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1 O imaginário transmontano na obra de Pires Cabral Anabela Dinis Branco de Oliveira Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro NORDESTE Quem pega na bússola vê oito direcções de mundo, oito métodos de estar. O oitavo é o Nordeste. A. M. Pires Cabral, Algures a Nordeste O oitavo é o Nordeste. Uma direcção, um método de estar. Um método de estar no espaço, no tempo, na oralidade, no fluir de múltiplas narrativas. Uma direcção de mundos imaginários, um método de estar perante a natureza. Um método de estar perante uma identidade, uma auto-imagem. Uma direcção de mundo perante uma alteridade, perante a imagem de um Outro homenageado ou atacado. O oitavo é o Nordeste. O Nordeste recriado nas crónicas de Os arredores do Paraíso (1985), na peça teatral O Saco das Nozes (1982), nos contos O Homem que Vendeu a Cabeça (1985), O Diabo Veio ao Enterro (1993) e Vilar Frio (1997) e nos romances Crónica da Casa Ardida (1993), Raquel e o Guerreiro (1995) e O Diário de C. (1995) e na poesia de Algures a Nordeste (1974), Solo Arável (1976), Tirreme (1978) e Boleto em Constantim (1981). Um Nordeste que Maria Purificata, de Raquel e o Guerreiro, detestava: “Punha-se a cismar à janela, por trás das cortinas, e não via senão montes arredondados, pardacentos, austeros, cobertos ora de mato ora de centeio, às vezes arrugados no topo em penedos de xisto que pareciam destroços de dentes a emergir de gengivas descarnadas.” Raquel e o Guerreiro, p.97. Um Nordeste com nove meses de inverno e três meses de inferno. Um Nordeste quente de penedos e granito, de linho, de pão, de castanha, azeite, cerejas e giestas, de gentes hospitaleiras que enfrenta o frio com capotes de palhas ou capas de burel escuro. Um Nordeste onde a promessa bíblica da ligação à terra, expressa em Vilar Frio, Na expectativa de que Adão e Eva e a sua geração por todos os séculos dos séculos fossem, por sua vez, o fruto de que ela própria se sustentaria, no ciclo eterno da vida e da morte.” (p.6)

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O imaginário transmontano na obra de Pires Cabral Anabela Dinis Branco de Oliveira

Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro

NORDESTE Quem pega na bússola vê oito direcções de mundo, oito métodos de estar. O oitavo é o Nordeste. A. M. Pires Cabral, Algures a Nordeste O oitavo é o Nordeste. Uma direcção, um método de estar. Um método de estar no espaço, no tempo, na oralidade, no fluir de múltiplas narrativas. Uma direcção de mundos imaginários, um método de estar perante a natureza. Um método de estar perante uma identidade, uma auto-imagem. Uma direcção de mundo perante uma alteridade, perante a imagem de um Outro homenageado ou atacado. O oitavo é o Nordeste. O Nordeste recriado nas crónicas de Os arredores do Paraíso (1985), na peça teatral O Saco das Nozes (1982), nos contos O Homem que Vendeu a Cabeça (1985), O Diabo Veio ao Enterro (1993) e Vilar Frio (1997) e nos romances Crónica da Casa Ardida (1993), Raquel e o Guerreiro (1995) e O Diário de C. (1995) e na poesia de Algures a Nordeste (1974), Solo Arável (1976), Tirreme (1978) e Boleto em Constantim (1981). Um Nordeste que Maria Purificata, de Raquel e o Guerreiro, detestava:

“Punha-se a cismar à janela, por trás das cortinas, e não via senão montes arredondados, pardacentos, austeros, cobertos ora de mato ora de centeio, às vezes arrugados no topo em penedos de xisto que pareciam destroços de dentes a emergir de gengivas descarnadas.”

Raquel e o Guerreiro, p.97.

Um Nordeste com nove meses de inverno e três meses de inferno. Um Nordeste quente de penedos e granito, de linho, de pão, de castanha, azeite, cerejas e giestas, de gentes hospitaleiras que enfrenta o frio com capotes de palhas ou capas de burel escuro. Um Nordeste onde a promessa bíblica da ligação à terra, expressa em Vilar Frio, “ Na expectativa de que Adão e Eva e a sua geração por todos os séculos dos séculos fossem, por sua vez, o fruto de que ela própria se sustentaria, no ciclo eterno da vida e da morte.” (p.6)

Pedro
OLIVEIRA, Anabela Branco de, “O Imaginário Transmontano na obra de Pires Cabral” in Terra Feita Voz, nº 2, Vila Real, Maio 1999.
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se define na morte mas, e sobretudo, na identificação de Lídia, em O Diário de C.:

“De Lídia nem sinais. Parece ter-se sumido, como um cometa que se fez efemeramente visível e segue céus fora a cumprir a órbita. Se é que não vai reaparecer quando menos se espere, aquilo deve ter sido mesmo um fogacho, um breve e inconsequente polvorinho como os que se levantam súbito nas eiras, em tardes de verão, e, parecem querer levar tudo aos ares, subverter a serenidade instalada nos campos, levantando palha, poeira e pragana, logo se aquietando, porém, como repesos de um arreganho que não têm forças para levar mais além.”

O Diário de C., p.30.

e nos amores de Aires e Clarinha em O Diabo Veio ao Enterro: “Mas nunca oubiu d'zer que o diabo é tendeiro? Quis a pouca sorte do rapaze que o Aires, é boltar da feira dos bintenobe d'acabalo na égua, desse um tombo dela abaixo. Pelos modos, a besta 'spantou-se c'uma lebre que se le alebantou ós pés, ali já perto das Lagas, e o Aires num tebe mão nela. (...) . Por sinal que ele inté já trazia a pedra no sapato, que a Clarinha num pracia a mesma de há uns tempos pra cá. Porquê? Ora! O Menino sabe c'mo são-nas treboadas de b'rão? Naquela mêa hora tchobe que parece que bai tudo raso; im menos dum credo, 'stá tudo enxuto c'mo se nada tibesse sido. Peis c'os amores da rapariga assucederia pori outro tanto: ligeiros bieram, ligeiros se foram. Segue-se que é Inzaías já a cousa tinha começado a tcheirar mal, e mais mal le tcheirou no mortório.”

O Diabo Veio ao Enterro, p.78 Um Nordeste de lobos traiçoeiros para os homens e para os rebanhos, em Vilar Frio, O Diabo Veio ao Enterro e Crónica da Casa Ardida e de raposas exterminadoras de galinheiros. Segundo Georges Dussaud1, terra de “lameiros, moinhos e fornos comunitários” onde “o ciclo dos trabalhos da lavoura é geralmente realizado em sistema de entre-ajuda, sem pagamento de jorna.”. Um Nordeste de comunidades reais com nomes reais de Alvites, Chacim, Malta, Grijó, Vale Benfeito, Macedo e de comunidades ficcionais com nomes imaginários de Fontarcada e de Bragado. Um Nordeste de comunidades onde a feira é ponto de chegada e de partida para todos e onde a Galiza é um continuar de imaginários esbatidos em espaços geográficos e linguísticos. Um Nordeste comunitário onde a solidariedade combate incêndios, pestes, invasões e também segredos:

“ Fontarcada já o sabia há muito tempo, porque não se esconde uma coisa daquelas num meio em que cada um sabe exactamente todos os passos que o vizinho dá, não vá ele por aí roubar-lhe a fruta ou desviar-lhe a água do rego.”

Raquel e o Guerreiro, p.11. “Porque a aldeia sabia de tudo: nenhum pacto carnal se mantém secreto por muito tempo na comunidade bisbilhoteira que é a aldeia, onde a vida de cada qual interfere sempre com a do outro.”

Raquel e o Guerreiro, p.202. 1 Portugal Terra Fria, Assírio e Alvim, Lisboa, 1997.

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“O caso de Rogério com Marta não ficaria secreto por muito tempo, porque nada se faz, sob a rosa do sol ou nas trevas da noite, que não acabe por aparecer à vista de toda a comunidade. Uma semana transcorrida e todos saberiam de tudo. Estava então maduro o tempo para uma carta anónima que ninguém e todos escreveram.”

Vilar Frio, p.30.

Um Nordeste onde o espaço-corpo individual:

“- Rapazes, a saúde 'stá nisto: pés quentes, cabeça fria, cu aberto, boa urina, merda prà

medecina. «E olhe que é berdade: se um home trouxer os pés aconchegados e um bô tchapéu na

cabeça, por mor do sol; e se os baixos le trabalharem, pra trás e prà frente, como manda a cartilha, num há mal que entre co'ele. Agora quando se impeça a mijar bormelho, bacatela... Mau sinal, digo-lo ou, e mais num passei por Coimbra.”

O Diabo Veio ao Enterro, p.167.

se define no espaço do colectivo: nos “adjuntos” onde se constroem imaginários; “Havia por toda a província o costume de dizer que quem quer saber novidades deve procurá-las num de três lugares: a botica, o fiadeiro ou a forja do ferreiro. A botica e a folia para os homens; o fiadeiro para as mulheres.”

Crónica da Casa Ardida, p.129. nas adegas onde se combate o calor tórrido do Verão; “Há uma boa meia hora que desci para a adega, que, na boa tradição das adegas transmontanas, é o lugar mais fresco da casa. Por isso mesmo é que é ali que se guardam, na sã vizinhança do vinho do pipo, os presuntos e a as carnes da salgadeira, e até, fazendo concorrência ao frigorífico, que já se vai vendo a proclamar a brancura do seu esmalte e o triunfo do século XX nas cozinhas trigueiras da aldeia, as próprias carnes frescas, o leitão e o cabrito que se hão-de assar em dia grande e que, mortos de véspera, passam ali a noite, pendurados de algum prego caibral, como que apanhados em instantâneo fotográfico em plena corrida à desfilada em direcção ao centro da Terra.”

O Diabo Veio ao Enterro, p.35. nas casas nordestinas possuidoras de um significado muito especial:

“A casa, tal como a falecida mulher a herdara de seus pais, era construída segundo regras que o tempo havia sedimentado numa arquitectura sóbria e sábia.

Constava de dois pisos.

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O andar térreo abrigava animais e alfaias, e ainda, em compartimento aparte, a provisão para o ano todo do que a terra e o porco davam (...) No andar superior, vivia a gente da casa, respirando o fartum dos animais, que subia por entre as frinchas mal vedas do soalho de castanho. A este andar nobre subia-se por umas escaleiras exteriores de pedra, sete ou oito degraus se tanto, que davam para uma varanda corrida até ao fundo, com guarda de madeira e pilares também de madeira a suportar o telhado, que descia das traseiras numa agua única e pouco declivosa. Sobre a varanda abriam uma porta e duas janelas. (...)

A fábrica da casa era de bom xisto da região, reforçado a granito nos cunhais; mas já as divisórias interiores eram delgados tabiques de ripa, fumados com argamassa e barro onde se embebiam, para maior solidez, caroças secas de milho.

Tudo segundo a sábia e sóbria, antiquíssima arquitectura da região. Uma casa assim, desataviada de trastes e cómodos, exígua de divisões, responde na

perfeição ao preceito antigo, segundo qual «casa em que caibas, terra que não saibas». Isto é: para o aldeão do Nordeste, a menina dos olhos são os chamados bens ao luar (a horta, a vinha, o olival, a terra de semeadura, o próprio chavascal que nada mais dá mais que lenha e guiços para o sequeiro. Da casa, não espera nem exige senão o essencial: que o abrigue do mau tempo, da noite, da doença, de todas as imponderáveis manifestações do mal.”

O Diabo Veio ao Enterro, pp. 46-47. “À vista da casa queimada, que ainda fumegava, Jacinto não sofreu particular comoção. Nunca se tinha sentido ligado a ela o bastante para lhe chamar sua e ver nela qualquer prolongamento do seu ser. Uma casa não tinha para ele o mesmo significado que tinha para qualquer aldeão de raízes bem firmadas no terrunho. Para este, a casa é praça forte, silo, hospital, maternidade, escola. É certo que o aldeão do Nordeste minimiza a importância da casa, em confronto com o fundo agrário: Casa em que caibas, terras que não saibas. Quer ele dizer que a casa pode ser pouca, mas as terras devem ser muitas. Mas, por pouca que seja, é sempre um lugar definitivo e essencial, onde nasce, se vai enroscando na espiral dos dias e é amortalhado enfim. A telha que o cobre e o xisto que o envolve não o resguardam só das intempéries e dos inimigos: resguardam-no do medo, dão-lhe dignidade, grandeza. E pode tanto um homem em sua casa, que, diz ainda o adagiário, mesmo morto são precisos quatro para o tirar de lá. Mas isto é o aldeão. “

Crónica da Casa Ardida, p.157.

Um Nordeste que se define nos alegres convívios de palavras e de gastronomia onde alcaparras2, vinho, presunto, queijo, azeitonas, linguiça e salpicão são companheiros assíduos.

Um Nordeste de espaços reais e imaginários onde os tempos se revelam especiais.

Um tempo ficcional que atravessa canais longínquos de tempos míticos em Crónica da Casa Ardida, “Mas Jacinto, como Ulisses dos mil expedientes, está preso com fortes amarras ao mastro da vida nova, as sereias cantam em vão: pega no sacho e prossegue a aprendizagem da lavoura. “ (p.210)

e de tempos bíblicos, presentes em toda a obra, nomeadamente em Raquel e o Guerreiro na constante auto-identificação de Narciso com Jacob; em Crónica da Casa Ardida, no incêndio da Casa Grande identificada com Gomorra por Tristão; na justificação do “primado das calças sobre as saias” em O Saco das Nozes e nas histórias contadas em Os Arredores do Paraíso: 2 ALCAPARRAS - azeitonas cortadas e meio esmagadas, sem caroço, curtidas de uma forma especial com laranja e ervas do monte.

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“Pregava um dia o padre, na Semana Santa, falando com grandes gestos e patéticas

inflexões de voz, das maldades que os judeus, mancomunados com os romanos, haviam feito a Cristo.

Calhou passar por ali um peleiro, ou peliqueiro, como se diria para as bandas de Carção, terra deles - espécie já quase extinta de sujeitos que andavam de terra em terra a mercadejar peles de ovelha e outros animais para curtir.

Percebendo que estava o povo na igreja, achegou-se à porta, a tempo de ouvir o padre enunciar os passos da Paixão, com o que ficou muito comovido.

Ora sucedeu que, no ano imediato, durante as mesmas pregações, voltasse o peliqueiro àquela terra. Tornou a achegar-se à porta da igreja. - E pregaram-no na cruz! -clamava o padre. - Foi-le munto bem feito! - resmoneou o peliqueiro. - E chegaram-lhe vinagre aos lábios sedentos! - Foi-le munto bem feito! - E trespassaram-lhe o coração com uma lança! - Foi-le munto bem feito !

Escusado será dizer que, nesta altura, já todo o povo se virava indignado contra o hereje, a pedir contas da blasfémia.

- Pois atão?!... - explicou-se o homem. - O ano passado num le tinham já feito lá outro tanto? Quem le mandou a ele tomar lá segunda bez? Foi-le bem feito, para que tomasse emenda!

Os Arredores do Paraíso, pp.25-26.

Canais longínquos de tradições e histórias sem tempo, difundidas no espaço e no tempo:

“- É uma conta do tempo dos afonsinhos, uma conta intiga, bá, a mangar dos alfaiates.” (O Diabo Veio ao Enterro, p.50)

“O adjunto ri deliciado da prosápia do alfaiate, embora já conheça de antemão a história, que deve andar revolvida de geração em geração há um par de séculos.” (O Diabo Veio ao Enterro, p.51) Tempos imemoriais de forte ligação com a terra: OS MESES Sabeis os meses? Janeiro, Fevereiro (cito de cor) (...) Todos são longos durante 30 dias, mesmo aqueles que duram 31 ou Fevereiro, o mais inconformado. Um ano tem 12 meses, com alguma angústia. Os velhos dizem é uma roda: outros uma coisa irrepetível visitando-nos. São exactamente 365 x 24 horas a arder nossa candeia. É uma roda (os velhos dizem): estamos nela durante uns tantos giros,

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depois outros nos vêm tomar o lugar. Eu avanço: é um forno rotativo trabalhando a fogo lento até nos rejeitar, tisnados, quebradiços, frágil terracota miscível na terra. E um redondo mostruário de miséria mal interrompida: Do cerejo ao castanho (os velhos dizem), bem me amanho; do castanho ao cerejo, mal me vejo. Dizem também. O cerejo, o castanho: os limites da agricultura para os hemisférios da fome e da fartura. No cerejo os frutos bravos, muitas aves, à mão colhidos; os dias vastos, a morna sobrevivência. No castanho as horas graves, o sustento coado de raízes. Eis o que os meses de seu saco têm para dar. Baça agricultura, lenta (sob promessa, mas tão lenta) divisão. Se se dissesse: tudo nasceu assim, assim deve ficar. Mas não: não nasceu o cerejo para tão poucos, nem o duro castanho para tantos. A culpa foi de nós, renunciadores de marco em marco. Eis a paga, a praga: resta este espaço de dizer: do cerejo ao castanho (...); nele cevamos dentes de aflição. Se se dissesse: está escrito. Mas não: ninguém escreveu nada, só a nós compete a ortografia. Muito tempo ainda teremos de dizer: Nove meses de inverno e três de inferno (ambos um funesto lugar)? Ainda choverá muitos meses sobre os nossos trabalhos? Não chegará um dia (em que mês?) que do quedo peito apague estes ultrajes? Ah, nunca domaremos esta dor do tempo, do lugar? Um ano custará sempre exactamente doze vastos meses a passar?

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Ou, pelo contrário, alguma vez em Janeiro saudaremos a neve de alma enxuta? Em Março o granizo? Os calores de julho? Trar-nos-ão os meses, assim transfigurados, as coisas de que agora são avaros? Haverá tanta praia em que caibam todas as crianças de todas as ruas sob o céu de Agosto? As castanhas assadas de Novembro não mais o limiar da longa abstenção? Decretar-se-ão enfim os meses cheios? Tempos imemoriais da saudade de pássaros que quase desapareceram, em Os Arredores do Paraíso:

“Aos residentes toda a roda do ano (milharengos, pachacins, tentilhões, pintassilgos,

pintarroxos, verdelhões, chinchalarraízes), juntavam-se por essa altura os tais ditos pássaros: tralhões, pardinhas, mosqueiros, tanjasnos, piscos, todos esses tolos e buliçosos dentirrostros que vinham para a safra das amoras e que, burlados pela negaça da formiga-de-asa, caem aos centos nas esparrelas.

Conta o povo que, nas suas migrações desencontradas, as andorinhas que retiram se cruzam no caminho com os tralhões que chegam.

- Onde ides, tralhões loucos, que ides muitos e vindes poucos? - perguntam elas, trocistas. Ao que eles replicam:

- Donde vindes, andorinhas putas, que fostes poucas e tornais muitas?” Os Arredores do Paraíso, p.11.

Tempos de tradições sem tempo que esgotam, na actualidade, um tempo de

vivência: as festas religiosas “Os mordomos, muito compenetrados, inchados da dignidade de terem sido escolhidos

democraticamente para cargo de tanta responsabilidade, andaram a carpinteirar a quermesse e o recinto de venda dos bilhetes, a aprumar postes embandeirados e a engalanar de festões as ruas principais.

As mulheres, cada qual em sua casa, embrenharam-se num labirinto de tarefas tão dispares e exigentes que me deixa estarrecido só de pensar em como podem acudir a tanto: ele são os folares, ele são as carnes, ele são as limpezas domésticas, ele são até as remoções de esterco e estrume que durante todo o ano se acumularam nas ruas por onde a procissão há-de passar - eu sei lá o que mais é! - tudo isto a par da rigorosa observação dos inúmeros momentos religiosos que a festa comporta. E tudo providenciam, a tudo acodem com gestos antigos e medidos e uma eficiência de que homem algum jamais seria capaz. Admiráveis mulheres transmontanas!”

Os Arredores do Paraíso, p.13.

o Carnaval com os caretos de Podence, em Os Arredores do Paraíso:

“Mas os caretos lá apareceram, na sua versão mais corrente: o inevitável casal travestido - ele a fingir de ela, denunciando o seu sexo real pela perna cabeluda e musculada; ela a fingir de ele, traindo pela bunda abundante, que mal se contém na estreiteza das calças, a sua realidade

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de camponesa robusta. Mas acaba por ser isso mesmo que tem graça, essa alteração momentânea e transgressiva de identidade sexual, impensável fora desta quadra libertina. E lá vão eles, de braço dado amorosamente, por ruas e quelhos, deixando atrás um rasto de hilariedade e a pergunta intricada: - Ele quem serão, o diabo dos entrudos? E os palpites saltam como a sardinha na rede.”

Os Arredores do Paraíso, pp.19-20.

O CARNAVAL Descobriram que doía menos o dia iluminado de riso e de vinho. Descobriram a virtude de refrescar a voz e os mais sentidos.

Por isso com negros tições se enfarruscaram os beiços a zarcão para um cantar mais longe, mais eficaz.

Buscavam a trégua no rumor.

Por isso, duma bexiga fizeram um balão.

Haviam descoberto a frase lapidar: memento homo, diverte-te e conquista - e não naufragarás. Eram inventores e - quia pulvis es fábricas de pó.

Por isso da testa suspenderam cornos, uma cenoura a fingir de rubro sexo.

Um leão habitava dentro deles.

Por isso apalparam impunes as pernas e a barriga às raparigas incautas, em pousio.

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Vae victis: conheciam que sobre eles de novo tombaria como um sudário a penitência longa et in pulverem reverteris.

Por isso devoraram a noite até ao fim, borrifaram de aguardente a madrugada da roxa quarta-feira.

São estes casamentos o equivalente das pulhas do Alto Douro. Em Grijó, conta-me a tia

Micas, dois grupos de rapazes, armados de embuste (espécie de funil largo, para projectarem melhor a voz) colocavam-se estrategicamente em dois altos sobranceiros à aldeia - o Cabeceiro e o Sagrado e em jeito de diálogo burlesco, recheado de oh-oh-oh's e uh-uh-uhs chocarreiros e pausados, anunciavam os casamentos. É claro que à moça mais catita da povoação destinavam os meliantes o noivo mais mal-amanhado, e vice-versa; à mais desempenada o mais cambado, e vice-versa; à mais rica o mais pobretanas, e vice-versa. Quanto maior o contraste, maior o escárnio. E havia casamentos que ofendiam, e desforços que se tiravam por via deles.

Os Arredores do Paraíso, p.20.

As tradições pascais, a “reza”3 entre os rapazes, verdadeiras manifestações que perdem o passado no tempo presente:

“As coisas - tradições, usos e costumes - têm um ciclo vital que lhes é próprio: nascem de uma necessidade, duram enquanto a necessidade dura e extinguem-se com ela. Ora, estimulá-las se ainda dão sinal de vida, muito bem. Mas ressuscitá-las artificialmente é inútil: cheirarão sempre a coisa morta, sem frescura nem naturalidade. Nestas condições, mais importante do que ter a coisa em si, mumificada e inexpressiva, é ter o conhecimento e porventura a saudade dela. E é por isso que o trabalho dos etnógrafos, vasculhando diligentemente na memória dos velhos, é precioso e urgente.”

Os Arredores do Paraíso, p.24. Um tempo ficcional que recria o nascimento do século XX e o advento da República portuguesa em Crónica da Casa Ardida; um tempo ficcional que percorre os anos 20-30 em o Diário de C. e Raquel e o Guerreiro. Tempos definidos em realidades dicotómicas de lavradores e fidalgos de Bragado e Fontarcada, ficionados em fidalgas carentes, vítimas de casamentos sem amor “- Ai sim? Nada mais adequado: o matrimónio defendendo o património... - gracejou Bento, naquele seu jeito de o fazer sem esboçar sequer um sorriso”. ( Raquel e o Guerreiro, p.43) e de uma viuvez precoce, que lutam corajosamente contra a lei do sangue porque em heranças e valorização do património o sangue era sempre a principal força, os familiares tinham direitos sobre tudo, o panfleto era “sangue é sangue, família é familia” ( Raquel e o Guerreiro, p.176). 3 Os Arredores do Paraíso, p.28.

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“Mas Raquel não se sentia obrigada a deixar-lhes fosse o que fosse, para além daquilo a que o Código Civil porventura a obrigasse. Nem queria pensar nisso. Não dava à riqueza a serventia estreita de ser uma coisa boa em si mesma, feita para se contemplar e saber que existe. Ela existia para ser fruída. Se com ela podia comprar o aconchego das virilhas de um jovem companheiro, para mais um companheiro de que se deixara enamorar, seria nisso mesmo que a usaria. Que melhor coisa lhe podia o dinheiro oferecer? É então deixava de pensar nos sobrinhos e punha-se a fazer aquela chantagem maliciosa com Narciso.”

Raquel e o Guerreiro, p.28.

e ficcionados em viscondes arrogantes mas vencidos:

“Aquela gentinha, lá porque tebe a sorte de nacer im berço de ouro, cuida que é só quero, posso e mando. Julgam que são tudo criados e criadas, e ó fulano aperta-me aqui a bota, ó cicrana barre-me as 'scaleiras. Num sei porquê, carbalho! Atão a gente num é gérada toda da mesma maneira, mais 'sfregadela, menos 'sfregadela? E num acaba toda coberta co'as mesmas pazadas de terra e cal? que são atão estas vaidades de fidalguia? Como dize o pobo: quando Adão labraba e Eba fiaba, a fidalguia adonde é que 'staba? (...)

«- Arre porra! Vossenhoria parece que traze o rei na barriga! «- E trago! - disse ele, munto empertigado. - Com munta honra! E bossemecê, o que é que

traze? Algumas migas de centêo, pori. Migas e trampa, é o que bossemecê traze na barriga. Sempre é milhor trazer o rei. Ora bá-se mas é com Deus e pela sombra!

(...) «- ó senhor Bisconde, pela sua saudinha: vossenhoria háde-me d'zer sequer é menos quantos anos tem...

«- Arrede lá o pé, que quero cerrar a porta. Que le importa a si os anos que tenho? «- Hum... Há-de rigular pela m'nha idade: corenta, corenta e deis...

«- E despeis, se tiber? «- Carbalho, senhor Bisconde! Há corenta anos c'o rei na barriga, num le parece que já

eram munto boas horas de o ter cagado? Que num bai ó ferrador, que le receite uma purga?” (...) No fundamental, o tio Zé tem razão: a gente nunca está livre de levar uma patada duma besta, mesmo armoriada. E eu que o diga, que algumas tenho levado de conde e de visconde, gente que teima, ainda depois dos laxativos drásticos de 1789, 1822, 1910, 1974, em trazer o rei na barriga e não se resolve a defecá-lo. O que vem a ser a mais crónica e caricata das prisões de ventre.”

O Diabo veio ao Enterro, p.134.

tempos definidos e ficcionados em fidalgos sedutores e exigentes que engendravam filhos ilegítimos, em Crónica da Casa Ardida:

“Deixa lá, que tomates não faltavam ao senhor Dom Afonsinho. É só contar os filhos do

rebusco que semeou por essa corda de povos fora, e mais além, até ao Mogadouro e ao Vimioso...

- Tu bem entendes o que eu quero dizer... o outro entendia, claro que entendia: há tomates e tomates.

Há tomates lá para aqueles brinquedos e entendimentos de alcova. Desses tinha o fidalgo e in magna quantitate, se era certo o que soava: que, entre varões e fêmeas, engendrara vinte e quatro zorros em quase outras tantas mulheres de quase outras tantas freguesias.

Mas há também os tomates que são precisos para que ninguém criado ou vizinho, figurões ou badamecos, gente da justiça ou do serviço d'el-rei -- nos venha fazer o ninho atrás da orelha.”

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Crónica da Casa Ardida, p.19.

“- E lá com respeito a isso de pais que enjeitam os filhos intrometeu-se o Ernesto -, não é

preciso serem ciganos. Há muito aldeano que faz outro tanto, e até fidalgos, se preciso for. Ai não... Para que é a roda de Bragança?”

Crónica da Casa Ardida, p.144.

Tempos definidos pelo testemunho de Primeira Guerra Mundial com o envio do Corpo Expedicionário Português para a Flandres e com a epidemia de gripe espanhola, e pelo testemunho das aparições marianas, em Crónica da Casa Ardida:

“Em 1917 foi que os céus pediram a conversão da Rússia, símbolo e condição de outras conversões inadiáveis, através da inocência de três pastorinhos. Bragado ouviu o senhor professor Moreira ler, no Comércio do Porto, a reportagem espantosa do 13 de Outubro. Não restavam dúvidas a ninguém, salvo talvez ao administrador do concelho de Vila Nova de Ourém: a Virgem Maria vinha em pessoa falar aos homens e, para interlocutor, não escolhia bispo nem cardeal nem presidente da república, mas tão somente três pegureiros analfabetos! Tristão, que acabou por ficar com o jornal, leu-o tantas vezes que decorou a notícia.”

Crónica da Casa Ardida, p.296. “Mas Tristão considerou que estava devedor de uma peregrinação e planeou então outra, desta feita à Fraga da Santa, perto de Grijó de Vale Benfeito, onde também era faina que a Senhora aparecera a uns pastorinhos.”

Crónica da Casa Ardida, p.338. Tempos definidos em testemunhos do Estado Novo através dos ensinamentos do regente escolar, senhor Inacinho Relhas e através da resistência de Bento em Raquel e o Guerreiro. Um tempo ficcional que analisa a aldeia nordestina de 1985 em O Diabo Veio ao Enterro e Os Arredores do Paraíso. Uma aldeia, um tempo diferente do passado,

“Já a navalha é bem coisa de homens. Nenhum moço que se prezasse, nado e criado na

província transmontana, se dispensava de trazer na algibeira, pronta para a lasca de presunto como para o bandulho dum adversário, uma boa navalha de folha de aço. , Ainda hoje raro é o nordestino rural que não traz no bolso a sua navalha artesanal de Palaçoulo. Eu próprio - cuja epiderme rústica anda decapada por algumas enxurradas de civilização - trago sempre uma comigo. Já não para o bandulho do adversário, naturalmente. Mas, nestas terras. dadivosas, uma pessoa nunca sabe quando tem de se defrontar com um salpicão.”

Diário de C. , p.36.

um conjunto de histórias de imaginários nordestinos, um emanar de “contas nordestinas”. Contas- imaginários que se transmitem na oralidade, nas palavras que se encadeiam, nas expressões que se criam, nas alcunhas que se inventam. Imagens-palavras e imagens de múltiplos sentidos.

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Imaginários que se criam nos múltiplos “adjuntos” nas tardes passadas a contar histórias, em Os Arredores do Paraíso:

A dada altura desta conversa fiada sobre as coisas da Páscoa de antanho, sai-se o tio Toneco com uma conta. Uma conta é uma história - e ainda um dia hei-de meter o bedelho de filólogo amador em certa casta de derivados regressivos que o meu povo fabricou e usa. A risa e a chora são dois bons exemplos.”

Os Arredores do Paraíso, p.25.

“Mas as contas são assim mesmo; são um objecto, como uma navalha ou uma enxada, feito para ser usado com proveito quantas vezes forem precisas. A originalidade cede o lugar à serventia. Deviam meditar nisto algumas pessoas que eu sei.”

O Diabo Veio ao Enterro, p.51.

Histórias que se encadeiam, que puxam umas pelas outras, que coexistem

ininterruptamente em contos e romances: “Mas o Leitor compreenderá: as ideias são como as cerejas, puxa-se uma, saem meia

dúzia, que remédio senão comê-las. Cerejas que, a propósito, não tarda que estejam maduras nos cordeiros bravos dos

caminhos da serra e sejam pretexto para novos e mais vibrantes hossanas da passarada.”

Os Arredores do Paraíso, p.48.

“ O tio João Vicente saboreia com igual prazer e entusiasmo mais um naco de queijo. Mas as

contas são como as cerejas, puxam umas pelas outras. Ou então como os foguetes de três respostas.”

O Diabo veio ao Enterro, pp.112 e 115.

Histórias cantadas pelos cegos de feira, mensageiro do desconhecido e do imaginário: “Os cegos de feira, que são uma espécie de encenação da consciência colectiva, encarregaram-se de espalhar a história pelos quatro cantos”

Raquel e o Guerreiro, p. 139.

“que morreu de morte matada quase aos cem anos, crime muito falado e execrado nas redondezas, que chegou a andar cantado em rimance pelos últimos cegos de feira, não só pela idade da vítima como pela mesquinhez do móbil .”

O Diabo Veio ao Enterro, p.17.

Histórias espontâneas, vividas:

“Mas o Menino há-de querer uma conta das minhas... E ou que steja praí birado, num é, sou maroto? Atão que conta háde ser? Sei tantas... Quem munto bibeu, munto tem pra contar.”

O Diabo Veio ao Enterro, p.70.

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Histórias sem “atestado de veracidade”: “- «Gostou da conta? Peis pode-a contar a quem quijer, que foi a pura da berdade. Se algum

dia encontrar o padre Sarafim im Macedo, prècure-le pla nória... Há-de ber os pinotes que dá. Quer milhor proba?» Não sei se acredite. Mas que importância tem isso agora. Estava bem servida a literatura, se fosse preciso um atestado de veracidade para cada história contada. Uma conta é o que é, nada mais.” O Diabo Veio ao Enterro, pp. 66-67. Histórias sem requintes de etiqueta citadina:

“- Mas olhe que esta é das marotas... Quer-se d'zer, tem umas certas palabras... Quer mesmo que la conte? - Nem se pergunta! - Mas é despeis num me benha cá com rinhonhós... - Não vou, descanse!

Não vou. Mas acho melhor prevenir o Leitor anojadiço de que se seguem algumas linhas eventualmente melindrosas. Se não deseja confrontar-se com estas anedotas dum pícaro viru-lento, salte para o próximo capítulo. Não salta? Não me venha «despeis com rinhonhós»...” (O Diabo Veio ao Enterro, p.98).

Contas que também se inscrevem na escrita, na ânsia de uma luta contra o tempo do desaparecimento no sentido da oralidade em O Diabo Veio ao Enterro:

“Não tomarei muito mais tempo ao Leitor, antes de entregar a palavra ao tio Zé das Candeias, retirando-me discretamente para a condição de cronista, fiel tanto quanto puder, que só pedirá palavra quando isso se tomar indispensável. Mas creio que valerá a pena rogar-lhe, Leitor, que sofreie um tantinho a curiosidade enquanto lhe dou a conhecer algo mais desta criatura fascinante com que me ocupo sempre que me vem a jeito, arrancando-lhe histórias e historietas - «contas», diz ele -, adágios e perlengas, reminiscências e efabulações, uma vezes a troco de um, dois copitas de vinho e de meia dúzia de azeitonas pretas...”

O Diabo Veio ao Enterro, p.18.

-É berdade! Oubi d'zer que ia a 'screber um libro co'estas patchoutchadas que ou e o

D'mingos le contemos. Bale-le a pena... Pouco tem que fazer... Aqui, mais uma vez, estamos de acordo. Aquele «bale-le a pena» irónico partilho-o eu com

toda a convicção de que sou capaz. sim: quem lerá o livro? Faço um rápido recenseainento. Lê-lo-ão ou, mais certo, ouvi-lo-ão ler, as criaturas que se saibam ou presumam referidas nele e queiram tirar a limpo se saem bem ou mal-feridas da aventura. Lê-lo-ão alguns nostálgicos como eu das raízes, caçadores como eu de fragmentos da velha mas perene sabedoria das aldeias. Lê-lo-ão alguns coleccionadores e estudiosos da rebarbativa ciência etnográfica. Lê-lo-ão - será que alguém mais o vai ler? Digamos: quinhentas pessoas, por junto? E, mesmo com este público limitado em horizonte, estou mais que nunca decidido a escrevê-lo, porque sinto que se o não escrevesse estaria a trair. Ora, trair por trair, antes um editor crédulo do que a madre.

- Eu depois cá le mando um, tio Zé. - Pra quê? Só se a m'nha genra mo ler... - Porque não?

- Peis bem, cá fico atão à 'spera. Adeus, Menino, inté pró ano!

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O Diabo Veio ao Enterro, pp.116-117.

e expresso na criação literária, com a transcrição da linguagem dos velhos de Grijó,

dedicado, segundo o autor, “à memória de alguns dos velhos que, nesse já longínquo 1985, me inspiraram a figura do tio Zé das Candeias e que entretanto foram mansamente levados para o lado de lá. Em especial lembro o tio Toneco (António Videira) e a minha sogra, Beatriz Gonçalo, que a esta hora estarão a entreter algum adjunto de santos, anjos e outros bem-aventurados com as perenes, marotas contas de Grijó.” (p.11).

Contas de oralidade que comunicam provérbios, expressões populares, modos de estar

nordestinos. Provérbios que traduzem as relações entre os homens, a simbiose entre o clima e a agriccultura; alcunhas eternas e inseparáveis das suas vítimas como o Carlos Beb’auga de O Diabo Veio ao Enterro:

“(alcunha dada por ironia, já que água é justamente talvez a única coisa que ele não bebe,

antes tem dela um terror supersticioso, assim como de coisa capaz de causar tolhiços e engaranhos; e como, por outro lado, alguma coisa tem de beber aquela goela permanentemente sequiosa, vai-lhe cascando pelo dia fora no vinho como Santiago nos mouros e pela manhã, para mata-bicho, na aguardente puxada a figos secos)”

O Diabo Veio ao Enterro, p.145.

como a de Jacinto Tarnego nascida de uma expressão continuamente pronunciada

(T’arrenego!); a de Tristão Olho-de-Sola na sequência do seu remédio para o mau-olhado, em Crónica da Casa Ardida; como a da Capadora pelo seu crime e do delegado que ela alcunhou de pau-de-virar-tripas, em Raquel e o Guerreiro.

Imagens palavras de duplos sentidos que definem os encantamentos de uma

sexualidade fortalecida mas linguisticamente disfarçada expressa na “louca rachada” de Dona Irene em Crónica da Casa Ardida e na “cantarinha” e “bainha” de Raquel face à espada do doutor Narciso de Raquel e o Guerreiro, que, pela boca do povo:

“- Ora ali vai quem ganha a vida com o suor da gaita - murmurava-se às vezes à passagem do doutor Narciso Rendeiro.

Pura inveja de quem, cumprindo a punição imposta a Adão e Eva e sua descendência, a ganhava com o suor do rosto. “

Raquel e o Guerreiro, p.20.

Palavras-sons, transcrições de diálogos, riqueza fonética especificamente nordestina

onde os rapazes são chamados de “raparigos” e onde um bocadinho de diz um “cibinho”:

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“tendo ido procurar por circunstâncias da vida particular sua reverendíssima o Bispo de Bragança e Miranda, lhe perguntou, sem o respeito devido ao báculo: «Ah, bós! Pois bós é que sois o tio bispico? Rai's bos parta! Pois estais bem gordico! E a tia bispica, como está?» Bispico e bispica são diminutivos formados muito ao jeito daqueles lugares e vós nada tem de majestático, é antes tratamento dado a todos quantos, por míngua de intimidade, não se tratem por tu.

O Diabo Veio ao Enterro, p.15.

“Pelos modos, esse tal padre bibia sozinho co'a irmã, que já era passante dos cinquenta e

nunca tinha casado. - É que le habia de morder a passarinha, atão... - ouve-se alguém comentar com malícia. - Mordesse que num mordesse - atalha o tio Zé, brusco, como quem nao apreciou ser

interrompido e não quer ceder a outrem o centro do palco -, o certo é que ficou solteira. Quem mo contou disse que num tinha casado deribado a ser munto pernóstica e tchêa de num-presta. Aquilo o ter um mano padre assubiu-le pori à cabeça... Tinham-le andado a rascar a iasa, na mocidade, muntos rapazes da aldêa que num se importabam de a lubar é altar, que o dote era rigular e ela, pelos modos, galantinha.

- Hum... Bonita c'mó cu da pita. Num habia de ser munto, quando não, num ficaba pra tia - tomou a mesma voz intrometida.

- Porra! - brada o tio Zé, exasperado. - Falo ou ou tchia um carro?(...) Pronto, pronto, num se azede, tio Zé. Já cá num 'stá quem falou.

- Quando omêa um burro, os outros abaixam-nas orelhas, nunca oubiste d'zer? Olha que catano!”

O Diabo Veio ao Enterro, pp.147-148.

“O sino rachado era um memorial. E a satisfação só não era completa, porque havia sempre a possibilidade de um desmancha-prazeres vir lembrar, ainda que com risco da pele, aquela coisa do garoto, dos pardais e da fisga.

E o povo efabula sempre. Pouco tempo depois, começou a parecer-lhe que o sino dizia, na voz rachada: «Tem lêndeas! Tem lêndeas!» Ao que respondia a sineta da Casa Grande, como que mofando, esganiçada: «Se tem, tira-lhas! Se tem, tira-lhas.» E, respondendo de muito longe, o sino do Lombo, alastrando o seu vozeirão sobre o planalto em que a povoação assenta: «Com a mão! Com a mão! »

Com esta perlenga entretinha Bragado os seus meninos.”

Crónica da Casa Ardida, p.139.

Contas nordestinas que têm funções especiais no universo das relações entre Raquel e Narciso, funções de entendimento, metáforas de uma relação silenciosa. Raquel impõe-se como narradora para conseguir os seus intentos. A polifonia imagética dos seus relatos, parábolas das suas intenções mais profundas, exigem uma constante identificação entre as personagens

“- Estás a ver as semelhanças? - Estou a ver tudo - disse Narciso. - Somos nós dois que estamos nessa história. Só me está

a parecer que levas a autocomiseração longe demais. Que diabo, não és nenhuma entrevada indefesa. Estás muito diminuída pela doença, mas não inválida. Não te estou a conhecer, guerreira!(...)

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- E então eu sou eu a bisca de João Silvestre, portanto. - Cada um escolhe o espelho a que se quer ver. Eu vejo-me em Joana. Ela estava tolhida, eu estou doente. Duas mulheres sem poder para prender a si o seu homem.

O homem dela era legítimo, creio? - perguntou Narciso, impiedoso. E o meu é de empréstimo, bem sei - replicou vivamente. Mas o facto de eu ser concubina e ela esposa não importa ao caso. Amor é sempre amor, de

nada precisa para se legitimar. Mas prossigamos. Como ia dizendo, João Silvestre saiu para ir ter com a amiga. Mas desta vez achou a porta cerrada.

Continuo sem ver as semelhanças... - ironizou Narciso. Eu acho sempre a porta aberta.”

Raquel e o Guerreiro, p.119.

Tornam-se narrativas de entendimento e pesquisa de uma alteridade que não precisa de salvar a vida, como Xerazade, mas precisa de castigar a humilhação e o interesse deemedido de alguém que está preso nas palavras: “Uma história de proveito e exemplo. Palavras... - disse Narciso com fria crueza que até aí nunca exercitara. - Eu entendo-te, Raquel, o medo e o exorcismo. Queres confrontar-me com o que julgas serem as minhas intenções mais secretas para me fazeres desistir delas. Mas conheces-me mal, minha amiga. Depois de sete anos de luta e trégua, conheces-me ainda tão mal. Se eu te quisesse matar, a minha consciência não se deixaria aprisionar assim em gaiolas de palavras, e matar-te-ia mesmo. Não seria estorvo nenhum.” (Ibid. p.227). Alguém que, através da palavra, esconde o desejo e pesquisa incessantemente o futuro:

“ Como a matarias tu, guerreiro? Com as mãos? Com estricnina? Com o olhar? A caçadeira? Uma injecção? O abandono?

Conta, conta depressa o resto! (p.219)

Uma relação explicada através das contas de um imaginário que se torna, por sua vez, uma outra conta, um tema de romance, a incerteza de desconfianças certas:

“Mas isso iria demorar ainda muitos anos, em que a história de Narciso e Raquel se continuaria a contar, embora não fosse feita da massa perdurável de que eram feitas as histórias de Anselmo e Onofre, de Maria Purificata e Martinho, da Capadora e Macário, de Olinda e João Silvestre, que giravam, todas elas, em torno dos eternos pólos da afronta e da desafronta, do pecado e da expiação(...)

Mas, por enquanto, o caso era demasiadamente espantoso e macabro para ficar confinado a Fontarcada, e fez-se constado muitas léguas em redor. De passagem pela aldeia, conhe-cedores da história perversa e curiosos, os feirantes e peliqueiros e outros nómadas de ocasião queriam saber pormenores (...)

- E então como é que ele a matou? - Com estricnina, como a um bicho do monte. - Estricnina?!... Com efeito!

E por muito tempo ainda antes do branqueamento definitivo das obscuridades do acontecido, sempre que o caso era comentado, Fontarcada continuou a falar afoitamente em estricnina.”

Raquel e o Guerreiro, p.239.

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As contas definem-se como uma manifestação do colectivo, como mensageiro oral na

construção de um imaginário específico, na construção de uma identidade própria que passa, inevitavelmente pela redefinição de uma alteridade, pela criação de uma imagem do Outro. Um Outro que convive ao lado dos contadores: a Mulher. E as contas, os romances percorrem o universo de mulheres fortes e dominadoras como Raquel e Olinda, em Raquel e o Guerreiro, e Irene em Crónica da Casa Ardida; mulheres teimosas como a da pandeireta e a do piolho em Os Arredores do Paraíso4; mulheres que, de uma forma brusca ou subtil, dominam os homens em O Saco das Nozes; mulheres submissas:

“Narciso (...) “tinha ideias bem assentes sobre a quem, num casal, competia ser manso e a quem competia ser bravo. Os feitios dos cônjuges querem-se diferentes e complementares, achava Narciso, pois quando são da mesma natureza entram facilmente em colisão. Uma mulher submissa ia bem com o seu feitio sobre o autoritário.”

Raquel e o Guerreiro, p.122.

“O que era a mulher honesta desse tempo? Uma criatura recatada, que devia amar com o coração de preferência a amar com o resto do corpo e cuja sexualidade não era pois tida nem achada nos jogos do amor. Cabia-lhe o papel submisso, passivo, de receptáculo do valioso sémen do marido: vaso de eleição já lhe têm chamado.

A esta fatalidade sociológica somava-se, no caso da mulher rural, a fatalidade geográfica: à aldeia, as transformações culturais, já de si lentas, llegan quando llegan, à boa maneira dos comboios espanhóis mas sempre com relutância e atraso. E nenhum outro ditado popular retrata com mais autenticidade e dramatismo a situação da mulher campesina, do que aquele em que a filha pergunta: Mãe, que cousa é casar? e em que a mãe responde: Filha, é fiar, parir e chorar. O trabalho, a maternidade, o pranto. A dor omnipresente. A interdição do prazer. Ouvi o ditado uma vez em Grijó de Vale Benfeito e nunca me há-de ele esquecer, assim como a voz que o dizia, dorida mas resignada, em guerra mas em paz.

Diário de C., p.25.

mulheres sempre resignadas perante a sempre proclamada força genital masculina, justificativo naturalmente aceite para todos os desvarios extraconjugais. Mulheres sempre culpadas dos assédios que as vitimam: “criada abusada era criada des-pedida, que a culpa era sempre delas, na lógica sexológica da Dona Dulce.”5 . Mulheres marcadas pela dogmática manutenção da virgindade:

“ Lembrou-lhe a propósito uma quadra que ouvira muitas vezes à mãe, quando marralhavam por via do namoro, e que a velha Vicência recitava como demonstração das cautelas que precisam de ter as raparigas, em contraste com a liberdade e impunidade dos homens:

Não me ponha a mão na saia, De longe diga o que quer, Você não perde, que é homem; Perco eu, que sou mulher

4 pp.52-53 5 O Homem que Vendeu a Cabeça, p.10.

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Ouviste? Olha que isto é um ditágio antigo - dizia Vicência, muito sensata, muito escaldada. - Para eles, tudo são glórias. Para nós, é andar enxovalhada nas bocas do mundo e, quando Deus quer, barriga à boca.”

Raquel e o Guerreiro, p.154.

“Ele, por ser estroina, madraço ou rascoeiro. Ela, por ser alevantada ou ter já mesmo dado o seu tropeção e quebrado o tal vidro que não solda mais da simbólica popular,

Meninas, tende cuidado, Vede bem por onde andais, Que a honra é como o vidro, Quebrando, não solda mais...

Fosse o que fosse, para o pai ralhar como ralhou, havia de ter razões de peso.”

Diário de C., p.31. Mulheres complemento saudável de um prazer bem proclamado pelos contadores de Grijó:

“Não, que o que é doce nunca amargou. Inté os bitchinhos do monte gostam... Não sabe a

conta da rapariga que foi ó moinho? (...) “O home e a mulher num foram feitos pra outra cousa. Nunca oubiu d'zer: o lume à pé da 'stopa, bem o diabo e assopra? O home é o lume, a mulher a estopa.

- E o diabo, tio Zé? - quero saber. - O diabo é ele mesmo, e 'stá no papel dele...

Que é assoprar... - Quenquera o dize - assente o tio Zé das Candeias. - Então quer dizer que é pecado... - insisto.

- Pois pecado será, mas sabe que regala. E quem num tiber pecados desses, que atire a primeira pedra.”

O Diabo Veio ao Enterro, p.42.

Forma-se nesta obra a imagem e o sentimento perante o Outro que conduz a reconstrução de um sentimento religioso, de um Outro que forma ou deforma as características mais profundas do imaginário e da vivência colectiva. O Outro padre, misto de respeito e de desprezo, retoma nesta obra condições universalistas de um anti-clericalismo:

“Porque isto os padres são homes c'mós outros, homes inteiros, bá. Num se consta que os capem, lá no seminário.

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- Abençoada nabalha - resmunga, convicto, o tio Domingos. Num se biam poucas bregonhas c'mo se bêem... (...)

Peis bem - concede o outro. - Mas se eles saem de lá na força da bida e com as partes inteirinhas no lugar, que admira que haija por essas terrinhas tanto raparigo a tchamar tio é padre? (...)

Padres femeeiros é o que mais se bê por aí. Todos temos cá dentro a natureza a puxar por nós, e os padres num se ficam atrás. Im le tcheirando a recatchiço... C'uma mão tapam-na c'roa, co'a outra apalpam-na moça, nunca oubiu d'zer? E olhe que num são pecos a 'scolher, num é qualquera cousa que le serbe. A milhor fêmea do poboado, é milagre que num seja prós dentes do padre. Quando num são duas e três, ou inda mais, c'mó padre Pombo, da Matinha, que tem filhos e filhas, dizem, de sete amigas im outras tantas freguesias.(...) Inda num há grandes dias que le naceu o último, duma mulher de Bal-de-Nogueira, e, à sanha com que le pega, 'stá ali home pra gèrar outros tantos c'mès que já tem. Padres... Munto se engana quem cuida. São homes de carne e ósso e, tarde ou cedo, dão-na sua cabeçada, tão certo c'mo 'starmos agora aqui os três na sua adega, a comer e a buber. O Menino nunca oubiu d'zer: «O abade de Binhas faze-os e baptiza-os»? Peis, no tocante a fazê-los, o gèral dos padres rigula pelo abade de Binhas. Agora baptizar, lá os darão a baptizar a outros, que tamém já era pouca bregonha a mais.”

O Diabo Veio ao Enterro, p.59.

Um Outro diferente expresso nas figuras de viajantes mentais, personagens de narrativas carregadas de fantástico e de sobrenatural, retratos de cismas, paranóias e alucinações, numa verdadeira viagem aos meandros do “quebradiço barro mental”6 de que somos feitos em O Homem que Vendeu a Cabeça. Figuras de um Outro possuidor de dons desconhecidos como o João Relógio:

“João Relógio chama-se na verdade João Baptista da Custódia e deve a alcunha a uma extraordinária faculdade: ele adivinha as horas. Pergunta-se-lhe que horas são e ele responde sem hesitar: são tantas. Vai-se a ver e, quarto de hora adiante, quarto de hora atrás, são mesmo as que ele disse.

Esta faculdade, que muitos invejam, tem, como tudo na vida, o seu lado negativo. Quando uma ocasião o relógio da igreja avariou e se esteve à espera de que um relojoeiro de Macedo o viesse consertar, João da Custódia viu-se atanazado a toda a hora e momento por gente que tinha precisão de saber as horas. Em desespero de causa, acabou por se fechar em casa, com parte de doente, mas as pessoas não desistiram e passaram a mandar lá os filhos com o recado.

Senhor João, meu pai manda perguntar a vossemecê que horas são. Que faça dos cornos ponteiros e veja as horas na testa! acabou por exclamar certa vez,

exasperado, e o dito ficou célebre.” Crónica da Casa Ardida, p.149.

Um Outro diferente, com concepções próprias de uma vida pautada pela liberdade,

pelo desprendimento, pela anarquia de quem não ganha raízes à terra, para quem o mundo é feito de viagens que ultrapassam a agrura do xisto e a majestade das serras como Jacinto, o amolador de Crónica da Casa Ardida e como os ciganos cuja cultura e defesa percorrem toda a obra: OS CIGANOS 6 O Homem que Vendeu a Cabeça, p.125.

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Dizem vêm da Europa Central. Eu vejo vir dos lados de Grijó em lassa caravana. Debaixo da carroça trota a coelheira, aproveitando a sombra débil e ambulante. Sentado na boleia, as rédeas na mão morena descuidadas, um homem cisma, confia do caminho ao macho lento a decisão. Outros homens a pé e mulheres novas entretêm de riso a caminhada espessa. Logo após, sobre os burros, os pertences. Alguns velhos também, já cansados de tudo, tiram partido do precário trote. As crianças de peito sugam em sonolenta teima as elásticas tetas sacudidas, mas alvas e redondas. Os mais velhitos caminham repartidos em pequenas e lúdicas manadas, dando às hortas laterais breves saltos furtivos. Toda esta gente é morena e tem fala cantada, levanta para mim doces olhos castanhos. Dizem que vem da Europa Central, de uma raça sem chão, e aqui procura, de insultos rodeada, cumprir a sua luta, seu degredo e sua primitiva vocação. Dizem que os ciganos desenterram animais defuntos de alguma enfermidade menos limpa e neles cravam dentes de fome milenária. Dizem que as mulheres estão na intimidade das estrelas e a troco de uns mil-réis lêem nas mãos destinos coloridos. Dizem que roubam quintais e assaltam capoeiras, e os aldeões, em pânico secreto, os expulsam com voz impiedosa e decidida mão das cercanias do seu chão governado. Dizem que enganam os crédulos campónios em negócios sempre escuros de animais, em que fazem passar por uma estampa o mais escalavrado e cego dos cavalos. Dizem que na vila, ao desfazer das feiras, têm por costume, depois de embriagados, trocar com as bengalas possantes e vistosas pancadaria rija, de que morrem. Dizem que vivem estranhos dramas passionais. Dizem que não têm deus e que se casam lançando ao ar jubilosos chapéus. Dizem tudo isso dos ciganos. Eu não sei. Vejo-os vir dos lados de Grijó e estão todos de frente para mim e parecem-me gente - nada mais.

“O Menino inda conheceu o Manel Antonho, cigano? Ora, num conheceu outra cousa. Inda

num há grandes anos que andaba por aí c'o realejo e a caixinha. Aquilo era lubado da breca.

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Sítio onde apousasse, punha tudo a dançar! Oh, quantos bailes se armaram aqui no pobo, é toque dele... Tocaba à mesmo tempo na gaita de beiços e num 'strumento que ele mesmo engendrou e vinha a ser uma caixa de lumes e um lume preso por um elástico a bater no tampo. Se a gente queria a música mais mexida, era só pedir por boca:

«- Aperta agora, Manel Antonho! (...) tchamabam-le a Belizanda, e atão tocaba e dançaba é mesmo tempo. Aquilo só bisto! «A mulher, digo ou. Sei lá se era mulher ou amiga. Sei que andaba muntas bezes co'ele,

era a companheira, bá. Que os ciganos, num sei se o Menino já tem oubisto d'zer, num se casam c'mà gente: atiram c'um tchapéu é ar e pronto, já Istá, toca a juntar os trapinhos e a 'sfregar os untos. Padre nim padrinhos num p'cisam. É assim à lei da natureza.”

O Diabo Veio ao Enterro, p.38.

“Mas num se consta que a Belizanda tibesse emprenhado. Ceguinha tamém num ficou. Cega? Bô era! Bem ladina e de olhos bem abertos é que ela era, useira e bezeira a aplicar os cinco mandamentos àquilo que encontrasse fora de recato. Aquilo estaba-le na massa do san-gue: ólho bê, mão pilha. A mim pilhou-me uma bêze uma pirua e doutra bêze já me lubaba uma manta que a minha tinha labado e posto à cora. Se num l'atalho, era uma bêze uma manta.

«Ou, Deus me perdoe, gosto pouco de ciganos. Bem sei que são gente como a nós, filhos de Deus e tudo, mas têm usos e feitios que os aldeanos num têm. Um deles é esse de deitarem o gadanho é alhêo. Outro são-nas zaragatas que armam, por dá cá aquela palha, nas feiras, quando 'stão borratchos. Ali ferve a bengalada! Por isso, bolta e mêa a guarda leba-os prà esquadra e obriga-os a buber um jarro d'auga cada, a ber se le aparta a borratcheira... Dize que alguns inté se põem de joelhos:

«- Ali, senhor guarda, num me faça buber mais auga, que arrebento pràqui c'mó sapo! «Outro uso é o de comerem os bitchos, bá, galinhas, cameiros e até porcos que morreram

de moléstia. O Menino anoja-se? Peis olhe que é a pura da berdade. Inté os desenterram, se le palpita o sítio onde foram enterrados. Anoja-se? Tamém ou. Mas atão habiam de se deixar morrer à fome, ou passar só a caldos de fiolho? Os aldeanos impontam-nos, assobam-le os cães, cerram-le a porta na cara quando andam a pedir? E eles desfendem-se como podem, olha que admiração!

O Diabo Veio ao Enterro, p.39 A hospitalidade é uma característica inalterável no imaginário transmontano. Mas a imagem longínqua de um Outro estrangeiro retoma sempre linhas diversas:

“- Caramba! - diz o tio Zé das Candeias. - ó pé do Menino num pode haber fome nim sede. - Ai isso não - apoia o tio Domingos Frutuoso.

- Ou gosto de gente daimosa, assim c'mó Menino. Gente franca, há, que dá do que tem, a quem precisa e a quem num precisa. Quem le passar à porta da adega, por força tem de buber. É assim mesmo, catano. Ou cá tamém nunca fui unhas-de-fome, fui sempre munto franco, e a minha tarném, Deus a tenha im bô lugar. Quem batesse é ferrolho, tinha de comer e buber inté le tchigar c'um dedo. Era ou num era, D'mingos?

- Era - confirma o amigo. - Comida fina não, que num habia. Mas do que houbesse... Quem dá o que tem, a mais num é

obrigado. (...) Dize que a gente lá pra baixo - prossegue o tio Zé dos Algarbes ou lá c'mo se tchama, quando come, 'stá co'a comida dentro da gabeta, pra a poder fitchar logo se alguém bate à porta. Dizem, há, que ou mundo corri munto, mas nunca rompi as botas lá por esses lugares.

Que admiração - explica o tio Domingos esta lacuna geográfica nas andanças do amigo. - Lá só há amendoeiras, e as amendoeiras num dão madeira...”

O Diabo Veio ao Enterro, p.105.

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A imagem do Outro conduz sempre ao retomar de novas cautelas. Onofre, o jogador viajante de Raquel e o Guerreiro, personifica a impiedosa e humilhante fama do jogo e o poder sobre o fidalgo fanfarrão. O Outro viajante encarna também a figura marcadamente camiliana do brasileiro que pode ser causador de heranças inesperadas:

“era o providencial tio do Brasil. Tio do Brasil, sim senhor, que essas coisas não as há só nas novelas de Camilo- também as há nas minhas. Havia de facto um tio no Brasil, homem podre de rico, velhíssimo, solteirão, sem outros herdeiros e deliciosamente prestes a expirar - ou seja, com todas as boas qualidades de exigir num tio do Brasil.”

O Homem que Vendeu a Cabeça,p.113. “Quem lhe garantia que o velho, eventualmente curado graças a algum milagroso óleo de jacaré, não mudasse de ideias sem dizer água-vai e, juntando-se com alguma mulata que lhe aquecesse os pés, nao engendrasse nela, como o patriarca Abraão na escrava Agar, novo e mais próximo herdeiro, ou mesmo, não tendo já alento para tanto, deserdasse Gabriel em favor da concubina? “

O Homem que Vendeu a Cabeça,p.1.

e pode ser companheiro de um Outro diferente projectado no feminino:

“Sete anos antes, Onofre regressara do Brasil, acompanhado duma sinhá de sangue esquentadiço, nascida e criada em São Paulo, que não se deu com a pasmaceira e os frios de Gralhós. Embora Onofre tivesse mandado arranjar de alto a baixo a velha casa de paredes de xisto herdada dos pais, ela continuou desconfortável e gélida, e Lucélia gemia pelos cantos saudades tropicais.”

(Raquel e o Guerreiro, p.65)

uma outra mulher alvo de uma imagem marcadamente estereotipada:

“Anselmo Raposo, o fidalgo, tinha esquecido há muito aquela aventura, que não tinha sido a sua primeira nem seria a última nos terrenos escorregadios, clandestinos, do adultério. Para ele, fôra uma relação picante, é certo, mas inconsequente. Era legitimamente orgulhoso das suas internacionalizações em matéria de amores carnais, com grande cópia de espanholas dos bordéis de Zamora e Salamanca, e mesmo uma francesa balzaquiana que pescara inesperadamente certa vez na Póvoa do Varzim. No palmarés, havia contudo uma gritante lacuna em matéria de brasileiras, que os cânones da libertinagem lusíada pintavam como fêmeas de trás-da-orelha, nomeadamente se trazem misturado no sangue branco uma pitada de sangue negro. Lucélia possibilitou-lhe pois o preenchimento da lacuna. Não tinha sido mais nada do que isso, afinal: o selo ou a moeda que falta na colecção.”

( Raquel e o Guerreiro, p.71)

Imagens de estereótipo, anacrónicas e monossémicas que caracterizam o Outro portuense:

“Aconselhou-se com um ferroviário sobre uma estalagem em conta para pernoitar e, na manhã seguinte, com duas horas de antecedência, lá estava ele no cais de embarque, fresco como uma alface, apalpando volta e meia, por precaução a bolsinha do dinheiro, que lhe tinham pintado o Porto como verdadeiro valhacouto de carteiristas e malfeitores.”

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Crónica da Casa Ardida, p.255.

Imagens de estereótipo que caracterizam o Outro, cantor televisivo: Oubem-se cantar agoras uns fulanos na telebisão, c’uma bózinha tão tem-te-num-caias, que parecem mesmo cães a ladrar à lua.” ( O Diabo Veio ao Enterro, p.74)

o Outro espanhol: “ A peste é que apareceu de salto. Por Junho de 1918, vinda de Espanha (donde é faina que

não vem nem bom vento nem bom casamento), entrou ferozmente por Portugal adentro a gripe a que chamaram por isso espanhola. Mais tarde, chamar-lhe-iam pneumónica.” (Crónica da Casa Ardida, p.295).

o Outro africano: “Outra coisa não te cozinho eu. O que é que tu julgas? Que sou tua escrava? Estás muito

enganado! Vai para África, madraço, e arranja lá uma preta que cuide de ti. Vai, anda, que eu não estou para te aturar. Era o que faltava! Já lá vai o tempo da escravatura.” (O Saco das Nozes, p.54 )

Parafusou, parafusou e atão acabou por se alembrar de le botar fogo à cama, fiado que nin-guém descobria. Sim, quem é que ia pensar que um home fosse capaze de semilhante cousa? Nim os pretos da Guiné! (O Diabo Veio ao Enterro, p.92)

Um mesmo estereótipo marcado por um imaginário perdido na História mas ainda vivo nas terras nordestinas: as invasões francesas

“Bragado, no fundo, não se importou: podia assim recordar, na voz defeituosa do bronze, as tribulações e dramas que os bárbaros soldados de Napoleão trouxeram a Portugal. ( Crónica da Casa Ardida, p.138)

“ O sino pára um pouco, enquanto João Relógio muda de mão, e logo prossegue o toque mobilizador contra as grandes calamidades, fogo ou franceses.” (Crónica da Casa Ardida, p.152) que condicionam toda uma imagem fóbica em relação à França, não só no temor dos fidalgos face à República e ao Jacobinismo, frequentemente referido em Crónica da Casa Ardida7, como também na referida insensatez de todas as inovações daí importadas:

“Apavorou-se com a travessa da ponte de Dona Maria Pia que fazia pela primeira vez, considerando gravemente o trambolhão que daria o comboio se a estrutura da ponte se desenculatrasse. Porque isto de pontes é de bom perpianho que se querem, bem travado, e não de frágeis vigotas de ferro aparafusadas umas às outras - mais uma francesia que, como as demais, o seu feitio ultramontano e caturra não aprovava: que outra coisa havia a esperar duma nação que exportava a pouca-vergonha para toda a Europa?” ( Crónica da Casa Ardida, p.255 ) 7 Cf pp. 116, 192, 231 e 280.

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“As duas por três está o tio Zé das Candeias a discorrer sobre quartos de banho. O Menino

(ele parece, estando eu, ignorar sempre a presença dos outros e falar para mim exclusivamente) pode num acreditar, mas olhe que já cá cantam oitenta e três, há seis ou sete que tenho quarto de banho im casa, e ainda num me habituei a fazer lá as necessidades. Podendo ir a campo... Nim ou qu'ria isso lá im casa. Foram cousas do mou Antonho, que aprendeu na França. Peos modos, essas nações querem ser munto asseadas, munto asseadas, e num se importam de fazer tudo portas adentro. E atão esses franceses que bêm de lá, e da Alemanha, quando cá tchegam, toca tudo a pôr quarto de banho. Um daí, de Bal' Benfeito, até andaba sempre a roncar: «Habias de ber a minha sal-de-bã.» 'Strangeirices.”

O Diabo Veio ao Enterro, p.49.

Um Outro-emigração torna-se a imagem de algo que transforma o ambiente do Nordeste. É a imagem de algo que acarreta o negativo, a desgraça. O Tio Zé das Candeias, de O Diabo Veio ao Enterro, personifica um Velho do Restelo reagindo contra a “canela” trazida por uma emigração sedutora protagonizada na figura execrável, odiada de todas as mulheres, o Molas em O Diabo Veio ao Enterro e em Vilar Frio:

“Para Marta, ver o Molas era como ver o demónio. Ou uma daquelas aves maléficas que vêm desde muito longe, voando em círculos cautelosos, ao cheiro da carne que apodrece num ermo. Enquanto houvesse um homem em Vilar Frio, o engajador viria ali, seduzi-lo-ia, agarrá-lo-ia pelo cachaço como os lobos fazem às cordeiras e só o largaria em terras de Galiza, onde outro engajador pegaria nele e o conduziria a França ou Alemanha.” ( Vilar Frio, p.9) Uma emigração, fonte de adultérios trágicos resolvidos a remédio de escaravelho, como de Luísa de O Diabo Veio ao Enterro e o de Marta de Vilar Frio, de adultérios cantados em O Diabo Veio ao Enterro e Vilar Frio: Graças a Deus, Já boltou o mou home; Deixou-me c'um filho, Atcha-me com nobe. Graças a Deus E a todos os santos, Que nem me prècura De quem são tantos! De adultérios expressos em contas de “risa”: “E tamém se conta a 'stória dum home que 'stebe muntos anos im França e é quinto mês despeis de boltar, pare-le a mulher. O home, quemquera o dize, ficou desaustinado. Tchigou-se a um amigo, que por sinal era o pai do crianço, e contou-le as suas desgrácias.

- O compadre, bê lá tu o que me assucedeu. Enquanto stibe na França, a m'nha mulher atraiçoou-me!

- Que me dizes? prècurou o outro, a fazer-se de novas. - Atão num bês? Pariu esta manhã! - Compadre, num debemos fazer maus juízos. Há quanto tempo boltastes? - Bai pra quatro meses e meo...

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- ora atão faz-le bem as contas: quatro meses e mêo de dia com quatro meses e mêo de neite, quantos meses faz? - Nobe! - Atão que é que le queres tu, burro dos cães?! Foste tu que a emprenhastes!

O tchabelhudo, que, por cima disso, inda era burro c'mo um soco, caiu im si e disse: - Tens razão, compadre! Bem hajas pelo peso que me tirastes de cima dos ombros! E ou, burro, que tanta guerra tenho dado à mulher por bia disso!

O Diabo Veio ao Enterro, p.158.

Uma emigração que se reflecte, no presente, através da arquitectura descaracterizadora de todo um Nordeste, através de hábitos pouco ecológicos e através de uma cómica simbiose entre o português em vias de esquecimento e o francês macarrónico exageradamente homenageado: “Mas nos últimos quinze, vinte anos, Grijó rompeu vigorosamente os limites primevos e entrou de estender-se para sul, em direcção a Vale Benfeito, e para norte, em direcção a Macedo de Cavaleiros. Já se adivinha porquê: a emigração, claro.

Neste mês de Agosto, os emigrantes em férias animam extraordinariamente o povoado. Movimentam-se infatigavelmente nos seus carros com assentos forrados a pele, que metem um calor dos diabos só de se imaginar uma pessoa sentada em cima deles, ajoujados de autocolantes de águias, tigres e outros bichos assim ferozes, e com a infalível menção Turbo, como se lhes caíssem os parentes à lama se trouxessem da França um carro de cilindros convencionais. Nas ruas, vestidas à moda de lá, as rnadamas afectam grande desenvoltura e modos cosmopolitas pour épater os que ficaram, e, se o petiz malcriado se lhes solta de mão e faz das suas, gritam-lhe encolerizadas:

- Tiagô, viens ici senão parto-te os cornos! ( Os Arredores do Paraíso, p.5) Mas a vida quotidiana, a identidade cultural enfrenta, nas resoluções e nos receios, todo um imaginário de um tempo longínquo onde a dicotomia Deus/Diabo consagra os sentimentos e as linguagens. Demónios e bruxas enfrentam o espírito nordestino, um outro modo de estar... Os exemplos de interferência do demónio e seus serventuários na vida da gente eram inúmeros, pão nosso de cada dia. O humano e o satânico conviviam desde o princípio do mundo, ora em boa paz, ora em guerra aberta. Bruxas, zângãos, trasgos, assombrações, encostos, almas em pena, vozes malignas falando pela boca da gente - que era tudo isso senão emanações do grande malefício original que reside no diabo? (Crónica da Casa Ardida, p. 221) O Diabo aparece como causador de sinais dermatológicos em O Homem que Vendeu a Cabeça8. Aparece como inspirador da relação de Narciso e de Raquel na Casa do Marco, aparece como professor das habilidades e do manuseamento da cartas de Onofre em Raquel e o Guerreiro. Aparece de capa negra e andando “às arrecuas” no enterro da bruxa Espremida em O Diabo Veio ao Enterro. Aparece como aliado do inexplicável em Jacinto de Crónica da Casa Ardida9. Aparece como comparação traduzida em linguagem específica: 8 p.86 9 p.221

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“O homem do campo desconfia da política como o diabo da hóstia consagrada. Resigna-se a prestar o pêlo à tosquia, já que o não pode furtar; mas quem seja o tosquiador é-lhe perfeitamente indiferente. Entre Monarquia e República, viesse o diabo e escolhesse.” (Crónica da Casa Ardida, p.281) Aparece estudado por Simão Boanova:

“Simão Boanova tem, para aquilo tudo, uma explicação que entende com a demonologia. Desde há muito que ele se convenceu de que Jacinto é um demónio menor, enviado a Bragado para perder a Casa Grande e, na ressaca dessa perda, todo o povo que nela se revê. Como podia pois Jacinto ter perecido no fogo, ainda que lá estivesse? Não é o fogo o ambiente natural dos demónios? Não são eles inviáveis à combustão? Apareceu mais tarde, muito sonso, a fazer-se de novas? Ora, quem sabe lá os compromissos nocturnos que teria com o senhor das trevas, lá longe da aldeia, em cascos de rolha, onde os ecos do sinistro não chegassem... (...) Do seu ponto de vista, nada se passa debaixo da rosa do Sol que seja singelo e natural. Simão Boanova lê correntemente o «Livro de São Cipriano» e outras obras herméticas que tem lá em casa, muito ensebadas do uso e até anotadas a lápis, algumas delas, à margem. E o que o povo chama, num misto de admiração, temor e desdém, um planeta.” (Crónica da Casa Ardida, p.173)

O Diabo é, no dizer do Tio Zé das Candeias:

“Ele, o Diabo, é que é o capitão das tropas e a mando dele é que as bruxas andam cá neste

mundo a empecer e a botar maus olhados.” (O Diabo Veio ao Enterro, p.175) As bruxas, aliadas dos diabos:

“se queria beijinhos, que fosse beijar o diabo no cu, como fazem as bruxas à sexta-feira, nas encruzilhadas dos caminhos. (Raquel e o Guerreiro, p.148) são inseparáveis de imaginários satânicos, personagens ambíguas, temidas e desejadas, causadoras de ventos inesperados e esconjuradas com figas em O Diabo que Veio ao Enterro, cozinheiras das poções e dos filtros que fazem mover os amantes em Raquel e o Guerreiro e Crónica da Casa Ardida. São adversárias da farmácia em Fontarcada10 e curam doenças em Grijó, como é que o caso da Espremida:

“Essa fazia era rezas, benzeduras e defumadouros, e curaba a gente milhor do que muntos doutores. Atão im cismas e paixões e cousas assim cá de dentro, ninguém le tchigaba o dedo molhado. Qual doutor, qual carapuça! Os doutores sabem munto, mas é daquilo que sabem, num é de tudo. Se uma criatura, é um supor, desnoca um ósso, num é o doutor que le bale; olhe se num é antes o end'reita. C'um fiozinho de azeite, bai correndo o braço ou a perna ou seja lá o ósso que for, e quando tal, tic!, bai é lugar. O doutor o que é que le faze? Bota-le uma ligadura e pronto: se curar, curou, se num curar, pacencia, fica tolheito. «Peis assim c'mó end'reita é que sabe compor ossos, a bruxa é que cura as moléstias da ialma.

O Diabo Veio ao Enterro, p.144.

Encontram-se às terças e sextas-feiras em encruzilhadas e ermos: 10 Raquel e o Guerreiro, pp.32,35

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“Os dois garotos só pararam de correr em Grijó, e tão arrelampados e branquinhos vinham, que toda a gente julgou que estivessem espritados ou tivessem topado bruxa no ermo.” (O Diabo Veio ao Enterro, p.30) As bruxas estão, assim, na origem de crenças e premonições que enchem as contas e definem as necessidades espirituais de um modo de estar nordestino mas universalista que acredita nos olhos traiçoeiros do Doutor Narciso, porque hesitantes entre o azul e o verde, são olhos de gato. Acredita nas pragas e maldições como a de Joana perante o crime do marido em O Diabo Veio ao Enterro e Raquel e o Guerreiro. Acredita no mau-olhado de Tristão e nas premonições fantásticas da sua morte, em Crónica da Casa Ardida:

“não podia morrer sem que a morte fosse anunciada por uma multidão de prodígios. Um dia, uma mulher de Bragado chegou esbaforida à aldeia, clamando que vira no monte uma porca amamentando pintainhos e, logo adiante, uma galinha guiando, com cacarejos pausados, disciplinadores, uma ninhada de leitões. Este prodígio não augurava nada de bom, e os aldeões, tementes a toda a manifestação teratológica, benzeram-se, transidos. Pouco depois - era Outono - começaram a aparecer nos pinhais milhares de estranhos cogumelos roxos como o manto do Senhor dos Passos, quando antes eram amarelos cor de enxofre, e quem se afoitava a comê-los tinha visões e agonias. Bragado benzeu-se de novo.

Em Gebelim, nasceram duas meninas duma só barriga, lindas como o sol, mas trazendo cada qual sua mancha vermelha no rosto, uma a modo dum cravo, outra a modo dum polvo. Ao mesmo tempo nascia em Peredo um cão com duas cabeças. Bragado benzeu-se terceira vez, e o próprio padre Amadeu, incerto do significado de tais alterações, releu o Apocalipse a ver se estariam incluídas entre as medonhas visões de São João em Patmos.”

Crónica da Casa Ardida, p.340.

A.M. Pires Cabral enuncia um imaginário nordestino - o oitavo. Enuncia um método de estar inevitavelmente ligado aos outros sete métodos, às outras sete direcções do mundo. Um imaginário que é a direcção de uma cultura específica mas inseparável de uma identidade marcadamente portuguesa que parte, navegando sempre à descoberta do Outro, um Outro Universal.