciativa

governamental decreta novamente a criação de postos de tratamento, porém com um

contingente médico mais restrito. Sob a justificativa de limitação orçamentária

acarretada pela guerra europeia, em 1914, a segunda comissão também foi extinta. A

terceira tentativa governamental para controlar a endemia ocorreu em 1917 perdurando

por oito anos até que, com a Reforma Paula Souza, as atividades das comissões passam

para a Inspetoria de Higiene (MERHY, 1987; MASCARENHAS, 1949).

Nesse sentido, nosso problema reside na seguinte questão: Interesses

econômicos pautaram as motivações governamentais para a formação do “Serviço de

Tratamento e Profilaxia do Tracoma” em São Paulo?

Apesar de notificarmos que as comissões até meados da década de 1920 foram

descontínuas, objetivaremos aqui analisar a relação entre o setor agroexportador e a

formação da primeira comissão.

Para atingir nosso objetivo, utilizamos como fontes relatórios governamentais da

Secretaria do Interior e do Serviço Sanitário, Relatórios Presidenciais de São Paulo,

Conjunto de leis e decretos estaduais, Revista Médica de São Paulo, Revista Brazil

Médico, Arquivos do Instituto Penido Burnier, Tese de medicina e jornais.

Tracoma

O tracoma é uma das patologias oculares mais antigas do mundo, sendo

identificada através dos escritos chineses desde o século XXVII a. c. (SCHELLINI, S ,

SOUSA, R, 2012; LUNA, 1993). A partir do século VI, a enfermidade se disseminou

pela Europa vitimando habitantes de vários locais do continente. Segundo Rosen

(1994), no período compreendido entre os anos de 543 até 1348, algumas doenças

arruinavam a região, como a lepra, peste bubônica, varíola, difteria, sarampo, influenza,

tuberculose, malária e dentre elas, o tracoma. Sem uma administração de saúde pública

estruturada como conhecemos hoje3, o tracoma passou por diversos períodos

endêmicos, sem que sua extinção tivesse ocorrido.

No início do século XIX, um novo surto de tracoma apareceu na Europa, tendo

sua propagação iniciada pela França. Conhecido como Egyptian Ophthalmia ou

Ophitalmia Militar do Egito, o tracoma se disseminou através das tropas napoleônicas

que, ao regressarem do Egito tomados pela doença, espalharam a enfermidade pela

Itália, Alemanha, Inglaterra, Bélgica, Suíça e Holanda (OTTONI, 1898; OLIVEIRA,

1927; AL-RIFAI, 1988; LUNA, 1993; SCHELLINI;SOUSA, 2012).

No Brasil o ingresso do tracoma não pode ser determinado com precisão.

Conforme afirmou Penido Burnier (1932), este mal foi importado da Europa quando

alguns ciganos infectados foram expulsos de Portugal e se instalaram no nordeste do

país. Burnier (1932) relata que em 1876, quando o médico Moura Brasil regressou do

continente europeu, observou focos endêmicos do tracoma no nordeste do país nas

3 Para Rosen (1994) o Renascimento foi o período em que houve o desaparecimento da civilização medieval dando lugar ao mundo moderno. Nesse contexto, a ciência passou a ser vista como elemento de profunda influência para as questões de Saúde Pública.

regiões que compreendiam do Vale do Cariri até o Crato no estado do Ceará

(BURNIER, 1932).

Como os meios de transporte que ligavam o norte ao sul do país eram precários, o

tracoma ficou restrito nas regiões limítrofes do Ceará até os últimos dois decênios do

século XIX, quando passou a se tornar observável também em outros estados

(OTTONI, 1898, p. 363).

Em São Paulo, o tracoma era inexistente antes da imigração massiva de 1887.

Em pouco mais de dez anos, a população paulista já se encontrava tomada por uma

intensa endemia como podemos cotejar pela experiência do médico paulista Eusébio

Mattoso que, em 1899 atestava que “era impressionante o número de tracômatosos tanto

na clínica civil como hospitalar” (OLIVEIRA, 1927, p. 15; BURNIER, 1932, p. 64).

A quase totalidade dos enfermos localizava-se no interior paulista. A

sintomatologia era descrita pela presença de dores e fotofobia, e o tratamento perdurava

cerca de quinze dias, exigindo aplicação de remédios nos olhos e trocas de curativos

diariamente afastando os enfermos das suas atividades do campo (ÁLVARO,1904).

A assistência aos enfermos até o último quartil de 1906 ficava a cargo das

instituições de assistência médica filantrópica ou particular situadas geralmente nos

grandes centros urbanos, sem que houvesse intervenção direta governamental para

debelar a endemia.

3. Saúde pública, a economia e o tracoma

No final do século XIX, após a proclamação da república, São Paulo passou por

um processo que buscava encontrar um modelo de saúde pública que propiciasse aos

órgãos governamentais administrar as epidemias e endemias reinantes na capital, em

Santos e nas principais cidades do interior do estado (TELAROLLI, 1996).

Foram várias reformas e revisões do Código Sanitário após a promulgação da

Constituição Brasileira de 1891. No período compreendido entre os anos de 1891 e

1925, ocorreram cinco grandes reformas, sendo elas de 1893, 1906, 1911, 1917 e 1925,

quando, através da Reforma Paula Souza, ocorre a ruptura dos métodos empregados nos

serviços de saúde pública baseada em um “modelo campanhista-policial” (TELAROLLI

JUNIOR, 1996) para a organização de um modelo mais preventivo pautado em uma

educação sanitária. Em termos estruturais, o Serviço Sanitário após a reforma, passou a

compor a Inspetoria de Higiene e mais tarde o Centro de Saúde (MASCARENHAS,

1949).

Durante as reformas, ocorreram centralizações e descentralizações do serviço de

saúde pública que migravam ora do governo estadual para os municípios, ora dos

municípios para o Estado. No entanto, evidencia-se que na questão sobre as epidemias,

prevalecia a atuação estadual sobre o papel de combatê-las e preveni-las (BLOUNT,

1972).

Durante as reformas, o estado de São Paulo sofreu grandes epidemias de febre

amarela e varíola, o que desencadeou grande esforço e atenção do Serviço Sanitário

para debelar as enfermidades.

Para o Secretário do Interior, pasta responsável pelo Serviço Sanitário do estado,

após as medidas de combate à epidemia de febre amarela e a varíola, o governo “fixou

sua attenção sobre o trachoma e começou a estudar a extensão do mal e os meios de

combatel-o efficazmente (...) que, se não devasta matando, inutilisa e sacrifica uma bôa

parte da nossa população rural” (SÃO PAULO - ESTADO, 1907, p. 12).

O estudo realizado para mapear a enfermidade na zona rural foi encomendado

pelo próprio secretário do interior, Gustavo de Godoy que, em 1904 contratou o médico

Guilherme Álvaro para estudar o tracoma.

Em seu relatório Álvaro (1904) vislumbra que a enfermidade estava presente na

primavera e no verão provocando dores e alto índice de contagiosidade. As condições

das moradias eram precárias e a falta de higiene pessoal exacerbava a enfermidade. A

situação se agravava quando as habitações se localizavam ao lado dos chiqueiros e

estrebarias que eram infestadas de moscas, consideradas o vetor mecânico da oftalmia.

Como medidas profiláticas, Álvaro aconselhava o confinamento aos enfermos e

higienização com água e sabão dos objetos contaminados, deixando-os expostos ao sol.

Em conclusão, o médico ensinou como ministrar as doses medicamentosas e prescreveu

curativo duas ou três vezes por dia até a extinção do mal (ALVARO, 1904).

Em consequência do relatório, o Secretário do Interior chegou “a conclusão que

era imprescindível a organização de um serviço especial para a prophylaxia e o

tratamento dessa terrível molestia (...) comprehendendo a necessidade de agir de modo

energético e decisivo” (SÃO PAULO - ESTADO, 1907, p. 12).

Para Merhy (1987), as ações do Serviço Sanitário para controlar as diversas

epidemias tinham importância em relação à mão de obra cafeeira, pois “o aspecto mais

significativo (...) é aquele que se refere às repercussões daquelas epidemias no processo

de produção agroexportadora, que nesta época era dependente da mão de obra

imigrante” (MERHY, 1987, p. 78).

O mercado internacional era a base da economia agrícola de São Paulo. A

dependência de países como os Estados Unidos, como principal consumidor das safras

de café; da Inglaterra como financiadora das fazendas cafeeiras; e da Itália, como a

fornecedora de mão de obra imigrante, desenha uma rede de interações que explica o

desejo do governo em manter uma boa imagem no exterior.

As campanhas de saneamento, e consequentemente, a prevenção de epidemias

durante a longa campanha sanitária do regime imperial no século XIX, sempre foram

pautadas em argumentos econômicos. Os governantes sabiam que para expandir a

produção era necessária mão de obra imigrante, portanto, a “região tinha que ser

saudável para atrair colonos e mantê-los sadios” (BLOUNT, 1972).

Os argumentos não se alteraram no início do período republicano, que com a

crescente influência da elite cafeicultura a partir do Partido Republicando Paulista -

PRP, garantiram medidas que fossem ao encontro dos seus próprios interesses

econômicos (BLOUNT, 1972).

A situação da insalubridade paulista como aponta Merhy (1987) passou a

configurar empecilhos de países europeus à imigração. Como elemento ilustrativo,

temos o Decreto Prinetti que em 1902, proibiu o ingresso de imigrantes italianos no

Brasil através da passagem subsidiada pelo estado de São Paulo. O decreto proibitivo

foi desencadeado inicialmente pela cobertura da imprensa brasileira e italiana sobre as

condições precárias dos imigrantes no Brasil. Com a repercussão, o Comissariado Geral

da Emigração Italiana decidiu enviar um encarregado para confirmar as denúncias de

más condições de trabalho no país. Aldo Rossi, em julho de 1902, após estadia no

estado de São Paulo desenvolve um relatório que traz dados sobre mulheres e homens

violentados, doenças, mortalidade infantil e situação econômica precária vivenciada por

seus patriotas (TRENTO, 1989, p.53).

Em respostas às retaliações recebidas dos exportadores de trabalhadores, o

Serviço Sanitário passa a desempenhar campanhas sanitárias e de saneamento como

medidas para eliminar as epidemias do estado e manter o fluxo imigratório.

Uma dessas medidas foi a criação do “Serviço de Tratamento e Profilaxia do

Tracoma”, promulgada em 3 de setembro de 1906 e dirigida pelo Serviço Sanitário de

São Paulo.

A escolha das cidades, de acordo com o decreto, deveria ser realizada através da

indicação do Chefe da Comissão e discutida junto ao Diretor Geral do Serviço

Sanitário.

Em três meses após a assinatura do decreto, já haviam sido nomeados 36

médicos para trabalharem em 25 distritos, sendo um posto na Capital, outro em Santos e

os demais espalhados pela zona oeste do estado, margeadas pelas estradas de ferro

Paulista, Sorocabana e Mogiana conforme mapa abaixo.4

Dentre as cidades escolhidas para receberem as comissões estavam Ribeirão

Preto, São Carlos do Pinhal, São Simão, Santa Rita do Passa Quatro, Jahú, Descalvado,

Cravinhos e Araraquara, com forte poderio agricultor, ranqueadas entre os dez distritos

mais produtivos de café durante a segunda metade da década de 1910 (SÃO PAULO –

ESTADO, 1906).

Figura 1 – Mapa com as Comissões de Tracoma – 1906

4 As cidades que receberam as comissões em ordem alfabética: Araraquara, Avaré, Batatais, Bebedouro, Botucatu, Casa Branca, Cravinhos, Descalvado, Dois Córregos, Dourado, Franca, Itú, Jaboticabal, Jahú, Jardinópolis, Linha do Norte, Mattão, Pedreira Piracicaba, Pirassununga, Pitangueiras, Ribeirão Bonito, Ribeirão Preto, Ribeirãozinho, Salto de Itú, Santa Rita do Passa Quatro, São Carlos do Pinhal, São Manuel, São Simão, Sertãozinho, Sorocaba, Nuporanga e Orlandia.

Blount (1972) destaca que as medidas sanitárias tinham como objetivo eliminar

a ameaça de doenças transmissíveis, melhorar a qualidade da produção do trabalhador

que se ausentava das epidemias e endemias e transformar São Paulo em um local com

boas condições de salubridade.

Considerações Finais

A virada do século XIX para o XX é um período em que o café era ainda o

principal produto agroexportador. São Paulo era a “locomotiva” que engrenava os

trilhos da economia brasileira desempenhando a função de coordenar as relações que

perpassavam o comércio internacional.

Toda a situação que ameaçasse o comércio exterior era acometida por ações

governamentais. A endemia de oftalmia granulosa em áreas rurais foi um desses

obstáculos.

Mediante o alastramento da enfermidade que convalescia os colonos, verificamos

que a maior motivação para o processo de decisão sobre as comissões, estava na

proteção da economia agroexportadora como já havia posto Blount (1972) e Merhy

(1987) em outras análises sobre o Serviço Sanitário estadual.

O tracoma foi uma enfermidade que provocou vários percalços sobre a mão de

obra imigrante que, ao contrair a oftalmia, afastava o trabalhador dos seus afazeres

durante quinze dias para tratamento. Além da ausência do enfermo, muitas vezes havia

também a falta de outros membros que deixavam as plantações para acompanhar o

enfermo até a capital para ser assistido por médicos que ministrava curativos diários.

Dependendo do número de enfermos acometidos em uma única fazenda e a alta

reincidência da enfermidade, a produtividade poderia ser prejudicada, ocasionando

baixa nos lucros.

Era necessário manter o processo produtivo saudável e para isso, a mão de obra

deveria ser garantida, mesmo que isso acarretasse um serviço oneroso, com altos custos

de contratação das equipes de atendimento, compra de medicamentos e gastos logísticos

que permitissem atender as diversas regiões longínquas da capital.

Telarolli (1996) acredita e nós reiteramos, que algumas epidemias que atingiam a

população imigrante e que preocupavam as autoridades consulares estrangeiras

passaram a receber mais atenção dos órgãos governamentais após o ano de 1904.

Isso justifica o porquê do combate ao tracoma receber essa centralidade por parte

do Serviço Sanitário estadual mesmo antes da promulgação do Código Sanitário Rural

de 1917.

Podemos concluir assim, que para garantir as “boas” relações no âmbito da

politica internacional, era necessário se proteger das repercussões das epidemias e

endemias que atingiam a mão de obra imigrante e tomar medidas que mantivessem a

produtividade do trabalhador para que não houvesse definhamento do processo de

produção agroexportadora.

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