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8 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE MEDICINA SOCIAL O UMBIGO DA REFORMA PSIQUIÁTRICA CIDADANIA E AVALIAÇÃO DE QUALIDADE EM SAÚDE MENTAL Jubel Barreto Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Saúde Coletiva, Curso de Pós-graduação em Saúde Coletiva – área de concentração em Ciências Humanas e Saúde - do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Orientador: Prof. Dr. Benilton Bezerra Junior Rio de Janeiro 2003

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Jubel Barreto

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção dograu de Doutor em Saúde Coletiva, Curso de Pós-graduaçãoem Saúde Coletiva – área de concentração em CiênciasHumanas e Saúde - do Instituto de Medicina Social daUniversidade do Estado do Rio de Janeiro

Orientador: Prof. Dr. Benilton Bezerra JuniorRio de Janeiro

2003

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CATALOGAÇÃO NA FONTEUERJ/REDE SIRIUS/CBC

B273 Barreto, Jubel.O umbigo da reforma psiquiátrica : cidadania e avaliação de

qualidade em Saúde Mental / Jubel Barreto. – 2003.214f.

Orientador: Benilton Bezerra Junior.Tese (doutorado) – Universidade do Estado do

Rio de Janeiro, Instituto de Medicina Social.

1. Saúde mental – Avaliação – Teses. 2. Políticade saúde mental – Brasil – Teses. 3. Cidadania –Teses. 4. Psiquiatria social – Teses. 5.Epidemiologia psiquiátrica – Teses. I. Monteiro,Mario Francisco Giani. II. Universidade do Estadodo Rio de Janeiro. Instituto de Medicina Social.III.Título.

CDU 616.89-008

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Ao meu neto Antônio, à sua mãe, Mônica; e

aos meus outros filhos: André, Tatiana e Bruno

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“Mon intention ici n’est pas de leur chanter une berceuse, mais seulement d’entrer sur la pointe des pieds et d’observer comment ils ronflent.”

Erving Goffman

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AGRADECIMENTOS:

Ao Benilton, pela sabedoria ao orientar-me e pela amizade de todos esses anos;à Eduarda pela suave perseverança e pelo fogão a lenha do Sinimbu;à Helena, que me abriu os olhos para a dignidade da política; aos professores colegas e alunos na UERJ e na UFJF; aos pacientes, que me confiaram histórias de vida em Porto Alegre, Campinas, Juiz deFora, Ubá, Presidente Bernardes e Senador Firmino;a dona Maria, minha mãe, e meus irmãos;e ao Domingos, Ronaldo, Shirlene, Marta, Renato, Moisés, Cíntia, Áurea, Fabíola e Leo –e também a Marísia e Manfred (in memoriam ) – pela amizade

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RESUMO

Na presente tese pretendo discutir problemas situados na intersecção da clínica dareforma psiquiátrica com a política; destacadamente o das relações entre subjetividade ecidadania. Parto da suspeita de que o conceito de cidadania carece de uma reflexão maisaprofundada e de que as referências a este conceito aparecem obrigatoriamente de formamenos velada nas avaliações de qualidade, que, pela exigência de converter conceitosem indicadores, apresentam-no despido de sua espessa roupagem retórica. Para essadiscussão, ensaio um levantamento geral desta temática em suas conexões com asociologia, a estatística e a epidemiologia, reconstituo a trajetória do conceito decidadania e o percurso da reforma psiquiátrica e, por fim, tento inventariar as vantagens elimitações dos procedimentos de avaliação da qualidade. O fio da argumentação visademonstrar que as avaliações de qualidade deixaram-se enredar numa circularidadediscursiva que lhes reserva algumas armadilhas, sendo a principal delas a dificuldadepara se pensar o acesso à cidadania em termos que escapem aos resquícios ideológicosaderidos às noções de reinserção e reabilitação. Proponho que a recuperação do sentidooriginal do termo cidadania pode nos dar uma premissa valiosa para redescrever aatividade da avaliação e, em certo sentido, enriquecer a nossa reflexão sobre a “novaclínica” da reforma psiquiátrica no Brasil.

Palavras-chave: Cidadania e subjetividade. Avaliação de qualidade. Reforma psiquiátrica.

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ABSTRACT

This thesis discusses the problems which are seen within the interface of psychiatric clinicand politics, mainly the ones concerned with the relation between subjectivity andcitizenship. It departs from the hints that citizenship concept lacks a deeper reflection andthat the references to this concept are obligatorily diluted when evaluating quality which,given the necessity to convert concepts to indicators, present the concept out of its thickrhetoric coverage. To guide this discussion, it is offered a general approach to thisthematic, mainly on its connections to Sociology, Statistics and Epidemiology. As thesecond step, it is presented a reconstruction of the path of citizenship concept and thepath of psychiatric reforms; at the end, it is presented the advantages and limitations of theprocedures involved into quality evaluation. The line for argumentation aims todemonstrate that the evaluations of quality are led to a discursive circularity which has gotmany traps. Among these traps, the most important one is the difficulty to think about theaccess to citizenship in a way that prevents ideological traces, gathered together with thenotions of re-insertion and rehabilitation. It is proposed that the recuperation of citizenshiporiginal meaning can serve as a valuable assert to redefine the evaluation activities and, ina certain way, support and enrich our reflection towards a “new clinic” for psychiatricreform in Brazil.

Keywords: Citizenship and subjectivity. Quality evaluation. Psychiatric reform.

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INTRODUÇÃO:

ENTRE A CLÍNICA E A POLÍTICA

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Zelar pela preservação de uma esfera pública num momento em que

se teme que só a maré dos fundamentalismos e outras formas regionalizadas de

totalitarismo venham a ter fôlego para resistir ao esvaziamento da política sob a

mão de chumbo do discurso único é, certamente, uma das tarefas mais urgentes

aos que pretendem ocupar o “público” como, na expressão de Arendt,

significando o próprio mundo que, a um só tempo, nos separa e reúne e sustenta

as possibilidades relacionais em que emerge o novo e ativa-se a roda da história.

Uma ampla e contraditória variedade de fundamentalismos deixa a

vaga impressão de que já não há como saber que rumo tomar no mundo em que

vivemos. Mas pode também ser interpretada como tentativas agonísticas de

resistência para manter agrilhoada uma imagem de mundo prestes a esfacelar-se

para que o mundo possa ser reinventado. Com a dispersão de linhas que o

caracterizam, o afresco formado pelos movimentos feministas e das minorias

permitem antever que do turbilhão da modernidade pode surgir uma sociedade

nova. Seria também novo e mais digno de se viver um mundo recriado sem a

segregação da loucura.

É curioso e alvissareiro verificar o fortalecimento da idéia de se fazer

da Reforma Psiquiátrica, no Brasil e em outras partes, um projeto propulsor da

cidadania, estendendo-a aos confins de uma região relegada pela racionalidade

moderna à margem da vida da pólis: a loucura, destacada como condição em que

a razão, requisito primeiro à contratualidade que rege as relações entre pessoas e

as eleva à condição de cidadãs, estava ausente.

Não é agora o momento de examinar os numerosos estudos e valiosos

argumentos já apresentados para contestar esta cláusula impeditiva. É outro o

alvo desta tese. No esforço de tentar fazer caber toda a ramagem das

elaborações conceituais na caixa de indicadores, as avaliações inevitavelmente

operam uma ”desidratação” dos conceitos de modo a revelar com mais nitidez o

precipitado de componentes estáveis e irredutíveis sempre inerentes aos termos

que os definem. Esta é a razão por que devo invocar reiteradamente as

categorias das avaliações como uma espécie de croqui do qual se pode destacar

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um ou outro elemento a ser detalhado.

A questão da cidadania do louco não é tratada pela Reforma

Psiquiátrica como algo que vem por acréscimo ou como corolário de uma

renovação no plano das técnicas clínico-assistenciais, mas está situada no

coração do novo quadro teórico e prático que a anima. Por trás da aparente

trivialidade dessa idéia insinua-se a força da experiência que é manancial do que

é novo e faz do pensamento uma atividade incessante do repensar buscando

experiências em vez de doutrinas.

O convite a pensar diferente, que tanto fascínio exerceu sobre

Foucault, e cujo preço é ter de se desfazer, como Penélope, a cada manhã, o que

se teceu na véspera, ainda é o remédio que reúne o melhor das nossas

esperanças contra a ameaça sempre presente da sobrevivência de resquícios

totalitários nas formas de convívio não-totalitárias e que ressurgem como flores

banais no jardim das certezas. A qualquer tempo é possível a certeza das boas

intenções como justificativa para esmagar alguma conquista que torna mais digna

de ser vivida a vida humana; por isso é que as certezas podem ser perigosas.

Assim já se justificou que a certeza do bem coletivo autorizasse a

saúde pública a suspender direitos individuais. Fortalece-se, felizmente, a

convicção de que uma condição fundamental para o êxito das políticas de saúde

mental (e, certamente, das políticas de saúde em geral), no contexto dos regimes

democráticos, é a superação das tensões entre a promoção dos direitos humanos

e os programas tradicionais de saúde pública.

Esta não é, todavia, uma tarefa fácil, especialmente se se considera

que os modelos adotados para a implementação de programas de saúde pública

freqüentemente acarretaram, em maior ou menor grau, medidas de caráter

coercitivo que resultaram em violação ou restrição dos direitos individuais em

favor do que se considerou o benefício coletivo. A famosa “revolta da vacina”, há

quase cem anos, na antiga capital da República, ficou registrada como o evento

que, do modo mais paroxístico, desnudou essas tensões. Revelou que, se,

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apesar de tudo, a suspensão dos direitos individuais não podia ser facilmente

tolerada, os novos modelos assistenciais, destacadamente um novo modelo de

assistência em saúde mental, teriam de considerar que o pleno exercício dos

direitos humanos – ou, na clássica categorização de Marshall, os direitos sociais,

civis e políticos constitutivos da cidadania – é indissociável da fruição do bem-

estar individual e coletivo, delineando-se, portanto, um horizonte para as ações de

saúde em que, parafraseando Norberto Bobbio, os direitos inerentes à cidadania

se tomam não como um problema situado no âmbito da filosofia ou da medicina,

mas como problema político.

A loucura, em qualquer de suas expressões, desde as reconhecidas

como comportamento situado nos confins do não-humano até os transtornos mais

brandos (dependendo da tolerância de quem os julga), tem uma trajetória secular

de discriminação e exílio da vida em comum dos tidos por normais, exílio que, de

forma mais clara ou velada, tenta ainda ser legitimado, como nos recentes

desdobramentos traduzidos em tentativas de se restaurar o hospital psiquiátrico

como espaço de tratamento e recuperação, invocando-se astuciosas distinções

(que, exceto como recurso didático, a história desmente) entre hospital

psiquiátrico, manicômio e asilo, como se tais sutilezas pudessem abolir a

necessidade de uma inversão radical da lógica que havia marcado de ignomínia e

opressão o itnerário da instituição psiquiátrica.

O desafio a ser superado na nova política de saúde mental e da nova

clínica, que se pretende construir, aliada da cidadania, não é o da negação

romântica da realidade da loucura, mas o da constituição de novos cenários de

negociação entre a normalidade e a loucura, da promoção do respeito social à

diferença, da expansão das oportunidades de acesso de todo indivíduo à

condição de sujeito político, a substituição de todos os modelos de assistência

apoiados na lógica da discriminação por dispositivos múltiplos, territorializados e

referidos às especificidades locais e a construção de novos espaços de

sociabilidade e de inclusão. Trata-se, em suma, de desautorizar o discurso

psiquiátrico como regulador ativo da marginalidade social e de substituir os

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processos de exclusão social da loucura pela criação de lugares novos para a

sua inserção.

Objetivos tão ambiciosos que inspiram os projetos das novas redes

assistenciais e das novas modalidades de cuidado e atenção não teriam a

esperança de cumprir-se sem colocar em xeque a própria noção de loucura,

rebatizada de doença mental, tal como a cunhou a psiquiatria canônica; não para

que se negue a sua existência, mas para que se dê conta de uma experiência

muito mais complexa do que a contida no tradicional conceito de desvio cognitivo-

comportamental, noção que, ou justifica e fundamenta a permanência do “modelo

manicomial”, ou autoriza a sua “modernização” pela manutenção de uma lógica

de aparatos, códigos e estruturas que fariam dos novos programas e serviços

mera extensão daquele modelo às estruturas dispersas no ambiente “extra-

hospitalar”.

Na concepção que deve servir de ferramenta epistemológica para a

nova rede assistencial a loucura (ou doença mental) não é entendida como um

mal obscuro que afeta as pessoas, mas como um fenômeno complexo e histórico

em estado de não-equilíbrio, cuja demanda, na expressão de Franco Rotelli, não

é por uma clínica que persiga a solução-cura, mas a emergência de vida, de

sociabilidades, e de subjetividades (Rotelli, 1992).

Alusiva ou explicitamente, a questão da cidania é o rio que corta toda

essa paisagem. Não estamos, no entanto, muito familiarizados com o exame mais

rigoroso das categorias políticas que incluem o conceito de cidadania, razão pela

qual o comparecimento deste termo nos textos disponíveis acerca da Reforma

Psiquiátrica e de saúde mental costuma vir envolvido de espessa retórica e rala

fundamentação.

É a cidadania que se tem em mente quando se empregam termos

como autonomia, reinserção, contratualidade, empowerment, competência social,

etc. É o “nível” de cidadania o que se pretende muitas vezes medir nas avaliações

de qualidade de serviços e programas de saúde mental nos moldes da Reforma

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Psiquiátrica.

1. Avaliações de qualidade e autonomia

As avaliações de qualidade destes programas e serviços oferecem-

nos a vantagem, como qualquer avaliação, de traduzir conceitos em indicadores

e, ao fazê-lo, tem de despi-los ao máximo de todo adorno retórico para apresentá-

los como que em estado bruto, revelando-os desse modo mais visíveis, mais

nítidos e distintos. A tarefa que me proponho pode ser resumida na tentativa de

verificar se o conceito de cidadania, claro ou subjacente às avaliações de

qualidade, foi suficientemente depurado de seus efeitos retóricos, de sua

conformação pelo senso comum ou até do viés ideológico, podendo ser admitido

como instrumento que efetivamente permita avaliar e compreender o trabalho que

se faz.

O conceito de autonomia talvez devesse ser novamente examinado

para reconciliar-se com a riqueza e o brilho da constelação de sentidos que evoca

como dimensão poiética, criadora e indedutível. Ele nos abriria as portas para

tornar menos nebulosa a suposta passagem da liberdade da esfera do sujeito, fim

da psicanálise, para a esfera do cidadão, fim da política. Mas, nesse caso,

teríamos de admitir que o conceito assim recuperado haveria de revelá-lo

irredutível e, portanto, refratário a toda tentativa de matematização, de

formalização ou de inclusão em qualquer tipo de conjunto, vedando, por definição,

qualquer enunciado que o decomponha em fatores ou indicadores que autorizem

a avaliar sua presença. Temo que esta decisão possa significar uma ducha de

água fria no caldeirão dos modelos, métodos e indicadores em que se busca o

ponto certo ou a massa crítica do avaliável.

Se a modernidade, ou modernidade tardia, como podemos nomear a

época em que vivemos, refere-se a certa conformação de estruturas de

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instituições e modos de comportamento, será necessário examinar as tecnologias

empregadas, seja para segregar, seja para incluir a experiência da loucura,

considerando-as de uma posição que torna impossível qualquer posição de

exterioridade (o que não inviabiliza uma postura crítica “de dentro”) em relação ao

continente socio-histórico em que estamos confinados. Afirmá-lo nesses termos

significa dizer que não há instância ou referência a ser encontrada “fora” e que

não há um pensamento que permita reordenar as condições da modernidade que

não esteja também ele condicionado pela própria modernidade, sendo não só

ingênua como enganosa a suposição de um discurso que a transcenda e possa

“de fora” julgar tais procedimentos, por mais que certos quadros referenciais

(como, por vezes, a “ciência” ou a psicanálise) pareçam ter a pretensão de fazê-

lo.

Este propósito me leva a posicionar-me numa encruzilhada que indica

caminhos de direções muito diversas, o que inevitavelmente comporta o risco de

ir demasiado longe por alguns deles ou fazer um percurso mais contido do que

conviria em outros. De todo modo, espero que os poucos leitores destas páginas

não se sintam desencorajados pelo receio de se virem atraídos a andar em

círculos por um labirinto. Meu ponto de chegada deve ser a defesa de um ponto

de vista segundo o qual das avaliações de qualidade não se deve esperar mais

do que podem cumprir. Isto não significa rebaixar a avaliação de qualidade a um

pobre e triste inventário de problemas e intervenções distribuídos dentro de

rígidas tabelas. Creio que estas avaliações continuam sendo importantes, até

mesmo imprescindíveis, mas – este é o ponto essencial do argumento - creio

também que são desejáveis pelo que são, assim como são desejáveis as amoras

que se saboreiam da amoreira e não do pessegueiro. A ninguém ocorreria utilizar

os equipamentos de radiografia adaptando-os a obter imagens de tomografia, o

que não significa negar que a radiografia continua a ser um recurso de informação

diagnóstica valioso e desejável.

Uma advertência deve ser feita em relação ao que se entende por

reforma psiquiátrica, um campo conceitual sujeito a interpretações variadas e até

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divergentes. O uso corrente do termo “reforma” autoriza a sua interpretação numa

acepção limitada por implicar, tradicionalmente, a idéia de mudanças mais ou

menos superficiais que não atinjam o âmago do que é modificado. Esta é uma

interpretação que, na verdade, pode recobrir apropriadamente uma larga

extensão de experiências no campo da assistência psiquiátrica, traduzida em

termos como reestruturação, modernização, aggiornamento, etc., que, de modo

geral, restringem-se a modelos de inovações no plano técnico-assistencial

(Amarante, 2001). Não será, entretanto, este o único nem o principal sentido em

que a expressão será tomada, de modo geral, na presente reflexão.

Na verdade, a expressão surgirá aqui com dois sentidos. Servirá para

remeter tanto a um movimento, uma espiral mais ou menos contínua traçada por

um movimento de renovação do setor psiquiátrico (situação em que o termo

reforma pode ser entendido no seu sentido mais estrito), quanto a uma inflexão

específica deste movimento que o radicaliza e o impele para além das fronteiras

que demarcaram e formaram os pilares do saber psiquiátrico e da própria

constituição da psiquiatria como sistema de teorias e como prática social acerca

de um objeto, ele próprio colocado em xeque. Abarca, nesse sentido, mais do que

uma dimensão técnico-assistencial, uma dimensão epistemológica e também uma

dimensão cultural de reinscrição da loucura e de fundação de um lugar social para

a diferença que ela encarna (Amarante 2001).

Para a realização deste sentido, em que o termo “reforma” pode

convir mais por motivos estratégicos do que para designar sua radicalidade, que

seria mais bem definida como “revolução”, é que considero essencial uma

reflexão mais detida sobre o que é a política, sobre o sentido da política e do

agente que a institui, o cidadão. De certo modo, o problema central deste trabalho

consistirá em buscar chão firme no terreno movediço em que se cruzam as linhas

da clínica e da política. Neste terreno é que se edifica a “urbe”, no sentido que lhe

davam os romanos, de lugar em que o cotidiano da “civitas” eleva-se à dimensão

trágica de incessante refundação. Ou, para retomar a metáfora freudiana, o ponto

preciso em que se forma o “umbigo” da reforma psiquiátrica.

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2. O percurso

Devo agora anunciar o trajeto a ser percorrido:

O capítulo I deverá, em certa medida, prolongar a presente

introdução levando adiante o mapeamento do terreno a ser explorado e

oferecendo um esboço de quadros de referência para o conjunto da reflexão

desenvolvida adiante. Terá, portanto, um caráter que suponho panorâmico e

inevitavelmente fragmentário e impreciso. Mas espero que isto não o condene a

provocar à sua volta um tipo de ruína parecido com o que advém do que o

eufemismo belicista costuma chamar de “danos colaterais” das bombas não tão

inteligentes como se propala, embora mais inteligentes do que os que ordenam

que sejam lançadas.1

Neste capítulo devo transitar do mundo da política ao cenário da

reforma psiquiátrica realçando o que faz deles elementos em posição de

polaridades traduzidas em termos como privado e público, subjetivo e objetivo,

clínica e política. Tenho em mira sugerir que o sintagma “subjetividade cidadã”, tal

como se apresenta, encerra uma aporia que o torna auto-excludente ou, a se

confiar numa hipótese mais otimista, obriga-nos a revê-lo em profundidade e

extensão. Sugiro que persiste uma confusão de lugares apoiada na crença de

uma falsa antítese que só possibilita o avolumamento de qualquer dessas esferas

(pública e privada) às expensas da outra, mas que, se se recupera a

indissociabilidade do individual como expressão do social (o indivíduo humano só

existe como socializado), redescreve-se o problema de modo a tornar não-

contraditória a expressão sujeito-cidadão. Temo que, ao lidar com essas

ferramentas conceituais, as avaliações de qualidade embaralhem os termos e os

tornem mais obscuros, forçando aproximações de noções que se sedimentaram

1 Enquanto escrevo Bagdá está sendo implacavelmente bombardeada pela força aérea dos EUA.

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segundo vetores de cristalização em posição de afastamento recíproco.

Se o conseguir, tentarei nesse primeiro capítulo uma visão de conjunto

que dê indicações da relativa inconsistência de nossas apostas no esforço para

se encontrar um modelo que traga à luz algum parâmetro definitivo e até agora

oculto para nortear a construção de indicadores, caracterizando uma “síndrome”

cujos elementos componentes são a “nostalgia do referente” e a “corrida aos

indicadores”. A importância dessa atenção aos processos avaliativos reside na

oportunidade especial que esses procedimentos nos dão para explicitar

concepções que, ou são negadas, ou permanecem camufladas em vagas

teorizações sobre as relações entre loucura e política.

Esta é a razão por que as questões levantadas pela persistência da

condição de crônico e pelo surgimento de uma nova cronicidade serão

enfatizadas. Apresento a cronicidade como uma “exclusão dentro da exclusão”,

elegendo-a como “sintoma” que denuncia a incongruência de se reivindicar a

inclusão enquanto se pratica uma forma nova, branda e camuflada (ainda que

inintencional), de exclusão. Mais censurável do que ter de conviver com a

exclusão representada pela cronicidade é a relutância em admiti-la e o arremedo

de cidadania com que se maquiam grupos de crônicos com contrafações de

autonomia.

O capítulo II será dedicado a investigar quanto do discurso sobre a

avaliação da qualidade deve-se às mudanças observadas no plano das políticas

sociais derivadas de re-arranjos na própria concepção do papel do Estado,

levantando a suspeita de que o ímpeto de teorizações sobre a avaliação da

qualidade pode, em certa medida, pautar-se pela inclinação a transformar

necessidade em virtude. A idéia que serve de bússola para nortear essas

considerações é, naturalmente, a idéia foucaultina de que não há conhecimento,

de um lado, e sociedade, do outro, mas as formas fundamentais de poder-saber.

Há, no mínimo, uma polarização fonte de mal-estar, se não de

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incompatibilidade, entre os objetivos de busca de mensurações avaliativas,

procura de resultados tangíveis e de julgamentos de rentabilidade, que

interessam à autoridade administrativa e que se apoiam no legado mais

tradicional e respeitável da pesquisa científica, e um outro conjunto de objetivos,

mais difusos, imprevisíveis e avessos a sistematizações de dados e resultados,

envolvendo acasos, novidades e efemeridades da expressão subjetiva. Sugiro

que na superfície discursiva se possam captar as “faixas de freqüência” em que

se tornam audíveis os murmúrios de torções havidas no nível mais profundo.

Creio que a principal deficiência em relação a este problema está

precisamente na ambigüidade com que se tenta denegar o painel das condições e

propósitos inerentes aos processos avaliativos ou no propósito de “corrigi-lo”, o

que se deve em larga medida, segundo creio, a um desconhecimento da política

ou a certos preconceitos que contaminam as teorizações sobre a política com

base numa visão depreciada da “coisa política” tal como concretamente se mostra

no emaranhado de influências, ingerências e toda sorte de comportamento da

realpolitik. Prefigura-se aqui a pertinência de uma “genealogia”2 da cidadania que

contribua para dissipar essa névoa do entendimento.

Na segunda parte deste capítulo pretendo embrenhar-me numa

investigação sobre as mudanças de curso no pensamento epidemiológico, por se

constituírem, evidentemente, a estatística e a epidemiologia, as matrizes de toda

reflexão sobre as avaliações em saúde. Será do maior interesse tentar visualizar

as estratégias utilizadas pela epidemiologia diante do dilema de reduzir o seu

objeto ao leito de Procusto das suas exigências de método ou remanejar o seu

quadro epistemológico de modo a adequar-se às errâncias de um “objeto”

teimosamente inexato.

Já se inscreveu como um lugar-comum a caracterização da

modernidade tardia como a da sociedade dos riscos, uma forma especial de se

2 Emprego o termo “genealogia” na acepção que lhe deu Foucault, significando um método que serefere a forças e articulações do poder associadas a práticas discursivas, isto é, àquilo que reúnesistemas de verdade e modalidades de poder (Davidson, s/d)

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traduzir a situação a que Giddens refere-se como “colonização do futuro”. Esta

inflexão em direção à análise dos riscos marca profundamente o perfil de uma

nova episthemé no terreno da epidemiologia com nítidas ressonâncias sobre o ato

clínico e, conseqüentemente, sobre a avaliação da clínica tomada em conjunto.

São evidentes as influências dessa cultura do risco nas novas formas de

subjetivação e inevitáveis as suas repercussões nos métodos de avaliação em

saúde mental, cujo efeito mais notável é a valorização da idéia de eficiência

subjacente ao programa de promoção da cidadania como capacidade, antes que

como direito.

O pensamento de Hannah Arendt, até onde pude alcançá-lo, será a

fonte de inspiração para o capítulo III. Pretendo aí desenvolver uma reflexão

sobre os conceitos de cidadania e política, atento às ressonâncias que os

conceitos de espaço público, como lugar da palavra, da ação e da liberdade,

projetam sobre o plano da clínica e da forma como se opera com o conceito de

subjetividade. Ênfase especial será dada ao fato de “o cidadão” e “o sujeito”

serem produtos de uma decantação semântica que os situa em registros não

apenas diversos, mas opostos.

Será um capítulo dedicado a refletir sobre as relações entre o

indivíduo e o espaço público, sobre as vicissitudes por que atravessa a

construção do cidadão como categoria que eleva o indivíduo à sua condição de

partícipe nas decisões e tomadas de rumo coletivos e, até onde nos autorizam as

generalizações, a traçar a trajetória da cidadania no Brasil. A imagem holográfica

que se insinua nesses desenvolvimentos é a de que ainda carecemos de

instrumentos conceituais para a elaboração de um projeto genuinamente

brasileiro para a reforma psiquiátrica e a de que uma certa aversão à política

torna esse projeto refém de uma militância ainda muito aderida a “pacotes

axiomáticos” e a brotoejas intelectual-corporativas.

Tenho a esperança de que esta reflexão convide-nos a também

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repensar as distitinções e os pontos de conexão entre a sociedade e a política,

autoridde e poder, ação política e comportamento social.

Ainda no mesmo capítulo devo ocupar-me da condição do sujeito e do

cidadão no contexto que, com raízes que remetem a Michel Foucault, desenham

o mundo da contemporaneidade como lugar de apagamento de fronteiras pela

intervenção do que se denominou biopolítica. Isto talvez nos facilite a tarefa de

desmontar uma vulgar despolitização do político pelo voluntarismo dos “bons

sentimentos” ou por uma abusiva psicologização do político e situar em novo

patamar o que Derrida propõe como psicanálise do político.3

O foco do capítulo IV será a Reforma Psiquiátrica no Brasil. Será

indispensável retraçar em passadas largas a trajetória da Reforma Psiquiátrica,

mas sem ter de percorrê-la com a mesma profundidade e meticulosidade com que

o fez, de forma mais consistente do que eu próprio conseguiria, uma literatura

bastante acessível aos interessados. Ainda assim, devo explanar sobre a

formação dos serviços e implementação de programas, considerando

implicitamente a legislação que os regula e, tanto quanto puder fazê-lo recorrendo

a relatos e à minha própria experiência pessoal, apresentar o cotidiano desse

trabalho, as intenções que o animam, os embates que o constrangem, os

interesses que o fendem e as perplexidades em que se enreda.

Na pré-história dos movimentos de reforma assistencial no Brasil

encontram-se alguns traços distintivos de um vasto programa de reforma

assistencial contido num projeto ainda mais amplo de construção de uma

identidade nacional em que fatores como a imigração e a miscigenação, aliados à

penetração da ideologia positivista, resultaram numa engenharia social de higiene

mental a que não eram estranhos o viés racista e os propósitos de purificação

racial. Seria interessante investigar se nas descontinuidades entre essa herança

do Brasil Colônia e das primeiras décadas da República ter-se-ia operado um

3 “Derrida no Rio”, de Leyla Perrone–Moisés, publ. in Folha de S. Paulo (Caderno “Mais”), 08.07.01.

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recalque que, de algum modo, pode dissimuladamente retornar na fixação de

padrões implícitos de socialização.

Não é fácil isolar as principais linhas de força que recortam um campo

tão heterogêneo no que concerne às estratégias, extensão e alcance do projeto

reformista no Brasil em seus desdobramentos atuais. Na tentativa de melhor

apreendê-lo devo destacar a influência das concepções sociogenéticas acerca da

doença mental, a progressiva (ou previsível) ocupação desse campo pela

psiquiatria de orientação biológica e, sobretudo, a forte presença da psicanálise,

cuja reivindicação de hegemonia imprime uma configuração peculiar ao tema da

política, resvalando por vezes a uma abordagem maniqueísta que desqualifica o

político por efeito de uma arrogação do monopólio da ética e de uma apropriação

peculiar da dimensão simbólica da Lei numa acepção supostamente lacaniana.

Feito esse percurso, creio que terei erigido a plataforma em que pode

firmar-se a argumentação sobre os fundamentos da avaliação de qualidade, tema

a que será dedicado o capítulo V. Não deverei imprimir maior destaque aos

problemas que comumente povoam a reflexão sobre a avaliação de qualidade,

como inovação de modelos teórico-metodológicos, construção de indicadores,

etc. Devo aqui repetir o mesmo procedimento adotado no capítulo IV sobre a

história da Reforma Psiquiátrica e pelas mesmas razões. Neste ponto o meu

interesse estará focado em algumas perguntas simples, mas relevantes: É

possível – e desejável – uma avaliação de qualidade em saúde mental? É

imprescindível que tenha valor científico? Em que medida o discurso sobre a

avaliação de qualidade, acatando ou insurgindo-se contra eles, persevera referido

aos parâmetros tidos por científicos? Para que serve a avaliação de qualidade?

Em relação à primeira pergunta imagino que a resposta deve ser

consensualmente positiva, mas esse consenso se desfaz quando se trata de

responder às outras perguntas. A invocação de critérios de cientificidade já

acarretou muita polêmica e dores de cabeça para a psicanálise e as ciências

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humanas em geral, e com o mesmo impacto encurralou as teorizações e

incursões metodológicas no campo da avaliação. Diante dos impasses surgidos, o

discurso da revolução de paradigmas prosperou acenando com promessas que,

mesmo se cumpridas, não parecem ter saneado por completo a nostalgia da terra

prometida em que corre o leite e o mel da verdade do Prometeu científico. Posso

conjeturar que a avaliação de qualidade serve para nos dar menos do que aquilo

que se cobra dela e pode servir para nos dar mais do que tem dado se lhe

cobrarmos menos do que lhe temos cobrado.

Em relação ao discurso da avaliação de qualidade ainda está por ser

feito um estudo que o considee autonomamente, isto é, tomá-lo como um saber.

Conviria seguir o método arqueológico de Foucault e desvendar as linhas que o

constituem como conjunto de enunciados que se inter-relacionam para,

surpreendendo-o na encruzilhada de outros discursos, vislumbrar certas regras de

formação e circulação de práticas discursivas.

Sem pretender chegar ao extremo de dizer que se fez muito barulho

por nada, tenciono poder concluir que muito do vozerio sobre substituição de

paradigmas, por exemplo, acaba por congestionar em excesso esse campo, que,

na verdade, cumpriria perfeitamente bem (talvez melhor) suas finalidades sem

uma carga argumentativa tão pesada para a sua justificação epistemológica.

No capítulo de conclusão devo propor que a problemática da

avaliação de qualidade em saúde mental seja redescrita e formulada em termos

diversos dos vigentes. Tenho a esperança de que isto nos propicie alguns

ganhos. O maior deles consistiria em poder espanar a poeira acumulada pela

circularidade discursiva que o ronda. O outro ganho – que considero mais

importante, embora não esteja seguro de obtê-lo – é o de deixar uma idéia ou

duas que contribuam para que a reflexão e a prática em saúde mental possam

distinguir com nitidez o que é repetição do que é recomeço. E tenha uma

oportunidade, pequena que seja, de reconciliar-se com a sua vocação de

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recomeçar.

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CAPÍTULO I:

BEM-AVENTURADOS OS EXCLUÍDOS?

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1. Estado e políticas sociais

Aos pobres deste mundo a modernidade pouco ofereceu em

pagamento à sua assustada esperança. Tinham antes uma alma espiritual a

quem havia sido prometido o consolo para depois da morte que traria a

recompensa de todas as promessas negadas em vida. A modernidade fez

desmanchar-se no ar este penhor de salvação e encarregou-se de oferecer em

troca do Universal transcendente o Universal imanente no mundo como o novo

refúgio esperado para as dores da vida. O que sobrou desta alma foi

ressignificado como mente, psique ou inconsciente e tornou-se assunto para

especialistas, entre eles os técnicos em saúde mental. Ao reino do céu veio

contrapor-se o Estado, a quem, na concepção de Hegel, caberia a tarefa de

humanização da selva hobbesiana (Heller, 1995).

A doença e o sofrimento deixaram de ser vistos como a provação que

Javé reservara a Jó para serem encarados como sombras remanescentes da

barbárie do estado de natureza a serem dissipados sob a luz da Razão, promessa

de realização do Espírito pela aliança benevolente entre o Estado previdenciário e

a competência dos Especialistas. Dessa aliança, que Foucault diz ter-se

celebrado como “física política” no ponto de encontro do poder e do corpo, nasceu

o sujeito psicológico como avesso de um processo de sujeição (Foucault, 1997).

Muito antes de ser moderno, no entanto, como assinala H. Arendt, o

Estado, como expressão e garantia do exercício da política, já havia perdido as

suas funções de instaurar, como na pólis grega que o havia concebido, um

espaço público de geração da palavra plural e dos feitos humanos no reino da

liberdade, deixando-se engolfar pela societas, lugar situado entre o privado e o

público, palco de produção e de trocas regido pelas necessidades humanas

(Arendt,1998).

A sociedade, por seu turno, foi gradualmente expandindo-se aos

limites dos interesses dos negócios humanos, daí resultando uma configuração

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do Estado identificado como primordialmente mediador da atividade econômica e

da acumulação capitalista com um projeto ordenador que bifurcou o destino da

grande massa de indivíduos entre a fábrica e o cárcere.

Os dois grandes projetos utópicos moldados no século XIX para

refazer as fundações do Estado e zelar para que o trabalho não se exaurisse por

inteiro em mercadoria fracassaram. O projeto mais radical veio a degenerar-se no

socialismo real do estalinismo e ruiu com estrondo, soterrando os sonhos de uma

sociedade solidária e sem o fosso entre exploradores e explorados. O projeto do

welfare state, em posição de antagonismo mais brando, também não mostrou

fôlego suficiente e dá inconfundíveis sinais de esgotamento (Plastino, 1996).

Para as políticas sociais prenuncia-se a mera assimilação às injunções da lógica

do mercado. É neste cenário adverso que o projeto da reforma psiquiátrica tem a

delicada incumbência de constituir-se em redes públicas para intervir não apenas

no plano do aggiornamento técnico-assistencial, mas como instrumento de

inclusão de um dos contingentes mais vulneráveis aos mecanismos de exclusão

inerentes à lógica hegemônica na nova configuração vigente do Estado.

O gesto mítico de Pinel acabou por desacorrentar a loucura de um

esquecimento no porão em que se misturava a todo gênero de deserdados para

lançá-la em outro tipo de esquecimento, segregando-a a uma circunscrição longe

dos olhos do público e sob o encargo de especialistas. A segregação teria sido a

estratégia que refletiu, menos do que uma “intensificação da consciência da

loucura”, como a apresenta Foucault, um dos movimentos de segregação da

experiência do desvio inventada pelos “sistemas internamente referidos da

modernidade” ao demarcar os ambientes de correção técnica para o controle

regular da vida cotidiana do lado de fora (Giddens, 2002).

A psicanálise teria trazido uma luz nova para despertar a loucura do

sono de chumbo que uma tradição já secular da psiquiatria lhe havia reservado,

mas absteve-se no início de insurgir-se contra o espesso silêncio em que a

continham os muros do asilo. Partilha com os projetos que aliam subjetividade e

cidadania o mesmo objetivo emancipatório que toma como evidência que um

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projeto de sociedade autônoma só tem sentido se for também um projeto que faça

surgir indivíduos autônomos, isto é, capazes de atividade refletida e de

deliberação (Castoriadis, 1992). Sua influência, contudo, só ganhou vigor mais

tarde, quando novas formas de análise das instituições e do poder e a

problemática aproximativamente rotulada de dispositivos do controle social, como

assinala Castel, vieram à tona (Castel, 1987). Ainda assim, apoiada numa

alegada neutralidade em relação à crueza da arena política, a psicanálise

manteve por bom tempo uma distância prudente, limitando-se a abastecer os

primeiros reformadores de referências para experimentarem mudanças que não

chegavam a abalar os pilares de uma lógica ainda fundada na delegação

outorgada à psiquiatria e suas técnicas.

A psicanálise certamente não teria tido a influência que veio a ter

nesse encadeamento de mudanças se não houvesse antes se espraiado por

outros domínios da cultura, e só com alguma relutância veio a afirmar a sua

presença nos serviços assistenciais, instituídos ou mantidos pela gestão pública.

Quando muito, as instituições psicanalíticas observavam a uma condescendente

distância alguns psicanalistas arregaçando as mangas.

No cotidiano desses serviços, a presença institucional da psicanálise

continua rodeada de problemas. Ironicamente, a sua linha de pensamento

eminentemente emancipatória abriga obliqüidades de formação profissional quase

sempre cheias de reservas quanto a mergulhar nas águas turvas das instituições

públicas, por força de uma ideologia psicanalítica à qual não é estranha uma certa

modalidade de relação fetichizada com a teoria, cujo ponto cego é o não-

reconhecimento da pertença da psicanálise à sociedade e à história (Castoriadis,

1987).

O ímpeto reformista inicial, como se sabe, tendo privilegiado como

alvo de desestabilização as condições de segregação e abandono do portador de

doença mental, não ia além das propostas de novas técnicas de intervenção que

não poriam em xeque o objeto doença mental e, menos ainda, a necessidade de

dispositivos e instituições especializadas segundo os parâmetros da tradição

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psiquiátrica, ainda que diluídas no tecido social. É verdade que, ainda nos

primórdios dos movimentos de reforma, a corrente da antipsiquiatria inglesa

ensaiou uma crítica mais radical aos pressupostos da clínica psiquiátrica, mas

também é verdade que não mostrou consistência suficiente para multiplicar-se na

trama do sistema assistencial, embora muitas de suas contribuições estivessem

destinadas a serem retomadas em novos contextos.

A penetração da psicanálise seguiu, por sinal, uma trajetória

curiosamente sinuosa desde uma posição inicial de hostilidade recíproca em

relação à psiquiatria e às propostas reformistas até a sua integração e

reivindicação de hegemonia nos projetos de aggiornamento do setor. Do conforto

e das virtudes da neutralidade de sua prática em relação ao aparelho do Estado,

tradicional aliado da psiquiatria, atraiu o movimento reformista a repolarizar a

radicalidade de suas propostas deslocando nelas a ênfase da reforma político-

administrativa e de reorganização da rede assistencial em direção ao projeto de

uma nova clínica, mais sofisticada, em que a escuta é revalorizada não como uma

série de relatos que põem de manifesto os fenômenos da vida psíquica aos

ouvidos experimentados do médico, mas como o que fornece os indícios de uma

“outra cena” à qual se tem acesso pelos caminhos sutis da transferência.

No Brasil, o convívio entre psicanálise e projeto de reforma suscitará

uma alquimia ainda mais original do que, por exemplo, no programa da psiquiatria

de setor francesa (como veremos adiante), em virtude da forte pregnância do

ideário político de esquerda, herdeiro da tradição comunista italiana nessa

empreitada e, por outro lado, da crescente demanda por formação psicanalítica

dos novos psiquiatras e, sobretudo, pela maciça ocupação do setor por

psicólogos de formação lacaniana .

Sem nos determos por ora nos caminhos alternativos percorridos pelo

movimento da reforma, proponho admitirmos que o modelo de reforma

psiquiátrica inspirado na psiquiatria desinstitucionalizante italiana é

hegemonicamente adotado no Brasil. Talvez o seja mais pela tônica da legislação

dada ao setor e pela visibilidade da sua militância que pelo volume real de sua

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presença, pois esse é uma campo teórico-prático marcadamente heterogêneo4 .

De todo modo, esta importante vertente da Reforma Psiquiátrica tem a ambição -

no que se distingue, por exemplo, dos modelos preventivistas americanos, das

comunidades terapêuticas de estilo inglês e também da psiquiatria de setor e da

psicoterapia institucional francesas - de transcender o plano das reformas da

técnica assistencial para alcançar mudanças muito mais radicais no plano da

cultura e no próprio remapeamento dos espaços da loucura e da cidadania,

assegurando à loucura um lugar social na nossa tradição cultural (Birman, 1992)

e, portanto, atraindo a questão da política para o interior do projeto terapêutico

As relações, friso-o com o risco de parecer redundante, entre o projeto

da reforma e o que é tido como o mundo da política de modo algum restringem-se

aos problemas da gestão dos serviços ou às suas modalidades de apreensão na

esfera do interesse público, situando-se no plano da própria concepção do

universo político, o que eleva a medida de amplitude de acesso do louco ao

espaço público à dignidade de indicador do êxito ou fracasso do próprio projeto

terapêutico. O projeto da reforma não abdica, conseqüentemente, de participar de

um grande conjunto de projetos sociais cuja finalidade é traçar e reinventar o

político, prisma sob o qual a extensão em que o louco desfruta das prerrogativas

próprias do cidadão daria a medida da qualidade do serviço prestado.

2. Avaliação de qualidade

Ocorre que as avaliações de qualidade dos serviços e programas de

saúde mental têm entre os seus objetivos o de nos indicar em que medida esse

trabalho de inserção no jogo do espaço público é bem sucedido, em que medida

expressa um trabalho de Sísifo ou em que medida legitima um dos focos de

resistência à onda incessante de novas modalidades de totalitarismo que, na

4 Em Juiz de Fora, MG, por exemplo, cidade onde resido, implantou-se um Sistema Municipal deSaúde Mental com um projeto reformista que consiste numa rede relativamente sofisticada, mas deorientação estritamente limitada à modernização assistencial, fortemente hierarquizado, piramidal,com rígidos critérios de referência e contrarreferência e um meticuloso protocolo técnico de condutas.

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visão de Hardt e Negri, assumem hoje a forma da sociedade mundial de controle

que “regula a vida social por dentro, acompanhando-a, interpretando-a,

absorvendo-a e rearticulando-a” no mercado global (Hardt e Negri, 2001).

Todavia, nas redes de serviços de saúde mental, implantadas ou em

vias de implantação, formou-se já um consenso, para se conhecer o que se faz,

sobre a importância da aplicação de pesquisas de avaliação de qualidade. Muito

se discute sobre a adoção de modelos e a construção de indicadores, mas até

onde sei, ainda não se aprofundou suficientemente a reflexão sobre a natureza

destas avaliações, as razões de sua reivindicação por fundamentos

epistemológicos e, principalmente, os efeitos colaterais dos seus métodos sobre o

que, na falta de melhor denominação, podemos considerar os princípios ou o

espírito da reforma psiquiátrica. Trata-se de um conjunto de práticas ainda não

estabilizado numa teoria ou, numa expressão de Saraceno aplicada a outro

contexto, uma prática à espera de uma teoria (Saraceno, 2001).

Há um outro aspecto sob o qual essa reflexão encontra-se ainda em

etapa incipiente e que não pode ser negligenciado. No mais avançado dos

projetos de reforma psiquiátrica em curso no Brasil as questões classicamente

consideradas como inerentes à discussão da esfera política de modo algum

podem ser consideradas contingentes ou serem relegadas a uma posição

periférica, posto que problemas como o da inclusão social e do ingresso do louco

nos espaços públicos em condições de exercer as prerrogativas próprias à

cidadania representam uma parte essencial no conjunto do projeto.

Essas são questões tratadas de forma pouco mais que alusiva nos

estudos sobre a avaliação de qualidade, embora a natureza do tema a elas

obrigatoriamente remeta. A essa escassez de produções teóricas corresponde

uma supervalorização da dimensão técnica, como se fosse imperioso multiplicar

as traduções em dialeto próprio da linguagem empregada no campo da pesquisa

social em geral, cuja sintaxe oferece já uma constelação conceitual bastante

abrangente para referir-se à diversidade de métodos e técnicas aplicáveis

(Deslandes,1997), sendo constrangedora a penúria no que concerne à teoria da

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coisa política e da valorização do público em suas dimensão republicana no

sentido clássico.

Uma forma de dar expressão a esse desconforto no plano da teoria e

que é outra característica notável com que se depara quem se encontre nesse

campo, de passagem ou para nele lavrar, revela-se na presença de um núcleo

conceitual enredado numa nevoenta confusão terminológica (Castiel, 1986), a que

se debita parte das dificuldades metodológicas e operacionais aí vigentes. A

própria noção de qualidade aplicável a esses modelos de pesquisa avaliativa

revela-se instável até nas sistematizações de Donabedian tornadas clássicas

(Donabedian, 1968), que hesita entre defini-la como atributo simples do cuidado

médico, como resultante de um conjunto de atributos funcionalmente relacionados

ou como um precipitado heterogêneo de fenômenos reunidos sob critérios

diversos (Silva, 1994). Há uma evidente preocupação de cunho corporativo na

modelização de Donabedian a exigir penosa depuração da qual talvez reste

pouco a ser aproveitado.

As limitações desse tipo clássico de modelo transparecem com maior

evidência ao se defrontar com outra dificuldade que surge no caminho das

avaliações em saúde (e que assume dimensões muito maiores nas avaliações de

qualidade em saúde mental). Refiro-me à interveniência de fatores estranhos que

“contaminam” o campo dos sistemas de saúde e que podem ser de natureza tão

diversa quanto as condições de habitação, alimentação, vestuário, educação,

estilo de vida, valores, crenças, hábitos, ideologia, posição de classe, etnia, etc.

dos atores envolvidos na pesquisas (Deslandes, 1997).

Um campo assim disposto pode reservar todo tipo de perigos a quem

pretenda atravessá-lo. A pressa por um modelo teórico que lhe dê sustentação

mais firme pode tentar-nos a ir com muita sede ao pote e ter de retornar com

arranjos teóricos exibindo rachaduras que os fazem imprestáveis (ou quase) ou,

pior ainda, sucumbir diante da tentação de alguma ideologia de referência, até de

ideologias ordinárias, porque também estas conseguem afinar o seu canto de

sereia de modo a soarem bem aos ouvidos e oferecerem conforto a um sem

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número de inteligências assustadiças nesse mundo de conformismo generalizado,

como diria Castoriadis (Castoriadis, 1992).

Consensual, não obstante, é o reconhecimento da importância da

avaliação de serviços e programas como condição para se elevar o nível de

racionalidade das políticas aliando a eqüidade à eficiência e como vetor

estratégico que viabiliza escolhas no registro do planejamento de políticas e do

controle técnico e social de sua implementação, bem como para a busca de

pontos de convergência que facilitem o convívio dentro de serviços que tendem a

ser cada vez mais permeáveis à intervenção de racionalidades distintas e a

demandas organizadas de grupos de pressão politicamente competentes (Cohen,

1994).

Não há, todavia, como se trabalhar às cegas, sem contar ao menos

com a luz bruxuleante de uma teoria rala e provisória que sequer chegue a

iluminar todos os recantos, ou uma trama que, sem preencher todos os hiatos,

ainda possibilite uma teia de relações entre objetos, uma pontuação, algum

percurso possível. Estas são questões a serem retomadas adiante. Abandono-as

temporariamente neste ponto para tentar recuperar na outra margem o fio que

desponta do novelo político e indica possibilidades de refração no campo da

clínica.

Proponho que comecemos por uma escolha um tanto arbitrária,

como se quase casualmente revolvêssemos o terreno para deixar aflorar

espontaneamente uma considerável variedade de problemas a que remete a

avaliação de qualidade em saúde mental, transitoriamente sem qualquer

preocupação de ordená-la, e na expectativa de que desta exposição panorâmica

emerjam com suas conexões e ramificações principais aqueles aspectos que

merecerão um tratamento mais minucioso.

Destaco, entre tantas outras, uma citação fisgada um tanto

arbitrariamente, mas que, por sua concisão, pode servir para nos situar

diretamente no coração de nossa temática. É uma bela frase que se pode ler na

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última página do ensaio com que Antônio Lancetti encerra a coletânea de textos

do volume 5 da coleção “Saúde e Loucura” da Editora Hucitec:

“Tentamos inventar outra clínica, insólita, que produza efeitos desubjetivação cidadã”. (Lancetti, 1997)

Eis uma fórmula concisa e de efeito retórico impressionante, uma

encruzilhada para a qual convergem algumas imagens reunidas num feixe

paradoxal, expresso na justaposição das noções de clínica, de produção, de

subjetividade e de cidadania.

Clínica. Na noção de clínica dos projetos de reforma psiquiátrica

quase nada se reconhece dos traços que compõem a figura clássica da clínica.

Saraceno chega a sugerir que a noção de clinica, pelas conotações que herda de

sua filiação etimológica e por efeito de certa decantação semântica, deva ser

substituída por outra que se aplique melhor a uma nova prática, que considera

muito mais complexa e articulada (Saraceno, 2001). Não há, evidentemente, uma

definição consensual e acabada para esta nova clínica, que, provisoriamente,

pode ser definida como um complexo de operações que transcende o conjunto

das práticas assistenciais, não se reduz ao domínio de uma teoria, um método ou

uma técnica, mas que inclui as idéias de descristalização, mudança, pontos de

viragem e que tende a refratar-se dentro do que, na terminologia de Foucault,

Deleuze e Guattari, pode-se denominar paradigma estético.

Esta definição provavelmente não é a hegemônica nos serviços que

conhecemos, onde predominam ainda concepções mais ortodoxas da clínica,

freqüentemente expressas em linguagem psicanalítica, mas, de todo modo, o

aglomerado teórico em que se apoia a prática clínica tem como elemento de

destaque a superação da tradicional clínica psiquiátrica.

Efeitos de subjetivação compõem outra figura que aparece em

feições variadas e que resulta de esforços mais ou menos sofisticados de

construção teórica. Seja qual for o resultado desta textura terminológica,

persistem nela certas imagens que derivam das noções correntes de sujeito,

supondo-se que efeitos de subjetivação se expressem nas dobras da intimidade

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do indivíduo e que a noção de sujeito se conecte à esfera do privado, sendo a

experiência da subjetividade algo que floresce nos recintos da intimidade ou que

conduza às galerias subterrâneas em que se abriga a verdade mais profunda do

homem.

Esta noção de uma identidade de si singularizada e reflexivamente

estabilizada nos limites do indivíduo é a que se cristalizou no imaginário ocidental

ao longo de uma tradição filosófica que remonta aos gregos, tendo sido

radicalizada pelo pensamento de Santo Agostinho na imagem de uma linguagem

que “in interiore homine” ilumina as profundezas de onde jorram as fontes do self

(Taylor, 1989), e retomada pela modernidade para retraçar as fronteiras entre o

público e o privado.

Cidadania. Certamente o conceito de cidadania é o menos elaborado

pela reflexão teórica no campo da saúde mental. Aparentemente circula no

vocabulário da saúde mental como uma noção auto-evidente ou como

instrumento conceitual truísta que dispensa uma elaboração à parte, já que

importado como produto manufaturado e testado pelas ciências sociais e

políticas.

Ao conceito estão conectadas as idéias de direitos (civis, sociais e

políticos) e de contratualidade (empowerment) e o seu uso vem geralmente

associado à díade inclusão/exclusão, termos de definição bem mais problemática

do que aparentam. Importa por ora depurar apenas na noção de cidadania a

figura que emerge, não das profundezas e da interioridade, mas da superfície e

da exterioridade do espaço público, do mosaico de atos e palavras que trazem à

cena o homem da aparência na claridade ruidosa da pólis.

Como conciliar de um lado a idéia de sujeito e seus correlatos,

privacidade, interioridade, verdade, profundidade, silêncio e obscuridade, com a

idéia de cidadão, que, por sua vez, evoca publicidade, exterioridade, aparência,

superfície, luminosidade, sonoridade? Não basta responder apressadamente

recorrendo a enunciados (corretos) como “o sujeito é efeito de superfície” ou “o

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sujeito é um termo que traduz as ondulações do centro gravitacional de narrativa”.

Na verdade, estão em jogo imagens e sistemas interpretativos resistentes e que

subjazem à organização de formas de vida. A argila que dá forma à figura do

sujeito provém, nos termos de Habermas (Habermas, 1968), da gramática que

imprime sua forma a subsistemas como a família e o parentesco, em que

prevalecem imagens do mundo míticas, religiosas e morais; enquanto a figura do

cidadão é modelada no enquadre de categorias que supõem a ação racional, a

objetividade e a impessoalidade.

Está em jogo, como se vê, um dos avatares com que retorna a

questão do privado e do público, do dentro e do fora. Como conciliar idéias (tomo-

as pelas representações que delas correntemente derivam) de algo que expressa

mudanças sutis que se passam nas dobras da intimidade e do que há de mais

privado para os indivíduos com as imagens daquilo que se expõe à visão de

todos, ações e palavras que ressoam nos espaços públicos onde a cidadania se

manifesta? Supõe-se, como ficou dito, que a noção de “sujeito” remeta à

categoria da esfera privada e que a experiência da subjetividade floresça nos

recantos da interioridade, enquanto a figura da “cidadania” emerge na superfície

das aparências do que publicamente se fala e faz. Trata-se de uma dialética que

remete à segregação da experiência, na expressão de Giddens (Giddens 2002) e

aloja o indivíduo-sujeito numa situação de exclusão fundamental, posto que na

composição do espaço privado, onde se cultiva o self, não impera o princípio da

justiça, mas o da fortuna (no duplo sentido), isto é, a esfera privada, que é, por

definição, historica e etimologicamente, lugar em que se está excluído (do

conjunto da vida social).

Por outro lado, a relativamente nova, embora banal, associação entre

as noções de clínica e de produção dificilmente seria admitida num contexto em

que está implícita a idéia de liberdade, na acepção, uma vez mais, arendtiana,

como marca distintiva do agir de sujeitos humanos, porquanto a idéia de produção

tem origem no plano da necessidade, necessidade que se vincula à noção de

determinação e seriação, e não à da relatividade dos acasos que se oferecem à

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singularisade de escolha como liberdade em ato.

Apesar disso, a própria palavra produção, relacionada às noções de

subjetividade (e cidadania, como veremos), desejo, afeto, imaginação e tantas

outras do vocabulário psicológico goza de inegável prestígio nos discursos da

saúde mental. Boa parte deste prestígio deriva por certo, e se sustenta, dos

sentidos com que foi apropriada no pensamento de Foucault, Deleuze e outros

autores, o que a deixa a salvo da percepção de que aparentemente vai-se

distanciando de um suposto sentido metafórico original e literalizando-se no

discurso corrente de tal modo que se apagaram os traços de parentesco

semântico que a vinculariam a um tronco genealógico coetâneo da idéia do

mundo social como mundo de produção fabril de bens. Um exame da

reconstituição desses traços poderia enriquecer a nossa reflexão?

Na maior parte do tempo, tudo se passa como se serviços

assistenciais pudessem deslizar suavemente para uma encruzilhada semântica

em que se juntam bens e serviços, equiparados como resultado de uma produção

(destaco a palavra) que, para ser medida, exige-se que se troquem extensamente

os instrumentos, mas as premissas nem tanto.

O emprego do termo cidadania, retomemo-lo ainda, nem de longe

garante proteção contra os perigos de enredar-nos em novos equívocos. Na

maior parte do tempo, tudo se passa como se cidadania fosse uma idéia evidente,

uma noção monolítica e de contornos perfeitamente definidos. Só para citar um

exemplo: numa coletânea de textos organizada por Tundis e Costa, o conceito de

cidadania, palavra que dá título ao livro (“Cidadania e Loucura: Políticas de Saúde

Mental no Brasil”), em momento algum é posto em movimento na malha

conceitual, permanecendo, como diria Wittgenstein, como que desviado em algum

ramal em desuso (Wittgenstein,1996). E quiçá se poderia até argumentar que, no

terreno em que nos situamos, talvez seja mais prudente pensar assim

simplificadamente, como se fosse um truísmo, posto que já é muitíssimo

complicado aproximar loucura e cidadania, remover dos ombros a pesada

herança da racionalidade iluminista que as separou e fazer do ato terapêutico, na

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clara expressão de Basaglia (Basaglia, 2001), um ato inerentemente de

integração política.

Comumente se ouve que a cidadania é uma produção, entendida quer

como processo, quer como resultado. À luz desse prisma, produzir é ter um

status, é habilitar-se a participar dos espaços de trocas materiais e simbólicas,

quase como se nessa hora pudéssemos ainda nostalgicamente desconhecer que

as fronteiras entre o público e o privado já se encontram esfaceladas ou se

pudéssemos ainda varrer as camadas de pó acumuladas pelo tempo para

reencontrarmos a pólis intacta num cenário em que, como diz Bauman

“as velhas ágoras foram ocupadas por empreiteiras e recicladasem parques temáticos”. (Bauman, 1998)

Não há como produzir (vá lá o termo) sujeitos cidadãos considerando

o espaço público como um dado fixo e promover a cidadania como uma operação

tópica de inserção. Isto significa que não podemos operar com a suposição de

que qualquer dessas esferas possa ser tomada como referente dado e que não

há como supor que sujeito e cidadão sejam categorias que possam ser

aproximadas sem uma norma de ação que exija uma redefinição radical dos

próprios termos público e privado como inerentes a um jogo segregatório que

define o mundo em que vivemos.

Produzir cidadania é também derrubar barreiras que demarcam o lugar

da exclusão, embora disso não haja registro na história, mas na utopia. Para

Basaglia as figuras da loucura e da exclusão são consubstanciais, e qualquer

reforma que se detenha no abrandamento da violência repressiva pela tolerância

não chega a dialetizar a exclusão, limitando-se a atualizar os mecanismos com

que a exerce a sociedade moderna (Amarante, 1996). A equação com que se

opera não pode excluir os outros termos que tornam homogêneas a loucura, a

criminalidade, a sexualidade e tudo o que, como desvio, desafia os sistemas de

referenciação interna da vida e empobrece a cena pública como lugar para a

emergência do novo.

Page 38: O umbigo da reforma psiquiátrica.pdf

40

3. Exclusão e cronicidade

Estamos diante do problema da exclusão. Pode-se considerar que o

projeto de integração política implica constituírem-se serviços abertos em saúde

mental que se inscrevam na agenda das políticas de inserção, freqüentemente

denominadas de políticas de inclusão, conceito que tem como contrapartida a

noção de exclusão, um termo que, na acepção de R. Castel, deve ser

reconhecido como uma armadilha pela heterogeneidade de usos que propicia e

pelo risco de autonomização de situações supostamente atribuíveis a déficits de

pessoas e grupos e que suscitam a ação social meramente focal. (Castel, 2000).

Essa armadilha conceitual presta-se a obscurecer a crua realidade da

exclusão como processo estrutural que dilacera até às raízes a atualidade de uma

formação social a que se ingressa pela dinâmica da produção capitalista,

desmascara a sua ficção de coesão e expõe suas fraturas, turvando à visão a

grave situação de desemprego, de precarização do emprego e vulnerabilidade do

trabalho, que gera, independentemente das desvantagens de pessoas e grupos,

tomados isoladamente, o contingente de “normais inúteis”, na expressão de

Donzelot, ou “sobrantes”, como os denomina o próprio Castel, resto de gente

tornada supérflua na atual situação de erosão dos laços de solidariedade e de

dissolução dos dispositivos de regulação e proteção antes vinculados à

evanescente “sociedade salarial”.

Na verdade a díade inclusão-exclusão reserva-nos dificuldades ainda

maiores do ponto de vista epistemológico. Antes de ingressar no domínio público,

o termo exclusão foi empregado nas análises sociológicas, que o caracterizaram,

na década de 80, como resultado do esgotamento do modelo clássico de

integração na sociedade moderna pela mediação reguladora do emprego

(Oliveira,1997). Se a sua utilização padece de certa imprecisão, ao estender-se

para o campo da saúde mental o termo pode ter menos pertinência do que parece

Page 39: O umbigo da reforma psiquiátrica.pdf

41

à primeira vista. Muito resumidamente, se tomado do ponto de vista das análises

estruturalistas, e rigorosamente falando, a exclusão pode ser incluída, por efeito

de um retorno funcional à lógica da acumulação, entre os elos integrantes do

sistema que a produz, exatamente como, na interpretação de Foucault, a prisão

faz parte do sistema que produz o mundo do crime como a outra face e a

contrapartida da boa sociedade que engendra subsistemas lícitos de segurança e

repressão.

Seja como for, estes “sobrantes” ou “excluídos” formam os traços do

rosto sem brilho desta superfluidade que, evidentemente, transcende de muito o

raio de ação da saúde mental. A linguagem da medicina, da psiquiatria e da

reinserção social tem o seu próprio étimo em que se vislumbra a figura intemporal

de quem foi petrificado por detrás das paredes congeladas do tempo (chrónos): o

crônico. São os mesmos traços da condição de excluído os que ainda mais

impiedosamente são reconhecidos e reforçados na condição de crônico,

identificada de imediato na marginalização da população de internados nos asilos

psiquiátricos. Mas não só lá.

Crônico, no vocabulário psiquiátrico, é o termo que traduz a exclusão.

Cronicidade psiquiátrica é um conceito que remete à evolução de um quadro

psicopatológico, à sua duração, persistência e refratariedade às técnicas de

tratamento, implicando, em sua dimensão social, uma condição de incapacidade e

de dependência do cuidado continuado (Desviat, 1999). Por suas ressonâncias

etimológicas, a palavra crônico evoca a experiência do fluxo temporal que cede

lugar a um tempo imóvel e morno, morada do mesmo. A cronicidade é exclusão

do lugar, mas também do tempo, exclusão que se dobra numa segunda exclusão,

exclusão dentro da exclusão.

A superfluidade dos “válidos inúteis” a que me referi caracteriza

decerto um dos pontos de impasse desses serviços de (re)inserção na esfera da

cidadania, sendo um fator adicional de uma nova cronicidade que surpreendeu a

quantos esperavam que a mera derrubada dos muros dos manicômios resultasse

em abolição do processo de cronificação. É forçoso reconhecer com certa

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42

amargura que a “sétima cavalaria” da reforma chegou demasiado tarde,

encontrando já parcialmente em ruínas a construção inacabada do welfare state e

já instalada uma nova e inclemente discriminação a barrar a passagem aos que

se habilitassem a tentar o ingresso nesse mundo, depois de superada a exclusão

prévia do estigma da doença mental.

Esta “nova cronicidade”, na expressão de Desviat, teve o efeito de

uma ferida narcísica (para o expressar como Freud), que se abateu sobre o novo

projeto assistencial antimanicomial, indicando-lhe limites até então insuspeitados.

Favorece-a também uma nova orientação que se instala no universo psiquiátrico

como uma tendência geral a se resignar a uma cronicidade que recomenda que

se vejam os indivíduos, nem como doentes, nem como sãos, mas como inscritos

em programas de manutenção, resultando daí a substituição do tema da cura pelo

da qualidade de vida (Ehrenberg, 2000).5

Muito do esforço de “inserção” mediante a organização de atividades

de geração de renda e de oficinas de artesanato detêm-se, segundo creio, na

formação de nichos que suavizam os traços da cronificação criando uma

contrafação insossa de cidadania. De passagem se diga que, nesse contexto de

valorização do discurso da qualidade de vida, reveste-se de especial importância

a preocupação com a satisfação do usuário, categoria que é também objeto

especial das avaliações de qualidade e que suspeito poder divisar-se às vezes no

sorriso dócil do “bom crônico”.

O relativo fracasso do projeto de desinstitucionalização, cujo traço

distintivo mais evidente é o surgimento de um novo padrão de cronicidade, tem

sido atribuído a diversas condições, com ênfase na desarticulação dos sistemas

sanitários e de assistência social, na persistência de cânones curriculares

inadequados à formação de profissionais de saúde mental, nas resistências de

crenças, hábitos e preconceitos das comunidades à reinserção do paciente

desinstitucionalizado, bem como a questões que se referem a estratégias de

5 “L’individu d’aujourd’hui n’est ni malade, ni guéri. Il est inscrit dans des multiples programmes demaintenance” (Ehrenberg, 2001, op. cit.)

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gestão e planejamento (Desviat, 1999). A obstinada resistência a se reconhecer

sua existência é outro fator que favorece seu surgimento.

A cronicidade é o antípoda da cidadania. É a palavra dura que na

linguagem psiquiátrica traduz a exclusão dos lugares simbólicos de criação. E a

formação dessa nova cronicidade é, de fato, a pedra de toque nova e decisiva

para a credibilidade da reforma psiquiátrica. Em virtude da influência, às vezes

determinante, das condições da própria internação asilar como fator gerador do

processo de cronificação, tendeu-se a crer que desinstitucionalização viesse a

coincidir com descronificação. Tanto que, como o afirma Desviat (Desviat, 1999) a

reforma psiquiátrica, que havia acalentado em seus primórdios o sonho otimista

de ver a cronicidade dissipar-se na nuvem de pó dos muros derrubados do

hospício, veio a espantar-se com a constatação de que, onde a reforma se

implanta, surge uma outra cronicidade além daquela que o manicômio ocultava, a

que resiste no “núcleo duro e irredutível” dos grandes deficientes, dos inválidos

físicos e psíquicos, doentes neurológicos, antigos epilépticos, sifilíticos dementes,

débeis mentais, esquizofrênicos residuais, obsessivos lobotomizados, acrescida

da legião de “jovens adultos crônicos” de comportamento psicopático ainda

arredio aos códigos diagnósticos, novos deserdados sociais que não haviam

passado pela institucionalização, gente que compõe uma subcultura de errância,

vagabundagem e consumo de drogas, que recende a noites mal dormidas em

albergues ou prisões e que, num novo tipo de “cronicidade da crise”, entra e sai

recorrentemente dos serviços abertos ou força internações múltiplas de curta

duração, caracterizando o fenômeno já denominado de “porta giratória” (revolving

door).

A este contingente de novos crônicos penso que se pode acrescentar,

se me for permitida uma digressão sem maiores exames e apenas com base no

que testemunhei, mais dois novos tipos de crônicos que chegam à soleira dos

novos serviços: o cortejo de pessoas histéricas que novamente se avoluma

depois de um tempo de banimento a que poucas podiam escapar pelo funil dos

consultórios de psicanálise e que agora, depois de implodida a fortaleza da

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histeria nas novas versões do DSM6, voltam aos serviços, onde são

freqüentemente rediagnosticadas pelo novo discurso psiquiátrico como

deprimidas ou distímicas ou, mais raramente, como portadoras de vagos

distúrbios somatomorfos de ansiedade.

O outro tipo de cronicidade é “o dízimo que se paga conforme o

costume”, uma contribuição original desses serviços ou, mais exatamente, das

equipes de saúde mental, sendo a sua presença reconhecida (quando o é) com

certo embaraço: são os ex-institucionalizados militantes, cristãos-novos e

“desinstitucionalizados profissionais” do movimento da reforma, representantes

assíduos dos usuários em congressos e encontros, pressurosos a figurarem nas

amostras das pesquisas e a se exibirem como casos bem sucedidos de

desinstitucionalização, os “nativos” de nossos sonhos antropológico-civilizatórios.

Se os serviços e programas de saúde mental nos moldes da Reforma

Psiquiátrica não tivessem de deparar-se com a acumulação de crônicos

produzida pela maneira com que estruturou o seu estilo de intervenção,

encontrar-se-ia em posição mais confortável para defender a própria legitimidade

argumentando com os índices de resolutividade. A exigência de resolutividade,

quaisquer que sejam os critérios para defini-la, assinala um dos pontos de

dispersão que indica as tensões vigentes nesse campo, que ganham expressão

em pelo menos três formas diferentes de se conceber a mente humana e o

sofrimento que a assalta. Jane Russo (Russo, 1997) refere-se a elas como os três

sujeitos da Psiquiatria, o que pode denotar nas entrelinhas uma certa escolha

teórica, a da categoria sujeito, que tem estatuto em níveis diferentes, sendo uma

categoria muito mais “fraca” no quadro de referências da psiquiatria do que, por

exemplo, para a psicanálise. Nem por isso é menos valioso o quadro que

apresenta.

6 DSM (Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais) é a classificação elaborada pelaAmerican Psychiatry Association visando a unificação de critérios descritivos com fins de diagnóstico eestatística dos transtornos mentais. Da primeira versão, de 1952, às mais recentes há um gradual eevidente deslocamento na compreensão do distúrbio mental no sentido de relegar a presença deelementos simbólicos da concepção psicossocial em favor de explicações de cunho biológico,pretensamete empíricas e a-teóricas (Gaines, 1992).

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A questão da resolutividade é um claro divisor de águas nesse

domínio. Teríamos nesse xadrez três linhas básicas de tensão determinadas por

três formas com que se decantou uma representação do humano: o “sujeito

biológico” que emerge do substrato biológico e neuroquímico da psiquiatria; o

“sujeito da singularidade” da psicanálise, com ênfase na clínica do psicótico e na

afirmação da alteridade e da diferença; e, finalmente, o “sujeito cidadão” do

ideário da reforma desinstitucionalizante italiana, cuja tônica é dada aos valores

da autonomia e da liberdade.

Embora se pudesse esperar que os programas e serviços de saúde

mental fossem a “área de reserva” dos seguidores do ideário da psiquiatria

italiana - denominação que adoto só por facilidade de clareza e provisoriamente,

por imprópria, como observa Amarante (Amarante, 1996) - é significativa neles

também a dispersão de profissionais filiados às outras duas vertentes, sendo

raramente pacífica a coexistência dessas “tribos”. Quem acompanha a crônica

desses serviços tem notícias com espantosa freqüência das suas dissenções

internas e de táticas muitas vezes extremamente duras na eclosão de embates

em que colidem querelas teóricas e metodológicas, interesses corporativos e

meras disputas de poder, prolongando-se indefinidamente em escaramuças que

parecem seguir a lógica de guerras tribais.

Nessa diáspora, os psiquiatras de orientação biológica tendem a

valorizar mais os objetivos de resolutividade e costumam ter o seu momento de

triunfo ao intervirem em situações de crise, quando é mais aguda a reivindicação

de eficiência, mas se sentem pouco à vontade nas sessões de discussão de

casos clínicos, em que costumam prevalecer as construções de base

psicanalítica. Os profissionais sob orientação psicanalítica, por sua vez, não

conseguem disfarçar seu desconforto quando entram em pauta itens como

resolutividade, eficácia do tratamento ou alta de pacientes (ou clientes, como

preferem dizer) e vão à forra quando a resistência da dimensão inconsciente põe

em xeque certa inclinação a crenças de colorido rousseauísta, real ou imaginária,

da facção “italiana”. Esta, por seu turno, vê com suspeitas o reducionismo

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46

fisicalista dos “psiquiatras” e o desdém dos “psicanalistas” pelas questões

políticas e sente-se confortável quando o vocabulário inclui termos como redes de

agenciamento, produção de subjetividades e promoção da cidadania dos

pacientes (ou usuários, como prefere dizer).

Embora possa conter algum exagero, este painel é mais uma alegoria

do que uma caricatura. No entrechoque dessas formações discursivas revela-se

muito do esplendor e da miséria desses serviços e programas. Manter uma

coesão suficiente para que não se esfumace o trabalho na fogueira das querelas

e para que se reúna o melhor que tem a oferecer cada uma das vertentes é uma

árdua arquitetura, cujos andaimes aparecem com maior visibilidade em

dispositivos como a avaliação de qualidade.

Mas há curiosos e inesperados pontos de confluência. A “nova”

psiquiatria, por exemplo, ainda que o imagine como condição provisória (a ser

superada com os progressos das neurociências), desloca o seu tradicional projeto

de cura pelo do monitoramento da qualidade de vida (Ehrenberg, 2000),

aproximando-se por essa via da posição de rejeição pela psicanálise a todo ideal

de cura. As referências ao ancoramento do sujeito no Outro ou nos

agenciamentos sócio-políticos passam por expressões nos dialetos do “sujeito

singular” e do “sujeito cidadão” (para retomar as categorias de Russo) de uma

língua comum.

Há, entretanto um preço a ser pago, nos esforços para reunir na

mesma correnteza teórica afluentes tão diversos. Idéias como as de criação de

campos transferenciais multifocais e de coalizão de orientações teórico-clínicas e

formações profissionais diversas mantêm em estado mais ou menos latente

certas disposições à dispersão das equipes, à margem das quais estende-se a

ramagem raquítica do apartheid da cronicidade.

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4. Resumo

Deliberadamente vim até aqui percorrendo quase a esmo a

diversidade de problemas nesse terreno. Da reunião de fios tão esparsos, cujo

seguimento foi até aqui apenas esboçado, tece-se uma trama que compõe um

desenho de certo modo inesperado:

No ponto de partida, um projeto de desinstitucionalização que

ambiciona dilatar o círculo da cidadania mas que não conseguiu ainda uma

estratégia para expurgar o efeito mais flagrante da institucionalização que é a

cronicidade e que, por isso, acaba por não conseguir esconjurar a tentação de

adotar uma linguagem que o concilia com a do discurso biomédico, com o qual

teria pouca afinidade (1). A desforra deste discurso biomédico, por seu turno, na

prestigiada versão da nova psiquiatria, alça-se a um estranho contorcionismo de

seu tom ufanista, acabando por admitir a incurabilidade da doença mental e o

conseqüente deslocamento do ideal de cura pelo objetivo da qualidade de vida

(2). Reencontra-se neste ponto, surpreendentemente, com um desdobramento de

traços discursivos da psicanálise - que se constituiu mediante a recusa do ideal

médico de cura (3) - e, por outro lado, com ressonâncias que denotam o discurso

da gestão dos riscos tão ao gosto das políticas de cunho preventivista do Estado

(4). De modo vertiginoso completa-se assim uma volta que se compõe de todo

este emaranhado denso de orientações mutuamente excludentes, circuito pelo

qual, a meu ver, tem de evoluir o discurso da avaliação de qualidade, que tende a

reorientar-se e dissipar boa parte de suas energias a estabilizar esse ruidoso

condomínio.

Novos padrões de arranjo da subjetividade, produção de meios para o

acesso à contratualidade, processos de reabilitação e promoção da cidadania,

estratégias de inclusão, o retorno da cronicidade como recalcado espectral: eis a

torrente de questões que inevitavelmente vem à superfície nas avaliações de

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qualidade em saúde mental.

Antes, no entanto, de concentrarmos a atenção na avaliação de

qualidade, considero importante tentar, nos dois capítulos seguintes, lançar

alguma luz sobre uma região que me parece ter permanecido no cone de sombra

de um relativo esquecimento: o lugar do “público”.

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CAPÍTULO II:

GOVERNANDO COM NÚMEROS

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1. O Estado-gerente

Há motivos de peso para que a imagem da balança, tão antiga na

imaginação dos cientistas, tenha suscitado a idéia de que uma posição

eqüidistante do ponteiro entre os dois pratos, um deles abarcando a causa plena

e o outro a totalidade do efeito, autorize a estabelecer igualdades. Mas qual o

peso do “motivo de peso”? (Stengers, 1990). O motivo não estará em qualquer

dos pratos, mas, como o olhar fito de Minerva, não estará fora do sistema da

balança e poderá ser o “peso” que por fim decide o resultado da operação.

Quando se percorre a literatura que trata da avaliação de serviços de

saúde vislumbram-se dois aspectos, cujo peso parece escapar à medição, um

deles pela constância com que pode ser visto e o outro, em negativo, virtualmente

invisível pela persistente omissão. O aspecto visível, mas “naturalizado” a ponto

de não ser explorado na extensão das implicações que acarreta, reside no papel

dos custos da atenção médica como propulsor das pesquisas de avaliação. Não

se faz aqui este registro com o intuito de se levantar uma ingênua suspeita quanto

à confiabilidade dos seus propósitos, mas para que se possa melhor

contextualizar e relativizar uma polêmica em torno da reivindicação de

neutralidade que parece imposta pela exigência de se apresentar a avaliação

como prática desinteressada, dentro ou fora dos parâmetros clássicos da ciência.7

O segundo aspecto correlaciona a avaliação às descontinuidades na

linha de configuração do Estado e merece uma análise mais cuidadosa até

porque comumente se tende a apresentar o desenvolvimento teórico-prático da

avaliação como envolto no mesmo tipo de racionalidade daquela tradição

historiográfica “internalista” que apresenta a história como sucessão linear

progressiva de um ramo do conhecimento pelo desdobramento espontâneo de

7 Esta afirmação não é inteiramente verdadeira ao misturar no mesmo caldeirão todos os modelos deavaliação. Mas pretendo demonstrar que não é inteiramente falsa quando aplicada às avaliações“não-ortodoxas”, naqueles momentos em que o que se está a fazer pode ser apropriadamentechamado de avaliação. .

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virtualidades que a mera ação do tempo se encarrega de promover por força da

seqüência ascendente da razão sobre a superstição e a barbárie.

Os parágrafos seguintes vão tratar desses aspectos imprimindo ênfase

ao último deles, isto é, às correlações entre a disseminação das investigações

avaliativas do setor saúde e as metamorfoses ocorridas na história recente das

concepções do Estado e de seu papel como ordenador das relações sociais.

Correntemente se indaga sobre a aplicabilidade dos modelos e sobre

a confiabilidade e o espectro de validade dos métodos negligenciando-se a

reflexão sobre a própria raison d’être das avaliações de serviços e, em especial,

das avaliações de qualidade. Passa-se geralmente ao largo das vinculações nem

tão obscuras da gênese e métodos das avaliações com as mudanças ocorridas

na concepção do Estado, de sua intervenção e da sua relação com o público,

concepção esta que se revestiu recentemente, a partir da década de 1970, de

uma conotação fortemente gerencialista em substituição ao modelo do welfare

state, acarretando um nítido esvaziamento do político em benefício da

administração, isto é, do Estado visto como devendo funcionar nos moldes de

uma empresa.

Nesses desdobramentos do que, a meu ver, representa um retrocesso

na concepção do papel do Estado, a obsessão com a efetividade das ações e a

preocupação com a qualidade de seus efeitos não testemunha muito mais que um

abrandamento dos modelos mais ortodoxos de uma visão gerencialista inspirada

na matriz empresarial, originalmente voltada à preocupação com a redução de

custos e aumento da produtividade.

Esta é uma afirmação que, longe de ser inconseqüente, arrasta

consigo implicações cujo alcance não há como exagerar. Implica, em larga

escala, uma démarche submetida à lógica da abdicação das atribuições clássicas

do Estado e o próprio deslocamento do Estado pela Administração (configurando

o que Marx profetizou como a decadência do Estado) e a troca do político (espaço

plural da ação livre dos cidadãos) pela sociedade (espaço não da ação, mas dos

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comportamentos coletivos). O terceiro aspecto, que se reveste de maior

insteresse no campo mais circunscrito da presente reflexão, atinge com precisão

o cerne da nossa meta de fazer coincidirem o sujeito psicológico e o cidadão da

pólis: indica razões que explicam o anunciado triunfo das teorias de inspiração

behaviorista - que tomam como objeto o comportamento - sobre as análises

psicológicas de cunho emancipatório como a psicanálise, voltada para a vastidão

de possibilidades do discurso e da ação.

Na realidade, passada a década das utopias libertárias, assiste-se ao

longo da década crítica de 1970, como o demonstra Abrucio, a um período de

aceleradas mudanças que ultrapassam de muito um programa de mero reajuste

do modelo de Estado para adequar-se às novas exigências de intervenção no

campo social. Começam a esfacelar-se os pilares de sustentação do modelo em

sua tríplice dimensão: econômica, administrativa e social (Abrucio, 1997).

O pilar keynesiano da economia, caracterizado pela ativa intervenção

estatal para a garantia do pleno emprego e a defesa de setores estratégicos, cede

lugar a uma retração em seu raio de intervenção em favor da desregulamentação

da atividade econômica que caracteriza a chamada onda neoliberal, cujo efeito

mais extremado e perverso em países de economia periférica foi o deslocamento

do eixo das políticas de desenvolvimento econômico para a esfera monetário-

financeira.

O pilar weberiano burocrático da organização administrativa e do

funcionamento interno da máquina estatal, com ênfase nas exigências de

impessoalidade, neutralidade e racionalidade da ação governamental, vai sendo

substituído por um novo paradigma organizacional cuja tônica desloca-se para o

corte de custos, a redução de pessoal, a desconcentração e as exigências de

maior produtividade.

O terceiro pilar, o do modelo do welfare state, que definia a

dimensão social do modelo de Estado, caracterizada pelo empenho, mais

evidente em alguns países desenvolvidos, na promoção de políticas públicas

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(educação, saúde, previdência social, habitação, etc.) vai, por seu turno, sob o

argumento da ingovernabilidade resultante da sobrecarga que tais políticas

acarretavam, sendo solapado pela pregação de um Estado comprometido com o

corte de despesas num contexto de redução de recursos e de poder e com a

necessidade de dotar a sua ação de maior agilidade, eficiência e

racionalidade.(Abrucio, 1997).

No que concerne às políticas de saúde, a década de 1970 marca o

ponto de guinada em que os programas clássicos de prevenção e da noção de

proteção da saúde dos indivíduos pelo Estado vão sendo abandonados e

substituídos pela nova ideologia de gerenciamento privado dos planos de saúde,

do self-care e do self-improvement, segundo a qual cabe aos próprios indivíduos-

clientes arcarem com a responsabilidade de se defenderem dos riscos à sua

saúde (Petersen, 2000).

Como conciliar, no plano concreto, este cenário de retração da ação

governamental com a expansão, iniciada na mesma época, da organização dos

serviços públicos de saúde, inclusive no campo da saúde mental, que, em países

como o Brasil, tiveram um crescimento exponencial? Tal situação se deve, em

primeiro lugar, a que esta reconfiguração do papel do Estado não se dá de modo

linear, mas submetido a uma dialética de balanços e compensações que a

obrigam à trajetória menos direta e mais sinuosa imposta pelas oscilações

próprias do processo de mudança.

Em segundo lugar, porque, do ponto de vista da gestão administrativa,

nada parece menos claro (ou menos relevante) que a ruptura desses projetos em

saúde mental com o ideal preventivista, que propunha a substituição do oneroso

internamento asilar por uma estratégia racionalizadora e reguladora segundo

critérios de hierarquização, simplificação, regionalização, participação comunitária

e a reunião de um conjunto de saberes institucionais que organiza “problemas

mentais” e sociais sob o panoptikon da medicina mental.

Todavia, creio que uma resposta que se aplique ao caso específico do

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Brasil pode ser ainda ensaiada em dois níveis. Primeiramente, é preciso

considerar que o Brasil, pelas condições inerentes ao seu patamar de

desenvolvimento e, certamente, por sua formação histórica e cultural, não deve

ser visto como país- modelo nesse movimento de mudança na concepção do

papel do Estado e, portanto, não surpreende que seu alinhamento às novas

tendências se dê, em certa medida, à margem dos padrões hegemônicos.

Em segundo lugar, é preciso considerar a confluência de certos fatores

de ordem estrutural e outros relacionados ao clima ideológico e intelectual que se

formou nesta época de transição do regime autoritário à democratização,

momento em que a resistência à dureza e crueza das violações aos direitos

humanos afirmou-se ativamente na revalorização da democracia formal e no

destaque da questão da inclusão e da eqüidade, que ganha então o primeiro

plano na agenda política dos novos movimentos sociais de oposição, em

superação às crises da Igreja, das esquerdas e da organização sindical (Coimbra,

2000).

Sem ter passado pela etapa do estado do bem-estar social (welfare

state), países pobres como o Brasil tentam fazer uma difícil travessia de um

modelo corporativista do Estado previdenciário – que depende de um tipo de

coalizão em que o Estado intervém como provedor de benefícios sociais mediante

um sistema estratificado em que é elevado o nível de produtividade e baixo o de

participação na riqueza produzida – para um modelo do tipo liberal - em que o o

Estado se retrai e confia aos mecanismos do mercado a oferta dos planos de

benefícios, como aposentadoria e saúde, a quem supostamente tem a

capacidade de comprá-los, compensando a população mais pobre com

programas mínimos de assistência pública (Roberts, 1997).

Neste sentido, ao Estado, para atenuar os efeitos das barreiras

impostas pela pobreza, pela desigualdade de renda e pela contração da oferta de

emprego formal e, ainda, pela erosão da capacidade de os grupos sociais

primários e as comunidades locais proverem serviços de bem-estar, não resta

senão a opção de implementar políticas sociais. Ainda assim, assiste-se hoje a

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um discurso que conclama às parcerias com organizações não-governamentais e

instituições locais, novidade que, se desonera, por um lado, o Estado, favorece,

por outro lado, a participação e a formação de grupos de pressão sobre as

políticas do Estado.

Se estas razões devem ser consideradas relevantes para elucidar a

peculiaridade do caso brasileiro, são, no entanto, insuficientes para explicar o

vigor do movimento da reforma psiquiátrica em países com características muito

diferentes, como a Espanha, Inglaterra, Itália e outros. Suas raízes são, em larga

medida, tributárias de vertentes que guardam relativa exterioridade em relação às

mudanças de paradigma no plano da macropolítica e que, embora tenham

germinado durante o período em que, no imaginário político, prevalecia o

elemento utópico da reconstrução do pós-guerra, da sociologia crítica e da

contracultura, desdobrou-se para além das fronteiras deste período para

prolongar-se, inclusive como estratégia de resistência, com disposição renovada,

depois de deflagrada a onda de modernização conservadora do managerialism

como concepção do papel do Estado.

Foi esta a trajetória dos movimentos feministas e das lutas por

emancipação das minorias e foi esta também a trajetória do movimento de

reforma psiquiátrica, inaugurado com os projetos de reforma asilar da psiquiatria

institucional e das comunidades terapêuticas, nas décadas de 50 e 60, vindo a

culminar nos movimentos da psiquiatria de setor e da psiquiatria democrática,

com desdobramentos que se estendem para além das décadas de 70 e 80. Em

alguns países propiciou o surgimento de um vigoroso movimento de usuários que

se espelha em outros movimentos sociais, notadamente, como ocorreu nos EUA,

no Movimento pelos Direitos Civis do Negro e no Movimento das Mulheres

(Weingarten, 2001).

Outra razão adicional, e já indiretamente mencionada, para explicar a

inclusão dos projetos reformistas da assistência psiquiátrica na agenda de

reformas na concepção da ação do Estado, tanto nos países centrais quanto nos

periféricos, é, evidentemente, a meta comum de desospitalização com a

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56

perspectiva imediata de redução global de investimentos públicos no setor.

Um outro ângulo para a compreensão dessas mudanças pode ser

ensaiado mediante uma linha argumentativa inteiramente diferente e de cunho

mais teórico-especulativo. As entidades de ação coletiva estruturam-se,

esquematicamente, na sociedade ocidental, em dois tipos: organizações e

instituições.(Gilli, 2001). Das organizações espera-se que estejam orientadas

“para diante”, para a consecução de objetivos; sendo julgadas, portanto, segundo

a sua eficiência, que se traduz na fórmula do máximo de resultados pelo mínimo

de custos. As instituições, ao contrário, inclinam-se “para trás”, esperando-se

delas o desempenho de funções que não priorizam o resultado e a eficiência, mas

a conservação de modelos e sua transmissão.

Neste sentido, projetos de “desinstitucionalização”, na medida em que

possam ser interpretados como alternativas de reordenamento de instituições sob

a forma de organizações, regidas pelo critério da eficiência, têm aumentadas as

suas chances de serem bem acolhidos por um Estado gerencial, em vias, ele

próprio, de reestruturação mediante o deslocamento do modelo institucional em

favor do organizacional.

Para Giddens a ascenção da organização é exemplo de uma

característica mais geral da sociedade moderna. O traço distintivo da organização

não é tanto o seu tamanho ou o seu caráter burocrático, quanto as possibilidades

que permite de monitoramento reflexivo, isto é,

“de controle regular das relações sociais dentro de distânciastemporais e espaciais” (Giddens, 2002).

À modernidade, pode-se dizer, interessa romper os anéis que

imobilizam as instituições num lugar de exterioridade para integrá-las no fluxo

impulsionado pelo imperativo de que todo o ambiente natural e social é

transformável no jogo dialético da referencialidade interna, significando, na

expressão de Giddens (op. cit), estratégias de rearranjo do externo segundo os

critérios de referenciação do interno.

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57

A descrição dessas mudanças teria um efeito meramente descritivo

se, de algum modo, não despontasse delas algumas conseqüências que estão

diante de nossos olhos esperando apenas serem vistas. A primeira e mais óbvia é

fazer da inflexão dada ao projeto de desinstitucionalização uma defesa da lógica

das organizações, deixando encobertas, sob a ideologia da eficiência, novas

modalidades de segregação enganosamente “inclusivas”, como ocorre em

algumas “soluções” técnicas para o problema da cronicidade.

Uma outra conseqüência, cuja anatomia mereceria um esforço maior

de desvelamento, consiste na ilusão de homogeneidade que autoriza a fazer

correr ao longo da linha do processo saúde-doença a ênfase discursiva do

cuidado do doente para as tecnologias de promoção da saúde e a ideologia do

autocuidado, que abriram caminho a algumas prestidigitações semânticas em que

se fundiram as imagens de paciente, cliente e usuário, e também fizeram com que

o termo cidadão pudesse gradualmente coincidir com alguns outros termos:

cliente, usuário, consumidor, etc.8

2. Avaliações

Ao lado de outras razões, a transição das políticas públicas de saúde

do objetivo de cuidar da doença ao de promover a saúde foi impulsionada pelas

mundanças no perfil epidemiológico com o relativo declínio das taxas de

morbomortalidade por doenças infecto-contagiosas e a prevalência das doenças

do tipo crônico-degenerativo, cuja prevenção implica, em princípio, a participação

menos ativa do aparato médico em sentido estrito e o alargamento da influência

8 Nos EUA, por exemplo, os próprios portadores de problemas psíquicos adotarampredominantemente, por escolha própria, o epíteto “consumidores” para se autodesignarem(Weingarten, 2001), o que indica em que extensão podem coincidir os termos cidadania e“consumerism”.

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de certas condições gerais, inclusive no plano das escolhas pessoais, quanto aos

fatores de risco e proteção à saúde.

Com a estridente adesão dos veículos de comunicação de massa,

proliferaram as academias de ginástica e, no âmbito das clínicas, das empresas,

das escolas e por toda parte, difundiu-se velozmente a apologia da promoção da

saúde e das técnicas de autogoverno diante das situações de risco, celebradas

como uma virada positiva e que se justifica por si mesma, tida como decorrência

natural dos progressos da medicina, que se adianta à etiologia e tratamento das

doenças para alcançar o terreno da doença como possibilidade e da prevenção

como intervenção ideal.

Embora criticado, este discurso parece subjacente e perfeitamente

apto a assimilar sem contradições evidentes um outro discurso, o da avaliação.

Pois o discurso da avaliação de qualidade, com o relevo dado aos índices de

satisfação diante de resultados, facilmente se presta a corroborar o otimismo dos

objetivos de controle e autocontrole embutidos na utopia da saúde perfeita, que

aponta para o ideal filistino da personalidade unitária perfeitamente ajustada e

para a metáfora da obrigação à saúde com significação normativa evidente.

Penso que uma das vias de desconstrução da euforia em torno do

controle preventivista pode ser precisamente uma reflexão mais aprofundada de

certa idealização da avaliação e das insuficiências e contradições que suscita. O

elemento que invariável e desafortunadamente fica de fora destas considerações

é o da política no plano das macrometamorfoses, ou melhor, no das mudanças

havidas nos paradigmas que imprimiram ao exercício da política do Estado o

papel (que agora se tende a retirar dele) de guardião da sociedade regulada pelas

relações econômicas, relegando-se ao descaso a concepção de política como

espaço da ação plural e da liberdade.

Retomando o tema da avaliação de um ponto de vista mais “interno”,

talvez seja oportuno refazer, com passadas largas, o caminho percorrido por esta

atividade, de cuja anterioridade lógica decorre ser atividade impelida

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intuitivamente e impregnada ao cotidiano das decisões e feitos das pessoas, para

ser refinada, revestir-se de cunho científico e transformar-se em instrumento para

atender aos interesses do poder.

Convém puxar este fio até mais perto do seu ponto de origem. Muito

antes do surgimento da estatística e da sociologia, Vico já prenunciava a

existência de leis que governam deterministicamente a vida das sociedades

indiferentemente da liberdade e imprevisibilidade das ações de indivíduos

humanos (Santos, 1993).

Na pré-história da estatística e da epidemiologia, há um movimento no

interior da corrente das idéias que conduz do determinismo estrito da ciência de

Newton e Laplace a uma nova matriz intelectual, na qual a relação estreita,

observável e controlada entre causa e efeito vai-se afrouxando gradualmente até

incorporar um esquema de explicações na perspectiva futurocêntrica das

previsões baseadas menos na experimentação que na constância da experiência,

na regularidade das associações entre conjuntos de fatos que se repetem e

determinada conseqüência, na possibilidade de generalizações a partir da

reiteração de acontecimentos e da figuração de conformações estáveis nos ciclos

das flutuações. (Pomian, 1990).

Esta passagem de uma forma de determinismo a outra, em direção ao

encaixe das noções de causalidade e regularidade e à modelização matemática

das probabilidades, permitiu o surgimento da estatística, da física social que

antecedeu a sociologia e, conseqüentemente, da epidemiologia, além da criação

de novos métodos e instrumentos de observação e de medida, que viriam a ter no

século XIX o seu momento de maior prestígio, emblematicamente representado

na idéia durkheimiana da autonomia das forças sociais e seu poder de coerção

sobre os indivíduos. Esse discurso ganhou crescente vigor e sistematicidade

como estratégia de controle do poder de Estado e, com o fortalecimento do poder

do mercado e do modo de produção capitalista, expandiu os seus objetivos e

sofisticou os seus instrumentos.

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60

Na periodização proposta por Foucault, estaria havendo uma transição

de uma matriz a outra: o inquérito - forma medieval do poder-saber, matriz da

ciência da natureza, no polo do saber; e da centralização e do confisco da justiça

penal, no polo do poder - era gradualmente sucedido pelo exame - forma

moderna do poder-saber, matriz das ciências humanas, no polo do saber; e do

panoptismo e das funções de seleção e exclusão, no polo do poder

(Foucault,1997).

A partir da aurora do Estado moderno, foi preciso que uma ideologia

se espraiasse para que a ação humana fosse nivelada à mercadoria e se pudesse

reunir num só conjunto a produção de bens e serviços de tal modo que os atos

humanos se convertessem em valor de uso e se tornassem matéria de avaliação

por intermédio de instrumentos similares aos das avaliações de bens e produtos

(valores de troca) e os seus métodos pudessem aplicar-se às áreas sociais,

notadamente à educação e à saúde.

Foi preciso ainda mais uma condição, ao um só tempo efeito e

instrumento, para que da estatística se passasse à epidemiologia, que lapidou e

testou as ferramentas para a avaliação em saúde. O emprego da estatística e da

avaliação científica não viria a ser considerado essencial no âmbito da medicina a

não ser depois de a estrutura da atenção médica inscrever-se na agenda das

preocupações políticas.

Para simplificar, imaginemos como ponto de partida um momento aqui

revisto aproximadamente nos mesmos termos apresentados por Z. Bauman:

Partilhamos a suposição, que permanece no fundo do nosso imaginário intelectual

e que não tem qualquer fundamento histórico (embora um cacoete do ensino da

história insista em aboná-la), segundo a qual teria havido um momento agonístico

em que os médicos, movidos de generosidade ou, talvez, vagamente entediados

da monotonia de uma atividade constante entre a escrivaninha e a mesa de

exames, teriam saído às praças para trazer os melhores frutos do seu trabalho à

coletividade dos homens e aos seus negócios, ou seja, ao Estado. Ao Estado

trouxeram o conhecimento das doenças, suas analogias, seus sistemas de

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61

referência, suas medidas de prevenção, enquanto o Estado lhes infundia em troca

a sedução do planejamento, o apreço à minúcia burocrática, o gosto dos

protocolos da administração, o sentido da organização e... as promessas da

epidemiologia (Bauman 1998).

A tarefa de avaliar os serviços teria vindo em seguida, como seu

instrumento e decorrência natural, para traduzir linguagens tão diferentes de um

campo e outro, sendo que as avaliações de qualidade, é o que se supõe, teriam

trazido a esta linguagem comum uma sensibilidade esquecida na frieza das

escalas e das grades numéricas.

Foucault, em “O Nascimento da Clinica”, oferece desse episódio a

versão definitiva. É na França do século XVIII que a noção de epidemia aflora

como uma forma particular de doença, autônoma e coerente, e a epidemiologia

está em vias de institucionalizar-se com um suporte que já

“não é a percepção da doença em sua singularidade; é umaconsciência coletiva de todas as informações que se cruzam,crescendo em uma ramagem complexa e sempre abundante,ampliada finalmente até as dimensões de uma história, de umageografia, de um Estado”.

Por ocasião da Revolução Francesa, vê-se o surgimento do dois

grandes mitos “cujos temas e polaridades são opostos”: o da profissão médica

nacionalizada, investida dos mesmos poderes sobre os corpos de que se investe

o clero sobre as almas e o mito de uma sociedade sem doenças e sem paixões,

restituída à sua saúde de origem (Foucault, 1994).

Os primeiros anos foram de atmosfera pesada e relações turbulentas

em que só a intervenção governamental pôde apaziguar o convívio entre a

nascente saúde pública e a medicina clássica.

A partir de então, enquanto prevaleceu o convívio, senão harmonioso,

pelo menos cortês, entre a medicina clínica e a epidemiologia, as experiências

privadas do sofrimento e da causação singular da doença puderam ser

assimiladas ao quadro das regularidades em que se agregam os fenômenos

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submetidos aos termos da lei dos grandes números. A própria psiquiatria,

enquanto permaneceu fiel às matrizes conceituais da ciência positivista em que

vicejou no mesmo terreno da chamada biomedicina, acomodou-se a essa

coexistência sem colher os melhores frutos da estação, mas também sem

maiores desconfortos.

3. Epidemiologia

A epidemiologia nasceu destas transformações que engendraram a

ciência estatística posta a serviço das políticas de saúde do Estado, como estudo

da determinação das doenças e sua distribuição na população mediante o

instrumental estatístico. Compartilha com a estatística a aptidão a ser o mais

afiado instrumento para abrir um atalho do saber ao poder, para reticular o saber

na tela do poder. Por isso o seu curso acompanha tão de perto as modificações

por que passa o poder instituído em governo, razão pela qual vai, num momento

seguinte e gradativamente, no ritmo em que se firma o ideal do estado

previdenciário e com o aporte conceitual da sociologia e das ciências humanas,

passando por um novo giro em seu quadro conceitual e imprimindo maior ênfase

aos métodos de mensuração da qualidade de vida das populações, vistas não

mais somente como dados numéricos, mas também como organismos sociais.

De todo modo, a epidemilogia nasceu com o objetivo de tratar as

experiências singulares do adoecimento humano “como coisas” (na acepção de

Durkheim) que se encadeiam em seqüências lineares e se agrupam em

conformidade com a lei dos grandes números, distribuídas em populações ou

estendendo-se como manchas sobre a superfície límpida do padrão de

normalidade. A despeito das inegáveis contribuições trazidas pelo conhecimento

epidemiológico à saúde pública, tanto em sua dimensão investigativa quanto na

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sua capacidade de fornecer instrumentos para o planejamento e a administração

de serviços e programas de saúde, o modelo de produção de conhecimento

adotado pela epidemiologia dá sinais de exaustão, havendo em seu próprio meio

quem clame pela busca de novos modelos conceituais e metodológicos que

permitam operar com outras lógicas de conexões causais (Castiel, 1994).

Um grande afresco histórico da epidemiologia pode ser abarcado em

três grandes etapas, segundo nos sugere Castiel, a partir da periodização

proposta por Rodrigues da Silva (Castiel, 1994). Constituiu-se primeiramente,

antes de Pasteur, como “epidemiologia pestilencial e dos miasmas” que vigorou

ao longo da segunda metade do século XIX.

Com a revolução bacteriológica de Pasteur, inova os seus parâmetros

e se reapresenta como a clássica “epidemiologia dos modos de transmissão”,

adotando como objeto de investigação as doenças infectocontagiosas, modelo

que se estendeu do final do século XIX até os anos 50, período em que a extensa

influência que teve estendeu-se até aos domínios da psiquiatria, campo onde

inspirou os projetos de psiquiatria preventiva com os seus mal sucedidos e

persistentes ensaios de universalizar o chamado modelo sifilítico da doença

mental.

Esta matriz epidemiológica vigora ainda com grande vitalidade em

pesquisas de prevalência de transtornos mentais, embora quase sempre cercado

de restrições. Entre as limitações à sua aplicabilidade destacam-se: a indefinição

de critérios decorrente da ampla variabilidade na delimitação de fronteiras entre o

normal e o patológico; as controvérsias que colocam em xeque a universalidade

dos critérios (sobretudo em estudos multicêntricos); o cálculo do peso relativo

atribuído às características sociodemográficas e práticas disciplinares adotadas

por famílias e instituições como fatores de risco e proteção; a mensuração de

impactos que dependem de métodos de combinação de dados fornecidos por

múltiplos informantes e da extensão do campo operacional do serviço ou sistema,

etc.

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64

No âmbito da saúde pública, esse modelo epidemiológico veio a ser

vítima, em certa medida, do seu próprio sucesso. Tendo contribuído

significativamente para os projetos de prevenção das doenças transmissíveis e

erradicação de vetores, veio a deparar-se com a elevação da expectativa de vida,

sobretudo nos países mais desenvolvidos, e, conseqüentemente, com o

acelerado crescimento das taxas de prevalência das doenças próprias do

envelhecimento.

Diferentemente do que havia ocorrido na passagem do primeiro ao

segundo período, na fase que se seguiu houve uma ruptura de linha mais

acentuada, inscrevendo uma descontinuidade a exigir uma renovação mais

extensa de sua reescritura. Com a “epidemiologia dos fatores de risco”, que se

anunciava já na década de 60, a investigação epidemiológica foi gradualmente

confrontando-se com dificuldades para operar com a categoria fatores pela

insuficiência desta abstração redutiva para dar conta de variáveis no nível micro,

muito mais complexas e imponderáveis por suas conexões com a realidade sócio-

cultural, como as condições ou o estilo de vida.

Os padrões metodológicos e as matrizes conceituais baseadas na

ciência de orientação positivista trar-lhe-iam a ameaça constante de confusão de

tipos lógicos, que foi a denominação dada por Bateson para se referir à

impropriedade de se nivelarem variáveis relativamente estáveis do nível macro

(classe, gênero, etnia) e variáveis instáveis do nível micro (crenças, hábitos,

valores).

Nessa paisagem nova, em que a realidade subitamente aparecia de

forma mais complexa e diversificada, foram surgindo importantes mudanças a

sinalizar para a substituição dos paradigmas até então vigentes e para uma

valorização de métodos etnográficos de investigação que viriam a formar as

fontes de suprimento epistemológico para os modelos hoje mais celebrados de

avaliação de qualidade, com aplicação privilegiada na esfera da saúde mental.

Essa transição, no entanto, não se dá sem conflitos. Falta à

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epidemiologia um aparato conceitual mínimo que a encoraje a abdicar de uma

tradição epistemológica que lhe prestou tantos e tão bons serviços. Não há como

abandonar de todo uma “compulsão à categorização”, na expressão de Castiel,

que atenda à necessidade cognitiva de se manipular eficientemente grande

quantidade e variedade de objetos e, mediante interseções e afinidades entre

grupos, organizar esses objetos em conjuntos e classes gerando tipologias

(Castiel, 1999).

Acrescenta o autor que a operação de construção de categorias e

classificações não pode prescindir de dois procedimentos seqüenciais básicos: a)

seleção, que consiste em se excluírem do universo de investigação os objetos

que, a partir de um determinado critério que os faça reconhecíveis como

diferentes de um conjunto de objetos, não se adequam a um determinado fundo

comum e geral; b) coleção, que consiste em se incluírem no universo de

investigação, por algum critério de identidade, os objetos cujas diferenças

restantes podem ser minimizadas em relação à sua adequação a determinado

fundo comum e geral. Dois tempos, portanto, sucessivos e opostos, de separação

e de reunião; e dois critérios correlativamente opostos, de diferença e de

identidade (Castiel, op.cit.).

Esta matriz e este instrumental metodológico, remanescentes do

modelo de causação herdado do período da epidemiologia das doenças

transmissíveis, continuam exibindo grande vigor. Sua vitalidade subsiste com a

legitimação dada pela aura de cientificidade que os cerca e, como se verá, as

avaliações, mesmo as de qualidade em saúde mental, não são indiferentes à

influência desta lógica conjuntista-identitária, na expressão de Castoriadis,

marcadamente quantitativista, que adota como instância primeira. Considere-se

que, segundo as teorizações mais avançadas, as intervenções em saúde mental

visam produzir ou favorecer a produção de singularidades, isto é, de diferenças, e

logo se tem noção da extensão das dificuldades em que se enreda ao tentar

conciliar-se com um instrumental metodológico que exige, como passo operatório

preliminar, o apagamento, a homogeneização das diferenças.

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66

Todavia, na curvatura da vara sob o peso da exigência metodológica

há o perigo de que esta venha a romper-se deixando aparas que denunciam a

precariedade de uma virada paradigmática que se dobra pesadamente e está

ainda longe de cumprir-se, sendo lento o ritmo das mudanças no cenário da

ciência normal, no sentido desta expressão em Kuhn (Kuhn,1997). Na recente

evolução dos modelos epidemiológicos rumo à gestão dos riscos e à instauração

de uma nova modalidade de prática clínica nomeada medicina baseada em

evidências - cuja origem e desenvolvimentos percorrem uma trajetória própria e

sem relação tão direta com o tema aqui apresentado - revela-se com clareza a

persistência dos tradicionais quadros subjacentes à sua construção teórico-

metodológica.

4. A bolsa dos riscos

Não é de se desdenhar, aliás, o deslizamento semântico por que

passou a noção de risco. Originalmente vinculada às vicissitudes da aposta em

jogos de azar, a noção de risco migrou primeiramente para o terreno dos

negócios dando expressão às incertezas quanto às possibilidades de lucro ou

prejuízo na aplicação do capital, chegando finalmente à bifurcação que a levou,

por um lado, a indicador da probabilidade de desenlaces negativos, por exemplo,

no manuseio de materiais perigosos (explosivos, combustíveis, material

radioativo, etc.) e, por outro lado, no terreno da biomedicina, o termo, tendo sido

aplicado para dimensionar os perigos decorrentes da utilização de tecnologias e

procedimentos médicos, veio a formar o sintagma fatores de risco para significar

marcadores que visam à predição de morbimortalidade futura (Castiel, 1999). Por

extensão, a noção de risco foi apropriada na esfera psiquiátrica, associada a

certas condições presumivelmente favorecedoras da eclosão de distúrbios

mentais.

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67

A idéia de uma combinatória de fatores abstratos que tornam mais ou

menos provável a ocorrência de modos indesejáveis de comportamento implica

um alargamento do próprio conceito de determinação ambiental sobre as

condições gerais de saúde e dilata horizontalmente as oportunidades de

intervenção, na medida em que se tornam mais indistintas as fronteiras entre

indivíduos e grupos saudáveis e não saudáveis, dissolvidas na homogeneidade

da doença potencial que a todos coloca em risco. A um momento inicial, em que a

categoria risco é elevada ao estatuto de entidade suscetível de intervenção,

segue-se a organização de um aparato de ações terapêuticas a serem

consumidas, que se estende desde medidas como as das clínicas de perda de

peso e de reposição hormonal até as intervenções mais invasivas como as

cirurgias preventivas.

Sob a denominação de fatores de risco é a noção moderna de pessoa

que se torna evanescente, porque dissolvida sob a instauração do objetivismo

tecnológico que a apaga numa combinatória abstrata de elementos

intercambiáveis (Castel, 1987).

Autores como Foucault ou, mais recentemente, Beck, Giddens, Castel,

Deleuze e Antonio Negri, para citar apenas alguns, examinaram em larga

extensão as modificações acarretadas nas formas de vida por estes dispositivos

que radicalizam o regime da sociedade disciplinar, nos termos de Foucault, e

abrem caminho para uma nova sociedade mundial de controle em que tende a

vigorar um difuso clima de risco generalizado, que Giddens remete ao fenômeno

denominado colonização do futuro (Giddens, 2002).

Nesta direção, podemos ampliar a noção generalizando o risco como

um traço característico da assim chamada sociedade pós-industrial. Richard

Sennett nos lembra ser esta já uma condição denunciada por Ulrich Beck ao

declarar que

“na modernidade avançada, a produção social de riqueza ésistematicamente acompanhada pelas produções sociais deriscos”,

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afrouxando as redes relacionais e acelerando a mobilidade social a níveis detensão quase insuportáveis, em que o sucesso ou o fracasso se alternam napertubardora ambigüidade de se estar sujeito a qualquer hora a ter de recomeçardo zero (Sennett, 1999). Prosseguindo em seu argumento com vistas ademonstrar as insufuciências da modelização estatística, Sennett afirma:

“Cada rolar dos dados é aleatório. Posto em outros termos, faltamatematicamente ao risco a qualidade de uma narrativa, em queum acontecimento leva ao seguinte e o condiciona.” (Sennett,op.cit.).

Para Ulrich Beck e Anthony Giddens a noção de risco é um dos traços

distintivos e centrais da sociedade contemporânea, devendo ser considerada

fundamental ao entendimento de como tanto especialistas quanto leigos

organizam um mundo social em que o futuro é continuamente atraído por força

gravitacional para o presente (Giddens, 2002). Mais do que um sentimento difuso,

há uma consciência generalizada da irracionalidade do sistema capitalista que, ao

substituir a “satisfação controlada das necessidades pelos caprichos do mercado”

criou o monstro profetizado por Marx, globalizou o risco, tanto em intensidade

(ameaça nuclear, calamidades ecológicas, etc.), como em extensão,

disseminando-o a todo o ambiente natural e humano (Giddens, 1991), de tal

modo que a confiança na perícia já não é fruto de escolhas, mas um salvo-

conduto e um refúgio contra a ansiedade existencial.

Creio que essas considerações sobre cultura do risco, com toda a

carga que implica de impossibilidade de afastar o fantasma do retorno ao zero e

de corrosão do sentido da história, podem servir como uma das fontes de

explicação do novo tipo de subjetividade narcísica contemporânea marcada pela

substituição da experiência do conflito pela da insuficiência que, segundo

Ehrenberg (Ehrenberg, 2000), condiciona a “epidemia” da síndrome depressiva

atual abatendo-se sobre um novo tipo de subjetividade marcadamente narcísica,

a do “indivíduo insuficiente”.

Penso que este enquadre poderá ajudar a elucidar de que modo a

disseminação da noção de monitoramento dos riscos propiciou o surgimento da

epidemia do culto ao corpo e deste perfil paradoxal do sujeito contemporâneo

hedonista e praticante da técnicas de bioascese e que passa a ser

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69

responsabilizado pelo autocuidado (self-care), com a conseqüente ressignificação

da categoria autonomia e a correspondente desresponsabilização do Estado em

sintonia com a lógica da privatização da onda neoliberal.

A própria reflexão psicanalítica, por sinal, parece atordoada no jogo

das vertiginosas mudanças diante de um self conformista e por toda parte

tecnologizado e ocupado por um corpo paradoxalmente sacralizado e banalizado,

a girar estonteado num cenário em que a política degradou-se à apropriação

privada do espaço público e ao controle público das condutas privadas

(Eherenberg 2001). Imersos nessa ideologia, os indivíduos lançam-se à busca de

reasseguramento do próprio corpo, de suas sensações, vigor e beleza,

guardando-o de todas as ameaças e buscando no atendimento médico a

oportunidade de vê-lo, devassar sua intimidade e espiá-lo como a um sistema de

roldanas em atividade9.

Em sua trajetória do centro às periferias povoadas de gente pobre, o

vetor que propaga essa epidemia passa por mutações que “clinicamente” se

manifestam na confiança ambivalente em relação aos “técnicos”, no reforço das

barreiras lingüísticas entre técnicos e pacientes e numa espécie de

desmapeamento que usurpa do pobre as referências de territorialidade existencial

que a tradição havia assegurado aos seus antepassados, esvaindo-se tudo sob o

peso de uma ameaça sem rosto. Não creio que estejamos ainda em condições de

imaginar um método avaliativo que expresse o impacto dessas mudanças.

Em que medida essas análises prevalecem com a mesma nitidez nas

populações que ainda pautam as suas vidas pelo ciclo das estações nas zonas

rurais e nos pequenos centros urbanos? Embora pelas vielas de chão batido dos

subúrbios e dos grotões ou de uma “cidadezinha qualquer”, com “casas entre

bananeiras (e) mulheres entre laranjeiras” (como descreve o nosso poeta

Drummond) desse nosso pobre país periférico sejam menos visíveis os sinais

9 Conforme o depoimento que recentemente ouvi de uma enfermeira de um posto do PSF (Programade Saúde da Família), em Ubá, MG, os pacientes já chegam aos médicos dizendo diretamente o quequerem deles: uma guia para obter uma tomografia, um ECG ou um EEG ou uma endoscopia. Emsuma: o médico é o despachante para os procedimentos de vistoria do corpo.

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70

dessa sociedade mundial de controle que a todos atira na voragem do risco, a

equivalência dos efeitos que engendra propaga-se por conexões intermediárias,

modificando aspectos íntimos da vida das pessoas em todas as camadas sociais.

Pode ser detectada sob outros modos de configuração, sendo quiçá a mais tenaz

a dura experiência de miserabilidade e vulnerabilidade que faz da tarefa de

sobreviver uma aposta hobbesianamente impiedosa, sob a luz azulada das telas

de TV e os apelos de formas amplamente difundidas de comportamento e

consumo, contra os perigos da descrença na capacidade de nossas instituições

de garantirem mínima proteção para que a vida não seja meramente supérflua.

Num momento de desmaterialização dos fundamentos da economia, a

velha cisão da vida como fato (zoé) e da vida com forma (bios) vai sendo

abandonada e escapando ao próprio poder do Estado e da governantabilidade

para alcançar a todos e qualquer um e regular os serviços que, nas palavras de

Pelbart, requerem e formatam a subjetividade (Pelbart, 2000). Entre virar as

costas segregando uma experiência existencial e incluí-la mediante uma presença

intrusiva, dos serviços da reforma espera-se a delicadeza de apresentarem-se

como um “ambiente facilitador”, na bela imagem de Winnicott.

É nessa encruzilhada em que epidemiologia e saúde mental se dão as

mãos e em que, diante da alma convertida em expressão do corpo capturado nas

malhas da biopolítica, concentra-se o perigo de se abrir a caixa de Pandora e

alargar-se desmesuradamente a noção de risco e de gestão dos riscos.

Esse novo direcionamento da epidemiologia para a gestão dos riscos

arrasta consigo um outro tipo de desdobramento que se reveste de algum

interesse para o desenvolvimento deste trabalho. Ele comparece, senão

isoladamente, como fator de importância decisiva, na origem da atual proposta da

mencionada medicina baseada em evidências, concentrada sobre a tomada de

decisão como resultado da integração entre a perícia clínica individual do médico

e o conjunto de evidências clínicas externas obtidas por pesquisa sistemática, aí

incluídos planejamento e desenho de pesquisas clínicas e métodos estatísticos

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71

Ganha importância a análise das probabilidades e a avaliação dos

riscos. Aparentemente a metáfora do risco tem o poder de despertar maior zelo

pela consideração de probabilidades, com a qual tem em comum a propensão a

corromper os eventos à condição de dado e traduzir a experiência nos termos de

inventários de procedimentos. A esta tendência geral, como facilmente se

depreende, não está imune a psiquiatria, que a recebe tanto mais efusivamente

quanto maior a sua inclinação à vertente biológica de parâmetros biomédicos e à

reconciliação com as aspirações por padrões de controle e prevenção.

Pela primeira vez na história da medicina uma certa posição de

exterioridade da epidemiologia clássica em relação à clínica concreta é rompida,

dando à epidemiologia o ingresso ao âmago do ato clínico. E, curiosamente, isto

se faz às custas do sacrifício da narrativa e da história clínica em favor da

instantaneidade dos cruzamentos de dados como solo para o diagnóstico e

bússola para o tratamento. Que diagnóstico, contudo, se pode esperar de bancos

de dados e reunião de variáveis? Esse suposto diagnóstico, sem corpo e sem

narrativa, já não é diagnóstico, um pensamento que liga a narrativa a um

oferecimento, mas um “desenho”, quebrando-se assim o liame entre diagnóstico e

tratamento.

Seria ingenuidade supor que os serviços públicos de saúde mental

possam resistir incólumes às reverberações dessa “cultura do risco”,

especialmente quando têm de responder às exigências de resolutividade e

converter os seus conceitos e atividades em indicadores. Resta saber se a

solução da mudança de paradigma para a pesquisa avaliativa oferece o

passaporte para que opere com uma outra lógica, em que não seja irremediável o

sacrifício da efetividade para salvaguardar escolhas éticas.

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72

5. Epidemiologia e avaliação

De todo modo, a saúde mental aguarda pelos resultados dessas

reconfigurações no âmbito da epidemiologia. Esses rearranjos, contudo, não

resultam em progressões em linha reta. Apesar dos perigos de se cair em

excessivo esquematismo, pode-se afirmar que a epidemiologia contemporânea

orienta-se para as abordagens que incluem o problema dos riscos mediante

desenhos que aliam métodos mais rigorosos de cálculo de probabilidades e

modelização matemática, aventurando-se noutra direção alguns epidemiologistas,

atentos à região ainda nebulosa dos fenômenos de interação e sinergismo, que

permite a agregação de elementos de que emerge a qualidade como distintiva de

propriedades novas em relação aos componentes individuais (Castiel, 1994).

A atmosfera efervescente dessas mudanças paradigmáticas, ao

mesmo tempo em que acena com novas possibilidades de quadros de referência

para a avaliação de qualidade, deixa no ar uma nuvem de incertezas que bem

caracteriza o momento de instabilidade em que uma tradição científica encontra-

se em vias de ser abandonada e o marco de início de uma nova tradição ainda

não se firmou.

Como se depreende, a via de acesso predileta que leva em conta a

questão da cientificidade é a que levanta a polêmica inesgotável acerca dos

paradigmas e da intransigência da racionalidade cientifica moderna quanto às

condições de controle, separação, objetificação, abstração, quantificação e

generalização e outras operações do conhecimento com que a ciência natural

modelou a ciência social e que, argumenta-se, deixam escapar o essencial dos

modos de existência concreta do objeto de estudo (Santos,1993).

Uma condição preliminar à definição de uma base conceitual que sirva

de instrumento às avaliações do sucesso ou fracasso, isto é, da qualidade dos

serviços de saúde (inclusive de saúde mental) pressuporia uma delimitação mais

precisa do termo “saúde”, cujas bordas parecem avançar para além das

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73

tradicionais fronteiras da assistência, anexando domínios que lhe eram estranhos,

tema explorado desde Foucault pela vertente de pensadores geralmente

agrupada sob a denominação de pós-estruturalistas. Pois de pouco ainda nos

serve a definição de saúde pela OMS e já não se sabe se triunfa a “gorda saúde

dominante”, bolha onívara e abarrotada de sensações, ou um “um inacabamento

essencial”, frágil e resistente para dar conta de liberar a vida onde quer que ela

busque formas novas para manifestar-se (Pelbart, 2000).10

Estão em jogo a definição de ciência, suas fronteiras epistemológicas

e a fidedignidade de parâmetros que contra elas se insurjam. Habilitar-se ou não

ao selo de cientificidade é uma questão possivelmente valorizada além do

necessário. Pois, no que concerne à cientificidade, o fato de não se chegar

exitosamente a alguma afirmação conclusiva pode ser, para o ponto de vista do

presente estudo, menos que um fracasso, um fim desejável.

De todo modo, comecemos por constatar que entre as imposições da

técnica e as exigências da ética, a avaliação de qualidade hesita. Se a ênfase

recai sobre os aspectos técnicos, conforme a modelização de Donabedian, opera-

se com uma opacidade que faz escoarem-se entre os dedos os pontos de

singularidade ou, nos termos de Guattari, instauram-se linhas de

reterritorialização que velam a produção de sentidos a partir de elementos de

ruptura de sentido (Guattari, 1996). Se, pelo contrário, o pêndulo desloca-se para

o polo da ética, a avaliação pode ambicionar a captura da singularidade contida

no que Hannah Arendt chama de “eventos raros”, que impelem o homem ao

contato com a sua condição plural e imprimem o sentido de incessante recomeço

à sua existência, tendo, porém, de arcar com as suspeitas de ensaísmo ou ser

desdenhada como exercício literário.

Entre as tentativas de se contornar esse impasse, destaca-se o

paradigma do pensamento complexo, que tem inspirado reformulações

importantes no campo da avaliação de qualidade, cabendo-nos averiguar se é

indispensável recorrer-se a ele e em que medida as expectativas que desperta

10 As expressões entre aspas foram retiradas do autor, op. cit., p. 63 e ss.

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74

são atendidas.

Quanto à dimensão política das avaliações de qualidade, importa-nos

compreender as razões de ordem conjuntural que desencadearam ou

intensificaram o interesse pela aplicação dessas pesquisas, verificar quem é o

maior beneficiário e de que forças dispõe para fazer prevalecer, clara ou

veladamente, seus próprios interesses, bem como o que resulta deste jogo em

termos de recuos ou avanços da reforma psiquiátrica.

A esta altura devo dizer, como, de resto, já se depreende, que o tema

da avaliação de qualidade não estará sendo examinado aqui de forma minuciosa

e exaustiva, em si mesma, digamos, embora não deva reduzir-se a mero pretexto

para o desenvolvimento de reflexões que mais ou menos remotamente evoca.

Deverá ser uma referência recorrente, constituindo-se como uma espécie de

marcador de uma certa trama de problematizações, uma moldura ou um

desfiladeiro a margear e marcar a cadência de algumas correntes de problemas

cujo ponto de coalescência são as difíceis relações entre o cuidado ao portador

de sofrimento psíquico e o projeto de facultar-lhe o ingresso ao mundo da

cidadania.

As avaliações de qualidade dos serviços de saúde mental têm,

inevitavelmente, o efeito de desmascarar alguns dos alibis e barrar as tentativas

de saída para a questão das relações entre cidadania e loucura pela via da

abstração. Uma das tarefas que se propõem, e que sublinho é, na aparência,

muito simples: trata-se de seguir um método que estenda a categoria da

autonomia ao longo de uma escala de modo a que se possa situar o paciente em

algum ponto desta escala, um método que traduza a cidadania em números, que

forneça régua e compasso para medir o nível de satisfação do paciente com os

serviços, etc., como se fosse possível realizar o sonho de Lewis Carroll de um

universo repleto de coisas que se podem ordenar por classes, sendo uma delas a

classe das coisas impossíveis.11

11 v. Borges, J.L – Prólogos (Ed. Rocco, RJ, 1985), p. 126.

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75

É claro que só na aparência estamos diante de respostas simples,

porque só na aparência a sucessão de quaisquer eventos ou objetos particulares

pode reunir-se nos conjuntos dos discursos universalistas, não faltando exemplos

na história em que se insinua a lógica particularista subjacente aos discursos

universalistas, tão falaciosos em sua consistência quanto perigosos em seus

efeitos (Ortega, 2000).

Quem está habituado à aplicação de pesquisas qualitativas

certamente não as reconhecerá nesse esboço, acostumado que está a associar

imediatamente a idéia de avaliação ao aparato técnico que inclui critérios,

normas, métodos, indicadores e procedimentos aplicáveis a organizações,

serviços ou programas. O aspecto muito particular aqui destacado justifica-se por

situar-se numa desses pontos de bifurcação ainda largamente inexplorados, onde

a idéia de valor sofre um giro conceitual que permite a passagem quase

desapercebida do mundo dos números ao mundo das categorias a que a filosofia

antiga referia-se como transcendentais.

Há primeiramente um aspecto que tem sido curiosamente

negligenciado nas discussões sobre a avaliação de serviços e que se situa no

campo político-administrativo. Pouco se enfatiza que a sua aplicação generalizou-

se e a produção de textos acelerou-se depois de desencadeado, há pouco mais

de três décadas, um extenso processo de mudanças na concepção do Estado e

de suas relações com a sociedade nos países ocidentais, cujo ponto de inflexão

pode ser situado na reorientação dos governos Thatcher e Reagan tendo como

rumo a substituição do modelo do Estado do bem-estar social pela concepção

gradualmente hegemônica do Estado mínimo da versão neoliberal, redesenhado

nos moldes gerenciais de inspiração empresarial, como ficou visto nas linhas

iniciais do presente capítulo. Esta questão de modo algum deve ser considerada

irrelevante, como fiocu visto, se se leva em conta a íntima conexão entre a

ideologia12 do managerialism e a preocupação com a apuração de informações

por processos avaliativos.

12 O conceito de ideologia será desenvolvido adiante, no cap. V.

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76

Um segundo aspecto sobre os estudos acerca da avaliação (sobretudo

as de qualidade), sua gênese, seus processos e resultados, seus protocolos de

procedimentos e sua ambição de confiabilidade, incide sobre a sombra de

cientificidade que os acompanha e refere-se à exigência de modelos e

parâmetros, cuja estabilização supostamente auxiliaria a também estabilizarem-se

noções em conflituoso condomínio e ainda ambíguas, fornecendo critérios que as

organizem de forma mais clara e distinta, a salvo de certa improvisação (talvez

inevitável) quando se é instado a prematuramente defini-las para dar conta de

exigências de natureza estratégica em meio às injunções do campo político

pesadamente conflagrado em que a reforma psiquiátrica se implanta. O resultado

desse esforço reflete-se numa vaga impressão de circularidade discursiva, na

irremediável provisoriedade de critérios para definir indicadores pertinentes e nos

obstáculos para se atingir uma certa coerência entre os saberes em jogo no

processo avaliativo.

O terceiro ponto a ser posto em relevo decorre das considerações

acima. Especificamente, a avaliação de qualidade em saúde mental pretende

aferir em que medida se experimenta satisfação com os resultados do programa

ou serviço. O conceito de satisfação é ainda mais inapreensível: para as

finalidades da avaliação refere-se aos resultados, tendo em vista um largo

espectro de características consideradas desejáveis para a qualidade dos

serviços, como eficiência, efetividade, eqüidade, aceitabilidade, acessibilidade e

adequabilidade (Akerman e Nadnovsky, 1992). No projeto da reforma espera-se

que o resultado que figura como um dos componentes da qualidade seja a

medida do acesso do louco ao espaço público. Há uma tendência difusa e nem

sempre explícita a se traduzir cidadania nos termos de algumas experiências

comuns que, quando não toscamente assimiladas às noções de desenvoltura e

competência social, aparecem em situações para as quais foram sendo

apropriados termos como participação, acesso aos bens sociais, autonomia ou

contratualidade.

Talvez sejam estas as formas de expressão possíveis (e desejáveis?),

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77

o que não nos impede de reconhecer nestas categorias uma perigosa

proximidade dos ideais do mesmo gênero da aprendizagem de social skills

training das psicologias adaptacionistas. É uma discussão que envolve as difíceis

relações na interseção dos planos da psicologia, da saúde pública e da política.

Meu ponto de vista é que se deve preservar uma separação mais cuidadosa e

não se fundir na mesma liga os atributos desejáveis no plano das regulações do

comportamento social e os atributos próprios da cidadania inerentes ao plano

político.

Pretendo agora acrescentar duas ou três palavras ainda a respeito do

segundo aspecto mencionado, o que visa a questão da cientificidade. Mais que

qualquer outro, o campo da saúde mental tem a propensão a constituir-se como

zona de confluência de diversas orientações teórico-clínicas e paga um preço por

esse ecletismo. No que concerne especificamente às avaliações de qualidade,

cristalizam-se expectativas diferentes e virtualmente conflitantes frente ao dilema

com que se depara considerando-se o lugar de onde se fala, razão por que tende

a definir linhas de cisão como, por exemplo, entre “técnicos” e “administradores”.

Se pretende – como supostamente precisa pretender – enunciados com as

salvaguardas da cientificidade, sua posição é de distanciamento e neutralidade,

condição que se exige para tratar como objeto de ciência o foco de interesse e

que valoriza aspectos como a racionalidade do planejamento e da gestão. Mas se

se pretende – e idealmente precisa pretender-se – um olhar sobre as infinitas e

impredizíveis possibilidades da palavra e da ação singular, reconcilia-se com a

proximidade e o mundo dos afetos, da compaixão e da imaginação e tem de

renunciar à cisão sujeito-objeto correndo o risco de contaminar suas conclusões

de descrédito diante de olhos mais exigentes, ao tempo em que valoriza aspectos

da “clínica”.

Diferentemente do que se passou com o projeto francês da psiquiatria

institucional, que se estruturou apoiado no corpus teórico da psicanálise, o projeto

italiano de desinstitucionalização psiquiátrica (inspiração e referência da reforma

psiquiátrica no Brasil) não tem em sua origem um quadro teórico e doutrinário de

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78

contornos tão nítidos, o que certamente guarda coerência com sua tomada de

posição na interseção dos planos da clínica e da política e afrouxa os liames com

os parâmetros clássicos da avaliação.

Teremos de examinar, portanto (o que deverá ser tentado no capítulo

V), se os ensaios, freqüentemente primorosos, que se apresentam como

caminhos para a superação de um paradoxo conseguem ir além de exercícios

retóricos que não chegam a resolver uma situação de impasse.

Mudanças no plano da macropolítica acarretando o estilhaçamento do

modelo do welfare state e a reciclagem do darwinismo social; mudanças no

discurso psiquiátrico com o desprestígio das orientações dinâmicas e o

aggiornamento das teses fisicalistas, do preventivismo e da “psiquiatria de

resultados”; declínio do discurso da psicanálise nos meios médicos, nas

universidades e na mídia e seu confinamento em grupos, às vezes sectários e

ferozmente dogmáticos, que costumam dar a tônica aos serviços (apesar de

amiúde mostrarem grandes dificuldades para conciliar a sua prática clínica com o

espírito político da reforma) – eis os ingredientes de uma mistura explosiva que

faz do cotidiano dos serviços de saúde mental um campo de polêmicas e mal-

entendidos em que freqüentemente o melhor de suas energias se dispersa em

infindáveis disputas por hegemonias doutrinárias e de poder. Instada a retratar

este cenário turbulento, a avaliação de qualidade acrescenta às dificuldades

teórico-metodológicas que já tem as perplexidades do servo que tem de servir

não apenas a dois, mas a vários senhores.

Estamos, portanto, diante de um campo que se encontra numa etapa

ainda embrionária de desenvolvimento e já polarizado numa complexa rede de

aporias e contradições, razão pela qual pode ser esta uma boa ocasião para se

refletir sobre ele, ainda que o esforço que anuncio não prometa nenhuma

conclusão reveladora, pelo menos da perspectiva escolhida das avaliações de

qualidade, enquanto persistirem elas como um assunto que ainda compete para

sair de um certo limbo e ocupar lugar de destaque no cenário da reforma

psiquiátrica, pois, como diz Montale,

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79

”os inícios são sempre irreconhecíveis, quando se verifica algumacoisa é porque ela já está cravada com um alfinete”.

Talvez as coisas só possam ser conhecidas quando, como os insetos,

tenham as asas imobilizadas na ponta de um alfinete e, ao vivo, só possam ser

vagamente apreendidas no traço fugidio do vôo ou quando nos surpreendem em

raros e breves pousos. Roland Barthes sonhou a ciência do único e irrepetível,

uma mathesis singularis (e não universalis), diz Italo Calvino (Calvino, 1998).

Talvez o fascínio das avaliações de qualidade em saúde mental resida em sua

propensão a despertar em nós a nostalgia de uma ciência que se deixe roçar

pelas asas flutuantes e incertas de eventos vivos e singulares.

A súbita e vigorosa promoção das avaliações de qualidade em saúde

mental não pode, porém, ser desdenhada como mero artefato, pois representa

um recurso bastante concreto e valioso para a compreensão mais abrangente e a

consolidação dos serviços, razão suficiente para que o tema incite ao

aprofundamento da reflexão.

6. A dimensão ético-moral

Pretendo, por fim, introduzir com um comentário um outro tema ainda

não explicitado, mas que aparece como consubstancial e pontua toda a linha de

reflexão desenvolvida, posto que o projeto da reforma psiquiátrica é

reiteradamente definido como uma ética. A articulação dos temas da loucura e da

cidadania não se apoia na coerência dos geômetras, mas no imperativo do bem

comum e dos valores partilhados, que se traduz na moral entendida como

disposição do espírito para se conduzir entre os homens. Não há, portanto, como

esquivar-se ao tema da moralidade e não há possibilidade de se refletir sobre a

psiquiatria, o campo da saúde mental ou a reforma psiquiátrica sem se levar em

conta que estas instâncias estão impregnadas e repousam essencialmente na

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80

questão da moral. Não só porque a psiquiatria, desde Pinel, constituiu-se como

discurso da moralidade, como a apresenta Joel Birman, como também porque

qualquer projeto assistencial deste tipo intervém na textura das relações humanas

ou, nos termos de hoje, no campo da produção social do comportamento e da

ação humanos.

Do modo mais incisivo é inevitável reconhecer que identidade (ou

subjetividade) e moralidade são termos inextricavelmente vinculados (Taylor,

1989), porque foi no terreno da filosofia moral que germinou toda a reflexão sobre

o self como agente da experiência, cujo sentido expressa-se na busca do bem e

na aspiração de se viver a vida do melhor modo possível, implicando a justa

medida para as relações do indivíduo consigo próprio e com o outro. É com a

substância moral que encarna os valores partilhados que os sujeitos humanos

imprimem no ser os traços do dever-ser.

A reflexão moral, por seu caráter prescritivo, viu o seu prestígio

declinar pari passu com o a nova figuração que o desencantamento do mundo, na

expressão de Weber, reservava à ideologia da neutralidade, elevada à dignidade

de via exclusiva do acesso à verdade para a ciência moderna.

Entre os que se dedicam ao trabalho envolvendo valores e condutas

esta discussão propriamente moral costuma ser evitada por provocar um certo

desconforto devido à facilidade com que imediatamente são evocados

argumentos que reforçam a interdição ética sobre intervenções que possam ser

interpretadas como manipulatórias, doutrinadoras, normalizadoras, etc. Ignorar o

problema, todavia, não é o mesmo que suprimi-lo. Pois, reivindicar uma atitude

não moralizadora implica uma tomada de posição moral, no sentido em que a

moral deve ser entendida segundo a lógica de retorno funcional que a define

como encarnação de um princípio ou regra a guiar toda ação.

Por pudor ou por outras razões, falta ao projeto de reforma psiquiátrica

uma reflexão sobre os fundamentos da moralidade. Procura suprir esta carência

adotando velada e acriticamente o discurso sociológico, sem lhe contrapor

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81

determinação para questionar seus pressupostos. O próprio discurso sociológico,

contudo, furta-se à problemática da moral, pois, na afirmativa de Z. Bauman,

amoldou-se aos mesmos princípios de ação racional constitutivos do seu objeto

ou da imaginação do seu objeto, ou seja, pela inadmissibilidade da problemática

ético-moral, estranha aos critérios de cientificidade e racionalidade em que se

fundou a própria sociologia (Bauman, 1998), que, em sua forma larvar, foi física

social.

Penso que, no âmbito da clínica da reforma psiquiátrica, o reflexo

desta indefinição reaparece como uma sombra a exigir um esforço sempre

renovado para que o projeto assistencial não se deixe degenerar, mais ou menos

veladamente, numa das formas de reengenharia social que cristaliza padrões e

normaliza comportamentos. E, em suma, talvez seja este o traço mais

inapreensível a qualquer dos instrumentos da pesquisa avaliativa.

A reforma psiquiátrica tem como horizonte ético a extensão da

outorga dos direitos à esfera da loucura, o que a faz defrontar-se com o abismo

que separa a concretude dos fatos da vida da abstração das formas jurídicas do

público e do político. Ao discutir o paradoxo da formação dos estados de exceção

da ordem jurídica como

“um espaço anômico onde o que está em jogo é a força de lei semlei”,

G. Agamben afirma que as teorias sobre o estado de exceção põem de manifesto

a ameaça que representa a existência da mera violência como fato exterior ao

nómos que funda a lei, mediante o artifício de dar forma jurídica à força dos fatos

que eclodem no “espaço vazio de direito”. (Agamben, 2003).

Independentemente de se avaliar em que medida o estado de exceção

tende a se transformar em regra sob a condição em que a vida tem de submeter-

se à lei, cujo modelo abstrato jamais poderá fazer coincidir as suas fronteiras com

as do campo recoberto pela miríade de fatos concretos das formas de vida, a

legislação sobre a loucura tem de ser vista não como injunção conjuntural, mas

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como imposição estrutural de um estado de exceção permanente que reaviva a

intransponível contradição exposta na intersecção entre o nómos e o lógos.

Portanto, incluir a loucura no estado de direito sem uma revisão

radical da própria concepção da ordem jurídica e do ethos da modernidade seria o

mesmo que introduzir uma exceção à exceção. Em termos mais claros, não se

trata (embora estrategicamente seja este um objetivo indispensável) de estender

o manto do nómos ao espaço anômico da loucura ou de um reconhecimento do

“eu sei, mas mesmo assim”, mas de romper com a suposição de uma base

natural para o direito, explicitar e desconstruir o pressuposto tácito de que a

inserção na relação jurídica funda-se na capacidade inata de participar de um

processo “natural”, desconhecendo-se que este processo é o de valorização do

capital, fato que desmascara a ficção do “ser humano em geral” portador de

direitos diante da invenção social que define, sem explicitar, a natureza humana

pela sua inclusão nos domínios das formas de vida reguladas pelo trabalho ou

qualquer outra forma de inserção na lógica da produção capitalista.

Estas considerações revestem-se de especial importância sob dois

aspectos. Em primeiro lugar porque, por melhores que sejam as intenções e mais

vigorosos os gestos, o técnico de saúde mental jamais terá condições de livrar-se

da mauvaise conscience que o espreita de não poder ultrapassar a barreira do

olhar etnográfico com que se acerca do mundo estrangeiro da loucura, o que

pode tentá-lo a dizer que recusa a normalização da loucura sem poder ir além de

uma retórica de respeito à diferença que, em última análise, o faz caminhar às

cegas na incomensurabilidade de um núcleo duro, irredutível e inassimilável. Ou

dissolvê-lo e torná-lo assimilável a uma “natureza humana” definida pela lógica

que condiciona a “natureza humana” do próprio técnico em saúde mental à

imagem que forma de si próprio a partir da sua situação de classe e sua inserção

no mundo do trabalho.

Quanto a esse aspecto, há um outro ponto particularmente espinhoso a

merecer uma reflexão. Trata-se da centralidade da referência à lei (ou Lei) no

discurso que se difunde entre técnicos de saúde mental que visa, segundo parece

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do que me é dado ver da minha janela, a hegemonia da orientação lacaniana nos

serviços de saúde mental. Por desconhecer em profundidade o pensamento de

Lacan só posso restringir-me aos discursos que me chegam aos ouvidos partindo

de quem se apresenta como depositário fiel do pensamento lacaniano. Argumenta-

se que a concepção de Lei em Lacan não guarda relação alguma, ou apenas

relações alusivas, com a nossa concepção ordinária de lei.

Supõe-se que a relação do sujeito com os pequenos outros reais, como

afirma Castoriadis, se opere mediante a atualização de uma fantasmatização que

resulte na sua submissão ao sistema simbólico e à Lei,

“mas nunca se sabe qual é o estatuto da Lei (a “Lei” não existejamais senão como lei efetiva, determinada instituição social-histórica – como a linguagem, que é algo diferente de um“sistema simbólico”, não existe jamais senão como estalinguagem e tal linguagem)”. (Castoriadis, 1987) 13.

Para dizê-lo à maneira de Wittgenstein, seguir uma lei depende do que

se é capaz de fazer e não de como tal capacidade foi adquirida.

A “Lei”, portanto, teria supostamente precedência lógica sobre as

condições concretas em que manifesta os seus efeitos. Na linguagem ordinária,

entretanto, uma lei diz respeito não a alguma fundação metafísica ou a algo que se

realiza ex nihilo, mas a caminhos que podem (ou não) ser seguidos para a

realização do que se faz ou fala e não há sentido numa lei sem a relação interna

com o que a realiza.14 A rigor, nada impede que se admita que a Lei, em vez de ser

metafisicamente necessária, teria sido uma imposição de contingências culturais e,

conseqüentemente, nada impede que se imagine que a relação com o outro possa

vir a ser regulada sem a lei paterna ou (como supostamente teria ocorrido na pólis)

por oposição a lei paterna.

Portanto, a Lei que se invoca como referência e pedra de toque a definir

o destino de todo tratamento possível, não tem como distinguir-se tanto quanto se

13 Itálicos do autor (op. cit., p. 89)14 “Relações internas são relações que não poderiam deixar de ocorrer, por serem dadas juntamentecom os termos (objetos ou elementos rlacionados), ou serem (em parte) constitutivas desses termos” -Glock (1998), Dicionário Wittgenstein. (v. também o verbete “regra, seguir uma”).

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pretende, em suas ressonâncias discursivas, das concepções ordinárias do papel

da lei como garantidora da inserção dos indivíduos numa comunidade humana que

se confunde, nas circunstâncias presentes, com uma natureza humana regulada

pela expressões possíveis de uma forma de vida, a mesma forma de vida que, na

tradição ocidental, erigiu a mercadoria trabalho como condição de ingresso à

inclusão na comunidade humana.

A Lei só pôde ascender a esse estatuto semântico que implica a idéia de

atemporalidade e a essa eficácia simbólica, porque a crença que assim pretendeu

eternizá-la estava apoiada num imaginário cultural que designara à lei paterna o

papel de operador da interdição e da possibilidade absoluta de qualquer laço com a

alteridade.

Talvez esteja precisamente aí o maior equívoco em relação ao

entendimento do conceito de autonomia, que está na raiz da cidadania e que, na

essência, é um movimento sem apoio nem no “natural”, nem no “sagrado”, mas no

ímpeto prometeico de instituir o nomos como morada do homem.

Penso que a questão vai ainda além do que ficou dito acima de forma

abreviada e brusca. Embora correntemente se creia que o espaço político dilatou-

se para além das fronteiras do social, creio que se pode admitir que, inversamente,

o social estendeu-se sobre o político e o assimilou, provindo daí a sobreposição

das noções de política e poder e, portanto, da força da lei. A psicanálise não ficou

imune a este imbricamento e elaborou sua teoria apoiada na ética da não

condenação do desejo, cujo destino, no entanto, é o recalque quando barrado pelo

rochedo da Lei. Sua concepção subjacente de autonomia não é a mesma da

autonomia política. A autonomia a que o indivíduo ascende no fim (suposto) da

análise é diferente da autonomia que está no início da vida política. O sujeito

autônomo que adveio da psicanálise, apto à atividade refletida e deliberada,

interiorizou a lei que lhe dá ingresso ao convívio social (daí a sem-cerimônia com

que a tradição americana a aclimatou a fins adaptacionistas) e, nesse sentido,

trata-se de uma autonomia pré-política, situada ainda no plano social e no umbral

da política.

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85

De que autonomia se fala e de que lei se fala (ou se cala) quando se

avalia a emergência do sujeito autônomo nos serviços e programas de saúde

mental? Na vertente psicológica, e também psicanalítica, a noção de autonomia

refere-se a uma experiência idiossincrásica, definida em termos de autocultivo e

autodeterminação, situando-se no nível da imanência. Na vertente jurídica (e

política), a autonomia está imediatamente referida à transcendência do espaço

público, que é o do direito e da lei e dos valores republicanos. Referir-se à

autonomia sem essas distinções equivale a tomar a homonímia por igualdade de

significado.

Mereceria exame também, o que é de crucial importância no âmbito de

uma reflexão sobre as relações entre subjetividade e cidadania, o papel da

família, especificamente o do pai (ou, mais exatamente, o do Nome do Pai) como

instituinte da Lei. Seguindo a trilha aberta pelo pensamento de H. Arendt (a ser

vista em maior detalhe mais adiante) o regime da lei só emerge no espaço da

política que, por definição, institui-se apenas numa relação de oposição ao mundo

da família e das relações aí dentro arbitradas pelo pai. A rigor, o paterfamilias não

encarna a autoridade da lei, mas a arbitrariedade do poder de mando, como deixa

claro o mito freudiano do pai da horda. Mas, pelo menos desde Rousseau, pensa-

se erroneamente que a matriz do pacto que rege o mundo político é a família e

que compete ao agente político zelar pela vontade geral que funda o contrato

social.15

De onde viria a idéia de um significante paterno como possibilidade

única de barrar o gozo mortífero? J. Freire Costa assinala que a “viscosidade

libidinal”, que eterniza a lei paterna e tem como efeito uma estagnação no plano

teórico da psicanálise, só pôde tornar-se plausível no imaginário cultural

contemporâneo de Freud, quando o pai visível era uma realidade incontestável

em sua afirmação real, sua projeção imaginária e sua eficácia simbólica. O

argumento de J. Freire Costa vai adiante: não só seria possível abdicar do

referente paterno, como também a sua longevidade retrata a penúria do aparato

15 Cf. J. J. Rousseau, “Do Contrato Social”, Livro I, cap. I-VII e Livro II, cap. VI-VIII.

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teórico-clínico da psicanálise que, paralisado diante dos perigos da tirania dos

irmãos, não consegue imaginar um outro cenário que não o da “grande narrativa”

psicanalítica, que o condena à miopia diante das mudanças do perfil clínico dos

sujeitos numa sociedade que já dispensou a mediação do pai e passou a

gerenciar diretamente o sujeito e seus desejos (Costa, 2000).

Mas, há ainda outras conseqüências. Dessa resistência a “inventar

metáforas mais ricas para a realidade psíquica de hoje”, decorre uma cadeia de

referências à submissão à lei, ao papel da interdição, de transcendência das

figuras da autoridade e do pai, etc. que só permite pensar o poder como

interdição do excesso pulsional e só pensar o ambiente como barra ao gozo

mortífero, sem considerar que o poder

“revela-se também como capacidade do ambiente de tolerar, semrevide, o ímpeto das pulsões dirigindo-o para a expansão dacriatividade” (Costa, id.).

Esta imagem winnicottiana do ambiente como capaz de tolerar a

irrupção pulsional e lhe dar um destino evoca a imagem da ação “esposando a

circunstância” da visão taoísta e, em certa medida, sintoniza-se com a concepção

helênica da pólis como espaço aberto aos experimentos da ação humana

regulada pela liberdade de se estar entre iguais. Sem um urgente esforço de

renovação, uma teoria psicanalítica calcificada e obsecada pelo recalque não

disporá das ferramentas para recuperar a dimensão da política e da cidadania em

sua especificidade e poucas alternativas terá a oferecer contra uma crença

ingênua no papel do trabalho disciplinado como operador de uma organização

psíquica e de uma inclusão na esfera política impossíveis, pelo menos por essa

via.

A minha suspeita é de que os procedimentos adotados e os relatos a

que se tem acesso deixam transparecer certas crenças responsáveis por boa

parte dos seus impasses na avaliação de qualidade. Uma retomada mais rigorosa

dos conceitos envolvidos poderia iluminar todo esse campo, a começar pela

indistinção entre o mundo doméstico e do trabalho, por um lado, e o mundo da

Page 85: O umbigo da reforma psiquiátrica.pdf

87

política e da participação cidadã, por outro lado, corrigindo-se a crença de uma

transição “natural” e linear da esfera doméstica à social e desta à esfera política,

uma fonte de equívocos como o de se crer que o aprendizado do trabalho reverte-

se em ganho da autonomia que dá ingresso à participação no mundo da

cidadania. Imagino que esta questão torn-se mais clara no capítulo seguinte. E o

melhor a se esperar dele é que nos convide a reencontrar no seu viço dos

começos o conceito de cidadania, inspirando-nos a imaginar a cidade não como

lugar da contrição da lei e da culpa, mas da confiança e do prazer de criar.

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CAPÍTULO III:

PÓLIS

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89

1. Pólis e política

Vão-se esmaecendo de tal modo as fronteiras entre o mundo da

privacidade do recinto doméstico, o mundo formado pela fragmentariedade dos

lugares sociais de troca e o mundo do espaço público do teatro da liberdade e da

palavra, que se chega a crer numa continuidade entre esses diferentes topoi. A

família contraiu-se, a sociedade expandiu-se e a política desfigurou-se. A

dissolução desses pontos de descontinuidade resultou não apenas numa

crescente indistinção entre o privado e o público, como também no

empobrecimento da noção de política e no descaso pelo plano da cidadania.

As reflexões que se seguem, que pretendo estarem apoiadas no

pensamento inovador de Hannah Arendt, destinam-se a tentar recuperar o

conceito de cidadania com o objetivo de sugerir que os termos cidadania,

autonomia, político e seus correlatos, do modo como ordinariamente circulam e

são apropriados pelos projetos sociais, poderiam ser elevados a uma dignidade

perdida, recompensando-nos com um pensamento mais criativo e com imediata

repercussão nos referenciais que sustentam a ética do nosso trabalho e no

sentido das avaliações que dele se fazem.

Posicionando-se em aberta oposição à tradição milenar do

pensamento filosófico e religioso, que adotou como leitmotiv o tema da

mortalidade, Arendt elege a natalidade como categoria central de sua reflexão

teórica, como esclarece Lafer16. A natalidade como processo que reassegura o

incessante recomeço e que ilumina o mundo com o signo da esperança, não

floresce sob a redoma do isolamento na singularidade, mas na comunhão da

humanidade plural que só se desenvolve no espaço público que é o próprio

mundo humano, em que nos inserimos com palavras e atos, inserção que

“é como um segundo nascimento, no qual confirmamos e

16 Lafer, C. (1981) – “A política e a condição humana”, introdução a “A condição Humana”, de Arendt,H., op. cit.

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90

assumimos o fato original e singular do nosso nascimento físico.Seu impacto decorre do começo que vem ao mundo quandonascemos, e ao qual respondemos começando algo novo pornossa própria iniciativa” (Arendt, 1987).

Vernant assinala que o advento da pólis grega coincide com o

nascimento da filosofia, pois são indissociavelmente estreitos os vínculos entre

vida da Razão e vida da Pólis, isto é, a política; e que foi no plano da política que

a razão primeiro se exprimiu e se formou.

“O que implica o nascimento da pólis é primeiramente umaextraordinária preeminência da palavra sobre todos os outrosinstrumentos do poder” (Vernant, 1998).

A pólis grega, lugar da política e palco do cidadão, é o teatro para o

qual confluem a ação e o discurso; nenhum traço persiste ali das aflições e da lida

que prendem o homem ao reino da necessidade e das paixões e interesses da

vida nua, patrimônio de todo vivente; para ali convergem todos os elementos do

que eleva o homem ao humano e ao reino da liberdade. É o espaço em que os

grandes feitos, os eventos raros dignos de serem perenizados na memória das

gerações, encontram na narrativa a forma que os imortaliza. A “arte”17 política é,

portanto, primeiramente o exercício da linguagem; em segundo lugar, o domínio

da publicidade, no sentido do que só subsiste sob o olhar de todos e que se opõe

aos assuntos privados e processos secretos; é, por fim, a realização da

igualdade, pois é na condição de semelhantes unidos pela philia que a pólis

assegura a si o equilíbrio e a unidade (Vernant, 1998).

Em sua fundação a pólis não é o lugar do social. É interessante

observar que a palavra sociedade é de origem romana e não grega, e entre os

primeiros romanos indicava as alianças entre pessoas para fins específicos, como

o domínio, o crime ou os negócios e só muito mais tarde é que a definição

aristotélica do homem como zoon politikon (animal político) poderá equivaler a

17 O termo “arte” aplicado à política, como o faz Vernant, revela-se carente de rigor, pois naconcepção grega a arte, vinculada a um fazer sobre o material da natureza, não tinha a mesmadignidade da ação e do discurso. É também o que se depreende do pensamento de Aristóteles, paraquem “a arte é uma disposição relacionada com produzir”, enquanto a “sabedoria prática” não é arte,“porque agir e produzir são coisas de espécies diferentes” (Aristóteles, “Ética a Nicômaco”, livro VI, 4-5)

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91

animalis socialis (animal social), autorizando Santo Tomás de Aquino a declarar

que

“homo est naturaliter politicus, id est, socialis (o homem é pornatureza animal político, isto é, social)”.

A formação da sociedade, portanto, distingue-se da política, sendo a

societas uma versão do politikon apenas numa acepção tardia e muito limitada,

situando-se originalmente na verdade num outro registro muito distante do público

em seu sentido pleno. Historicamente, a fundação da pólis foi precedida do

desmantelamento de todas as formas de associação baseadas em laços de

parentesco, como a phratria e a phyle, significando a exclusão por inteiro da

esfera dos negócios humanos (tà anthropou pragmata, nas palavras de Platão),

vinculada à necessidade ou à utilidade, do espaço luminoso constitutivo do bios

politikos construído pelas atividades propriamente humanas, que são a ação

(praxis) e o discurso (lexis) (Arendt, op. cit.).

Quanto à esfera da família, essa separação era ainda muito mais

radical. O espaço da família era estritamente designado pela necessidade de se

reunirem os homens compelidos por suas necessidades e carências, diante das

exigências de condições para fazer viver e alimentar os corpos. No polo oposto, a

esfera da política era a que reunia os homens para o exercício da liberdade,

sendo que, para a sua constituição, suplantar o âmbito das necessidades do

espaço da família era a exigência natural e primeira. É no espaço da pólis que o

carvão da necessidade se converte no diamante da liberdade.

O espaço da cidade (pólis) não é o do contato íntimo em que a

proximidade excessiva desperta entre os indivíduos relações menos sociáveis e

mais fratricidas, mas o espaço de uma impessoalidade e exterioridade na justa

medida em que se expandem as margens para se aceitar a diferença e o novo,

para se conviver com o aberto, a contingência e o efêmero, lugar da suavidade de

que respira a amizade (Ortega, 2000).

O poder, entendido como capacidade de empregar a coerção e a força

para silenciar a voz ou impedir a ação do outro, era também uma categoria

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estranha ao universo da pólis, onde reinava a igualdade. Não que inexistisse a

desigualdade, pois, como se sabe, a fruição da igualdade entre os politai

(cidadãos) pressupunha a existência de uma imensa maioria de “desiguais” sobre

a qual o poder se impunha como domínio, exercido pelo senhor (dominus) dentro

das fronteiras da casa (domus, que foi a tradução latina para oikos, a casa),

atividade inerentemente pré-política. Igualdade, portanto, que não se vincula à

idéia de justiça (a igualdade de todos perante a lei), mas à da liberdade dos que

puderam distanciar-se da experiência privada e das conexões familiares a que se

atrela a nossa vida (Arendt, 1998). A lei (nómos) é essencialmente uma ética, não

um instrumento de coerção.

Mais do que um espaço no sentido metafórico, a política inventada

pelos atenienses pressupunha a existência de um lugar concreto onde pudesse

se desenvolver e assegurar que cada cidadão tivesse a liberdade,

“que consiste naquilo que chamamos de espontaneidade que,segundo Kant, se baseia no fato de cada homem ser capaz decomeçar uma série de novo por si mesmo” (Arendt, 1998).

O nómos (a lei) era a projeção desse lugar físico no plano simbólico, não o seu

começo absoluto.

Essencial à vida da pólis eram o falar e o agir, que, nos começos do

pensamento grego não se distinguiam, como em Homero ( em cujos escritos tal

separação não ocorria), sendo o autor de grandes feitos também o orador de

grandes palavras. Com palavras e ações nos inserimos na comunidade humana e

confirmamos o fato singular e original de nosso nascimento no mundo. Nas

palavras de Santo Agostinho, em De Civitate Dei,

“initium ut esset homo creatus est” (Arendt, 1998)18.

Observe-se que “initium” tem para Santo Agostinho um sentido muito

mais radical que “principium ”, que não implica a inexistência de algo que existisse

antes. “Initium” é o equivalente ao “archein” grego, significando o começo

18 “O homem foi criado para que houvesse um começo” (Sto. Agostinho, citado in Arendt, 1998, op.cit).

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93

absoluto, implicando o “ante quam nullus fuerit”, isto é, que nada houvesse antes.

A palavra livre, a leksis, pronunciada na ágora, tem, como a ação, a propriedade

de dar um começo a algo novo e imprevisível.

Em suas origens, portanto, o conceito de cidadania é impensável sem

a ação espontânea, que designa um novo começo, indetutível em seus

antecedentes e imprevisível em suas conseqüências, e sem o discurso livre,

narrativa que institui o novo e o dá de presente à memória. Uma autonomia

radical, como se vê, em que não há cláusulas para prescrever as condições da

doxa e que em nada se parece com a idéia corrente de cidadania associada à

idéia de partes contratantes, à aquisição de capacidade contratual ou ao

aprendizado de habilidades de pactuação para participar do mundo estruturado

como mundo do trabalho.

Castoriadis, desenvolvendo a sua argumentação em direção diferente,

propõe que se distinga o político da política. O político refere-se à dimensão do

poder explícito, com a instituição do conjunto da sociedade e manifesta-se como

condição inerente para fazer de qualquer grupamento humano uma formação

social. A política, por outro lado, tem como projeto a instauração da autonomia.

Sua criação (e a da filosofia) pelos gregos é a primeira emergência de um projeto

fundante social-histórico de autonomia coletiva e individual, trabalho criador do

imaginário instituinte, que absorve o político, como poder explícito, numa outra

esfera, a da política, a qual reordena a sociedade e seu funcionamento referido ao

nómos, diké e télos (legislação, jurisdição e governo) tendo em vista fins comuns

e obras públicas a que deliberadamente se propôs (Castoriadis, 1992).

Para se compreender melhor as diferentes dimensões da condição

humana nas três esferas por que transita (doméstica, social e política) pode ser

útil recuperar as distinções arendtianas entre labor, trabalho e ação (Arendt,

1987). O labor corresponde à lida em relação aos processos biológicos que

marcam o nascimento, o crescimento, o desenvolvimento, o declínio e o fim da

vida em sua dimensão corporal: “a condição humana do labor é a própria vida”. O

trabalho recobre o que se refere aos aspectos artificiais da vida humana, à

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94

fabricação e a tudo o que intervém para modificar o ambiente natural da vida

humana, conferindo, por seu produto, certa permanência e durabilidade que

amenizam o caráter efêmero da vida humana. “A condição humana do trabalho é

a mundanidade”.

A ação é a única atividade diretamente exercida entre os homens sem

a mediação da matéria, a que “corresponde à condição humana da pluralidade”, e

escapa às injunções e previsibilidade dos ciclos da vida e da natureza, criando um

espaço para “inter homines esse” (para ser/estar entre os homens) e para animar

a lembrança, ou seja, pôr em movimento a roda da história. O recurso contra a

irreversibilidade da ação é a faculdade de perdoar, que serve para desfazer atos

do passado e deter o curso de suas conseqüências, que, como a espada de

Dâmocles, poderiam pender sobre as cabeças das gerações futuras. O remédio

contra a imprevisibilidade inerente à ação é a faculdade de prometer, lenitivo

contra o oceano de incertezas do futuro, criando ilhas de segurança contra os

perigos de a ação ocultar o vestido inflamável de Medéia e dando à ação as

garantias de durabilidade e continuidade. Todos esses atributos da ação são os

responsáveis por suas conexões imediatas com o discurso.

O homo laborans escapa à sua condição de prisioneiro do ciclo

interminável do processo vital (labor e consumo) ascendendo ao homo faber,

fazedor de instrumentos e realizador de produções que suavizam o labor e

conferem certa durabilidade ao mundo. Este, por sua vez, escapa à

determinabilidade do mundo dos meios e fins ascendendo ao homo politicus,

autor de feitos e emissor de palavras que conferem sentido e engendram a

história, assim como a fabricação produz objetos de uso.

Muito esquematicamente podemos correlacionar o labor e o cuidado

ao espaço da casa; o trabalho e a produção à esfera da sociedade; e a ação e o

discurso ao mundo da polis, isto é, da política. Sob este prisma é que expressões

como produção de subjetividade e produção de cidadania podem parecer

impróprias, na medida em que indicam uma retração do vocabulário da ação ao

vocabulário da fabricação (isto é, do trabalho). Produzir implica fazer algo de útil

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95

da matéria do mundo, agir é lançar a rede no oceano insondável dos começos.

Sob o mesmo prisma é que a ideologia da intimidade, ao fazer a

apologia da amizade (categoria do político) como uma forma de fraternidade

(categoria do privado) - que a Revolução Francesa introduziu reunindo a fraternité

à égalité e à liberté – permite a redução de todas as categorias políticas em

psicológicas (Ortega, 2000).

Esses elementos iniciais que traçam um primeiro esboço da

genealogia da política já encerram possibilidades de uma compreensão nova para

uma certa apresentação da política e as suas relações com o exercício do poder,

sobretudo para as conexões entre as formas de totalitarismo e a diluição da

esfera do privado e da família (caracterizada pela imposição do poder pela força),

na esfera do público e da política, desfigurando o político. Nada há de casual na

apresentação da política como “família amplificada” e dos governantes como

figuras paternas: esta é uma condição prévia para a sujeição de todos ao poder

do governante. Esses elementos indicam também, como de certo modo já vimos,

a impropriedade de interpretações psicanalíticas do fenômeno político a partir da

interpretação de “complexos familiares”.

Mais importante para as finalidades da presente reflexão foram as

transformações ocorridas nas fronteiras da sociedade e da política que

conduziram a uma quase irrelevância da distinção entre estas duas esferas, a tal

ponto que, sem nenhum rigor, refere-se monoliticamente a uma realidade

“sociopolítica” como se fosse quase indiferente a homogeneização desses

lugares. A um grego isto soaria tão estranho como soa a um psicanalista de hoje

a idéia de uma psicanálise com fins adaptativos.

De proporções ínfimas no início, a sociedade foi tomando posição

como que na periferia do privado, resumida a uma outra dimensão da privação,

isto é, da falta daquelas virtudes que permitiam ao homem ascender à nova

modalidade de reunião, a política da democracia ateniense, que os tornaria

verdadeiramente humanos.

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96

Foi a passagem gradual das atividades e negócios do interior sombrio

para a exteriorioridade luminosa do lado de fora da casa que se encarregou de

organizar e fazer crescer o intervalo entre a oikos e a ágora, hiato ainda não

nomeado pelos gregos, mas que os romanos denominarão societas. O embrião

do que viria a fazer coincidir o privado e o íntimo formou-se não por oposição ao

público em sentido estrito (o político), mas em reação à invasão da luz e dos

ruídos da rua, isto é, do social, varrendo as penumbras sussurantes dos recantos

da casa e contaminando-a com formas de organização que lhe eram estranhas.

Há, portanto, um momento em que a economia (o nómos da oikos),

que reunia labor e trabalho, migra da casa para o espaço exterior, demarcando a

ascensão da sociedade, uma forma híbrida que logo deixa de pertencer ao

espaço propriamente privado e ainda não tem lugar na esfera pública, em sentido

estrito, ocupando como que um limbo entre o privado e o público. E haverá

também um momento sucessivo em que a riqueza reivindica não mais uma norma

que a guarde sob o domínio do paterfamilias, mas um “governo social” que a

proteja e, sobretudo, garanta as regras de sua acumulação. Abastecendo-se do

que usurpa da norma da família (economia), a sociedade transborda e alaga o

terreno da política. O passo seguinte será a ocupação pela sociedade do espaço

público, o conseqüente reordenamento das esferas do privado e do público, e,

ulteriormente, a elevação do trabalho a uma dignidade que não possuía antes.

Uma outra decorrência dessas reconfigurações que se reveste da

maior importância para a nossa argumentação é a que se refere às regras do

convívio humano. Regida pela determinabilidade dos métodos de trabalho que

demarca nela a condição mundana, a sociedade é o lugar do comportamento, e

não da ação. Nesse sentido, uma política do comportamento seria rigorosamente

impensável. Técnicas de engenharia social e teorias do comportamento, como o

behaviorismo, só se tornam explicáveis no plano da política quando se apagam as

fronteiras entre as esferas da sociedade e da política, quando a determinabilidade

do comportamento invade ou desloca o espaço da imprevisibilidade da ação,

quando um padrão de normalidade engessa a criação do novo.

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97

A paradoxal associação entre subjetividade e cidadania, esteio do

ideário da reforma psiquiátrica de inspiração basagliana, encontra nesse ponto a

sua justificação mais profunda. Uma disposição a se explorar em toda a sua

extensão as virtualidades contidas na dimensão do Outro na constituição do

sujeito, como propõe a psicanálise, poderia ajudar-nos a depurar a noção de

subjetividade, liberando-a dos sedimentos que a aprisionaram aos limites “da

essência última da individualidade”, na expressão de Guattari, para recuperar nela

a pluralidade, a dimensão do “inter homines esse” em que o diálogo a institui

como instrumento da liberdade de palavra e ação, de espontaneidade e

criatividade. Uma boa escolha seria a da definição do mesmo autor, para quem

subjetividade significa

“o conjunto das condições que torna possível que instânciasindividuais e/ou coletivas estejam em posição de emergir comoterritório existencial auto-referencial, em adjacência ou em relaçãode delimitação com uma alteridade ela mesma subjetiva” (Guattari,2000).

Esta é uma definição que promove o conceito de subjetividade a um

nível em que os seus termos constitutivos não ficam adstritos à categoria dos

complexos famíliares e que lhe possibilitem a “adjacência” com a alteridade que,

liberta da “entropia” da comunidade de irmãos, abre as portas para a luminosa

pluralidade em que se dá um segundo nascimento, cujo impacto é o do começo

do mundo em que nascemos.

Não está em jogo aqui, naturalmente, a apologia de uma restauração

nostálgica de um cenário de mundo há muito perdido e que, de resto, não valeria

a pena recuperar, pois, como disse Benjamin Constant,

“devemos desconfiar dessa admiração por certas reminiscênciasantigas”19.

Nossas metas e avaliações do que fazemos poderiam ser abandonados mediante

redescrições mais interessantes dos termos em jogo.

Penso que esta poderia ser uma recomendação de Wittgenstein, que

19 Cf. Constant, B. - “Da Liberdade dos Antigos Comparada à dos Modernos” (op.cit.)

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consideraria preferível, em vez de se buscarem novas evidências e se postularem

novos processos causais, descrever os problemas de uma forma nova, e tornar a

fazê-lo se necessário, ampliando as oportunidades de desembaraçá-lo (Glock,

1998).

2. O conceito de cidadania

Passo agora a considerar um pouco mais de perto as condições do

estatuto da cidadania no mundo moderno e contemporâneo e a história da

cidadania no Brasil na expectativa de melhor retratar o que se passa no âmbito

dos projetos em curso da reforma psiquiátrica.

Em seu clássico discurso “Da liberdade dos antigos e dos modernos”,

Benjamin Constant assinala ter havido uma radical transformação na própria idéia

de liberdade tal como experimentada e desejada pelos antigos e pelo homem

moderno. Enquanto a liberdade siginificara, essencialmente, para os antigos

helenos e romanos a partilha do poder social entre os cidadãos, o homem

moderno entende a liberdade como o conjunto de garantias institucionais à fruição

do que ele denomina, de forma um tanto redundante, privilégios privados, isto é,

da autonomia que hoje definimos como direitos civis.

Na remota manhã dessa mudança foram condições determinantes

(Constant, ap. Gauchet, 1980): a maior extensão territorial dos países sob um

mesmo governo (o que reduz a importância no que toca, distributivamente, ao

peso da intervenção do indivíduo e reforça os mecanismos de representação), a

abolição da escravatura (que obriga o cidadão a dedicar-se mais extensivamente

aos afazeres privados) e a inversão do papel da guerra e do comércio (o comércio

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99

deixa de ser um “feliz acidente” ao substituir a guerra como meio para a

incorporação de bens, desviando a atenção dos negócios públicos aos interesses

privados e passando a exigir do poder público a garantia das regras de

negociação). Ganha forma a idéia da relação política como relação de contrato.

Na formação do mundo que hoje conhecemos, a demarcação dessa

tríplice fronteira do doméstico, do social e do público parece ter-se esvanecido.

Um novo mapeamento restringiu a esfera privada ao mundo doméstico e

englobou o social e o político num mesmo espaço público, dando agora sinais de

uma nova configuração em que as próprias esferas do público e do privado estão

em vias de dissolução.

No ponto em que tais transformações se iniciaram teria despontado a

questão da soberania ou, propriamente falando, da autoridade, que só veio a

firmar-se como palavra e conceito no pensamento romano, mas que já estava

presente como preocupação no pensamento de Platão e Aristóteles, cuja filosofia

política norteou-se pela busca de fundamentos que poupassem a pólis do perigo

do controle exercido pelo tirano. Sem a experiência de uma autoridade que se

exercesse sem a coerção, tratava-se de buscar o seu esteio em outras situações

que não a da imposição pela violência do tirano - que tornava sem sentido o

conceito de pólis - e a do comando militar - inadequado ao caráter de

permanência da pólis por seus óbvios vínculos à situação emergencial e

transitória da guerra. Sem outra saída, encontrou-se na autoridade do chefe de

família (o déspota ) uma referência, embora evidentemente imperfeita, por ser ele

investido de um poder apoiado na coerção pela força. A solução encontrada por

Platão foi erigir a lei como a autoridade que governa e que, por pairar acima de

todos os homens e situar-se fora de toda contingência, permitia que os cidadãos

se considerassem livres por não dependerem de outro cidadão, igualando a

todos, inclusive os governantes, como escravos da lei, na expressão de Píndaro

(Arendt, 1997). Pela primeira vez foi pensada a lei como operador estrutural da

condição humana.

Esta solução, no entanto, demasiado precária, logo revelou os seus

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100

pés de barro. Em primeiro lugar porque a lei, “déspota sobre todas as coisas” não

conseguiria disfarçar o seu parentesco com o “déspota” da esfera doméstica, o

que destruía a esfera política. Em segundo lugar, porque conferia ao legislador, e

portanto ao filósofo, a suposição do direito à investidura como governante, que se

traduzia numa distinção que abolia o princípio da igualdade na democracia de

Atenas. Ironicamente, a filosofia política nasceu em antagonismo ao espírito da

política, razão por que o espaço da filosofia logo se retraiu da pólis para a

Academia de Platão.

Castoriadis, a exemplo de Vernant e em oposição a Arendt, vê o

nascimento da filosofia e da política como eventos históricos simultâneos e

solidários. Para Castoriadis, a Grécia de Péricles só pôde dar à luz as suas filhas

gêmeas, a política e a filosofia, porque não tinha um livro sagrado nem profetas,

mas poetas, filósofos, legisladores e politai, não tendo tido de prestar contas ao

“sagrado” nem ao “natural” quando erigiu o nómos como ordenador da vida em

comum (Castoriadis, 1992).

É bem outra a gênese relatada por Arendt. Os primeiros enunciados

da filosofia política abriram um abismo entre a filosofia e a política e foram

historicamente determinados pelo desencantamento de Platão com a pólis que

havia condenado Sócrates à morte. Sócrates resignara-se a ser morto por seus

concidadãos por sua radical aceitação de que à opinião (doxa) da pólis, que

resistia a deixar-se persuadir, deveria curvar-se a suposta verdade do

conhecimento filosófico, destino a que não se conformou Platão. Sua filosofia

política nasce da defesa de Sócrates e de suas suspeitas quanto aos pilares que

estruturaram a pólis, passando a argumentar em favor de uma Verdade em que

deveria fundar-se a república acima da transitoriedade dos jogos da doxa, o que

resultou na idéia de um rei filósofo, cuja autoridade estaria situada acima da

soberania dos iguais (Arendt, 2002).

Coube aos romanos inventar a palavra autoridade e lapidar-lhe o

conceito enraizando-o na idéia de fundação, de autoria, que é fundação da

própria cidade de Roma como fato irrepetível, consistindo a atividade política

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101

essencialmente em se preservar a fundação da Cidade, que tem um caráter

sagrado. Dessa sacralidade surge a religião significando literalmente “re-ligare”,

pacto que liga ao passado, ao mito de uma origem que se projeta para a

eternidade. Por esta via, os romanos foram mais bem sucedidos que os gregos

em manter afastadas as idéias de poder e de coerção da tríade autoridade,

tradição e religião, concepção que puderam legar à Igreja Católica, a qual, no

correr dos séculos, avocou para si a autoridade mediante o reconhecimento de

que o poder estava reservado ao governo temporal (Arendt, 1997; 2002).

Tendo esclarecido a distinção entre cidade (associação religiosa e

política das famílias e tribos) e urbe (lugar de reunião e santuário) entre os

antigos, Coulanges descreve em detalhes a fundação de Roma, narrando que,

depois de definidos pelos deuses o lugar e o dia da fundação, Rômulo cumpre um

minucioso ritual com oferenda de sacrifícios e a demarcação precisa dos limites

da cidade e da urbe. Cava um fosso circular, o mundus, onde cada um dos

homens de Alba, que o seguia, lança um punhado de terra trazida de onde

haviam vivido os seus pais, de modo a que a cidade fundada se tornaria a terra

patruum, sendo inviolável esse limite traçado pela religião e condenado por

impiedade quem o atravessasse, a não ser onde era interrompido pelos intervalos

das portas da cidade (Coulanges, 2002). O mesmo ritual estivera presente e se

repetiria na fundação de outras cidades antigas a assinalar que o espírito dos

ancestrais ungia de sacralidade o fundador e que o ato religioso de fundação

inaugurava a tradição e fundava a autoridade.

Ulteriormente aderido à Igreja, o princípio da autoridade (associado à

tradição e à religião) viria a afastar-se gradualmente da cena temporal do jogo

político que, por sua vez, já distante de suas origens na democracia ateniense da

pólis, passava a ancorar-se no poder até que, com a Reforma e a chegada da

Idade Moderna, a antiga noção de autoridade se diluísse e se deixasse capturar

na noção de poder (e de força), tal como transparece já em “O Príncipe” de

Maquiavel, para quem a virtù é, por excelência, o instrumento secularizado do

jogo político de acordo com la verità effetuale delle cose, já sem as ressonâncias

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102

morais da tradição cristã, embora em “Dirscursos sobre a Primeira Década de Tito

Lívio” o modelo que explana para a república florentina recupere o fundamental

da experiência do pacto constitucional na formação da república romana

(Touchard,1959).

Para se compreender panoramicamente o longo percurso do conceito

de cidadania, da Grécia antiga aos nossos dias, pode-se assinalar que, vista em

conjunto, a história da cidadania pode desdobrar-se em dois grandes planos. Da

antigüidade até a Renascença, prevaleceu em sua base o tema da comunidade

(que, com várias denominações ao longo dos séculos, traduzia a ênfase no

holismo, na idéia de precedência da totalidade sobre os membros e compondo

formações do tipo hierárquico); da Renascença em diante (quando as formações

sociais vão-se moldando segundo o regime disciplinar) é o cidadão individual que

está na base da cidadania. Em relação ao plano da extensão da cidadania, sua

história, tomada em conjunto, pode ser dividida em dois grandes períodos: aquele

em que as cidades (ou cidades-estado) delineiam o círculo da cidadania - que se

estende da Antigüidade à Modernidade -, e um outro - aquele que se segue da

Revolução Francesa à atualidade - caracterizado pela centralidade do Estado-

nação como marco definidor da cidadania.

No pensamento de Aristóteles, a cidade-estado tem precedência sobre

os cidadãos, mas são ainda em número reduzido os habitantes que podem

almejar à superação da esfera das necessidades da vida, assegurada pela

família, para alcançar a “boa vida” ao encargo do estado. Na concepção romana

legada por Cícero, cidadãos podem ser todos os seres humanos porque dotados

de razão e nascidos para a justiça,

“porque é recorrendo à razão que a natureza aproxima o homemdo homem...e nesse amor à verdade encontramos certo anseio deindependência” 20.

A República Romana expande o círculo da cidadania, esboçando desse modo o

deslocamento de ênfase da organização física e jurídica da pólis para a totalidade

20 Cf. Cícero, “Dos Deveres’, Livro I, IV.

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103

dos homens (Andrade, 2002).

Em Santo Agostinho, cuja influência monopolizará o pensamento

medieval até, pelo menos, Santo Tomás de Aquino, apagam-se ainda mais as

fronteiras da cidade para demarcar a cidadania, cuja referência ganha um cunho

religioso, apresentando-se a cidade mística e atemporal, a Civitas Dei,

perfeitamente harmonizada sob o espírito da paz, “que é a tranqüilidade da

ordem” e cuja expressão temporal é a Igreja, como alicerce da verdadeira

cidadania.

Recuperando Aristóteles, para Santo Tomás a cidade terrena já não é

apenas um lugar de peregrinação e um tempo de santificação, mas lugar de

realizar-se a vida do homem como meta da ordem criada por Deus. Esta idéia

será desenvolvida por Marsílio de Pádua, que aprofunda a independência da

ordem terrena em relação à ordem revelada (Andrade, op.cit.).

De Maquiavel à Revolução Francesa anunciam-se mudanças ainda

mais radicais. Certamente influenciado pela dispersão do poder político-

administrativo da Itália de sua época e pelo retorno do espírito renascentista à

idade clássica greco-romana, é a inspiração da res publica antiga que reaparece

em Maquiavel, cujas concepções perduram em ricas análises no campo da teoria

política. A partir da Revolução Francesa, o Estado-nação torna-se o eixo que

estrutura o conceito de cidadania, abrindo caminho para que a cidadania torne-se

de fato um valor universal associado ao gozo de direitos.

À idéia de democracia, que é antiga, veio associar-se a idéia moderna

de liberalismo, resultando que o significado descritivo geral do termo democracia

não se alterou ao longo dos séculos, tendo-se alterado profundamente o seu

significado valorativo, com a condição, como observa Bobbio, que se tome

“democracia” em seu sentido jurídico-institucional e não no ético, isto é, num

sentido mais procedimental que substancial (Bobbio, s/d). Isto significa que o

titular do poder político é sempre o povo, embora o poder de decisão passe às

mãos de representantes que, supostamente, estariam em melhores condições

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104

que o cidadão comum para avaliar o interesse geral e alcançar os fins a que se

proporia a soberania popular diretamente exercida.

Na tradição do pensamento liberal e democrático de Locke, Rousseau,

Montesquieu, Jefferson, Tocqueville, Bentham, Stuart Mill e outros, o regime

democrático, por oposição a todas as formas de poder oligárquico, funda-se num

conjunto de regras fundamentais que estabelecem quem está autorizado a tomar

as decisões coletivas e com quais procedimentos, dadas as condições de escolha

entre alternativas concretas, originária que é a democracia moderna de uma

concepção individualista (e não orgânica), que incorpora os ideários do

contratualismo seiscentista e setecentista e da filosofia utilitarista de Bentham e

Mill, bem como o surgimento (com o nascimento da economia política) do homo

oeconomicus em lugar do politkón zoon. (Bobbio, 1988).

Dissipado o tesouro da fundação como seu initium, a autoridade

política desliza para a esfera do poder secular. A moderna democracia promete

radicá-la no povo e promete estruturar o Estado como expressão e garantia da

vontade do povo. Contudo, entre as promessas que a moderna democracia

representativa deixou de cumprir enumeram-se a incapacidade real e crescente

de o povo resistir à supremacia de grupos, organizações, corporações, sindicatos,

associações, etc. no campo decisório, a persistência de elites oligárquicas (que

representam mais os interesses privados do que os fins da cidadania) e dos

núcleos de poder invisível (que detêm o poder marginal dos “estados” dentro do

Estado), bem como um processo de educação para a cidadania que protegesse a

representatividade dos perigos da apatia eleitoral ou do voto di scambio, isto é, do

voto clientelar (Bobbio, 1988). Em suma, o mundo social dos negócios humanos

colonizou o espaço político.

Importa nessas reviravoltas acompanhar as profundas metamorfoses

que indicam a sedimentação da noção de política e de toda a constelação de

termos que lhe são correlatos (cidadania, autonomia, direitos, liberdade) para

recuperarmos a possibilidade de um estranhamento diante da aparição da

expressão “sociopolítico”, para que se possa pensar de um modo diferente e

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105

inovador que denuncie a fonte da cadeia de equívocos que resultaram em se

imaginar uma psicologia social como ferramenta de manufatura do político.

3. A cidadania no Brasil

O Brasil jamais teve a oportunidade de sequer sonhar com uma

experiência remotamente parecida com a idéia original de cidadania. Descoberto

quando a política já se tornara mero exercício de domínio a serviço do nascente

capitalismo, desde sempre cultivou a cidadania como a miragem que prometia

maiores possibilidades de ingresso no círculo dos negócios que regulam a vida

em sociedade.

Complexo e historicamente definido, o fenômeno da cidadania no

Brasil pode ser resumido à saga pela extensão dos direitos. Classicamente, a

cidadania é desdobrada em direitos políticos, civis e sociais, que não evoluem

sincronicamente. A fruição da cidadania política, isto é, dos direitos políticos, é a

que mais próxima se encontra da noção grega de cidadania por ser a que garante

a efetiva participação no governo. A cidadania civil (direitos civis) recobre

aproximadamente o campo da societas mediante garantias de propriedade e

trabalho, mas penetra também a esfera da política assegurando a liberdade de

pensamento, de expressão e organização, bem como a da esfera doméstica,

traduzida no direito fundamental à vida e à defesa contra a condenação sem

processo legal regular. A cidadania social, por fim, assegura certos direitos

adstritos à antiga esfera da família, como habitação, saúde e educação, e outros

mais condizentes com a esfera do social, reunidos sob a princípio da justiça

social.

Comparado o desenvolvimento da noção de cidadania em países

diversos, evidencia-se que, na noção, nenhum elemento de raiz metafísica

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106

subsiste. O ideal de uma cidadania plena pode guardar semelhanças em

diferentes países, mas em cada lugar retém os vestígios que denotam os

caminhos percorridos, sempre pautados pela conquista de direitos, sempre

distintos e raras vezes em linha reta. (Carvalho, 1993).

O conceito moderno de cidadania, fiel às suas origens no marco

histórico da Revolução Francesa de 1789, vicejou em íntima conexão com as

fronteiras geopolítcas do Estado-nação como expressão de lutas políticas

nacionais, dentro das quais surgia a figura do cidadão também nacional. Em

virtude de o Estado-nação ser um conceito híbrido, a relação que se estabelece

com cada um de seus componentes guarda certo grau de independência. Os

laços com o Estado implicam sentimentos e atitudes de lealdade, ao passo que os

elos com a Nação pressupõem mecanismos de identificação. 21 Quanto mais a

consciência da cidadania organiza-se em torno da noção de Estado mais se

define como cidadania política (com a mescla de elementos de cidadania civil) e

quanto mais prevalece a idéia de Nação, maior a tendência a afirmar-se como

cidadania social. Decorre daí que a representação de cidadania assume feições

diferentes de acordo com a experiência histórica de populações diversas.

Não há, por conseguinte, uma linha pré-traçada no caminho da

cidadania. O lento caminho percorrido pela cidadania na Inglaterra teria seguido

uma seqüência não apenas cronológica, mas também, até onde se pode dizê-lo,

lógica. Citando Marshall, Carvalho 22 nos lembra que o desenvolvimento da

cidadania na Inglaterra iniciou-se pela aquisição dos direitos civis no século XVIII,

à qual se seguiu a dos direitos políticos no século XIX e, por fim, a conquista dos

direitos sociais no século XX. O exercício dos direitos civis, isto é, das liberdades

civis, foi a alavanca para o acesso aos direitos políticos, direitos de votar e de

21 Esta dupla possibilidade de vinculação explica, por exemplo, os caminhos diferentes adotados pelaconsciência da cidadania do tipo alemão (em que prevalece a imagem de Nação conectada aoselementos da “Kultur”, cuja tônica está na comunhão da nacionalidade, do território, da tradição eidentidades de grupo) e do tipo francês (em que a imagem de Estado sobrepõe-se à de Nação,conectada à idéia de “civilization”, cuja tônica incide nos aspectos menos territorializados de valorescomuns ao gênero humano). V. Elias, N. ( 1990).22 Esclareço que Carvalho, J.M. (op. cit.) é o autor que adoto como referência neste e nos parágrafosseguintes.

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107

participar do governo do país. A participação nas decisões governamentais abriu

caminho à eleição de operários e à criação do Partido Trabalhista, que lutaram

pela coquista dos direitos sociais (Carvalho, 2002).

Há exceções à regra desta linha seqüencial. A educação popular, um

dos direitos sociais, deve preceder, como precedeu na Inglaterra, a expansão a

outros direitos, em virtude de formar a consciência que é pré-requisito à

organização para reivindicar os demais direitos.

No Brasil, onde, historicamente, o Estado se constituiu como aparato

decisório afastado da Nação, impondo-se sobre ela e adotando estratégias de

relação com a sociedade de cunho autoritário e clientelístico, a maior parte das

batalhas pelos direitos concentrou-se, desde o início, nas trincheiras dos direitos

sociais, seguindo uma evolução mais tortuosa e diferente do que ocorreu na

Inglaterra e em outros países. Podemos antecipar que o cidadão brasileiro mirado

pela Reforma Psiquiátrica no Brasil não deve ser igual ao cidadão italiano,

francês, espanhol ou inglês, o que indica a precariedade que ronda os ensaios de

protocolos importados para retratar o cidadão que se pretende surgido da reforma

assistencial brasileira.

Uma outra decorrência do baixo nível de integração da sociedade

nacional na estrutura do Estado brasileiro é que as lutas populares que marcaram

a história de nosso país, desde o Segundo Reinado prolongando-se pelo período

que se seguiu ao da proclamação da República, foram embates

predominantemente reativos (e quase nunca propositivos) contra decisões

governamentais em dissonância com os sentimentos, aspirações e valores da

sociedade. Os exemplos sucedem-se: revolta contra a lei que introduzia o registro

civil de nascimentos e óbitos (1851-1852), revolta do “quebra-quilos” contra a

nova lei que intituiria o novo sistema de pesos e medidas e a obrigatoriedade do

serviço militar (1874), revoltas de Canudos e do Condestado contra a

secularização do poder da República recém-proclamada, revoltas das duas

últimas décadas do sécul XIX contra a má qualidade dos serviços públicos de

transporte, iluminação, abastecimento d’água, etc.; “revolta da vacina”, em 1904

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108

(Carvalho, 2002).23

No interessante ensaio denominado “Psiquiatria, psicanálise e a

reforma da assistência em saúde mental no Brasil”, J. Russo e J. F. Silva Filho

nos esclarecem que, na passagem do Brasil Império à República, houve uma

mudança crucial na matriz imaginária da formação do país. Se durante o Segundo

Reinado a questão fundamental girava em torno do projeto de uma unidade do

Estado brasileiro, isto é, a preocupação com a integridade do território e a coesão

do aparelho do Estado, a aurora republicana passa a privilegiar como questão

nacional o tema da identidade da Nação brasileira, tema para o qual se volta a

intelectualidade brasileira, fazendo girar da unidade do território para a unidade do

povo o eixo de suas preocupações quanto à formação da nação brasileira (Russo

e Silva Filho, 2001).

Se a unidade havia sido antes corporificada na pessoa do Imperador,

cujo corpo realizava simbolicamente a unidade do Estado, a mesma busca de

unidade será tematizada durante o período de consolidação da República como

problema mais referido à Nação (isto é, ao corpo do povo como novo soberano)

que ao Estado, impondo-se ao pensamento político a difícil tarefa de conjugar os

ideais republicanos de igualdade com a constatação da diversidade racial e

cultural na composição do povo brasileiro.

Acompanhando a sugestiva análise dos autores, o Brasil herdava da

ideologia intelectual oitocentista uma forte propensão a ancorar nos

conhecimentos da biologia e da natureza uma revalorização da diferença, que,

em larga medida, havia ficado elidida nos ideais igualitários e universalizantes do

século anterior, revalorização da qual resultava a consciência de uma missão

civilizatória das elites brancas obsecadas pela descoberta de um operador que

suturasse as fronteiras de uma cisão interna da identidade nacional entre

civilizados e a massa “nativa”, selvagem e primitiva. O operador, como se poderia

23 De um modo menos ruidoso, revoltas desse tipo parecem ainda hoje cristalizadas em táticas desurdas relações perigosas entre o cidadão e o governo, como se vê no difuso sentimento de se serextorquido que leva o cidadão médio a fazer do período anual da decalaração de imposto de rendauma temporada de caça à burla.

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prever, consistiu num esforço civilizatório cuja ferramenta seria a educação,

mediante a qual se levaria adiante um projeto de regeneração do brasileiro

indolente e indisciplinado.

À psiquiatria e à medicina legal reservava-se o papel fundamental de

oferecer o aval científico e racional dessa hierarquia racial distinguindo os aptos

ao gozo responsável da cidadania dos indivíduos cuja inferioridade biológico-

moral condenava à tutela. (Russo e Silva Fo., op. cit). Nesse clima intelectual

haveria de surgir um grande projeto civilizatório nacional reunindo médicos,

juristas, cientistas e educadores em torno de projetos profiláticos à sombra do

ideário da eugenia, entre os quais a célebre Liga Brasileira de Hygiene Mental.24

De todo modo, o tema da Nação entrou em cena introduzindo a

questão da cidadania por um viés que a endereçou mais à formação da

nacionalidade que à do Estado, mantendo-se compacto o aparelho do Estado em

bases patrimonialistas e distante da efervescência da arena social. Esta

referência ao social imprimirá a sua marca distintiva ao projeto de construção da

cidadania que, certamente, se reconhece nas formações sedimentares da

mentalidade no processo atual de implantação da reforma psiquiátrica.

Pelas razões enumeradas, a cidadania, em sua expressão mais

elevada de comunhão dos direitos políticos, permaneceu no estágio da

“estadania”, como a denominou Carvalho 25, até que a consciência da sociedade

nacional se sentisse intoleravelmente oprimida pelo Estado. Só na nossa história

mais recente, portanto, a luta pelos direitos políticos ganhou prioridade, iniciando-

se nas lutas contra o regime autoritário, seguido do levante pacífico pelas eleições

diretas nos últimos anos do regime militar e pela formação da Assembléia

Nacional Constituinte, da qual surgiu a Constituição de 1988, em que a garantia

dos direitos do cidadão é a pedra de toque: restauração do direito ao voto

universal, direito facultativo ao voto dos analfabetos, extensão do direito de voto

24 O leitor interessado poderá encontrar em Costa, J. F. “História da Psiquiatria no Brasil” um relatominucioso desse período na história do Brasil.25 Carvalho, J. M., op. cit.

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110

ao eleitor a partir dos 16 anos de idade, etc.

A rápida expansão dos direitos da cidadania civil e política, no entanto,

foi seguida da grande frustração popular ao ver ruírem-se as esperanças de que a

redemocratização viesse automaticamente a assegurar uma solução para os

graves problemas da desigualdade, decepção que desaguou no ressurgimento

das esperanças messiânicas que levaram à catástrofe eleitoral de 1989 e ao

amargo aprendizado da mobilização política pelo inédito impeachment de um

presidente autoritário, bonapartista e grosseiramente despreparado. Teve

também, por outro lado, o efeito de revitalizar certas iniciativas de organização

autônoma de grupos de pressão, em que se destaca o movimento dos sem-terra

(MST).

Embora Carvalho pareça hesitar entre negar que exista apenas um

caminho para a construção da cidadania e, linhas adiante, mal disfarce o tom

recriminatório com que denuncia ter havido uma inversão completa da seqüência

no Brasil, não se pode ignorar que o itinerário percorrido afete o tipo de

democracia e de cidadão que se gera.

Os laços do cidadão brasileiro com o Estado-nação ressentem-se, no

meu ponto de vista, de uma forte dependência em relação à concentração de

poderes no Executivo, atualizando a longa tradição do sebastianismo português

(e ibérico), com frágil mediação dos dispositivos de representação, caracterizando

uma cultura política a que Carvalho denomina, como ficou dito, “estadania”, por

oposição a cidadania. Esta cultura dá uma tonalidade distintiva, e geralmente mal

apreciada pelos técnicos de saúde mental, aos serviços e programas, sobretudo

em centros urbanos de menor porte, onde a interferência dos prefeitos e das

redes de influência à sua volta amiúde impõem concessões e alterações de rota

no trabalho.

A reação diante desse tipo de injunção gera alguns efeitos perversos.

Por um lado, a equipe tende a cindir-se entre “técnicos” (que se recolhem a uma

postura de “belle indifference” ou se atiram quase cegamente à militância com

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111

uma altivez de Antígona, que pode resultar em ameaça à própria sobrevivência do

serviço) e “administradores” (que se expõem a ser encarados como suspeitos

Creontes e a serem hostilizados por outros membros da equipe). Um outro efeito,

ainda mais perverso, consiste na tendência das equipes à surdez para tudo aquilo

que, no discurso do usuário, testemunhe a sua suposta conivência com um

estágio de cidadania considerada pré-política, resultando às vezes daí um esforço

de doutrinação que só torna mais espessas as barreiras da comunicação.

De todo modo, deparam-se esses serviços e programas com a difícil

tarefa de buscar um delicado ponto de equilíbrio para o qual a adesão dogmática

a abstrações quase acacianas acerca da cidadania e das relações com o poder

público pouco tem a contribuir. São ainda demasiado descontínuas as redes de

organização autônoma da sociedade, demasiado obstruídas as vias de

identificação do povo com o suposto ideal de cidadania, demasiado presente o

fervor panglossiano nos efeitos das referenciações internas, demasiado cindidas

as equipes e desatentas em relação à cultura política autóctone, demasiada a

dependência dos serviços em relação ao poder público.

Ainda mal mapeado esse terreno e restando tanto caminho a ser

percorrido, eis que mudanças profundas no cenário internacional nos obrigam a

suspeitar de que essa construção já se torna obsoleta. A derrocada do império

soviético, as vitórias eleitorais do neoconservadorismo na Europa e declínio do

modelo do estado do bem-estar social, os movimentos das minorias nos Estados

Unidos e na Europa (e incipientes no Brasil), o retorno das conflagrações

interétnicas, o ressurgimento da política unilateralista e, sobretudo, a chamada

globalização imposta pela financeirização da economia que ameaça a instituição

do Estado-nação e que acelera o ritmo rumo à supremacia neoliberal, tudo isso

tem impacto direto sobre os projetos de cidania.

Esse quadro, rememorado no momento em que a “missão

civilizatória” dos EUA deixa o mundo perplexo com a visão de Bagdá reduzida a

uma selva de ruínas, fogo e sangue, e parcialmente destruído um acervo de 7000

anos de civilização, restaura um cenário hobbesiano. O Brasil, entretanto, ainda

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112

que a comparação pareça abusiva, convive há tempos com uma cultura de

estruturação do Estado em que a insegurança dos cidadãos das grandes e

médias cidades e sua descrença em relação à capacidade regulatória do governo

já tornaram familiar o convívio com métodos predatórios de sobrevivência que

esgarçam o tecido social, desde a vasta violência aberta até as ínfimas

ramificações de um sistema de extorsão que inclui a “taxa de proteção” para se

estacionar em locais públicos ou as propinas para se obter da repartição uma

declaração de “nada consta”. A imagem é a de uma coexistência sem contradição

entre os valores morais republicanos e uma irreverente malandragem, como

assinala Calligaris (Calligaris, 1996).

Wanderley G. dos Santos apresenta um diagnóstico pessimista mas

revelador da nossa cultura cívica (que define como sistema de crenças

compartilhadas quanto aos poderes públicos, quanto à sociedade e quanto ao

catálogo de direitos e deveres de cada um), sob o influxo do que denomina o

“híbrido institucional brasileiro” (Santos, 1993)26. Sugere que as análises sobre a

“crise de governabilidade”, que prosperaram a partir de meados da década de 60,

com o pressuposto de um excesso de demandas sociais diante da incapacidade

de resposta governamental, de modo algum auxiliam a compreensão da

ingovernabilidade no caso brasileiro. Assinala que no Brasil o excesso não está

do lado das demandas sociais, mas da atividade regulatória do governo, com sua

avalanche de leis, decretos, comandos, planos e diretrizes, instaurada desde a

década de 30. Propõe como premissa de análise que o governo governa muito,

mas no vazio, e que nem por isso o país é ingovernável, caracterizando-se melhor

como país de soberanias concorrentes e governos múltiplos.

As tradicionais figuras do brasileiro “cordial” (na expressão de Sérgio

B. de Holanda), da “tristeza” ou do “jeitinho” brasileiro, que povoam o imaginário

social, mantêm relações apenas periféricas com o painel que traça da nossa

cultura cívica. Depois de ilustrar com minuciosas exposições de dados que

cruzam taxas de crescimento econômico, crescimeto demográfico, evolução do

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113

contingente eleitoral, apresentação de demandas ao governo, formação de

sindicatos e associações, etc., conclui pela difusa descrença da população numa

ordem social capaz de garantir as condições de possibilidade a todo contrato. Em

períodos, como o atual, de acelerada transformação social e erosão de normas,

surge de modo mais agudo o sentimento de incerteza e de que toda expectativa

de estabilidade é substituída pela sensação “de que nada é certo no futuro

imediato”, sensação só agora ligeiramente atenuada com a eleição do Presidente

Lula.

Admitindo-se que o Estado é, como por definição passou a ser,

mediador de conflitos, parece-me particularmente instrutivo observar as

estratégias que os indivíduos e grupos adotam para a resolução do que se lhes

afigura como conflito. Conflitos envolvendo questões trabalhistas, separação

conjugal, problemas criminais, herança, conflitos de vizinhança, cobranças de

dívidas, conflitos pela posse de terra, etc. são, na maior parte das vezes,

negados. Inquéritos do IBGE, cobrindo o período de 1983 a 1988, demonstram

que, de uma população maior de 18 anos, de 82.5 milhões de pessoas, apenas

10.5% do total reconheceram ter estado envolvidas em algum conflito desse tipo,

sendo que apenas 1/3 dessas pessoas admitiram confiar a solução do conflito à

justiça.

Pode-se conjeturar que uma razão provavelmente decisiva para a

sonegação do conflito indica que o reconhecimento dele imporia uma decisão

sobre que iniciativa tomar e que, diante da descrença em relação à capacidade de

resolução pelos meios legais, só restaria a alternativa de resolver o conflito com

os próprios meios, o que lança o queixoso na beligerância do pleno estado de

natureza. A quem não dispõe dos meios (força física, dinheiro, influência, etc.)

restaria, portanto, resignar-se à negação do conflito.

Observe-se que, de acordo com a análise de Santos, o “híbrido

institucional brasileiro” aponta para uma dicotomia institucional de alto a baixo,

26 Recorrerei livremente a W. G. dos Santos, “Razões da Desordem” (op. cit.) nos parágrafosseguintes.

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114

que não segue qualquer tipo de estratificação da sociedade segundo critérios de

classe social, escolaridade ou outro qualquer, mas espraia-se simultânea e

homogeneamente sobre todos os indivíduos, que transitam de de um código a

outro e de uma institucionalidade a outra, sendo que qualquer um, por exemplo,

pode valer-se das “boas relações” para deixar impunemente o seu carro

estacionado em local proibido enquanto participa de uma reunião para

sinceramente discutir medidas em favor do respeito às leis e às instituições.

Seria abusivo ensaiar uma transposição dessas estratégias para se

lidar com conflitos no âmbito social para as estratégias relacionadas com conflitos

nos pequenos grupos formados por técnicos e usuários nas redes saúde mental?

Se o profissional de saúde mental representa para o paciente um portador de

delegação socialmente outorgada e, simetricamente, desempenha o mesmo

papel o responsável pela direção em relação à equipe, presume-se que, nas

formações imaginárias que partilhamos, a confiança na capacidade de essas

instâncias proverem segurança, interesse, proteção e previsão deve ser frágil o

bastante para que se prefira a negação do conflito.

De todo modo, podemos supor que não seria mera demonstração de

ingenuidade atribuir ao quadro desalentador traçado por Santos uma significativa

influência de ordem conjuntural, de tal modo que não nos vejamos inteiramente

desarmados quanto às possibilidades de se contar com vias alternativas para se

suprir a retração do Estado na promoção da cidadania em sua dimensão social,

que é aquela que, presumivelmente, tem maiores oportunidades de cumprir-se

mediante iniciativas fora da órbita da política em sentido estrito. A família, a

comunidade e as associações voluntárias podem ser instrumentos para o

desenvolvimento da cidadania social menos centrado no Estado, apesar das

limitações que inibem sua ação, notadamente a perda de coesão das famílias e

dos movimentos associativistas sob o impacto da intensificação da mobilidade

social impelida pelas imposições do mercado e pelos efeitos perversos da

desregulamentação do mundo do trabalho (Roberts, 1997).

Nas décadas recentes, quando, paradoxalmente, ganha fôlego no

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115

Brasil a consciência da cidadania e a afirmação do Estado nacional soberano

como fonte e garantia legítimas do exercício da cidadania, deparamo-nos com a

tendência ao colapso da capacidade decisória do Estado, sobretudo no campo

econômico, onde o eixo do controle efetivo se desloca para as agências

internacionais, com o risco decorrente de que a eficácia das iniciativas não-

governamentais venha a dissolver-se na mera desoneração do Estado ou nas

formas degeneradas de intervenções corporativas, que são mera projeção

coletiva do individualismo (como afirma H. Barreto) ou, pior, no individualismo

predatório do hobbesianismo social do “híbrido institucional brasileiro” referido por

Santos (Barreto, 2000).

As pinceladas com que severamente Santos traça o retrato do

brasileiro, no entanto, apenas reproduzem no nível do detalhe um painel do novo

sujeito contemporâneo pintado por autores como Lasch e Sennett, para o qual a

palheta da “cultura psicológica” forneceu cores e matizes novos. Estes autores

retratam o novo indivíduo da sociedade ocidental que perdeu o sentido da vida

pública, cultivada no mais alto grau durante o século XIX, mediante o crescente

deslocamento do interesse do público para a esfera do eu, originando a

temporada das “tiranias da intimidade”, na expressão de Sennett, e da

“personalidade narcísica do nosso tempo”, nas palavras de Lasch.

Desta nova figuração narcísica do indivíduo-sujeito resulta, também,

uma nova patologia: excessiva concentração nos problemas da personalidade e

na busca da autenticidade individual, sentimento crônico de insatisfação, de

desconfiança e de “insuficiência” (como diz Ehrenberg) frente às injunções do

outro, sensação de intenso vazio interior, desejo de ser adulado e incapacidade

de estabelecer laços duradouros, terror diante do adoecimento, da velhice e da

morte, etc. Castel recrimina nesses autores, mais ainda em Lasch que em

Sennett, a exagerada valorização do foco individual erigido em medida das

transformações sociais e enfatiza, com o apoio da teoria de Durkheim sobre o

“suicídio egoísta”, que a cultura do individualismo seria uma reação ao processo

de desintegração social em que os laços do indivíduo com a res publica

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116

fragilizam-se e, por fim, desatam-se, para que as pessoas busquem encontrar

refúgio na esfera do eu individual, sob influência do desinvestimento da esfera

pública pela cultura psicológica vigente (Castel, 1987).

Essa outra dobra, no entanto, do processo de individualização, que é a

outra face da globalização, representa não apenas um refúgio contra a

desintegração das certezas da velha sociedade salarial, como também uma

busca ativa por certezas novas, o que implica abrir-se a trama para novas

relações de interdependência que tanto podem resultar em segregacionismos

comunitaristas como em experimentos que tornem mais próximo e vivo o

sentimento republicano da ação política desabrochando fora das instâncias

políticas formais. Calligaris sugere que o novo indivíduo-sujeito emergente terá

reinventado os caminhos constitutivos de sua personalidade pela via das

identificações simbólicas mediante a busca de identificações no desfile de

imagens de que está cada vez mais saturado o mundo (Calligaris, 1996).

Pois, se uma reflexão responsável sobre o significado da cidadania no

horizonte da reforma psiquiátrica não pode esquivar-se à constatação de que uma

profunda e, talvez, irreversível crise inscreve-se nos alicerces de toda experiência

de democracia em decorrência da erosão, senão da idéia, das condições de

contratualidade, não pode também contentar-se com a substituição da “grande

política” por suas formas miniaturizadas. Na indistinção entre as esferas do

privado e do público, a política é, a um só tempo, idealizada e banalizada como

atividade que se passa muito fora do alcance do raio de ação do cidadão comum

ou empobrecida na versão vulgar de que “tudo é política”, a qual se degrada em

idéias como a de que aptidões e habilidades próprias às esferas do

aprimoramento pessoal e do convívio social são exercício “puro” da política. É

preciso que novos pontos de partida considerem que valores desfigurados pelo

exercício concreto da política não devem servir de pretexto para que a política

como valor seja lançada à lixeira e a idéia de cidadão não coincida com a de

portador de contrato.

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117

4. Indivíduo e comunidade

O pensamento de A. Heller a propósito da vinculação e da possível

contraposição do indivíduo à comunidade pode guiar-nos aos caminhos de saída.

Afirma ela que as vinculações do indivíduo se dão nos limites da comunidade e

que as sua vinculações à sociedade podem ser tão mais fortes quanto mais a

sociedade puder apresentar-se a ele como uma comunidade no seu nível mais

alto, isto é, quanto mais a sociedade é estruturada, diferenciada e mediatizada em

comunidades orgânicas. Sociedades antigas como a pólis grega ou os

estamentos anteriores à sociedade burguesa eram comunidades “naturais”, tanto

pelo fato de não serem escolhidas pelos seus membros, quanto pelo fato de lhes

oferecerem um conteúdo axiológico objetivo que continha a totalidade de

alternativas pensáveis para o desenvolvimento da individualidade.

A constituição de sociedades “puras”, como veio a ser a sociedade

burguesa, consolidou-se mediante a abolição das comunidades naturais e sua

função de integração social primária, acarretando que a ruptura da harmonia entre

o indivíduo e a sua comunidade natural fizeram emergir o indivíduo da sociedade

burguesa como um ser social, mas não necessariamente comunitário (Heller,

2000). A sociedade “pura”, no seu ponto extremo, é a que teria soterrado as suas

fontes de provisão do simbólico sob a avalanche de imagens.

Paradoxalmente, há verdade tanto na afirmação de que a sociedade

burguesa industrial foi quem criou o indivíduo no sentido moderno, ao expandir a

margem de alternativas para o desenvolvimento potencial da individualidade (tese

liberal), quanto na afirmação de que a mesma sociedade dissolveu a

individualidade numa dimensão sem precedentes ao impor-lhe a regulação das

leis econômicas como se fossem leis naturais (tese romântica).

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118

Afirma a autora:

“A sociedade, não pode em sua totalidade tornar-se umacomunidade. Mas depende da totalidade da sociedade – inclusivede sua estrutura econômica – a medida em que é possível aconfiguração de comunidades de conteúdo axiológico positivo e otipo de indivíduos aos quais se torna acessível essa possibilidade,ou seja, se apenas aos indivíduos representativos ou se, pelomenos em princípio, a todo membro da sociedade.” (Heller, op.cit.).

Em termos de cidadania, significando a possibilidade real de

indivíduos singulares estruturarem meios de solidariamente intervirem na tomada

de decisões do interesse coletivo, o desafio de resistir ao império da grande

sociedade de massas, que funde as individualidades no magma do anonimato ou

só lhe confere identidades tão evanescentes quanto a correnteza das imagens,

consiste na reinvenção do Umwelt que se dissemina em comunidades abertas a

novos experimentos democráticos. Trata-se de uma estratégia que, em linhas

gerais, corresponde ao que Touraine referiu-se como “política fora da política”;

Beck, como renascimento da política não-institucional através das “subpolíticas”;

Castoriaidis, como instauração do imaginário radical instituinte; Guattari, como

focos de singularização que restauram a cidade subjetiva; Hardt e Negri, como

ascensão da multidão à condição de sujeito político. Em termos psicanalíticos

equivaleria a iluminar o domínio do público criando oportunidades de refundação

e reconciliando-o com a sua vocação a configurar-se a partir de um eixo

simbólico.

Se assumimos a responsabilidade de agir em favor da democracia e

dos valores da cidadania é porque valorizamos esta herança da tradição

ocidental, porque admiramos os exemplos de organização do convívio humano

que aprendemos de comunidades que nos antecederam e porque lhes damos

forma nos jogos de linguagem que adotamos. Se estão demasiado obstruídas as

vias de expressão da experiência de cidadania na sociedade em que vivemos,

nossa tarefa consiste em redescrevê-la em termos viáveis e que reatualizem os

valores que defendemos, e não em nos conformarmos a descrições operatórias

que a destituam daquele sentido de perenidade dos recomeços cuja substância é

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119

a liberdade da palavra e da ação plural.

Uma reflexão como esta pode dar-nos, senão o remédio, uma fórmula

contra a ameaça de estilhaçamento do político na versão de um “comunitarismo”

da sociabilidade associal, na expressão de Castel, que confere um sentimento de

estabilidade do mundo ao preço de restringir as suas dimensões ao tamanho do

arquipélago de pequenos eus saudáveis e desenvoltos.

A idéia de que há uma figura subjacente de cidadão refletida em

avaliações de qualidade que se contentam com critérios pragmáticos de definição

de autonomia em termos de capacidade de zelar pela higiene pessoal,

alimentação, uso da medicação, gestão do cotidiano, liberdade de ir e vir, de

increver-se em circuitos mais ou menos independentes de trabalho ou melhorar

as condições de convívio imediato nos grupos primários das relações sociais, etc.

, tudo isso reunido sob o rótulo “melhoria da qualidade de vida”, deveria resignar-

se aos objetivos de uma pedagogia (apesar de a palavra ser quase ofensiva à

audiência a que se destina) que precede o surgimento do cidadão e o credencia

ao ingresso no mundo político. O perigo está em se pretender tomar o que é um

conjunto de requisitos por sinônimo do conjunto de atributos da cidadania.

É preciso que se diga que a psicanálise, até em seus momentos mais

inspirados, não chegou a desenvolver uma reflexão acerca da política, a não ser

com um instrumental que a abstraía daquilo que a distingue em sua essência.

São bem conhecidas as incursões de Freud no campo da teoria polítïca,

destacadamente nos seus textos “Totem e Tabu”, “O Futuro de uma Ilusão”, “Mal-

Estar na Cultura” e “Moisés e o Monoteísmo”, em que os planos do social, do

político e do cultural são interpretados (indistintamente) como projeção em escala

ampliada da dinâmica inconsciente ao se deparar com as coerções dos

ambientes natural e humano. Lacan reconhece ainda menos que Freud a

especificidade das categorias de análise da política. Com um toque de ironia,

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120

lembre-se que a “política da psicanálise” 27 não a recomenda a uma psicanálise

da política.

Diante disso, os programas e serviços da reforma psiquiátrica têm de

defender-se contra o perigo de deixar-se colonizar pelos preconceitos de certas

interpretações da doutrina psicanalítica que se arrogam o direito de

dogmatizarem-se e apresentarem-se como reservatório de verdades que

transcendem a realidade social-histórica, expandindo a vulgata psicanalítica,

como diz Castel, à tirania de uma linguagem única que codifica toda experiência

de vida psicológica e aos mesmos códigos reduza toda experiência de vida

política, sugando-a no buraco negro do jogo dual da estrutura e da falta.

Se a psicanálise, como sugere Castel, só pode responder à demanda

social que lhe é endereçada dilatando-se em relação à base estreita das práticas

duais em que fundou a sua legitimidade, urge que reconsidere a carga que

efetivamente pode assumir sem restringir-se a lhe dar mera cobertura ideológica

(Castel, 1987).

Os programas e serviços de saúde mental precisam também de

defender-se do clima de euforia do novo objetivismo médico-psiquiátrico, cuja

assepsia otimista encobre a tendência a se patologizar todo o social e propor

medidas de viés behaviorista que obriguem todos à servidão da saúde perfeita.

Creio que a tentação da ideologia behaviorista continua a rondar-nos.

É preciso que não se subestime a verdadeira explosão da bíblia cognitivo-

comportamental nesta etapa em que o capitalismo concorrencial mostra-se mais

acirrado e estende-se a sedução da ideologia da eficiência, especialmente entre

as camadas formadoras de opinião e na geração emergente das elites

empresariais. Ao lado da proliferação epidêmica da chamada literatura de auto-

ajuda, multiplicam-se as iniciativas inspiradas em “pacotes de imersão” em que

grupos se reúnem e permanecem dias a fio submetidos a uma enxurrada de

27 Refiro-me aqui,evidentemente, à história da psicanálise institucional, cuja característica maisdistintiva é sua vocação à diáspora e sua capitulação ao “narcisismo das pequenas diferenças”, comum rastro de anátemas, cisões, banimentos, dissoluções e refundações em seu percurso.

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121

intervenções psicológicas com o objetivo de maximizar as suas capacidades

empreendedoras.

A propensão de certo modo compulsória ao ecletismo terapêutico

favorece essa espantosa síntese entre a psicanálise e o objetivismo médico, cujo

desfecho parece ainda longíquo. Se a psicanálise ainda pode frear em parte os

arroubos do encontro da psiquiatria com a psicologia comportamentalista é

porque ainda não deixou apagar-se de todo sob as cinzas dos sectarismos a

brasa que lhe lembra ser uma frivolidade constranger às dimensões do divã um

mundo que eppur si muove. Mas só o conseguirá se demonstrar que é capaz de

apresentar-se menos como produção e comportamento social e mais como ação

e disposição a responder inventivamente ao mundo que se reinventa.

Creio ser difícil exagerar a propensão dessa ideologia da eficiência a

insidiosamente infiltrar-se em nossas melhores intenções e acredito que um

vocabulário que não vá além de reconhecer nos comportamentos o domínio da

ação (que a tradição cunhou como uma realidade radicalmente heterogênea),

pode tornar-nos reféns de crenças que, no âmbito local, ameaçam o futuro da

democracia.

Não que o nosso campo de ação tenha poderes insuspeitados de

abalar estruturas da organização social e política. Mas por ter lugar cativo entre

as vozes que formam a cultura e inscrevem-se nos sistemas de crenças e

valores. Por ter reservado para si um lugar onde instaurar o novo.

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CAPÍTULO IV:

AVES TONTAS

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123

1. A reforma psiquiátrica

No capítulo que aqui se abre não tenho a ambição de oferecer ao leitor

razoavelmente familiarizado com uma grande variedade de textos acessíveis

sobre a Reforma Psiquiátrica no Brasil informações novas. Se o conseguir,

pretendo repassar alguns trechos desse percurso que se revistam de especial

interesse para verficarmos em que medida na moldura das teorias e técnicas de

avaliação de qualidade em saúde mental se pode reconhecer contido o retrato

que essa história traça.

Para começar, Foucault, é claro. E o poderoso painel que apresenta

da Grande Internação em “A História da Loucura”. Uma ordem absolutista,

monárquica e burguesa e um projeto de tornar as cidades mais habitáveis,

removendo do caminho das boas famílias e dos homens de negócios e ocultando-

lhes dos olhos a massa amorfa de mendigos, vagabundos, sem-teto, maltrapilhos,

aleijados, doentes incuráveis, criminosos, herejes, prostitutas, libertinos, sifilíticos,

alcoólatras, jovens perdulários, esposas molestas, moças violadas, velhos

demenciados, toda gente idiota e louca.

Em seguida, o mítico gesto de Pinel, mais celebrado como libertação

dos loucos dos grilhões que os aprisionavam, mas que resultou também em abrir

a possibilidade de increver-se na medicina um enunciado sobre a “desrazão” que

lhe outorgou o direito de criar uma nova doença: alienação - antes de ser doença

mental - e de legislar sobre ela.

Para quitar seu débito com o otimismo da razão como fonte de toda

possibilidade de progresso e de organização do mundo burguês, Pinel concedeu

ao alienado uma parcela de razão e às boas consciências a esperança num

tratamento moral que o reconduzisse à normalidade. Para arrancar o alienado das

mãos da polícia, no entanto, foi preciso encontrar para ele um novo nicho em que

podia escapar da dura imposição da lei, mediante uma negociação da qual o

louco saiu como inimputável, mas teve de renunciar à sua condição de sujeito de

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124

direito, inaugurando-se aí uma complexa e contraditória aliança entre os domínios

da nascente psiquiatria e da lei (Desviat, 1994).

A psiquiatria nasce, portanto, de uma reforma, em meio à avalanche

de reformas institucionais e políticas da França revolucionária, incorporando

laboriosamente, e ainda que em posição periférica, ao saber médico uma

experiência até então objeto da reflexão filosófica, das preocupações morais e

das estratégias de manutenção da ordem pública. Nasce também no preciso

momento em que o hospital é capturado no aparato médico como lugar por

excelência de produção e exercício do poder médico (Amarante, 1996).

O hospital psiquiátrico nasce, no umbral do século XIX, para cumprir a

curiosa função, com diz Foucault, de um retângulo botânico, em que as doenças

são repartidas numa grande horta regada de diagnóstico e classificação para

obrigar que nos canteiros disciplinados aflore a verdade da loucura (Foucault,

1997).

Giddens, inspirando-se em “The Discovery of the Asylum”, de David

Rothman, não subscreve inteiramente a interpretação de Foucault ao relacionar o

encarceramento do manicômio (e da prisão) ao impulso de estabelecer a

dominação da razão burguesa, alegando estar em jogo no enclausuramento

menos o retraçamento cartográfico da razão por uma intensificação da

consciência da loucura, do que a aparição do desenvolvimento reflexivo no

cenário da modernidade, que previa a “segregação da experiência” como

processo de ocultação de fenômenos como a loucura, a criminalidade, a doença e

a morte, separando-as da rotina da vida cotidiana e integrando o tratamento

corretivo na manutenção de controle regular da vida diária (Giddens, 2002).

Pinel funda uma tradição, a da Clínica, em que a hipótese etiológica

com apoio nas investigações anatomopatológicas é considerada demasiado vaga,

obscura e impenetrável e deve ceder a um outro tipo de explicação, que articule e

reorganize os saberes da filosofia e da medicina, sendo a sua causa não mais o

banimento da alteridade em estado bruto que engendrou a figura do louco, mas

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125

um movimento que determina outra forma de exclusão, a perturbação das paixões

dentro dos domínios da razão, o que faz do louco um alienado e define como

alienismo o novo ramo do saber médico.

A mudança é ainda mais radical do que parece até aqui. A figura

trágica e cósmica com que a loucura havia navegado na stultifera navis,

embandeirada com as insígnias da quimera do mundo a deslizar entre brumas

pelos rios e canais que cortavam a Europa renascentista, submete-se a uma

consciência crítica que a aprisiona nos dispositivos disciplinares em que é

desnudada ao olhar do médico, que a observa, descreve, classifica, constrói para

ela uma cartografia e lhe prescreve um destino. Cria-se assim um “campo asilar

puro” em que a assepsia médica liberta a loucura de toda contaminação que

deixou colada em sua superfície uma secular percepção concreta para aprisioná-

la em suas formas mais abstratas, objetivas e inocentes.

A alienação mental é a subversão de valores que estruturam uma

certa ordem simbólica e uma perturbação da ordem moral para a qual o médico

alienista prescreve um tratamento também moral, a ser legitimado por uma

delegação de assistência e tutela e realizado nas condições de isolamento que a

acorrentem como objeto de saberes e práticas institucionalizados, o asilo. Assim,

é em nome da liberdade, cada vez mais definida como capacidade e credibilidade

para a relação contratual, que o humanismo positivista reduz a alienação mental a

objeto da tecnologia psiquiátrica e alvo de tratamento, matéria primeiramente de

pena e compaixão num teatro urdido, como afirma Alarcon, segundo as

necessidades e valores de uma ordem de sentimentos delicados e piedosos

(Alarcon, 2000).

Mas, em torno de todo esse esforço de certeza rondava a suspeita de

que os jogos de produção de um saber sobre a loucura podiam ser

insidiosamente decididos pela cartada do poder médico, que a verdade que se

supunha poder isolar da doença seria um artefato do poder do médico, assim

como o sintoma histérico abrigava a suspeita de ser produzido pelo poder de

prestigitação de Charcot (Foucault, 1997).

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126

A psiquiatria nascente do espaço asilar, portanto, desperta de imediato

a problemática da produção da verdade e anuncia a moldura de uma inquietação

em que crepita sem cessar a possibilidade de reformas, instaurando como eixo de

cada movimento reformista as relações de poder.

Babinski é a figura mais representativa na galeria de heróis que se

empenharam em devolver à loucura as estritas condições de produtora da

verdade, isolando-a e descontaminando-a da influência do poder do psiquiatra

(Foucault, 1997). A psiquiatria asilar passa a reclamar maiores garantias para

reconhecer na loucura um objeto científico “puro”.

É o mesmo movimento de isolar “laboratorialmente” o objeto loucura

para levá-lo à produção de sua verdade pura que há de inspirar a psicanálise a

barrar todos os “ruídos” que perturbam a corrente única do discurso, protegendo-o

no espaço do “setting” e refinando a “transferência” como instrumento único e

controlado para decifrá-lo (Foucault, id.)

Movida pela miragem da verdade em si mesma e por si mesma da

loucura, a psiquiatria nascente não terá paz enquanto não eliminar as barreiras

que fazem de sua inscrição uma exceção nos domínios da medicina, a qual, na

passagem do século XVIII ao XIX, está cada vez mais firmemente ancorada na

ciência natural e na investigação anatomopatológica que exige a presença

observável de lesão para haver doença.

O século XIX, retratado por Pessotti como século dos manicômios, viu

a psiquiatria aderir com entusiasmo cada vez maior à postulação de bases

somáticas para a explicação da loucura, sediadas na arquitetura cerebral ou na

circulação de humores corporais, dando início a uma etapa em que a psiquiatria

abdicava das inclinações românticas da intervenção pedagógica e do tratamento

moral para aplicar um inventivo arsenal legitimado por fantasias científicas, que se

degenerou em práticas abertamente repressivas, imposição de férrea disciplina e

adoção de instrumentos terapêuticos violentos (Pessotti, 1996). O manicômio,

como lugar especializado para a internação dos alienados, reforçou-se,

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127

encarregando-se da difícil conciliação entre o controle dos desvios e dos

comportamentos aberrantes e uma prática clínica magnetizada pela ideologia do

progresso da ciência atual.

Considero importante dar relevo a este ponto: em cada etapa de

transição a questão que permanece é a internação; porque é a internação a

encruzilhada que desaafia a razão iluminista e que torna impossível discriminar as

linhas do saber das linhas do poder. Em cada um dos futuros projetos de reforma

estará em xeque a internação: reformas visando a “humanização” da vida dos

internados; reformas propondo a prevenção das condições que resultariam em

internação; reformas para testar a aplicação da tecnologia do hospital psiquiátrico

ao campo extra-hospitalar; reformas propondo a desospitalização; reformas

denunciando a internação como fator iatrogênico na constituição da doença

mental; reformas, por fim, que indicam a necessidade de se desconstruir o

hospital psiquiátrico e reconceitualizar saúde e doença mentais segundo

paradigmas que as alforriem do secular aparato médico-hospitalar.

Esse foi o quadro de desenvolvimentos que se transplantou ao Brasil

e que guiou a mesma transição da grande internação para a criação do hospício e

que erigiu o hospício como locus de constituição dos saberes e práticas da

psiquiatria, assim como haveria o Brasil de acompanhar a espiral de

transformações em curso nesse campo.

2. “Aves exhaustas sem ter onde poisar”

Nos primeiros anos do século XX, Olavo Bilac compara a sua visão do

Hospício Nacional de Alienados recém-reformado com o

“Hospício branco e sinistro, de indizivel melancolia e indefinivelmysterio”

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128

que vira anos antes:

“A casa era suja e sombria; as enfermarias acanhadas e escuras;os loucos dormiam ao acaso, atirados pelo chão; as roupas eramvelhas e esfarrapadas; a comida era pessima, e o tratamentomédico, já não era o mesmo quando o grande Pinel, em 1792, foiecontrar praticado nos hospicios francezes, era ainda uma barbarae retrograda mistura de inepcia e brutalidade: quarto-forte, duchase camisa-de- força...” (Bilac, ap. Amarante, 2000).

E, mais adiante, ao descrever os novos métodos derecuperação

“d’aquelles cerebros em que toda percepção é vaga, incoherente,hesitante”

e onde

“a intelligencia é como uma ave tonta, que abre as azas, paira noespaço, procura em vão onde poisar, vae e vem, voa e revoa semrumo certo, e cae afinal exhausta, sem ter aproveitado o esforço, ede algum modo fatigada de nada haver feito”,

é o mesmo insuspeito Bilac quem nos apresenta com otimismo um

programa de tratamento:

“Hoje ninguem lhes assegura a salvação completa, a completa emilagroza cura – porque a Sciencia, ai de nos!, ainda é para issoimpotente e fallaz. Mas já não há alli um bando de animaes inuteisou nocivos: d’aquella animalidade inconsciente e grosseira, asciencia e o carinho procuram tirar uma humanidade incompleta erudimentar, mas, em todo caso, humanidade, com algumsentimento e algum pensamento. E, quem sabe?... nunca se devedesesperar do resultado do trabalho intelligente e piedoso; d’allisahirão, talvez, homens perfeitos e equilibrados, creadosartificialmente n’aquella officina de reahabilitação humana” (Bilac,id. ib.)

Officina de rehabilitação humana. Assinala Birman que, passado “o

momento heróico de constituição do alienismo” a história da psiquiatria se

desenrola como a repetição do seu mito de origem em que se legitima por seu

projeto iluminista, que marcou a aurora da modernidade, de dissipar as trevas da

superstição e da barbárie, tendo passado por descontinuidades e reformulações

periféricas sem lhe abalar os fundamentos (Birman, 1992).

Foram esparsas as iniciativas de reforma assistencial antes da

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129

descoberta dos psicofármacos e da prodigiosa capacidade desses medicamentos

de oferecer um atalho a outras intervenções, promovendo a correção pela via

orgânica do excesso de “passionalidade incontrolável” dos loucos. Antes dos

psicofármacos, a primeira e tímida iniciativa baseou-se na praxiterapia proposta

na década de 1920 por Simon, que, em certo sentido, reabilitava a antiga visão de

Pinel das possibilidades de regulação por um conjunto de intervenções

pedagógicas que restituiriam a sociabilidade aos alienados. A sua influência,

contudo, estende-se, pode-se dizer, até os dias de hoje.

A influência da psicanálise, presente a cada curva do caminho da

reforma, parece a um só tempo constante e ambivalente. A irrupção da

psicanálise deixou, em certa medida, intocada esta paisagem durante algum

tempo, sempre receosa de cumprir a profecia freudiana de “fundir o ouro da

psicanálise com o cobre da sugestão direta”, 28 e só viria a influir de forma mais

decidida quando a cultura psicanalítica espraiou-se para outros domínios do

saber, atraiu a atenção dos médicos, propiciou a implantação de práticas “de

inspiração psicanalítica” mais ou menos afastadas dos cânones

institucionalizados e acenou com a possibilidade de oferecer instrumentos para se

redesenhar a cartografia do normal e do patológico e se reverem as interseções

do individual e do coletivo.

Em 1940, François Tosquelles chega ao Hospital de Saint-Alban, em

Lozère (Fr.), onde dá início a um encadeamento de reformas inspiradas no

arsenal teórico-prático da psicanálise, associado aos princípios da “terapia ativa”

de Harmann Simon e que viria a ser conhecido sob a denominação de

psicoterapia institucional. Dedicado ao tratamento das psicoses, em especial das

esquizofrenias - que, na visão de Gisela Pankow, seria essencialmente a

experiência de um “corpo dissociado” e de um “espaço despedaçado” – a

psicoterapia institucional de Saint-Alban (e, depois, da Clínica de la Borde), não

propõe a extinção, mas a transformação do hospital psiquiátrico em lugar

terapêutico através de medidas que quebram a rigidez hierárquica do asilo e

28 Freud, S. (1918): “Linhas de progresso da terapia psicanalítica”

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130

reorganizam o espaço como lugar de trocas, com liberdade de circulação,

estruturação de lugares (ateliês e serviços), contratualidade e permanente

acolhimento, dispondo de grades simbólicas e dispositivos mediadores (Vertzman

et al., 1992).

É interessante observar-se que, apesar das ambições

universalizantes do referencial teórico da psicanálise, especificamente do

referencial lacaniano, a psicoterapia institucional propunha-se uma “escuta

polifônica”, nas palavras de Tosquelles, advindo daí a criação dos campos

transferenciais multifocais, a que se refere Oury, para cuja estruturação afluem

contribuições teóricas que incluem Marx (e seu conceito de alienação), Moreno,

Kurt Lewin e Bion (Vertzmanet al., op. cit.).

Embora tenha fracassado a maioria das experiências ensaiadas a

partir do projeto da psicoterapia institucional, muitos dos elementos que entraram

em sua composição - como o papel do ambiente como operador de processos de

(re)estruturação da experiência psicótica, a reorganização do espaço em ateliês,

a noção de “transversalidade” (introduzida por Guattari), a idéia dos clubes como

organização autônoma (que está na origem da idéia atual de “empresa social”), o

ecletismo adotado em relação às fontes teóricas, etc. - foram transmitidas,

podendo ser mais ou menos claramente detectadas em outras experiências de

reforma assistencial.

O outro marco importante na trajetória das reformas da instituição

psiquiátrica foi uma invenção anglo-saxã, apoiada numa tradição reformista

iniciada um século atrás pelos irmãos Tuke, Connolly e outros, e desencadeada

pelos motivos “políticos” do pós-guerra, numa atmosfera de mudança político-

cultural da sociedade inglesa, que passara a arcar com responsabilidades das

quais antes se abstinha.

Prolongando uma linha reformista inspirada em métodos sociais de

tratamento já presente em 1942, a comunidade terapêutica, cujo nascimento pode

ser datado em 1946 (quando T. F. Main descreve o Northfield Hospital como uma

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131

comunidade terapêutica), vale-se do proverbial pragmatismo inglês para

contornar muitos dos impasses a que o pensamento mais ideológico dos países

continentais condenava o projeto de psicoterapia institucional francesa (Basaglia,

2001), embora reproduza muitos dos traços que caracterizavam suas diretrizes.

O principal sistematizador teórico desse modelo foi Maxwell Jones.

Nesse projeto reformista estão a ênfase na estruturação do espaço da

instituição hospitalar como ambiente terapêutico que “se trata” para tratar dos

pacientes, a valorização da liberdade de circulação e comunicação, o nivelamento

da pirâmide hierárquica tradicional e, de um modo certamente mais explícito, o

investimento nos processos de reaprendizado e reaculturação do paciente

(apoiado no pressuposto de que o paciente teria sofrido um processo regressivo

de deculturação que lhe subtraiu atributos de um self adulto, com capacidade de

interagir em sociedade).

Algum tempo depois de exportado aos Estados Unidos da América e

com a progressiva incorporação das técnicas sócio-psicológicas do problem

solving na trilha da teoria do campo social de Kurt Lewin (extensamente aplicada

nos domínios da administração e da indústria visando melhoria da eficiência

organizativa), o modelo das comunidades terapêuticas passou a revelar-se mera

técnica de tardia adequação de métodos de controle social que haveria de

circunscrever a proposta reformista inicial dentro dos limites da modernização da

instituição psiquiátrica, tornando-a mais eficiente. Ainda assim, surgiam situações

de perigo à ordem constituída. Os limites da sonhada permissividade reconhecida

aos pacientes contraíam-se até ao ponto em que, sob o pretexto de se

prevenirem situações que ameaçariam de colapso a comunidade, justificou-se a

reaparição da “autoridade latente”, defendida por Jones, do médico e do staff, a

reimposição de limites e a repressão a infrações (Schittar, 2001).

No Brasil dos anos 70 o modelo das comunidades terapêuticas

desfrutava ainda de grande prestígio, como pude testemunhar durante o período

de minha residência em psiquiatria na Clínica Pinel, em Porto Alegre (RS), então

o principal marco referencial dessa iniciativa (Duarte et al.,2000). Sua dinâmica de

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132

funcionamento implicava o emprego parcimonioso de psicofármacos e o

envolvimento intensivo dos pacientes numa rotina de atividades e reuniões de

grupos operativos, em participação nas decisões, inclusive administrativas, do

hospital, etc., tudo subordinado a uma compulsão quase militar pelo ordenamento

de uma sociedade ideal. Assinale-se, aliás, que as garantias de participação

democrática daquela comunidade terapêutica podiam ocasionalmente ser

suspensas em resposta a alguma ameaça de desorganização da comunidade,

propiciando a reinstauração da autoridade e do “estado de exceção” exatamente

como descrito acima.

Uma idéia pouco mais que implícita de cidadania desponta no

horizonte desse modelo na versão empobrecida das habilidades sociais para a

aquisição das condições de contratualidade e na benévola ficção de uma micro-

sociedade que reproduzisse nas condições do laboratório as variáveis presentes

na sociedade geral.

A antipsiquiatria inglesa, de Laing e Cooper, a primeira a adotar uma

estratégia teórico-prática de demolição e deslegitimação do próprio aparato da

psiquiatria como um conjunto de técnicas de invalidação social, e a colocar

abertamente em xeque o conceito de doença mental, alcançou grande

repercussão na mesma época, ao veicular uma contundente denúncia da

violência representada pela psiquiatria, tendo como alvo a esquizofrenia - o

símbolo sagrado, segundo Szasz, da psiquiatria, (Szasz, 1978):

“sutil, tortuosa violência perpetrada pelos outros, pelos ‘sadios’,contra os rotulados de loucos”. (Cooper, 1973).

Se a antipsiquiatria alcançou uma audiência muito mais vasta do que

se previa foi porque o seu discurso representou um ponto de fixação para o

imaginário político da liberação em relação às estruturas rígidas e arcaicas do

modelo generalizado de poder, emblematicaticamente sintetizadas na figura da

instituição psiquiátrica, figura paradigmática para a incandescência da revolta

difusa contra todas as expressões da autoridade na família e nas instituições em

geral (Castel, 1987). Mantendo-se perto da psicanálise e longe das estruturas da

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133

política real, com alianças demasiado frágeis com as forças sociais externas ao

aparato psiquiátrico, seus resultados quanto a organizar as novas formas de

exercício da assistência psiquiátrica foram quase pífios e o seu raio de ação não

ultrapassou os primeiros anéis do âmbito microssocial formado pelas interações

face a face e seus mecanismos de rotulação (Cooper, 1967).

À antipsiquiatria, contudo, deve-se um reconhecimento que não se

restringe ao registro do pioneirismo histórico. Elevou-se como o discurso mais

eloqüente de contestação e marcou o ponto de inflexão que introduziu uma utopia

que haveria de prolongar-se, robustecida em algumas experiências, mais

esmaecida em outras, até atingir o ponto de convergência em que clínica e

política se encontram no projeto da Psiquiatria Democrática italiana de

desinstitucionalização radical. Deu também a sua contribuição para semear, em

certo sentido, as condições de possibilidade para que a psicanálise viesse a

firmar-se em cena na paisagem da reforma assistencial e reforçar a sua presença

com uma influência que haveria de crescer no mesmo ritmo em que o

reordenamento do plano político conduzia a um refluxo geral das lutas da

esquerda e à ruína das esperanças que haviam iluminado o imaginário reformista

da década de 60.

Paralelamente, a síntese dos psicofármacos pavimentava, não sem

contradições, o caminho que propiciaria reformas mais radicais, sustentando uma

cadeia discursiva em que a palavra-chave era a ”humanização” da instituição

psiquiátrica, incorporando, além do trabalho, outros dispositivos, como a

organização coletiva do trabalho e a discussão dos assuntos relativos às

atividades hospitalares com o objetivo de reproduzir em miniatura no seu interior a

sociedade externa e as suas formas de funcionamento. Mas, a sofisticação do

armamento psicofarmacológico não haveria de deixar resignar-se a um papel tão

discreto a nova geração de psiquiatras.

Simultaneamente a essas mudanças e imprimindo nelas a sua

dialética, a própria medicina ia aprofundando os seus laços com o ideal

preventivista e deslocando a ênfase da cura para a promoção da saúde,

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134

repercutindo no campo psiquiátrico de modo a dialetizar a relação dentro-fora e

dar contornos novos às aspirações de se trocar a internação no asilo pelo

tratamento dos distúrbios mentais no espaço extra-hospitalar.

Ao longo das décadas de 60 e 70 esses projetos reformistas vão

ganhar expressão no modelo norte-americano da psiquiatria comunitária dos

Community Mental Health Centers da era Kennedy e no modelo francês da

psiquiatria de setor e da análise institucional (precedida da experiência da famosa

Clínica de La Borde) cujo projeto se bifurca nos registros da socioanálise de

Loureau e Lapassade e da esquizoanálise de Deleuze e Guattari.

A psicofarmacologia, até pelo menos a década de 1980, não haveria

de despontar senão como clarões esparsos nesse cenário, permanecendo fora do

jogo em que realmente se decidiam os rumos de uma reforma assistencial, que,

mesmo em suas versões mais assumidamente preventivistas, apostava as suas

fichas no reordenamento institucional, na crítica política da psiquiatria e na revisão

das relações entre loucura e sociedade.

À psicanálise é que estava reservado um papel preponderante como

componente dessa paisagem intelectual e política por pretender apresentar-se

como uma teoria rigorosa e presumivelmente capaz de articular de forma

coerente as dimensões psíquica e política. Em sua versão lacaniana, seduzia com

as promessas subversivas de “uma radicalidade una e indivisível”, como assinala

Castel, apta a dar um novo formato às precárias tentativas de integração dos

ideais de emancipação política e de liberação pessoal, num momento de refluxo

dos movimentos marxistas e das lutas da esquerda (Castel, 1987).

De todo modo, convém reter desse panorama algumas linhas de força

que atravessam todo o projeto reformista em suas variadas expressões: a) a luta

contra a tradicional instituição psiquiátrica (para reformá-la ou desconstruí-la); b) a

revisão do próprio conceito de doença mental; c) a coalescência dos campos do

psíquico e do social; d) a reinserção da loucura no espaço público.

Ao longo desse itinerário algumas idéias vão-se sucedendo, fazendo

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135

girar a problemática da doença mental e das técnicas assistenciais de modo a se

refratarem em modelos concorrentes que ora fazem empalidecer uma idéia, ora a

retocam em outro patamar, ora a reincorporam. Podemos, em linhas gerais,

seguir esta corrente tentando pontuá-la com idéias-síntese a marcar os pontos de

inflexão mais importantes: de início uma idéia ainda vaga e tosca de humanização

(1); seguida da idéia de revalorização do trabalho (2); sucedida pela idéia de

reabilitação “laboratorial” da contratualidade -incorporando em outra volta da

espiral a idéia do trabalho como instrumento terapêutico (3); a retomada da idéia

de humanização pela denúncia da violência subjacente à rotulação da doença

mental (4); a denúncia da instituição asilar, ainda tênue nos projetos de orientação

preventivista e vigorosa nos projetos que enfatizam a violência (novamente) como

inerente à estrutura asilar(5), ao passo que a questão da política desliza das

referências alusivas até a entrada em cena da política tout court no coração desta

problemática (6).

3. Reforma psiquiátrica no Brasil

Guardadas algumas peculiaridades próprias à nossa formação cultural

e política, a história da reforma psiquiátrica no Brasil percorre meandros não

muito diferentes.

Com uma pesada herança colonial, a identidade nacional de nosso

exuberante país tropical amargou no imaginário da nossa intelectualidade, pelo

menos até a alquimia cuja expressão maior se encerra nos escritos de Câmara

Cascudo e no Gilberto Freire de “Casa Grande e Senzala”, a consciência

virtuosística de uma formação social “degenerada” pelos fluxos imigratórios e pela

miscigenação. Da segunda metade do século XIX às primeiras décadas do século

XX, dois marcos de referenciamento, ambos importados, galvanizaram a

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136

construção do modelo discursivo da psiquiatria brasileira: a teoria da

degenerescência de Morel e o positivismo de Comte.

A teoria da degenerescência teve o duplo efeito de autorizar, com as

suas hipóteses de predisposição e hereditariedade, a reorientação da psiquiatria

aos quadros da medicina geral e a formulação de um projeto de profilaxia cujo

ponto de fixação se deslocaria do asilo para o espaço ampliado da sociedade. O

otimismo positivista encarregar-se-ia da tarefa de facilitar a passagem conceitual

do indivíduo à sociedade, formada à imagem do organismo individual, avalizando

um amplo projeto assistencial científico com apoio na idéia de uma linha contínua

sobre a qual patologia e normalidade deixavam de ser realidades heterogêneas.

O resultado desta junção foi a formulação do primeiro grande projeto global de

assistência psiquiátrica brasileira, impregnado do espírito de “missão” eugênica e

orgulhoso de sua contribuição para romper o atávico atraso social recorrendo a

técnicas profiláticas para a purificação da raça brasileira, cujo ápice foi a

consolidação da Liga Brazileira de Hygiene Mental, reunindo elementos dos mais

representativos da classe médica, juristas, educadores, jornalistas, etc.

Sensata e enfaticamente, Serpa Junior, que discorre minuciosamente

sobre a teoria da degenerescência em sua tese de doutoramento, nos adverte

contra as “armadilhas da continuidade” que autorizariam o ataque indiscrimanado

às proposições da atual psiquiatria biológica, um campo mais sutil e fragmentário

do que qualquer teoria englobante possa dar conta, o que seria “estridente e

inócuo” (Serpa Jr., 1997). Todavia, seria inteiramente injustificado reconhecer na

atual virada fisicalista da psiquiatria a retomada de alguns dos sonhos mais

acalentados ao som da berceuse da hipótese da degenerescência? É claro que

não se podem comparar as concepções de hereditariedade em Morel com as

atuais, informadas pelas pesquisas em biologia molecular e, menos ainda, o seu

sincretismo de crenças religiosas e morais com as crenças na máquina

informacional regida pelas “pérolas do colar” do DNA.

Creio, todavia, que a psiquiatria não tem como escapar das

ambigüidades ideológicas do projeto que lhe deu origem e que, por isso, está

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sempre ávida para reatualizar, nas bases de que venha a dispor, a reificação da

doença mental. Hoje passa a contar com um paradigma novo para exumar velhas

ideologias e emite sinais de que a nova “legitimitidade” científica que ostenta lhe

servirá para opor novas resistências à desconstrução do aparato psiquiátrico29 e

para expandir o seu campo de intervenção a limites insuspeitados, como

fartamente fica demonstrado pela monotonia de ruidosas descobertas que

patologizam uma extensa variedade de comportamentos, e estilos e condições

de vida30. Certamente, por baixo da superfície aceitavelmente plácida do convívio

entre psiquiatras de orientação biológica e os técnicos de saúde mental

comprometidos com a tradição que se desenrola da antipsiquiatria à

desinstitucionalização basagliana, está sendo chocado o ovo de tensões de que a

nossa ingênua e vã filosofia mal suspeita.

Uma explanação cronológica dos movimentos de reforma psiquiátrica

e sua incidência no Brasil nas últimas décadas é perfeitamente acessível ao leitor,

o que me permite optar aqui por uma tentativa de descrição que acompanhe os

desdobramentos de algumas de suas principais linhas de força, que pretendo

agrupar em três questões: a) o papel da psicanálise; b) a retomada da orientação

fisicalista na psiquiatria; c) a problemática do “social” em suas relações com a

reforma.

Primeiro, a psicanálise. O ponto de vista definitivo e muito raramente

lembrado pelos próprios psicanalistas a justificar a sua imersão no oceano político

é o compromisso com a autonomia. Como atividade que é, a psicanálise vale-se

da interpretação como palavra em ação para desbloquear o que impede a

29 Ver, por exemplo, o editorial assinado por Valentim Gentil, do Hospital das Clínicas da FMUSP,publicado no Rev. Bras. Psiq., órgão oficial da Assoc. Bras. de Psiquiatria e da AssociaciónPsiquiátrica de la América Latina, (2001), 23 (1): 3-630 Em artigo publicado em “HU-Revista” (vol. 27 [1-2-3], 2001) da Universidade Federal de Juiz deFora, intitulado “Programa de Saúde Mental para a População de Rua – PRORUA”, Heckert e outrosrelatam: “Entre os 83 entrevistados que efetivamente viviam nas ruas da cidade (de Juiz de Fora),num período mínimo de 12 meses, e acima de 18 anos de idade ou mais, apenas um não recebeudiagnóstico psiquiátrico” (grifos meus). Taxas de prevalência inacreditavelmente elevadas como esta(diante das quais não pareceria tão exagerado o fervor de Simão Bacamarte, de “O Alienista”, deMachado de Assis), não contrastam muito com as de outros relatos, como se lê em Lovisi, G. M. eoutros (2001) “População de Rua e os Transtornos Mentais Maiores: Revisão dos AspectosRelevantes”, publicado em J. Bras. de Psiq., vol 50 (5-6):149-160.

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reverberação que desencadeia um processo aberto e lança o analisando ao

próprio trabalho de instaurar novas e virtualmente incessantes possibilidades de

significação - o que é apenas uma maneira mais tortuosa (mas não

desnecessária) de dizer que o fim da análise é a autonomia. Como atividade que

é, o evento político é sempre projeção para um objetivo comum que faça eclodir o

prazer da liberdade de existir entre os homens, o único espaço em que a vida

humana é possível, e o fim da política é a autonomia, nesse sentido. (A rigor, a

autonomia é condição que está temporalmente situada no início da política).

A psicanálise trouxe contribuições inestimáveis para o movimento da

Reforma e lhe confere uma fisionomia da qual não pode prescindir. Sem a

psicanálise a reforma dificilmente teria argumentos consistentes para resistir à

sedução de um horizonte meramente socioeducativo apoiado na ética da

solidariedade. Mas, com a psicanálise a Reforma hesita em formular

corajosamente uma reflexão que incida plenamente no campo da política.

Parafraseando Freud ao afirmar que aquilo que se opõe à psicanálise não é a

psiquiatria, mas os psiquiatras31, aventuro-me a dizer (com as exceções de praxe)

que aquilo que se opõe à Reforma (inibindo o seu avanço no que concerne ao

plano das políticas públicas) não é a psicanálise, mas os psicanalistas.32

Não se pode acusar Freud de haver negligenciado a expectativa de

expandir a psicanálise para as “camadas sociais mais amplas”: Diz ele:

“Defrontar-nos-emos, então, com a tarefa de adaptar a nossatécnica às novas condições... É muito provável (também) que aaplicação em larga escala da nossa terapia nos force a fundir oouro puro da análise livre com o cobre da sugestão direta...”33

(Freud, 1918).

Receio que esta advertência tenha sido, para a maioria dos psicanalistas

implicados em programas de saúde mental, reformulada nos seguintes termos: “Se

tem de ser assim, reservemos a nós - os psicanalistas - o ouro puro, e deixemos a

31 Cf. Freud, S. – Conferências, XVI: Psicanálise e Psiquiatria.32 Destaco duas afirmações proferidas por psicanalisras: “o psicanalista, como tal, não é umtrabalhador de saúde mental” e “não se trata de psicanálise no serviço público, mas de psicanalistas” ,ambas citadas por Greco, in Quinet, (org.) 2001 (p. 112).

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139

eles - os ‘terapeutas diretivos’ - o cobre”. Essa resistência não da (ou à)

psicanálise, porém dos psicanalistas, é, seguramente, uma pedra no caminho da

reforma.

Traçada esta trajetória, a psicanálise (ou, mais precisamente, os

psicanalistas) haveria de lançar-se à vocação hegemônica que definiu para si

própria e que lhe reservaria um caminho em que se aprisiona na ambivalência

entre a posição de neutralidade da situação dual (em que estruturou o seu saber)

e a da “psicanálise em extensão”, alternando momentos de idílicos esplendores e

amargos dissabores.

Por alguma razão desconhecida (não tão desconhecida) os

psicanalistas que com tanto gosto se põem a discutir interminavelmente o “fim da

análise” parecem ter-se esquecido disso e confundem certas injunções da técnica

(necessárias e ainda não resolvidas) com uma impossiblidade “epistemológica” de

ouvir, devotando aos problemas políticos ou um silêncio (e uma surdez) de mal

disfarçado desprezo ou um vozerio que contrai toda a problemática política às

“categorias” da língua psicanalítica. Castel critica na direção tomada pela

psicanálise institucional pós-lacaniana uma torção na imagem que o psicanalista

faz de si mesmo, continuando

“a embandeirar-se com o prestígio da extraterritorialidade social,quando não é o heroísmo de uma oposição solitária à ordemestabelecida”

o que o impede de apreender o sentido social do papel que deixa escapar.

Esse empuxo à hegemonia a que me referi linhas acima manifesta-se

evidentemente de maneira heterogênea, dependendo de conjunturas locais. É

especialmente agudo, por exemplo, em Minas Gerais, onde a ruptura com a

clínica psiquiátrica tradicional ocasionou a extensa penetração da psicanálise

lacaniana, tendo como epicentro o Instituto Raul Soares, em Belo Horizonte,

como afirma Lobosque, para quem

33 Freud, S. [1918] : “Linhas de Progresso na Terapia Psicanalítica”

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140

“praticamente tem sido apenas o movimento mineiro o que temsustentado com a psicanálise uma parceria maior” (Lobosque,1997).

Esta parceria, no entanto, e ainda nas análises de Lobosque, que se

dá “de direito na defesa da cidadania do louco”, não se dá sem o bafio de uma

militância algo intolerante, que mal disfarça seu desdém pela gestão política (vista

como uma área própria do administrador e do burocrata, presumivelmente menos

nobre do que “a clínica”) e sem deixar de lançar-se ao confronto, elegendo como

inimiga a “psiquiatria biológica”, alvo de ataques com cacoetes maniqueístas, em

que cabem até a tentativa de ridicularização e acusações de má-fé no plano ético

(Lobosque, op. cit.). 34.

Posicionando-se de modo que flagrantemente contrasta com este

vozerio panfletário, Figueiredo desenha um cenário muito mais sóbrio e pacífico

para a interlocução da psicanálise com outras orientações teóricas e técnicas.

Creio que ao afirmar que “a psicanálise possível” nos serviços de saúde mental

deve recusar o objetivo de “formar novas corporações enquistadas nas

instituições públicas” e reconhecer que fora do seu habitat (o consultório privado),

a psicanálise pode enriquecer-se e marcar sua especificidade convivendo com

diferentes vocabulários, Figueiredo apresenta caminhos muito mais interessantes

(Figueiredo, 2002).

À psicanálise se pode creditar a centralidade da noção de sujeito

(psíquico) nos projetos de reforma, a convocação de um saber que não se

constrói no Outro (o corpo social ou a Natureza), mas no próprio pensamento

condensado no sintoma como expressão do inconsciente e que se atualiza na

transferência (Birman, 2001) e, last but not least, o suprimento de uma

consciência crítica que denuncia o sintoma institucional como fruição materna

perversa de quem promete mais do que pode atender, recusa suas falhas e toma

o paciente como fetiche (Paoliello, 2001), isto é, usuário (no seu sentido

etimológico: “aquilo de que se tem o uso”).

34 Essas referências detratoras são explícitas nas páginas 36 e 62 de Lobosque, op. cit.

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141

Sua maior limitação é sua resistência a rever um dispositivo teórico

clínico insensível às mudanças nas montagens subjetivas com manifestações

psicopatológicas apressadamente descartadas como redescrições ateóricas da

nova psiquiatria ou meros disfarces superficiais sob os quais se ocultam as

perenes categorias psicanalíticas.

Muito mais exposta às contradições é a presença da atual orientação

de cunho fisicalista da chamada psiquiatria biológica na paisagem atual dos

serviços e programas de saúde mental. Para as finalidades da presente reflexão

carecem de importância as considerações sobre a validade científica de suas

asserções e até mesmo a análise de fatores conjunturais que possibilitaram o

vertiginoso prestígio das teses fisicalistas. Limito-me a indagar sobre a incidência

da imagem de sujeito (de indivíduo) subjacente a esta vertente teórica no plano

da “nova clínica”. A metáfora da máquina, cujo funcionamento (ao menos

projetivamente) pode ser esmiuçado pelo conhecimento da intimidade dos

circuitos neuroquímicos, pressupõe uma concepção finalista tributária de uma

assunção da física numa relação que vai além das analogias.

A crescente ocupação desses serviços, no entanto, pela safra de

novos psiquiatras de orientação biológica desperta reações de ambivalência, pois

se, de um lado, é vista como inevitável (por força do predomínio desta orientação

na formação dos novos psiquiatras), promete, por outro lado, possibilidades mais

favoráveis de interlocução nas situações em que o projeto tem de responder (e

ser avaliado) pela resolutividade medida por critérios empíricos de objetividade.

O imaginário profissional que desperta velhos mitos cientificistas do

século XIX, como defendi em outro trabalho (Barreto, 1998), difunde a crença de

que os polêmicos desvios “ideológicos” (isto é, psicanalíticos e/ou políticos)

tornar-se-ão obsoletos com a retomada do progresso científico (Castel, 1987),

favorecendo coalizões com as terapias cognitivo-comportamentais e a eficácia

dos seus programas sedutoramente simplificados de correção de

comportamentos e hábitos. Paradoxalmente, esta estratégia da tecnologia

médico-psicológica, ao mesmo tempo em que colide, a meu ver, com uma política

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142

de despsiquiatrização inerente ao espírito da reforma psiquiátrica brasileira, seduz

por seus acenos em direção à resolutividade e à racionalidade que imprimem à

gestão e avaliação dos serviços, corrigindo possíveis excessos de intenções que

não atendiam aos anseios da mais prosaica eficácia.

“Natureza significa - lembra-nos Z. Bauman – nada mais que osilêncio do homem”.(Bauman, 1999).

A escolha teórica da psiquiatria em sua versão fisicalista consiste em

silenciar o discurso do paciente como lugar em que se forja um saber sobre o

sintoma, valorizando-o apenas como aglomerado de queixas que, mediante

operações diagnósticas, indica a melhor intervenção para se obter a regulação

funcional do paciente (Birman, 2001). Sua matriz reducionista, freqüentemente

eliminativista, segue os cânones das ciências naturais, dos procedimentos

experimentais, das relações de causalidade externa e da generalização de

regularidades como única via de acesso ao conhecimento verdadeiro (Serpa Jr.,

2001). Esta epistemologia faz do seu convívio com as premissas da reforma um

faz-de-conta em que se negocia o inegociável, um exercício permanente de

colocar entre parênteses aspectos inelimináveis do discurso reformista.

A incorporação do renovado objetivismo de psiquiatras de orientação

biológica (que tende a ser inevitável e crescente) representa, certamente, por um

lado, a oportunidade de conter a monótona compulsão das reuniões em que as

equipes se exaurem em discussões sobre o significado da cura ou em torno dos

problemas de sua constituição interna. Mas, por outro lado, esse enxerto perfura

prematuramente o tronco frágil da reforma e lhe impõe um jogo de duplicidades

que reintroduz no discurso sofisticado da reforma o penhor de teses

modernizadoras que restauram os mitos cientificistas que floresciam na psiquiatria

do século XIX (Castel, 1987), que se pretende explicitamente exorcizar.

Desta incompatibilidade de origem decorre uma nova dificuldade no

caminho da reforma assistencial pelos perigos que comporta de reduzir a atenção

pública em saúde mental ao modelo preventivista da gestão dos riscos. Encontrar

uma síntese que viabilize a sua inserção é um desafio seguramente maior do que

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143

o de buscá-la para o convívio com a psicanálise, mas sua contribuição não pode

ser desdenhada. Entre as condições para essa síntese está a suposição da

inevitabilidade (ou da probabilidade) de uma virada paradigmática que reconcilie a

psiquiatria com teses humanistas que não impliquem abdicar das conquistas da

ciência neuroquímica e da biologia molecular. Até lá, suponho que o melhor a

fazer é negociar um armistício que provisoriamente permita um convívio tão

harmonioso quanto possível.

Talvez se deva esperar dos psicanalistas a humildade de,

pacientemente, reporem as peças em jogo até que esse discurso psiquiátrico

remedicalizado venha a debater-se com as impossibilidades de decifração nos

seus códigos de uma inarredável dimensão trágica da loucura que, com seus

fantasmas e sua dor sem corpo (como diria Foucault), impele o homem à vertigem

de dar ao que experimenta a forma de narrativa.

O foco na esfera social e nas relações entre a loucura e política

agrega presumivelmente os trabalhadores de saúde mental em melhores

condições de levar adiante o projeto de reforma assistencial adotado no Brasil.

Suas limitações mais óbvias são, certamente, a instabilidade de que ainda se

ressente a sua plataforma conceitual e a tendência a restringir-se a uma etiologia

sociogênica do sofrimento mental que desconsidera uma dimensão de

heteronomia nos arranjos estruturais da realidade psíquica, fundada na cisão

radical que a constitui como alma dividida, nunca contemporânea de si mesma e

nunca resignável a deixar de ser estrangeira a si própria.

É a um só tempo preocupante e fascinante, nessa vertente, o estágio

de sua elaboração teórica ainda pouco estabilizada e em construção, numa

posição que guarda certa eqüidistância da psicanálise e da teoria psiquiátrica e

valoriza com vigor o tema da ética. Assim, as suas linhas de desenvolvimento que

me parecem mais interessantes são as que exploram as novas formulações sobre

o projeto democrático, os processos de emancipação e as teorias acerca do

sujeito, com ênfase na força da realidade social-histórica, no trabalho concreto de

forjadura dos investimentos psíquicos e uma disposição de maior abertura quanto

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144

a renunciar a pretensões hegemônicas e admitir o caráter ambíguo, paradoxal e

cambiante do campo em que se trabalha.

Esta corrente tem, sobre a tradição assistencial da psicanálise, a

vantagem de mirar com mais clareza o horizonte do público e de mais

decididamente tentar dar conta da questão das relações entre loucura e

cidadaniar, situando-as propriamente na esfera da política e não na da sociedade

ou de grupos sociais (a não ser em sua versão mais empobrecida). Definindo

como sua meta o processo de desinstitucionalização, tem maior “imunidade

congênita“ contra o vírus corporativo das instituições e maior desembaraço para

desenvolver uma reflexão mais rica e consistente sobre o papel da constituição do

espaço público como operador de efeitos de subjetivação. É, certamente, a

orientação que reúne as maiores possibilidades, a maior liberdade e a maior

urgência de despsicologizar o político, de “despolitizar” a psicanálise e de

“desnaturalizar” a psiquiatria.

O maior perigo que a ronda é o de se deixar encantar pelo tom

universalista e unificador do discurso civilizador regulado pelos operadores do que

Lacan denominou discurso do mestre ou pelo discurso universitário, mediante a

adoção, sem uma crítica devidamente rigorosa, de modelos sociopedagógicos e

de técnicas de treinamento de habilidades (Valente Filho, 2001).

Nesse cenário de “vastas confusões e atendimentos imperfeitos”, na

feliz paródia de Figueiredo à citação de Havellock Ellis por Freud, surgem

impasses que desafiam o projeto inteiro. Penso que o aspecto que, mais

emblemática e meridianamente, expõe a nervura desse impasses é a reaparição

da cronicidade, como aludi no capítulo I. Mencionarei mais brevemente um outro

aspecto também representativo dessa navegação entre os rochedos de Cila e de

Caribdes e que às vezes deixa lívida a “tripulação” desses serviços: a eclosão de

crises.

Sem a alternativa de uma revolução, a realidade com que trabalhamos

reserva-nos, segundo Basaglia, a tarefa de viver radicalmente as contradições do

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145

sistema gerindo instituições concebidas como negação da instituição, exercendo

uma terapêutica que refuta a ação terapêutica em que nos formamos e tendo de

resistir às armadilhas incessantemente renovadas da ideologia científica que

combatemos (Basaglia, 2001).

Diante deste projeto, situamo-nos num campo povoado por

psicanalistas quase sempre vinculados a instituições disciplinadoras,

hierarquizadas e ideologizadas, e por trabalhadores de saúde mental geralmente

com trajetórias que também exibem forte marca institucional, campo que agora

reincorpora uma ideologia psiquiátrica que se reconcilia com a delegação que lhe

autoriza a intervenção explicitamente normativa que sequer exclui o

estabelecimento de sanções.

Se já era impregnada de contradições e dificuldades a tarefa de

desideologizar e desinstucionalizar as equipes envolvidas nesses serviços, o

ingresso da nova geração de psiquiatras de orientação biológica só vai tornar

ainda mais evidentes estas dificuldades e contradições e maiores os riscos de

esses novos serviços substitutivos irem perdendo a vitalidade de sua constituição

como antimodelo e refluírem à condição de um modelo novo para a velha

instituição.

4. Crônica da crise e crise dos crônicos

A situação dos psiquiatras na composição das equipes oferece uma

ocasião particularmente elucidativa desse retorno do recalque institucional. Os

psiquiatras, em virtude de prerrogativas da formação profissional não contestadas

na prática, vêem-se convocados a intervir incisivamente nas duas situações-limite

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146

que mais flagrantemente colocam em xeque a vocação desinstitucionalizadora: a

resolução de crises e o seguimento da patologia dos crônicos.

A questão da crise pode ser apropriadamente traduzida na situação

mais geral do acidente, como a intrusão do imprevisível ou da anormalidade no

espaço da norma. Tradicionalmente, o psiquiatra, a quem foi delegada a

responsabilidade de controlar os desvios da norma, opta por deslocar a

responsabilidade do comportamento desviante ao doente e à sua doença. Um

acidente do tipo que a todo momento irrompe nos serviços sob a forma banal de

fugas, gritos, ameaças e agressões, desafia a equipe a suportar até o limite do

tolerável a sua capacidade de não silenciar a liberdade (pois é disso que se trata,

mesmo em sua expressão mais desesperada) com a imposição da norma, de

manter as condições de sustentação material e psicológica do paciente, de

romper com todo resquício de relações objetais, de abdicar da rigidez de papéis e

de renunciar aos meios disponíveis numa relação hierárquico-autoritária

(Basaglia, 2001).

A observação das reações de uma equipe diante de uma crise que

convulsiona abruptamente a organização e funcionamento do serviço revela

provavelmente muito mais da estrutura e da cultura institucionais do que meses

seguidos de questionários e entrevistas de avaliação. Basaglia sugere ser este o

momento crucial em que se conhece quanto da instituição fechada clássica

subsiste como placas tectônicas sob a superfície visível dos serviços abertos. A

resposta da instituição clássica é a de repelir instantaneamente do seu campo de

consciência a percepção da crise como algo em que a própria instituição se vê

envolvida em cada um de seus atos, deslocar imediatamente para o próprio

paciente e sua doença a causa da crise, recusá-la como ato proibido e intervir

com toda a eficiência possível para restaurar a injunção da norma a que o

paciente tem de identificar-se para poder sobreviver.

Diante da crise, uma instituição aberta vê-se instada a verificar em que

medida pode suportar um ataque à fixidez de suas normas, em que medida pode

sustentar incondicionalmente uma relação que se insurge e recusa a sua oferta

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147

de referências identificatórias; em suma, em que medida a instituição resiste ao

assalto àquilo que assimilou como o que estabiliza a sua própria identidade.

Nesse momento crítico é quase irresistível a tentação de se atribuir à

doença a eclosão do acidente e intervir sobre ela nos exatos termos da

intervenção psiquiátrica clássica ou das comunidades terapêuticas, perdendo-se

de vista todos os elementos que fariam reconhecíveis na crise uma contestação

contra os dispositivos de exclusão e codificação e mergulhando o serviço na

contradição plena de existir como instituição que nega a instituição. Convocado, o

psiquiatra intervém. Ponto. Mas proponho que deixemos de lado o psiquiatra para

observarmos a equipe.

O que acontece com a equipe? Acossada pela má-consciência, a

equipe experimenta sentimentos ambivalentes de alívio e de culpa e designa para

o psiquiatra o lugar do salvador e do bode expiatório. E curva-se sob o peso da

instituição sentido como dado inelutável. Ou não faz nada, ou tenta fazer alguma

coisa, agarrando-se automaticamente a protocolos que reforçam a ilusão de

coesão diante da ameaça de cisão e do ataque da ambivalência. Ou ruma para

uma outra alternativa, a mais difícil, a mais rara e a que obriga a equipe a olhar de

frente a contradição. O serviço aberto, supostamente aberto para o exterior,

esbarra na recusa do exterior e tem de receber de volta o que não pode assimilar

e conter dentro dela. Se puder contar com engenho e um espírito sereno, poderá

extrair de cada crise a ocasião de recuperar o seu começo.

É a cronicidade que, por uma outra via, põe igualmente em xeque o

projeto da reforma. Como ficou dito, a reaparição da cronicidade, espectral e

recoberta dos trapos de velha e conhecida indumentária institucional ou do tecido

esgarçado da nova lógica assistencial, assombra os serviços substitutivos com o

horizonte sombrio do fracasso.

Para elaborar uma estratégia específica é preciso, antes de mais

nada, que os serviços da reforma superem suas resistências a reconhecer o

problema. É provável que a prolongada persistência de sintomas psicopatológicos

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148

resistentes às técnicas de tratamento tenha tido o efeito de circunscrever a

compreensão da condição de crônico como um problema eminentemente, senão

exclusivamente, técnico. Todavia, o traço distintivo da cronicidade é a relação de

dependência que faz do crônico um tutelado. Em nada se distingue

essencialmente a condição de crônico da condição de outros contingentes

excluídos ou, para retomar a expressão de Giddens, dos grupos vítimas da

segregação da experiência.

Bauman, ao privilegiar a categoria da ambivalência como traço

característico da modernidade, afirma que a geometria é o arquétipo da mente

moderna e a grade o seu tropo dominante. Na sua abordagem, a história da

modernidade pode ser lida na metáfora sisífica de uma atividade ordenadora

mediante oposições binárias em que as possibilidades de sociação dependem da

designação do lugar do outro como amigo ou inimigo. Na medida em que recorta,

no entanto, suas classificações, gera espaços de caos e de indeterminação que

resistem a integrar-se em suas grades ordenadoras. Esses elementos

inassimiláveis são os estranhos, frente aos quais o sentimento possível é o da

ambivalência, com toda a carga intolerável de indecidibilidade cognitivo-afetiva

que implica 35. (Bauman, 1999).

Nesse sentido, encerrar dentro da instituição um determinado

contingente de seres humanos (como criminosos, leprosos ou loucos) é uma

poderosa estratégia de rotulação na categoria de inimigo, com quem partilhamos

uma proximidade afetiva e uma distância física. Desinstitucionalizar, por outro

lado, resulta em retirar o outro da posição de inimigo e da confortável antinomia

que lhe designa o lugar de fora, trazendo-o a uma posição de proximidade física e

distância afetiva, isto é, fazer advir o estranho onde estava o inimigo. O encontro

com o estranho se dá na zona cinzenta de indefinição e incongruência, na

ausência de regras claras, que tem por efeito tomar de assalto as oposições

binárias dos esforços classificatórios e ordenadores, deixando como alternativas a

expulsão ou a assimilação (que, literalmente, significa tornar semelhante).

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149

A desinstitucionalização, portanto, cria uma situação de instabilidade e

exige, como complemento, estratégias de reabilitação que possibilitem a

assimilação, isto é, tornar o outro menos outro, levá-lo a trocar o que faz dele um

estranho pelo que o torna semelhante, razão pela qual a maior dificuldade no

caminho da reabilitação é a de conter as operações que usurpam do outro a sua

singularidade.

A escritura da reabilitação é um romance tempestuoso entre a odisséia

e o folhetim, entre a lógica perversa da homogeneização coercitiva e a vertigem

de uma teimosa ambivalência a desafiar a compulsão ordenadora.

Com admirável clarividência, Saraceno desnuda a mistificação de uma

cultura de reabilitação que visa a “autonomia” dos sujeitos desabilitados. Ao mito

da autonomia credita-se a legitimidade de um processo sutilmente perverso de se

promover entre os crônicos uma hiperseleção que reproduz a lógica da exclusão

dentro do círculo de crônicos, segregando os parcialmente “habilitáveis” dos

outros com grau de “habilitabilidade” zero. O que se reproduz nesse nível dos

porões da cronicidade é o mesmo dispositivo de segregação que, no nível do

convés, comanda as relações de troca do modelo social imposto pelas regulações

do mercado (Saraceno, 2001).

Analisando uma passagem de texto redigido por Pitta, Grecco

apresenta uma crítica contundente. Denuncia nele uma concepção que –

injustamente, a meu ver - considera basagliana, mediante a qual se considera que

“se tem reservado aos usuários o direito...de pretender exercíciosde cidadania plena a quem ainda se cerceia quase todos osdireitos”,

para concluir:

“No dia-a-dia, essa privação de direitos traz, muitas vezes, umatirania às avessas. Acostumados a uma situação de difusa surdezpara os seus reclamos, os ‘pacientes’ exercem uma contratiraniacom os que os assistem e, impacientes, recusam qualquer limite

35 É interessante notar aqui as estreitas afinidades de sua análise com a que Freud desenvolveu emseu célebre estudo sobre a categoria do unheimlich (Freud [1919]: “O Estranho”)

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150

para os seus desejos, assumindo uma identificação com oopressor, tiranizando seu cuidador mais imediato, a equipe decuidados, os colegas e a eles mesmos, numa louca recusa ao quepoderia ajudá-los”.36

Parece-me suficientemente eloqüente esta passagem para confiar em

que o próprio leitor já adivinhe as críticas do autor e possa formular as suas

próprias, talvez mais interessantes. O leitor seguramente não deixará de

espantar-se com a gravidade dessas afirmações proferidas por um dos atores

mais representativos desse campo e que revelam um furor civilizandi que não

recua diante do perigo de fazer da reabilitação uma usina de falsos selves.

É preciso, no meu ponto de vista, considerar o cronicidade, tanto a

cronicidade residual dos asilados e ex-asilados, quanto a nova cronicidade dos

serviços substitutivos, como a encruzilhada em que se decide a questão da

política. Mais que um problema técnico-assistencial, o crônico é o portador por

excelência da questão política para o interior do projeto. “Resolver” a demanda do

crônico promovendo-o das atividades ditas expressivas para as tidas como de

geração de renda (supondo que assim se promove autonomia) é uma resposta no

mínimo tímida, se me for permitido o eufemismo, e que, em última instância,

substitui uma segregação mais visível por outra mais sutil (pois, haverá sempre os

que ficam à margem do caminho).

Sem que isto signifique desvalorizar o esforço dos técnicos, é preciso

reconhecer que a “inclusão” dos crônicos no circuito de oficinas e ateliês de

atividades manuais para produzirem peças que serão compradas por almas

piedosas nas lojinhas e feiras de artesanato ou expostas em congressos e

simpósios para arrancar exclamações aprobatórias dos participantes não deve ser

meta que nos encha o peito de orgulho.

36 Toda a citação foi retirada de Greco (op. cit.), a quem presumivelmente se devem também ositálicos.

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151

A condição de crônico, volto a dizê-lo, é uma exclusão dentro da

exclusão mais geral da loucura. É o nosso problema político. Se redescrevemos o

crônico como quem nos convoca a não (só) possibilitar sua experiência subjetiva,

mas a radicalizar a negociação de um lugar que não seja estigmatizado,

estaremos renunciando à ilusão de soluções técnicas de “ininclusão” e

conciliando-nos com a dimensão propriamente política do ato terapêutico,

endereçando à cidadania o problema da sua verdade.

Pode ser esta uma razão poderosa (e mais ou menos inconsciente)

por que a cronicidade costuma ser o ponto cego que inclina as equipes a tratá-la

como um tabu. No que toca às avaliações de qualidade dos serviços e programas

de saúde mental, elas têm a propensão a adotar o conceito de cidadania em sua

acepção fraca, autorizando-se a uma alquimia que o converte em indicadores de

autonomia que suavizam a face mais espectral da segregação da experiência

sem arranhar a estrutura óssea que a sustenta.

Aplicando-se as reflexões desenvolvidas por Castel sobre a exclusão

(Castel, 2000) à cadeia semântica que agrupa termos como reabilitação,

autonomia, reinserção social, etc., o projeto de desinstitucionalização deve

acautelar-se para não restringir sua ação ao horizonte clássico da focalização da

ação social e contentar-se com ações de reposição (Castel, id.). Isto é muito

menos fácil do que parece e ainda mais difícil quando se cede à crença nos

poderes de intervenções de caráter eminentemente técnico.

A dificuldade revela-se ainda maior quando se visualizam as conexões

entre o plano da política e o da clínica (em sentido estrito) na perspectiva

descuidada em que a política é mais ou menos obscuramente imaginada como

uma atividade monopolizada pelo Estado, visto como inoperante ou mero agente

de operações que só muito imperfeitamente respondem às demandas “locais”.

Em outras palavras, o Estado revelou-se pequeno demais para os problemas

globais e grande demais para os problemas locais. Como desenvolver

“localmente” (e, tanto quanto possível, não “loucamente”) a ação política (no

Page 150: O umbigo da reforma psiquiátrica.pdf

152

sentido próprio e não no sentido analógico) nos contextos da atividade clínica?

Penso que a resposta a esta pergunta deveria suscitar uma discussão

muito mais interessante do que as a que temos assistido. Não há respostas

definitivas, é claro, mas talvez um diagnóstico mais refletido sobre o mapa que se

vai esboçando nas dobras mais superficiais dos movimentos e tendências da

nova formação social nos dê as primeiras pistas.

A idéia de que vivemos nas condições de uma sociedade mundial de

controle, não obstante ser correta sob muitos aspectos, impõe-se também como

uma profecia que se autocumpre, difundindo a descrença na efetividade das

escolhas individuais e das ações locais, tornando-as formas de resistência sem

outro propósito que o de retardar o triunfo inevitável de um mundo desertificado

pelo avanço da “máquina de guerra” da ocupação capitalista.

Ao sentido de totalização, no entanto, desse processo modernizador,

opõe-se um outro, não como acidente, mas dialeticamente, de fragmentação. Na

esteira da fragmentação aparecem não apenas espaços que sobram, mas

espaços que se criam e que geram outras modalidades de ordenação. Explorar

esses espaços “locais”, mais do que estratégias de focalização à sombra de um

mundo da vida devastado, pode ser a forma moderna de ressituar um “lugar para

a vida”.

A ausência do aspecto de totalização nas sociedades pré-modernas

por si só assegurava para a vida um horizonte “local”, como que a indicar que a

qualquer tempo é localizadamente que a vida pode cumprir-se. Rumo a esta

imagem pode gravitar a metáfora de rede que se espraia pela totalidade do

território instaurando uma outra territorialidade.

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153

5. Resumo

No nível da estruturação dos serviços, a trilha de desenvolvimento que

se abre pressupõe algumas condições. A primeira delas consiste em se erradicar

definitivamente dos projetos a utopia de dotar as instituições das características

de uma campânula ou dos sonhos de fazer delas um “laboratório” em que se

reproduzam no nível micro os dispositivos e a lógica de funcionamento da

sociedade geral, que inclui em seu aparato estratégias de segregação que

poderiam ser reeditadas de modo mais ou menos implícito em iniciativas dos

próprios serviços, como a hiperseleção (a que se refere Saraceno) e o

monitoramento do acesso à suposta cidadania.

É preciso evitar, no polo oposto, a tentação de diluir o movimento da

reforma apagando por completo o marco institucional e ocupando as praças

públicas mediante a reedição das táticas da “esquerda” de colorido reivindicatório

e ocasionalmente com forte viés corporativista, que se tornaram obsoletas diante

da prodigiosa capacidade de recuperação do sistema. São táticas facilmente

anuladas, menos pela afirmação aberta da força de controle do poder que pelos

mecanismos mais sutis de desqualificação que as tornam inócuas e as isolam por

trás de paredes de vidro.

Penso que algumas iniciativas concretas podem ser revistas

criticamente e retomadas com um novo sentido. As assembléias que

tradicionalmente agregam pacientes, trabalhadores de saúde mental, familiares,

etc., cuja discussão não ultrapassa geralmente os objetivos de estruturação das

atividades e funcionamento do serviço, poderiam converter-se em experimentos

que se pareçam com uma ágora imaginária em cuja reflexão se misturem a

problemática dos arranjos subjetivos individuais e um plano da política regulada

não pelo trabalho, mas pela liberdade e pela espontaneidade. Em outras palavras,

isto significaria valorizar a dimensão ético-estética do convívio e, portanto, apostar

na potencialidade da articulação subjetividade-cidadania como imaginário

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154

instituinte radical, na expressão de Castoriadis.

É preciso investir decididamente na valorização do discurso do

paciente, legitimando criticamente os sistemas de crenças e quadros de

referência de origem popular que se explicitam em sistemas de representações

diante dos quais o suposto saber não deve ser afirmado como instância de

validação dos enunciados sobre a experiência subjetiva.

É preciso assumir a difícil tarefa de banir do projeto a idéia de que as

atividades de “reinserção” tenham por objetivo o ingresso no mercado de trabalho

(ingresso geralmente alcançado em condições de inserção subalterna num

mercado que sequer absorve os mais habilitados) e fazer da ocasião de

organização e execução da atividade uma oportunidade de discussão do trabalho,

do sentido do trabalho e de seus efeitos de coerção quanto a invalidar outras

formas de inclusão no mundo da cidadania. Nesse sentido, é condição prévia a

ruptura com os ideais de conferir à aquisição de habilidades para o desempenho

social a dignidade do exercício da cidadania, imagem freqüentemente reforçada

nas avaliações de qualidade.

Creio que se deve romper com a supremacia do modelo dual de

psicoterapia e priorizar as técnicas de tratamento grupal, freqüentemente vistas

com o olhar condescendente de quem as considera uma prática “inferior”, embora

conveniente quando se trata de dar conta do “atendimento de massa” com a

escassez de disponibilidade de tempo e pessoal técnico. Mais do que as

possibilidades ainda inexploradas de efeitos terapêuticos oferecidos pelo conforto

da partilha de um mesmo universo sócio-cultural com a exposição de modelos

identificatórios mais próximos (Bezerra, 2001), a experiência com grupos pode

encorajar o terapeuta a rever a figura muito cristalizada da subjetividade atrelada

à individualidade e adotar a noção guattariana de agenciamentos coletivos como

um conceito operador.

Se a idéia de cidadania é incondicionalmente tomada como direito,

há muito o que fazer para que o projeto da reforma se coloque do outro lado da

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155

assimilação, na expressão de Bauman, buscando-se uma “língua comum” que

considere não só a ultrapassagem das barreiras lingüísticas e a valorização de

sistemas interpretativos estranhos aos cânones do saber constituído, mas uma

disposição mais radical de partilha que abranja atos triviais da vida cotidiana,

incluindo tudo aquilo que segrega e institui a equipe como um mundo à parte de

especialistas, que têm áreas privativas de circulação e horários, espaços e

cardápios diferenciados para as suas refeições. Sentar-se à mesa de refeição

com os pacientes poderia, certamente, resultar em efeitos terapêuticos mais

criativos do que a ciosa administração de medicamentos, a grave enunciação de

interpretações ou o “pedagógico” estímulo ao trabalho.

Trata-se de uma tarefa impossível, exatamente como Freud

considerou a psicanálise um trabalho impossível, e outros igualmente o disseram

a respeito da política e da educação. Por ser impossível é que essa tarefa, a

exemplo da criação da democracia ateniense e da psicanálise freudiana, convida

a rasgar um horizonte que ilumine de cores novas o presente. Um tempo em que

a imagem de uma repetição mornamente infinita no tempo imóvel da cronicidade

seja tão extemporânea quanto a imagem de um universo gelidamente imóvel em

torno de uma terra plana e condenada a repetir-se na reaparição incessante dos

ciclos do mesmo.

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CAPÍTULO V:

MEDIR OU ESTIMAR?

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157

1. Vagueza e exatidão

Recorro deliberadamente, no título do presente capítulo, ao termo

estimar pela ambigüidade semântica que comporta, podendo significar o ato de

avaliar e calcular de modo aproximado (determinar um valor com certa imprecisão),

expressar votos ou desejo ou, ainda, referir-se a sentimentos de afeição e apreço.

Esta palavra tem a vantagem de nos oferecer a ocasião para um exercício quase

lúdico de experimentar pontes que permitam passar do “vago” ao “exato”, pois,

como sugere I. Calvino - para quem a palavra “vago” denota também, o que é

gracioso e atraente - para se alcançar a beleza do vago e desvelar o movimento

impreciso do indeterminado é necessário empregar atenção extremamente precisa

e meticulosa na escolha dos objetos, na composição das imagens, na

reconstituição dos detalhes ou na composição de uma iluminação e uma atmosfera

(Calvino, 1998).

Poeticamente Calvino refere-se, é claro, a uma noção de exatidão que

talvez guarde maiores afinidades com as teorias mais avançadas da microfísica,

da astrofísica e da lógica matemática, que resultaram nas metamorfoses que hão

de relegar ao descrédito o mito determinístico do demônio de Laplace (Stengers,

1990)37 e reinserir no coração da ciência exata os princípios que acolhem

categorias como a incerteza, o acaso, as flutuações e a indeterminação.

No âmbito dessas áreas do conhecimento puseram-se em marcha as

ciências da vida com a virada desencadeada pela teoria dos sistemas e pelo

paradigma do pensamento complexo, cujo quadro conceitual se busca estender

para as ciências humanas e sociais. Esta tarefa, no entanto, não tem sido nada

fácil neste campo, posto que as ciências sociais sequer haviam conseguido ainda

37 O “demônio de Laplace” é uma experiência imaginária do pensamento que postula a existência deum superfísico cujo experimento situa as probabilidades no determinismo da mecânica, supondo-seum momento dado em que o conhecimento simultâneo da posição e velocidade de cada partícula douniverso permite ver neste estado instantâneo do universo a sucessão de estados que o causaram e asucessão de estados que ele causará (Stengers, op. cit. P. 61). Seria curioso comparar esta imagemcom a narrativa de “O Aleph”, de J. L. Borges.

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158

familiarizar-se por completo e empregar com desenvoltura os instrumentos

teórico-metodológicos construídos à imagem daqueles que conferiram

cientificidade à física clássica.

Pesar e medir sementes pode ter sua utilidade, mas em nada permite

compreendê-las, em nada facilita antecipar a forma da copa das árvores ou o

sabor dos frutos que penderão de seus galhos. E comparar duas sementes

semelhantes de plantas distintas, como esclarece Wittgenstein, é algo que não se

pode fazer mediante qualquer atribuição de causalidade estrutural (real), mas só

em consonância com normas de representação apoiadas na previsão do

conhecimento (Glock,1998).

As investigações qualitativas, mais ainda no campo da saúde mental

que em outros, carrearam questões para o interior da epidemiologia cujos

desdobramentos mal se esboçam até o presente, embora sejam freqüentes os

ensaios avaliativos nessa área que parecem perseverar incólumes ao abrigo de

métodos canônicos, há muito colocados sob suspeita nos estudos de pesquisa

social. Estamos, antes de mais nada, diante de um cenário em que se

(re)apresenta o velho problema das conexões causais ou, mais apropriadamente,

o da causação singular no que diz respeito ao sofrimento mental. O mito de que

se nutre é o da redução do conceito de causalidade à categoria única da causa

externa e eficiente.

Sobre a epidemiologia paira, como suponho ter sugerido

anteriormente, o fantasma da prestigitação que opera mediante o giro de

converter possibilidade em probabilidade. O passo da possibilidade à

probabilidade não é epistemologicamente menor que o passo da probabilidade à

determinabilidade, condição que condena a epidemiologia à posição de suspeição

de quem força o emprego das regras de um jogo em outro jogo.

Se a epidemiologia geral já vem sendo alvo de tentativas de

reformulação e acolhendo o debate em torno da mudança de paradigma por se

supor insuficiente o quadro vigente de inspiração positivista para conhecer o

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159

adoecer humano em sua complexidade e singularidade, são precárias as

justificativas para se supor que, tal como se apresenta, possa moldar-se ao

campo da saúde mental e elucidar questões relativas à qualidade desses

serviços.

Sabemos, e isto é de crucial importância, que as avaliações de

qualidade dos serviços e programas de saúde mental são hoje imprescindíveis, se

não por outras razões, por motivos estratégicos. Pois, como cristalinamente se

sabe, o que está em jogo é uma luta por hegemonia. Demonstrar a qualidade

superior dos serviços abertos, sua eficiência e atributos que lhe dêem

precedência entre as políticas do Estado, é um movimento decisivo na estratégia

que visa desalojar uma cultura psiquiátrica corrompida mas ainda capaz de lhe

opor férrea resistência. Enquanto cumpre o seu papel estratégico não há o que se

lhe objetar. Quando se impõe cumprir, para conferir credibilidade e eficácia à sua

estratégia, a obrigação de revestir de cientificidade os seus métodos e

procedimentos segundo padrões já vistos sob suspeita na epidemiologia é que

começam a surgir dificuldades.

Para além da inevitabilidade e desejabilidade dessas avaliações é

preciso indagar a que nos autorizam e, sobretudo, que serviços prestam a uma

compreensão mais clara do fenômeno psíquico. Por não ter uma base conceitual

própria, a avaliação teve de importar seus conceitos fundamentais de outros

domínios, o que, de imediato, suscita a indagação das transposições que efetuou,

ou seja, de se saber em que medida suas formalizações permanecem legítimas e

em que medida podem ser validadas em seu novo registro ou se tornam fonte de

novos problemas fora de seus quadros de origem.

Formule-se aqui uma dúvida preliminar, dirigida especialmente, mas

não apenas, aos que se familiarizaram com o campo do psíquico pelos caminhos

da tradição da psicanálise: é possível empregar esses conceitos sem a ilusão de

redutibilidade do psíquico ao social-histórico? (Castoriadis, 1982). Ou,

inversamente, sem reduzir a esfera da palavra e da ação política ao inventário de

comportamentos e hábitos?

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Não se pressupõe algo como um acordo tácito, algo como ter-se que

admitir um armistício cujo preço consiste em se fecharem os olhos para tudo

aquilo que faz do psiquismo o que ele é – sonho, devaneio, desejo, fantasma,

persistência de um resto inconsciente intraduzível e irremovível – e fazer de conta

que, no limite, haveria uma outra margem do mundo, repleta das luzes de um

imenso shopping com ofertas irrecusáveis de sublimação para todos os gostos?

Não se pressupõe que cidadania, autonomia, etc. possam ser redutíveis a

regularidades que lhe usurpam precisamente seus traços essenciais de

espontaneidade, liberdade e indedutibilidade?

Ou seria o caso de, pragmaticamente (uso a palavra no sentido

corrente) se virar as costas para esse modo de compreensão do fenômeno

psíquico que herdamos do romantismo e da psicanálise e se trabalhar com um

aparato conceitual mais sintonizado com as descrições do DSM? 38 Ou, se

abordamos o problema pela margem da política, não se pressupõe uma

equivalência que desfigura o emblema da cidadania na vala dos comportamentos

sociais?

Ou, então - e esta me parece a saída mais promissora – pode-se

apreciar todo esse ruidoso campo de debates como a seara em que se colhe a

oportunidade de uma boa faxina em pressupostos metafísicos e epistemológicos

para se chegar a uma atitude pragmática (uso agora a palavra em seu sentido

filosófico) em que não há lugar para definições de termos como Verdade, ou

Verdade do Sujeito, mas para descrições nunca definitivas do que se toma como

verdadeiro nas formas com que ordinariamente se emprega o termo no uso da

língua. Em suma, uma oportunidade para se rever na elaboração de modelos e na

corrida aos indicadores uma espécie de chamado atávico a uma suposta

fundação de realidades lingüísticas fora da língua.

Conceda-se que as avaliações apoiem-se em instância última na

propensão banal dos humanos a defenderem-se do imponderável e amenizar a

imprevisibilidade de suas escolhas, pelo consentimento da ação a deixar-se guiar

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161

pela promessa e renunciar a navegar à deriva pelos mares da incerteza. Que

avaliações desde sempre foram necessárias para se conhecerem os resultados e

efeitos das decisões e ações e que, por apropriação como instrumento para o

exercício do poder, tornaram-se mais refinadas no mesmo ritmo em que o poder

aprimorou as suas técnicas de controle.

Contudo, pesquisas avaliativas (em sentido genérico) são

investigações ancoradas no modelo da pesquisa sociológica e, de modo mais

geral, nas ciências sociais, que se constituíram em sistema com características

decididamente institucionais. Do seu arcabouço institucional decorrem a

necessidade de apresentar-se como um modelo, enquadre que engloba um

determinado tipo de interpretação e explicação da realidade - a razão sociológica

-, e a exigência de integração de seus membros mediante a interiorização de

normas que definem determinado modo de ver a realidade - a visão sociológica

(Gilli, 2001).

Bauman nos lembra que a sociologia, não tendo feito mais do que

participar da cultura científica, deixou-se seduzir pelo mito do processo civilizador

harmonizando-se aos mesmos princípios da ação racional da modernidade e sua

tendência a despojar do uso e exibição da violência qualquer avaliação moral,

suplantada pela defesa de critérios que a justificam pelo cálculo racional

(Bauman, 1998). Isto significa que a pesquisa sociológica alegou neutralidade

como álibi para inocentar-se da sua conivência com o poder.

Nos primórdios do pensamento sociológico da doença mental

visualizava-se a questão de uma relativa inespecificidade da etiologia, atribuindo-

se a emergência de distúrbios mentais a certas condições gerais que

privilegiavam as conexões entre civilização e doença, considerando-se

particularmente relevante o impacto dos fatores sociais, culturais e ambientais nas

condições de vida da classe operária. É também o momento em que se

consolidam as bases para a constituição da epidemiologia como ramo científico

38 V. nota 6.

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(Nunes, 1992)39.

De 1860 em diante, com a revolução da etiologia bacteriana que se

seguiu às descobertas de Pasteur, há um refluxo desta vertente explicativa

virchowiana da etiologia social. Há, conseqüentemente, um declínio no interesse

dos estudos sociológicos sobre a doença mental (agora naturalizada pela

influência da hipótese microbiana), cenário só parcialmente perturbado por alguns

estudos exemplares como “O Suicídio”, de Durkheim, com sua noção de anomia

social, que inspiraria tantos estudos posteriores correlacionando

desregulamentação social e perturbação mental.

Enquanto domina inconteste a paisagem do conhecimento médico (e

da psiquiatria) a matriz epistêmica do que passou a ser considerado a medicina

científica, a preocupação com a gênese social das doenças permanece em

segundo plano, vindo a alterar-se significativamente esse panorama só depois de

passada a tormenta das duas grandes guerras, quando reaparece uma psiquiatria

social no âmbito da sociologia médica e o lento despertar para a inclusão do fator

insititucional entre os sócio-culturais e os relacionados às representações e

práticas.

É a partir da década de 60 que desponta um importante conjunto de

estudos sociológicos sobre a doença mental apresentando conclusões em geral

relativizadas pelas restrições metodológicas decorrentes do elevado grau de

indeterminação do objeto “doença mental”. São estudos que se distribuem por

três vertentes conforme a direção da abordagem. Uma delas que toma como foco

os fatores socio-culturais, abrangendo: estudos ecológicos (com ênfase nas

relações bióticas com o ambiente urbano e rural); estudos de comunidade

envolvendo amostras populacionais amplas e estudos de estratificação social

(privilegiando a posição de classe); por fim, estudos de grupos específicos

(grupos religiosos, étnicos, familiares). Trilhando noutra direção, cujo exemplo

mais representativo é a “História da Loucura” de Foucault, agrupam-se os estudos

dedicados às representações sociais da loucura. A terceira direção de abordagem

39 No citado ensaio de Nunes apoiam-se os quatro parágrafos seguintes .

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incide sobre as relações entre instituição psiquiátrica e loucura, cujo exemplo

paradigmático é o estudo de Goffman acerca das instituições totais.

Trata-se, como se depreende, de um campo de investigação bastante

heterogêneo e marcado pela diversidade metodológica proveniente de duas

concepções básicas acerca da doença mental: o conceito definido pelos saberes

e práticas psiquiátricas e o conceito de doença mental obtido mediante

representações socialmente construídas ou explicadas por outras categorias,

como as condições de trabalho.

Se a ambigüidade do conceito de doença mental confere aos estudos

sociológicos esse caráter fragmentário, há de se prever que nos domínios da

estatística e da epidemiologia não seja menor a dispersão de critérios e métodos,

daí resultando que o emaranhado terminológico das pesquisas avaliativas

apresente-se ainda mais nodado quando se propõe à avaliação em saúde mental.

No âmbito da saúde geral a avaliação toma como premissa que o

processo saúde-doença, embora implique características técnicas inegáveis,

organiza-se historicamente como prática social, abrangendo, por um lado,

aspectos políticos, econômicos e socio-culturais e, por outro lado, aspectos

relacionados com a capacidade dessas práticas sociais modificarem uma dada

situação de saúde, domínio em que as avaliações ganham especial relevância

(Silva e Formigli, 1994).

À primeira aproximação, o campo da avaliação exibe-se como uma

superfície ondulada por uma exuberante confusão terminológica. Diferentes

autores (ou um mesmo autor em momentos diferentes) propõem grades

explanatórias com totalizações forçadas e contendo, no conjunto, sobreposições e

ajustes em que não são raras as assimetrias e incongruências. O rótulo

“avaliação” percorre uma linha descontínua de atividades que abarca desde o

julgamento subjetivo a respeito do desenvolvimento da prática até os julgamentos

a partir de métodos e técnicas de caráter mais objetivo sob a rubrica “pesquisa

avaliativa”.

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2. Avaliações de qualidade

É inevitável, para uma tentativa de compreensão mais clara desse

campo, expor algumas definições a partir das quais se poderia ensaiar um quadro

razoavelmente estruturado, sendo que para apresentá-las recorro nas linhas

seguintes à síntese do citado ensaio de Silva e Formigli, de 1994.

Quanto ao seu objeto e nível de complexidade a atividade avaliativa

pode priorizar desde o cuidado individualizado estrito (relação médico-usuário) até

o nível de organização das práticas de saúde em sistemas (distritais, municipais,

nacionais, etc.), registro em que ocupam posição de relevo os estudos de

acessibilidade, cobertura e eqüidade.

Quanto aos atributos, a avaliação refere-se a características da prática

de saúde e da sua organização social, assim distribuídas: a) relacionadas à

disponibilidade e distribuição social dos recursos (cobertura, acessibilidade,

eqüidade); b) relacionadas aos efeitos das ações e práticas de saúde (eficácia,

efetividade e impacto); c) relacionadas aos custos (eficiência); d) relacionadas à

adequação das ações ao conhecimento técnico e científico vigentes (qualidade

técnica e científica); e) relacionadas à percepção dos usuários (aceitabilidade e

satisfação do usuário). Do peso que confere a cada um dos atributos e das

possibilidades de combinação entre eles ramifica-se um conjunto heterogêneo de

interpretações e elaborações de modelos e métodos avaliativos.

Quanto aos enfoques teóricos, isto é, o referencial adotado pelos

autores para aplicar e descrever a avaliação, nova dispersão se apresenta. Um

esforço de classificação das diferentes abordagens teóricas possíveis foi

empreendido por Donabedian a apartir da teoria dos sistemas, propondo ordená-

las sob a clássica tríade estrutura-processo-resultados. Sob a denominação de

“estrutura” estariam agrupados os aspectos considerados estáveis dos

provedores, instrumentos e recursos, além das condições físicas e

organizacionais; aos “processos” estaria relacionado o conjunto de atividades

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envolvidas na relação entre profissionais e pacientes; “resultados” seriam as

mudanças no estado de saúde dos pacientes que pudessem ser atribuídas a

determinado cuidado prévio. Esta classificação de Donabedian, entretanto, não

chega a uniformizar consistentemente a subordinação dos atributos, cujas

presenças e pesos relativos oscilam de um autor a outro.

Quanto ao desenho das pesquisas, baseado em parâmetros

epidemiológicos, ainda persiste certa variabilidade, em parte imposta pelos

objetivos e métodos escolhidos e, em certa medida, por diferentes critérios de

julgamento comparativo entre o que se deseja avaliar e a situação modelizada

Suponho que o panorama exposto de forma compacta nos parágrafos

precedentes seja suficiente para indicar as complicações no caminho de qualquer

esforço de sistematização e ordenação do campo das avaliações. Mas as

dificuldades não terminam aí. Quando a qualidade (que é vista como o aspecto

central da avaliação, por Donabedian) é o atributo que se pretende investigar, sua

definição desliza, no pensamento do mesmo autor, da posição de característica

objetivamente relacionada à adequação da ação ao conhecimento técnico-

científico em sua etapa atual, passando a referir-se a uma classe de atributos

funcionalmente relacionados num conjunto heterogêneo de fenômenos reunidos

pelo uso, preferências pessoais ou razões administrativas (que, evidentemente,

incluem julgamentos subjetivos).

A inevitável consideração de aspectos subjetivos tem como

decorrência imediata apontar para as insuficiências do modelo epidemiológico

clássico na formulação de desenhos e métodos de avaliação. Agiganta-se ainda

mais o volume das dificuldades, na volta seguinte da espiral, quando a avaliação,

ainda não refeita das dificuldades para assimilar em seus próprios termos os

critérios de subjetivação do julgamento, depara-se como um novo objeto (saúde-

doença mental) impregnado do elemento subjetivo (e ainda lhe acrescenta os

aspectos não objetiváveis de tudo o que há de irredutível na experiência singular

dos sujeitos).

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Apesar de todas essas dificuldades (ou impossibilidades?), o propósito

de avaliar serviços e programas de saúde mental e de estender a avaliação para

os aspectos qualitativos nesse campo, acabou por impor-se. Esse processo tem

uma explicação, por sinal consistente, de ordem pragmática, na medida em que

se relaciona à racionalidade do planejamento e da administração do setor. Quanto

a admiti-lo por suas virtudes como instrumento que enriqueça a reflexão sobre a

clínica são muito menos animadoras as suas promessas.

A propensão a fazer avaliações, não obstante, tem como base a

constatação empírica da compulsão natural a se avaliar qualquer ato humano

para nortear escolhas e estipular regras de ação e não há por que surpreender-se

com o propósito de lhe conferir maior rigor e confiabilidade, habilitando-se para

avalizar tal propósito a ideologizada racionalidade científica. Aí, nesse penoso

despertar do sono científico, que, com o seu espectro limitado, ainda promete ser

o que dá um colorido ao mundo que, sem ele, ainda apareceria diante dos olhos

como um vasto território inexplorado, perduram imagens que se fazem imprecisas

por detrás da cortina d’água do esforço contínuo de renovação de paradigmas.

Avaliações de cunho quantitativo aclimatam-se muito mais facilmente

no terreno do paradigma clássico da ciência, o que já deu a sociólogos,

estatísticos e epidemiologista o conforto negado aos que se dedicam às

avaliacões qualitativas. Mas a realidade tem o que se pesa e mede e tem

também, como diz Demo, a qualidade “que mora na greta das coisas” (Demo,

2002). O que fazer da qualidade, ou melhor, como conhecer exatamente a

qualidade?

Demo nos lembra que a qualidade não deve necessariamente

significar enlevo, espiritualidade, realidades inefáveis, etc. e, na sua dimensão

formal, pode alocar-se na rota do conhecimento exato (Demo, 2002), assim como

a harmonia pode obter-se da rigorosa medida da regularidade dos tempos e das

proporções entre as partes. Seria, nas circunstâncias presentes, pueril perseverar

em torno desta questão tão ubíqua e atemporal que já estava presente quando a

decisão de comer ou não a maçã do paraíso apresentou-se como questão mais

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que meramente técnica de eficiência de meios.

A primeira tentação é a de se pensar a qualidade como uma

sofisticação da quantidade, mais ou menos como Dobedian pensa a qualidade

como adequação da prática ao aggiornamento técnico-científico, e,

conseqüentemente, supor que o método de avaliação da qualidade possa

esgotar-se na sofisticação de métodos de avaliação quantitativa. É o mesmo que

supor que o metro de medir causas serve também para medir razões. Creio que

esta é a imagem subjacente a muitos dos esforços empreendidos na “corrida aos

indicadores”, inspirada na crença implícita de que entre os seixos dos padrões

ordinários há de encontrar-se a gema de um novo padrão de medida.

O passo lógico seguinte conduziu a que a idéia da qualidade dos

projetos emancipatórios, vistos como tendo por horizonte a participação ou, mais

exatamente, a participação política, desse origem a uma reviravolta dos métodos

neutros de avaliação, substituídos pela “avaliação participante” que, em muitas

experiências, foi banalizada e deu margem a todo tipo de amadorismo. Enveredar

pela “participação” implica abdicar do distanciamento, o clássico escudo

metodológico que visa “vacinar” o resultado da ciência contra a contaminação

ideológica.

Completado esse giro metodológico, a roda ganha um movimento

automático, levando de roldão outras características do método até culminar na

indecidibilidade dos resultados. Instaura-se nesse ponto a ambivalência, uma

desordem de linguagem e uma falha da função ordenadora que, na definição de

Giddens, é a possibilidade de atribuir a um objeto ou evento mais de uma

categoria (Giddens, 1999). A “avaliação participante” implica reflexividade, isto é,

a tomada do sujeito como objeto, como esclarece Castoriadis, condição a que só

pode aceder o humano, capaz de ver-se como outro – o que torna possível o

reconhecimento do outro como outrem – operação que não pode ser dada pela

natureza, mas alcançada por posição (Castoriadis, 1992).

A dificuldade reside precisamente em se saber se, ao passar pela

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peneira da avaliação, o outro é ainda recuperável como outrem ou se a condição

para recuperá-lo como outrem é tornar “outra” a peneira. Diante disso, as

relações das teorias da avaliação qualitativa com a sombra do referente da

ciência clássica parecem tomar a curiosa feição já mencionada daquele exercício

de negação a que Freud refere-se quando diz que o não do paciente denota, sem

que o saiba, um sim.40

Os esforços teóricos mais recentes e consistentes têm indicado uma

substituição do paradigma da ciência tradicional pelo paradigma do pensamento

da complexidade. Em linhas gerais, passo a destacar algumas das características

distintivas desse paradigma apoiando-me em Hartz, embora haja uma profusão

de textos facilmente acessíveis a respeito, escritos por autores bem conhecidos,

como Morin, Maturana, Varela, Boaventura S. Santos e outros.

Não obstante as dificuldades teóricas e práticas que ainda suscita, a

recente inflexão em direção ao paradigma sistêmico, apoiado na lógica da

complexidade, na admissão simultânea de diferentes lógicas de análise, num tipo

de rigor que convive com a incerteza e que se expressa nos novos modelos de

pesquisa-ação, parece oferecer a alternativa mais promissora. Entre os autores

que mais exaustivamente vêm explorando esse veio teórico-metodológico,

destacam-se os que se reúnem no Grupo de Pesquisa Interdisciplinar (GRIS) da

Universidade de Montreal, Canadá, e, entre nós, na Escola Nacional de Saúde

Pública/Fundação Oswaldo Cruz. De acordo com Zulmira M. A. Hartz, a noção de

sistema implica uma ruptura paradigmática ao substituir as leis de detrminação

por leis de interação, ao trocar a demonstração pela argumentação e ao modificar

o próprio conceito de saúde de modo a significar não mais apenas o conjunto de

processos que visam a adaptação do organismo e sua capacidade de resistência

ao ambiente, mas uma dinâmica de incessante aprendizagem da vida como

recriação (autpoiese). Nesta abordagem, eliminam-se as cisões da realidade vista

40 “O conteúdo de uma imagem ou idéia reprimida pode abrir caminho até a consciência, com acondição de que seja negado. A negativa constitui um modo de tomar conhecimento do que estáreprimido; com efeito, já é uma suspensão da repressão, embora não, naturalmente, uma aceitaçãodo que está reprimido.”, Freud, S. – “Da negativa”[1925] (grifo do autor).

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da ótica cartesiana, interligando-se por um pensamento complexo noções

consideradas opostas: parte e todo, ordem e desordem, individual e coletivo,

micro e macroteoria (Hartz, 1997).

3. Modelos e complexidade

Preliminarmente, faz-se necessário explicitar o conceito de paradigma,

que a autora define, com base em Morin, como

“conjunto de relações fundamentais de associação e/ou oposiçãoentre um número restrito de ‘noções mestras’ quecomandam/controlam todo conhecimento, todos os discursos eteorias” (Hartz, 2000).

A construção de uma lógica da complexidade associa diferentes

lógicas de análise e implica procedimentos complexos envolvidos numa relação

de trabalho e interlocução com o objeto – que é um sistema/organização cuja

complexidade decorre da multidimensionalidade com que se constitui – de modo

a admitir a incerteza, a irracionalidade e a integração de contrários

complementares, daí resultando que: a) a pertinência substitui a evidência (a

veracidade do objeto está condicionada não por algum modelo representativo,

mas por modelos perceptivos que atendam às finalidades cambiantes do

pesquisador/modelador); b) o globalismo substitui o reducionismo (o objeto é

captado em suas conexões com o que lhe é externo, evitando-se tomar

isoladamente a parte pelo todo ou vice-versa); c) o teleologismo reinterpreta o

princípio de causalidade (toda explicação é inacabada, relativa e contingente e

visa o questionamento dos fins/objetivos a que se referem os eventos estudados);

d) a agregatividade substitui a pretensão à exaustividade (o sistema de

observação não recusa a agregação de elementos que ameaçariam a ilusória

completude e abrangência do sistema).

Mais sucinta e claramente que outros autores, Hartz conclui:

“a ‘pesquisa sistêmica’ não é um atributo que se possa medir, mas,na nossa opinião, ela se faz presente numa investigação que

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ultrapassa os limites ‘confortáveis’ da precisão cartesiana para‘arriscar’ compreender os fenômenos em sua complexidade”(Hartz, 2000).

São teses que me parecem muito atraentes, mas que parecem

também invocar com certa sem-cerimônia o fantasma da anacolutia. Delas

surgem algumas possibilidades de interpretar o-que-é/o-que-vem-a-ser de modo a

autorizar sucessivos giros de prestidigitação que tiram da cartola lebre por coelho,

entre elas a possibilidade de uma proposta teórica de “avaliação formativa”, que,

a meu ver, já não é avaliação, mas formação com base em “dados” da avaliação.

A palavra dados figurou acima entre aspas porque, segundo suponho,

haveria lugar para o contra-argumento de que o modelo sistêmico permite

avaliação sem dados. Porém, uma avaliação sem dados ainda poderia ser

chamada de avaliação? Não seria melhor darmos outro nome a uma cafeteira em

que se adotasse outro “paradigma” de fervura e em que teríamos sucessivamente

trocado o coador, o pó de café, a temperatura da água, o processo de coagem e

dali obtivéssemos algo que também já não é café?

A avaliação de qualidade é o instantâneo que capta o projeto, não

com as asas imobilizadas por alfinetes, mas em pleno vôo e, por este motivo, não

há que censurar na fotografia a revelação da imagem um tanto desfocada. Mas, a

imagem que fica ainda pode ser reconhecida como imagem fiel ao que pretende

retratar? A suposição de que o problema in focu seria solucionável por certos

aprimoramentos no registro da técnica significa mantermo-nos nos domínios em

que os objetos, digamos, “sujeito, “cidadão e “história”, seriam tomados como

essencialmente homogêneos aos objetos da física ou da biologia.

Há uma crescente produção de textos em nossa literatura

especializada em relação à avaliação de qualidade de serviços de saúde em geral

e de serviços de saúde mental, muitos deles dedicados aos programas e serviços

substitutivos, quase todos reunindo-se no coro que advoga a mudança de

paradigma e a necessidade de se construírem indicadores mais sensíveis para

detectar aspectos inapreensíveis pelos parâmetros tradicionais. Apresento

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resumidamente, a seguir, alguns deles, que me parecem suficientemente

representativos para se visualizarem as linhas mestras de desenvolvimento nesse

campo.

No estudo de caso que apresenta, Cals reconstitui a história da

avaliação de qualidade no século XX, indicando a sua origem na Escola de

Administração Científica, cujos precursores foram Taylor e Fayol, com objetivos

de conferir maior racionalidade ao trabalho, calcados no planejamento, controle e

melhoria dos processos de produção, indicando as vias de importação dessa

filosofia gerencial para o setor saúde (Cals, 1996).

Silva Filho e outros empregaram a metodologia do questionário

estruturado para a avaliação de qualidade de serviços de saúde mental de Niterói

(RJ), concluindo pela validade da pesquisa e pela indicação de entrevistas que

levem em conta outros “bias” não encontrados na aplicação dos questionários

estruturados. (Silva Filho et al., 1996).

Analisando o conceito de satisfação em Donabedian, Oliveira

esclarece que teorizar sobre o conceito de qualidade em saúde implica converter

conceitos em estratégias, critérios e standards de medição, posto que qualidade

é, conforme modelo de Lee e Jones, conduta normativa (Oliveira, 1996).

Deslandes informa que a supremacia dos dados quantitativos passou

a ser revista no final dos anos 80, com o reconhecimento de que avaliar é

também decodificar conflitos na cultura institucional e na prática dos agentes de

saúde, que devem ser analisadas numa relação dialética com os movimentos

sociais e a conjuntura histórica de que participam (Deslandes, 1997).

Carvalho e Amarante advertem que os modelos avaliativos clássicos,

que adotaram como parâmetros o leito hospitalar e a consulta ambulatorial

(número de admissões e altas, taxa de ocupação, duração média de internação,

etc.) são inadequados para os serviços da reforma psiquiátrica, devendo ceder

lugar a metodologias que levem em conta a possibilidade de intervenção e de

interação do pesquisador com o objeto da pesquisa, o que faz recair a escolha

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sobre métodos etnográfico-antropológicos e gera a necessidade de se

construírem indicadores (ou, como prefere, indicativos) voltados à

“ética de inclusão e produção de vida, tais como o conceito deautonomia” (Carvalho e Amarante, 1996).

Mecler e outros afirmam que, diante das insuficiências dos métodos de

matriz positivista de dar conta da ação humana a partir do seu significado, é

fundamental a idéia de estudos qualitativos que confiram inteligibilidade a gráficos

e números que se mostram “estéreis e vazios”, complementando-os com a

abertura para o sentido. (Mecler et al., 1996).

Almeida e Escorel defendem a adoção de avaliações participativas

com a indispensável pluralidade metodológica para que a avaliação cumpra o

papel de melhorar a qualidade do serviço oferecido em que as formas coletivas de

organização e gestão podem funcionar como elementos facilitadores de

processos avaliativos mais participativos em seu cotidiano (Almeida e Escorel,

2001).

.Cavalcanti argumenta que outra lógica é possível para substituir

“uma lógica subjacente a esta literatura referente à avaliação dequalidade de serviços de saúde mental que corre o risco de cair noque Bourdieu nos apontou, a destruição da lógica daquilo queestamos tentando descrever, pois ‘a prática tem uma lógica quenão é a da lógica”,

para concluir que se devem eleger formas de avaliação que passem pelo

“mergulho nos serviços e pela singularidade das situações que seapresentam e, sobretudo, levem em conta as particularidades dapsicose” (Cavalcanti, 1997).

Furtado discorre admiravelmente a respeito dessa problemática para

eleger um modelo que resulte da combinatória de formulações de premissas e

métodos de inspiração construtivista e de caráter formativo da “avaliação de

quarta geração” de Guba e Lincoln e o “método Paidéia” ou “método da roda”, de

Gastão Campos, adotando como critérios do modelo construtivista: a) a

credibilidade como correlato da validade interna (isomorfismo); b) a

transferibilidade como correlato da validade externa (generalização); c) a

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fidedignidade como correlato da confiabilidade (“rastreamento” na condução da

pesquisa); d) confirmabilidade como correlato da objetividade (Furtado, 2001a;

2001b).

Em seu “Um Método para Análise e Co-gestão de Coletivos”, Gastão

W.Campos empreende um esforço de méritos inegáveis para oferecer um fio

condutor que, partindo do que denomina “racionalidade gerencial hegemônica”,

cuja expressão mais acabada confunde-se com o taylorismo, e passando por

sucessivas reorientações, alcança o que ele propõe como modelo de método de

gestão para apoio de produção de valores de uso de coletivos organizados para a

produção, com ênfase na capacidade de análise e intervenção e nas modalidades

de produção de autonomia para os sujeitos (Campos, 2000).

Creio que seria dispensável multiplicar os exemplos. Devo agora

argumentar que alguma coisa parece ter escapado a essas análises, algum

elemento que porventura desse o acabamento de um olhar nítido como girassol,

no verso de Drummond; provisório que fosse, de modo a que não se

aprisionassem a uma circularidade discursiva que me parece aflorar do conjunto.

Diante da desconfortável contingência de formular essas críticas,

tenho o consolo de poder imaginar-me em companhias ilustres e ver-me um

pouco na mesma situação delicada de H. Arendt que, ao ter de criticar Marx,

compara, por seu turno, a sua posição à de Benjamin Constant que, vendo-se

obrigado a criticar Rousseau declarou:

“J’éviterai certes de me joindre aux détracteurs d’un grandhomme. Quando le hazard fait qu’en apparence je me rencontreavec eux sur um seul point, je suis em défiance de moi-même; etpour me consoler de paraître um seul instant de leur avis...j’aibesoin de désavouer et de flétrir, autant qu’il est en moi, cesprétendus auxiliaires” (Arendt, 1987)41

41 “Evitarei, é claro, juntar-me aos detratores de um grande homem. Quando o acaso me fazaparentemente concordar com eles em um único ponto, desconfio de mim mesmo; e, para consolar-me de parecer por um instante, de sua opinião, sobre uma única e parcial questão, precisodesautorizar e descolorir quanto posso a esses supostos auxiliares” – B. Constant, “Da Liberdade dosAntigos Comparada a dos Modernos” (cópia da tradução de textos de B. Constant organizada por M.Gauchet, Colléction Pluriel, Paris, 1980).

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Persiste como pressuposto a necessidade de um modelo, uma

verdade idealizada, que tende a situar a ação numa relação de subordinação

como elemento processual da prática ordenadora (Pinheiro e Luz, 1999), situação

que resulta na encruzilhada epistemológica de se tentar conciliar a dimensão de

autonomia da ação com métodos de aquilatação tributários de uma racionalidade

que não lhe reconhece esta autonomia.

As possibilidades de um jogo de linguagem, de acordo com

Wittgenstein, são condicionadas por fatos ou eventos dos quais se espera certa

constância que dê sustentação à rede de crenças subjacente. Ainda que certos

conjuntos de fatos ou eventos possam permanecer ocultos, “retirados de

circulação ou desviados para um ramal em desuso”, o “quadro de referência” que

instauram é que vai determinar se as regras de um jogo de linguagem aplicadas

em outro jogo dão origem a proposições, não necessariamente incorretas, mas

impróprias (Glock, 1998).

Como saber, levando adiante a advertência de Wittgenstein, onde

situar o ponto em que o emprego de paradigmas alternativos ou modos

alternativos de calcular obrigaram a reajustes que acabaram por fazê-los cair por

terra, deixando diante de nós uma mudança de fatos que tornam os nossos

critérios não apenas impróprios, mas inaplicáveis? (Wittgenstein, 1996).

Penso que a questão ainda não satisfatoriamente resolvida é de se

pensar como seria possível uma avaliação dentro do horizonte ético da reforma

sem que se tenha de pagar um tributo excessivo às premissas e compromissos

ideológicos que estão na origem dos modelos e práticas da avaliação. Em outras

palavras, em que condições as regras de um jogo de linguagem, mantidas em seu

formato original ou modificadas, permanecem aplicáveis, repito, em contextos

novos (e, em certa medida, antagônicos).

Posso exemplificar recorrendo uma vez mais ao conceito psiquiátrico

de “crônico” apresentado como o antípoda do “cidadão”, um conceito do

vocabulário político. Os dois vocábulos, cada um oriundo do quadro de

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referências que lhe é próprio, podem reunir-se num terceiro quadro de

referências, que será tanto mais rico de compreensibilidade quanto mais puder

associar os elementos provenientes dos outros dois quadros sem lhes alterar o

sentido. Um nivelamento categorial que resultasse na distorsão de sentido de um

dos termos em benefício do outro tornaria menos estável o novo quadro de

referência em que se reúnem. É o que ocorre em certas operações forçadas de

assimilação do conceito de cidadania no vocabulário da saúde mental e de suas

avaliações de qualidade. A mesma afirmação pode ser feita em relação aos

termos “produção”, “usuário” e outros que migram de um a outro quadro de

referência.

Seria preciso que o nosso sentido da história nos obrigasse a não

passar ao largo das condições que engendraram os discursos e práticas de

avaliação e considerar que alguns acidentes do relevo no leito por onde correm as

novas tentativas de modelização e de ensaios de construção de indicadores

permanecem inexplorados.

Wittgenstein, de novo, nos lembra que as palavras têm uma

”atmosfera”, mas

“cada palavra – assim gostaríamos de dizer – pode ter caráterdiferente em contextos diferentes, mas tem sempre um caráter –um rosto. Ela nos contempla”.

E, um pouco mais adiante:

“...alguém pinta um quadro intitulado ‘Beethoven escrevendo aNona Sinfonia’. Poderia facilmente representar-me o que sepoderia ver num quadro desse tipo. Mas que aconteceria sealguém quisesse representar a aparência que teria Goethe aoescrever a Nona Sinfonia? Neste caso, não poderia merepresentar nada que não fosse penoso e ridículo.” (Wittgenstein,1996)42

Imediata e corriqueira é a constatação das afinidades entre as

avaliações, inclusive no campo da saúde, de termos correntes nos processos de

seriação da produção capitalista, termos profusamente utilizados num campo e

42 Os grifos são do autor.

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noutro e que tornam óbvias a “atmosfera”, as afinidades e parentescos

lingüísticos: produção, processos, custos, padronização, eficiência, organização,

gestão, gerenciamento, consumo, cliente (usuário), etc.

Ao criticar nos lacanianos a sua insistente menção à produção teórica,

Castoriadis destaca no termo “produção” a sua conotação primeira de manuseio

que consiste em reapresentar de modo diferente o mesmo, de serializar um

modelo matricial em “produtos” que são cópias seguidas de cópias (Castoriadis,

1992). Não seria o caso de atentarmos para a armadilha contida no uso

indiscriminado da palavra produção, em cujas entranhas subsiste uma marca de

origem que denuncia numa língua nova o sotaque da língua antiga?

Mais do que um sotaque, nos discursos da avaliação são os próprios

termos que aparecem sem aspas ou qualquer sinal que denuncie neles o uso

metafórico. Retirar delas a “bagagem” por ocasião de sua imigração ao território

do discurso adotivo é reservar-lhes a condição de estrangeiras em situação

irregular. Não que se pense em propor aqui algum tipo de alfândega nas

fronteiras entre discursos, mas para que não se perca de vista que as palavras

têm história e negar-lhes a história pode resultar em contrafação.

Retomo aqui a menção à sistematização da atividade avaliativa como

instrumento de controle na esfera da produção e consumo capitalistas e de

controle na esfera do poder político-administrativo. Diante disso, presumo ser

dispensável levar exaustivamente adiante uma análise genealógica dos conceitos

e quadros de referência que conferiram à atividade da avaliação a dignidade a

que foi elevada em virtude dos bons serviços que lhe foram encomendados pelos

dispositivos da reflexidade institucional que, na definição de Giddens, é o que

“envolve a incorporação rotineira de conhecimento ou informaçõesnovos em situações de ação que são assim reconstituídas oureorganizadas” (Giddens, 2002).

Reitero que o leitor familiarizado com o tema das pesquisas

qualitativas certamente não as reconhecerá nesse esboço, habituado que está a

associar imediatamente a idéia de avaliação ao aparato técnico que inclui

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critérios, normas, métodos, indicadores e procedimentos aplicáveis a instituições,

organizações, serviços ou programas. Importa enfatizar aqui um desses pontos

de entroncamento em que á aprópria idéia de valor que sofre um giro mediante o

qual, quase que por prestidigitação, opera-se a transição do mundo dos números

ao das categorias a que a filosofia antiga referia-se como transcedentais.

Antes de nos perguntarmos sobre o estágio em que se situa essa

problemática da avaliação ou sobre as estratégias possíveis e recomendáveis

para o seu desenvolvimento, é preciso indagar dos próprios termos nos quais esta

problemática é discutida. Ao longo dos capítulos precedentes creio ter alinhado os

principais marcos que, retomados de modo mais ordenadamente encadeado,

poderão refrear um pouco da excitação e do otimismo exagerado que reinam

nesses salões mal iluminados da reforma.

A construção de um modelo ou a elaboração de um método para, em

útima análise, atender ao que aspira Saraceno ao introdizur o conceito de

variáveis soft e características inefáveis (Cavalcanti, 1997) nos procedimentos

avaliativos poderia beneficiar-se de outro paradigma sem referência alguma à

episthemé clássica?

Nos comentários que tece sobre a tradição do pensamento chinês, F.

Jullien nos adverte que a tradição ocidental pode ter-nos impedido de desviar os

olhos fixos no modelo (eidos), atitude que foi bem sucedida no plano da técnica

(poiesis), sem ter conseguido o mesmo êxito no domínio da ação, isto é, da praxis

(Jullien, 1998).43

Por distinguir-se da arte e do fazer (tekné) segundo um modelo

oferecido à visão (theoria), a ação (praxis) resiste à forma ideal (eidos), deixando-

se guiar por outra “teoria” a que se chamou prudência (phronesis), incumbida da

deliberação no seio da contingência do mundo em perene mudança. Em que

apoiar, no entanto, a norma (orthos logos) para que ela ilumine a ação concreta

pelos descaminhos da contingência sem degradar-se em mera habilidade ou

43 Na obra citada de Jullien baseio-me para os comentários sobre a tradição do pensamento oriental.

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178

astúcia (métis), senão num télos que só pode ser projetado sobre o modelo ideal

da teoria? O precário equilíbrio da fundação da prudência entre a imobilidade do

eidos e o incessante movimento da realidade, resultou na valorização da métis,

isenta de qualquer conotação moral e celebrada como aquela astuciosa

inteligência exercitada por Ulisses, variável e matizada, flexível e polimorfa,

adaptável para guiar a ação imersa no mundo aberto a todos os possíveis.

Aprisionado nesse dilema entre teoria e prática, o pensamento

ocidental concebeu a ação num ponto instável de equilíbrio em que busca as

fontes da prudência e os fundamentos da ética. É esse o dilema de Clausewitz

em suas célebres reflexões para fundar uma ciência da condução da guerra, pois,

quando se trata da guerra real “tudo assume uma forma diferente”. Para escapar

da aporia em que se enreda, Clausewitz executa uma manobra supreendente:

erige o seu modelo abstrato e o toma pelo avesso (faz a sua desconstrução,

diríamos hoje) e elege, não os planos pré-estabelecidos pela estratégia, mas as

deliberações instantâneas da tática como o fator decisivo, pois a “máquina militar”

desvia-se inevitavelmente do seu curso pelo efeito acumulado dos inumeráveis

“atritos”, cuja resistência global só pode ser vencida por um “método” que não

provém da lógica, mas de uma “espécie de aptidão mecânica”, que se torna como

que um “hábito” ou uma “rotina”, que se atualiza na particularidade das situações

que escapam a toda previsão.

Em suma, Clausewitz denuncia as insuficiências do modelo, subverte-

o, perfura-lhe o elmo e o escudo, mas não tem armas para abandoná-lo e só pode

relativizá-lo invocando a intrusão do talento, do “gênio”, da astúcia e da

capacidade de improvisar diante do inesperado. É que, segundo Jullien, ele não

dispõe de outra lógica, a lógica do Tao, em que a relação privilegiada é a que se

dá entre condição e conseqüência; não a lógica do processo, mas a do

desenvolvimento; não a lógica de sistemas abertos, complexos e sujeitos aos

desvios do acaso e das variáveis, mas a dos sistemas fechados cujo

desdobramento conduz inelutavelmente ao resultado implicado em seu

desenvolvimento.

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179

Pela abordagem desta lógica do Tao, o caminho não é traçado a partir

de um modelo que lhe sirva de norma e imponha um plano ao mundo, mas pela

concentração da atenção no curso das coisas e pelo deixar-se levar apoiado na

propensão e explorar o potencial de situação, antecipando-lhe as conseqüências

com a maior economia de ação, o menor esforço e o máximo de efeito.

A mudança é radical: o efeito não é mais a conseqüência provável

numa relação construída de meios a fim, mas decorre de um modo regulado de

funcionamento dos processos e advém de modo espontâneo e infalivelmente.

Do lado da tradição ocidental a ação foi sobrecarregada com um

excesso de visibilidade. O mito da ação está na origem da imagem do demiurgo

que cria e do herói que imprime no mundo a sua marca e, também, da idéia de

epopéia, que se estende de Homero a Cervantes. No pensamento chinês não há

uma mitologia do nascimento do mundo pela ação do demiurgo; na própria língua

chinesa não se conjugam os verbos nas vozes ativa e passiva; não há lugar para

a exaltação do agir ou para a celebração do agente, porque vê com ceticismo a

ação como algo de origem transcendente e que só como intrusa, invasiva, pontual

e momentânea interfere no curso das coisas e imprime aspereza à corrente

espontânea. A ação tem, nesse contexto, a aura do evento espetacular e

saturado de uma visibilidade que ofusca a visão do efeito.

Não há como se supor, evidentemente, que se pudesse transpor ponto

a ponto os elementos dessa matriz taoísta ao quadro sinóptico em que se

enraizam os nossos modelos de avaliação de qualidade. Mas, talvez, esse

caminho do pensamento possa corroborar nossas suspeitas de que o efeito que

se pretende apreender seja essencialmente inapreensível pelas estratégias

adotadas e que possivelmente pudesse valer a pena temperar os métodos

sincrônicos de avaliação por uma visão mais diacrônica em que os efeitos

apareceriam de modo mais indireto, mais por indícios que por dados, porque o

resultado mais eficaz deve ser aquele que se dilui e se confunde no curso natural,

só visível nas pegadas deixadas pelo efeito e porque a saturação de visibilidade

da ação subtrai do efeito a sua força.

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180

4. O discurso da qualidade

Acrescente-se que esse modo um tanto desordenado com que são

enunciados até aqui os problemas não me parece de todo censurável, na medida

em que de algum modo presta-se a mimetizar a carência de sistematizações do

próprio campo das avaliações em saúde mental. É possível, no entanto, ensaiar

agora uma primeira enumeração, sumariar um inventário de problemas dos quais

serão subtraídos alguns para iniciar um possível desenvolvimento desta temática.

Devo doravante conduzir o presente capítulo ao seu ponto de chegada

tentando focar com mais precisão a avaliação de qualidade em sua dimensão

discursiva, entendido o discurso como uma produção social em que se operam

ligações entre elementos lingüísticos e extra-lingüísticos e em que afloram as

conexões entre as significações e as condições históricas que lhe são

constitutivas, lugar privilegiado de manifestação do elemento ideológico (Brandão,

2002). Passarei quase ao largo da vasta e complexa problemática da eleição de

modelos, das questões metodológicas e da construção de indicadores,

contentando-me com o périplo cumprido sem outra ambição que a de divisar a

orla desse campo.

O que logo se delineia nessa paisagem são dois aspectos associados:

a) a avaliação de qualidade em saúde mental não é uma ilha, mas uma península

que se prolonga pelo terreno das outras avaliações de políticas sociais; b) seu

relevo é formado por uma discursividade dominante e praticamente unânime na

denúncia e nas propostas de substituição dos modelos avaliativos de orientação

positivista.

Na sua aparente banalidade, a primeira observação serve para

recomendar que não se perca de vista que a migração de conceitos é mais fácil e

pode ser mais traiçoeira do que a tradução dos blocos léxicos de onde provêm no

novo quadro de referência.

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181

A denúncia ao modelo positivista deságua invariavelmente na proposta

de uma mudança paradigmática justificada pela singularidade e complexidade do

seu objeto de análise, o que não impede que boa parte da carga dirigida ao

paradigma do conhecimento inspirado nas ciências naturais ganhe uma

conotação de acusação ideológica,44 mais que de uma argumentação lógica.

Em contraposição às exigências de cunho positivista dos métodos de

avaliação quantitativa, a avaliação qualitativa vai caracterizar-se pela orientação

construtivista, pela rejeição da neutralidade do saber científico, pela abordagem

essencialmente interpretativa (por oposição à abordagem analítica), pela

natureza desreificadora dos fenômenos, do conhecimento e do ser humano, pelo

caráter descritivo da investigação, pela tomada do ambiente natural como fonte

direta de dados, pela consideração da participação ativa como elemento-chave da

pesquisa, pela utilização do referencial indutivo, pela inclinação preferencialmente

voltada para os processos e não para os resultados e pela preocupação central

com os significados (Furtado, 2001).

Diante dessa definição de princípios, a oposição entre avaliações

qualitativa e quantitativa ultrapassa as fronteiras das discussões metodológicas

para configurar-se como oposição epistemológica, fomentando um debate que vai

do discurso da incomensurabilidade - baseado na suposição da impossibilidade

de coerência ontológica, epistemológica e metodológica entre os paradigmas

concorrentes -, passando pelo discurso da incompatibilidade -que afirma ser a

escolha do método condicionada pelo fenômeno estudado e pelo contexto da

pesquisa - até alcançar o discurso da complementaridade -que postula a

combinação dos paradigmas por imbricação e não por fusão ou justaposição

(Furtado, id.).45

Antes mesmo da escolha de um paradigma próprio, o que se

depreende da reiteração da tomada de posição contra o paradigma clássico e do

44 V. , por exemplo, Silva e Silva (1991), p. 17 e ss.45 O leitor interessado encontrará na tese de Furtado (op. cit.) a apresentação detalhada dessa discussão (p. 84 a103).

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182

prolongamento infindável da polêmica quanto às relações entre os paradigmas é

que vigora nesse campo não uma substituição, mas um conflito de paradigmas.

Nesse ponto de indefinição, em que estão em jogo prescrições que definem

critérios de exclusão e seleção, fixação de normas para elaboração de conceitos

e teorias, recorte de um campo de objetos e designação de uma perspectiva

legitimadora para o sujeito que enuncia os termos de um conhecimento (Foucault,

1997) é que claramente se revelam, nas entrelinhas de uma postulação de saber,

os traços de uma prática discursiva que obrigatoriamente contextualiza todo esse

campo de postulados numa intertextualidade em que a vitrine em que se expõe a

Verdade encobre a visão da história como sucessão de propósitos, rupturas e

descontinuidades.

Nessa discursividade, cuja substância é a história, é preciso

reconhecer a presença da ideologia, não para desmerecê-la, mas para

compreender seus alcances e limites, acertos e equívocos na apreensão e

apresentação do seu objeto e possibilidades de refinamento e tansformação de

seus enunciados; em suma, para resguardá-la da sedução dogmática.

Ao conceito de ideologia foram sendo aderidos alguns significados que

o puseram em circulação na gramática corrente como formações que veiculam

doutrinas irrealistas, sectárias, sem fundamento, dissimuladoras, virtualmente

perigosas e com força prescritiva sobre indivíduos e grupos humanos. Na tradição

marxista a ideologia é considerada um sistema ordenado de representações e de

normas e regras que respondem pelas relações imaginárias dos indivíduos com

as suas condições materiais de existência e opera normativamente sobre os ritos

e práticas singulares da vida cotidiana (Brandão, 2002).

Se a ideologia imprime em toda formação discursiva a imagem que o

agente da enunciação tem de si mesmo em determinada circunstância histórica, é

de se supor que do leito discursivo da avaliação de qualidade se possam recolher

alguns aspectos que vêm à tona, reveladores de suas regras de formação.

Em primeiro lugar, volto a destacar uma espécie de apagamento do

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183

“certificado de origem” das sistematizações da avaliação que resultaram na

exigência de rigor com aval científico. Não que a origem não seja mencionada,

mas que à sua menção se siga uma “negação” que faz com que seja “reciclada” a

posteriori e atirada a certa irrelevância. Retomo aqui, evidentemente, as

referências à sistematização da avaliação como algo que se estruturou com o

objetivo de atender aos interesses da gestão do processo de produção capitalista,

seja no mundo da produção fabril, seja no mundo da “produção” de políticas.

Apesar disso, essas conexões evidenciam-se em termos axiais, anteriormente

exemplificados, presentes no acervo vocabular das avaliações.

Em segundo lugar, observa-se um comportamento nas teorizações

sobre as avaliações (e mais ainda nas de avaliação da qualidade) uma teimosa

dedicação a justificar os seus fundamentos, caracterizando uma “ambivalência”

em relação às exigências de cientificidade segundo os parâmetros clássicos, a

um tempo recusadas e consideradas. A psicanálise, por exemplo, parece ter

avançado mais em relação a este tipo de injunção, pois a polêmica da

cientificidade, embora sirva ao ruidoso canhoneio de seus detratores, já não tira o

sono da maioria dos psicanalistas. A esta ambivalência no discurso da avaliação

de qualidade é que se pode atribuir a reaparição do fantasma da “nostalgia do

referente”, que ronda esse terreno com a invocação do “além-lingüístico”.

Um terceiro aspecto a ser considerado indica que, ao adotar esse tipo

de lógica discursiva, a avaliação de qualidade importa para os seus domínios a

exigência de definir indicadores à imagem dos indicadores clássicos da avaliação,

desencadeando uma “formação reativa” que se reflete na desenfreada “corrida

aos indicadores” de que resultam fórmulas ad hoc, provisórias e instáveis. É claro

que não se esperaria outro arranjo para a construção de indicadores, mas

reconhecer a necessidade não implica transformá-la em virtude. Serviria,

entretanto, para nos perguntarmos se vale a pena manter um quadro de

referência cuja edificação nos obrigue a empregar uma das mãos no trabalho

enquanto a outra tem de escorar suas paredes.

O quarto ponto a ser realçado introduz uma questão mais espinhosa.

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184

Sugiro que o discurso da avaliação apresenta grande dificuldade em contentar-se

com o reconhecimento de que a avaliação de qualidade não vá (e não deva ir)

além dos limites de um recurso procedimental. Seu valor diagnóstico, sua

utilidade como ferramenta para tomada de decisões no setor, os subsídios que

oferece para responder às demandas da sociedade e até os recursos formativos

que disponibiliza são algumas das razões que justificam plenamente a sua

adoção. Por que a compulsão a lhe reivindicar uma fundação epistemológica que

consegue pouco mais que uma infindável circularidade discursiva?

5. Resumo

Wittgenstein recomenda a filosofia como uma prática terapêutica que

desvencilhe a tarefa de conhecer do pesado ônus das pseudoquestões

metafísicas. Uma avaliação de qualidade que reunisse em seu viático apenas a

provisão indispensável para caminhar com maior desembaraço certamente

cumpriria melhor a sua caminhada. Talvez toda a problemática teórica nesse

campo pudesse ser valiosamente simplificada dando-se o nome de avaliação ao

que se conhece há muito como avaliação, isto é, o conjunto de procedimentos

que visa imprimir maior racionalidade à tomada de decisões quanto à alocação de

recursos, facilitasse a monitoração, permitisse juízos sobre a relação de

custo/benefício, etc.

Quanto a outras finalidades, abarcando questões relativas à

participação, à formação e constituição de equipes, a aspectos intrísecos da

dinâmica e organização do trabalho assistencial, etc., seria mais simples que

suscitassem intervenções que, contando ou não com subsídios oferecidos pela

avaliação, ganhassem nomes que as poupassem das tormentas de Tântalo e de

um desmesurado esforço que, submetido ele próprio à avaliação de

custo/benefício, resultaria num juízo de valor negativo.

Heller sugere que, imersos numa comunidade de conteúdo axiológico

negativo, opõem-se a ela os “indivíduos representativos”, os hereges que

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185

sustentam a resistência ao paradigma normal (na acepção de Kuhn), sendo que

apenas no modelo utópico do tipo socialista estaria assegurada a realização plena

da individualidade a todos os indivíduos (Heller, 2000). Pode-se transpor esta

linha argumentativa para se pensar que a reforma psiquiátrica é o sujeito

(coletivo) representativo capaz de se opor ao conteúdo axiológico, isto é, à

ideologia, que degradou a política a uma atividade ordenadora que monitora

processos de produção e segregação e que, em certa medida, a atividade da

avaliação de qualidade inclui concessões que ele a contragosto faz à ideologia.

No prólogo ao Dom Quixote, Cervantes afirma que

“acontece tener un padre um hijo feo y sin gracia alguna, y el amorque le tiene le pone una venda em los ojos para que non vea susfaltas, antes las juzga por discreciones y lindezas, y las cuenta asus amigos por agudezas y donaires46”

Não tendo de partilhar com Cervantes a genialidade literária e a sua

sedutora falsa modéstia, a reforma psiquiátrica não teria a necessidade de adotar,

“na saúde e na doença” e na totalidade das suas complicações epistemológicas, a

obrigação das avaliações de qualidade.

Uma das complicações dessa adoção, como reiteradamente sugeri, é

a medida da autonomia em termos que prefiguram uma compreensão demasiado

depauperada do conceito de cidadania, cuja conseqüência mais deplorável é

instalar no coração dos mais elevados objetivos da reforma uma disfunção que

também ameaça empobrecê-la na paliçada de um reformismo que já sucumbiu,

em outras experiências, à disposição de pesar na mesma balança a ação e o

comportamento, a vida política e a vida social.

46 “Acontece muitas vezes a um pai ter um filho feio e extremamente desengraçado, mas o amorpaternal lhe põe uma venda nos olhos para que não veja as próprias deficiências; antes as julga comodiscrições e lindezas, e está sempre a contá-las aos seus amigos, como agudezas e donaires”.Cervantes, M. – Dom Quixote – Ed. Nova Cultural, SP, 2002 (Prólogo).

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CONCLUSÃO

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187

É desconfortável divisar a última etapa deste trabalho com a fantasia

(apenas a fantasia, para meu consolo) de ter retirado pedras de uma muralha

laboriosamente construída sem ter um projeto de reconstrução e de só poder

observar, como, no conto de Borges, observava meditativamente Averróes a terra

de Espanha, “onde poucas coisas existem, mas cada uma parece estar de modo

substantivo e eterno”.

Creio, no entanto, que não é desperdiçável o esforço de se tentar

mostrar e confiar a outros um empreendimento que parece necessário, mas além

das possibilidades de quem o mostra, até porque não custa acreditar em que as

coisas que procuramos podem estar perto demais para que as alcancemos.

Não há novidade alguma na constatação do paradoxo entre a

compulsão humana a se abrigar no rochedo das certezas e a necessidade

igualmente humana de se poder contar com a possibilidade de surpresa que nos

reserva o “mundus quidem et sinus inexplebilis formarum et specierum”, nas

palavras de Giordano Bruno.47 Mas este paradoxo ronda mais de perto a quantos

se determinaram a ocupar-se da construção de uma ética, miragem e vertigem de

inventar paisagens novas por onde a vida se expanda, sem perder de vista que

nada há de absurdo na exigência de que esse trabalho seja medido.

Não há, portanto, qualquer esperança de resposta para se sair

definitivamente desse labirinto, restando-nos apenas traçar e retraçar um trajeto

que, tanto quanto possível nos salve dos perigos de se espalhar num

espelhamento sem fim. Como avaliar sem modelos? Como eleger modelos para o

impredizível?

Suponho que, ao fim deste percurso, posso apenas acrescentar às

aporias contidas na idéia de avaliação de qualidade no horizonte ético da reforma

psiquiátrica algumas sugestões que, se não podem ter a ambição de apontar

rumos, cumpram o modesto efeito de convidar-nos a ensaiar um gesto diferente

47 “mundo que é também um receptáculo jamais saturado de formas e imagens” (citação retirada deCalvino, op. cit.)

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188

para pôr esta roda em movimento.

A mais urgente tarefa, a meu ver, para quem se disponha a refletir

sobre o panorama da reforma psiquiátrica, consiste em reposicionar-se para

meditar a partir de um novo ponto de vista sobre o sentido da cidadania. A

imagem da cidadania que aflora dos textos e que se revela de modo mais

distinguido nas avaliações de qualidade é demasiado pobre. Aparece

invariavelmente, insisto, como um truísmo, como algo sem conexões claras com

uma história que tem a grandeza de sintetizar o melhor que o gênero humano

produziu.

É preciso “desnaturalizar” a nossa concepção de cidadania sem

fetichizá-la numa “sacralidade” que também lhe retiraria o traço essencial. Mas,

seguramente – é este o meu ponto de vista – pensar a cidadania como inserção

numa forma de vida social considerada como fait accompli, como algo que só

pode ser reformado sobre pilares eternos, é o mesmo que despolitizar o conceito

e é uma armadilha para contorcionismos retóricos que não chegam a encobrir

uma prática ameaçada de remediar a exclusão com táticas de inclusão

subalterna.

É preciso separar o conceito de ação e de comportamento, premissa

para que se separe a noção de cidadão das noções de cliente, de usuário ou

consumidor. Se as denominações de doente mental, portador de sofrimento

psíquico ou outra, não parecem operatórias, que outro nome seja inventado ou,

então, que se chame ao louco de louco e se eleve a palavra ao sentido que pode

ter na linguagem ordinária. As palavras não nos inocentam; elas nos contemplam,

como disse Wittgenstein, e nos reservam ciladas.

As avaliações de qualidade descuidaram-se de proteger-se contra

duas das crenças mais falaciosas surgidas de dois mitos da modernidade: o de

que a natureza (física ou social) silencia o humano por ser o tribunal de última

instância para decidir nossas aflições e julgar as nossas causas; e, segundo mito,

tributário do primeiro, o de que a ação é o mero comportamento com o selo da

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189

intenção. São crenças que deixam aberta uma janela para que os totalitarismos

possam insinuar-se e degradar toda utopia de vida não-totalitária.

As avaliações de qualidade em saúde mental, dizem, explicita ou

dedutivamente; a) que a autonomia é atributo da cidadania; b) que a autonomia

expressa-se em competência contratual, inserção no mundo do trabalho,

desempenho social, gestão do cotidiano, desenvoltura de ir e vir, capacidade de

gerir dinheiro, cuidados com a higiene e aparência pessoais, com a alimentação,

uso da medicação, etc.

A linguagem, de acordo com Wittgenstein, é vaga, mas não

indeterminada; dá-nos a oportunidade de correções e redescrições, mas não nos

absolve da ilusão de crer que dizer algo é o mesmo que querer dizer. Havemos

de nos guardar quanto às escolhas que recaem sobre a nossa prática dos

conceitos para não nos deixarmos capturar por palavras comuns que, em sua

inocência, parecem dar conta de expressar o conjunto da experiência.

Do que venho de afirmar e do que suponho poder-se deduzir dos

capítulos precedentes, permito-me enunciar, sem pretender que a forma quase

aforismática com que as apresento seja interpretada como asserçoes definitivas,

as seguintes conclusões:

1. Ao embaralhar os significados de autonomia/cidadania com

significados na órbita da competência contratual e gestão do cotidiano, as avaliações

de qualidade: a) empobrecem o sentido do termo cidadão; b) dificultam uma

concepção mais rica do

2. Ao embaralhar os significados de ação/discurso com os

significados na órbita dos social skills e dos comportamentos regulados pelas

circunstâncias históricas da formação social atual, as avaliações de qualidade abrem

o flanco do vocabulário da reforma psiquiátrica para a adoção de termos do

vocabulário behaviorista, que é a aplicação da mecânica à psicologia na sua versão

mais pobre, daí resultando: a) maior vulnerabilidade aos discursos que

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190

“naturalizam”48 a noção de sujeito; b) a tomada da noção de sociedade como dado

ou padrão fixo de referência para se avaliarem as experiências da subjetividade e da

cidadania; c) aprisionamento do discurso numa perseveração que dificulta a

reconceitualização de termos como reinserção e reabilitaçao sem o resíduo das

ideologias adaptacionistas em que nasceram.

3. Ao superestimarem a pretensão de explorar exaustivamente a sua

inscrição no registro epistemológico, as avaliações de qualidade oferecem menos do

que podem oferecer (ninguém nega a importância do prontuário e ninguém espera

encontrar neles próprios as significações singulares de que são o índice) e deixam de

oferecer melhor o que podem oferecer, daí resultando: a) uma duscussão acerca de

paradigmas que deixaria de ser tão extraordinariamente inflada se se contentasse

com uma expectativa prevalentemente procedimental da avaliação de qualidade; b)

um fervor exagerado na corrida aos indicadores como se deles se pudesse esperar

algo diferente do que são, ou seja, padrões de medição para o que pode ser medido e

para tudo o que possa ser tomado “como se” passível de medição; c) mudanças no

quadro de referência que tornam conceitos-chave epistemologicamente escorregadios

ambíguos e os modelos, instáveis.

4. A idéia de uma avaliação formativa, embora não seja

necessariamente incorreta, parece-me tão imprópria quanto dizer-se, por exemplo,

que ir a praia é uma psicoterapia. Nada impede que se faça psicoterapia na praia

(Aristóteles fez filosofia peripatética e Freud fez psicanálise também fora do

consultório) e nada impede que se faça formação com os elementos fornecidos pela

avaliaçao. Para a formação devem bastar o aprendizado da teoria, a reflexão sobre a

prática, as discussões clínicas, as reuniões de equipe, as supervisões, etc., que

sempre poderão, quando for o caso, recorrer à avaliação como fonte de

ensinamentos. Parece-me que as idéias de pesquisa participativa, avaliação formativa

e assemelhadas tenham vindo à sociologia como um remédio para reabilitá-la de

conceito de subjetividade; c) reduzem o sintagma “sujeito cidadão” a pouco mais que

uma expressão retórica.suas raízes positivistas e que, tendo passado pela sociologia

48 No sentido de se adotar a “natureza” ou o “ambiente” como referentes fixos.

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191

da educação, entraram na agenda da reforma psiquiátrica, de onde poderiam ser

retiradas de pauta sem perda significativa alguma. Da avaliação há que se esperar

que cumpra dignamente o papel de informar, não de formar.

F. Guattari assinala que

“um conceito só vale pela vida que lhe é dada; ... tem menos porfunção guiar a representação e a ação do que catalizar osuniversos de referência que configuram um campo pragmático”(Guattari, 2000).

Deter por um momento o fluxo das coisas e o vôo das palavras nas

grades de um indicador justifica-se pela necessidade de testá-las e conhecê-las antes

de devolvê-las ao seu habitat. Deleuze afirma que é preciso pegar as coisas pelo

meio, onde elas crescem, rachar as coisas e rachar as palavras. Não se deve facilitar

a que nada empalideça a nossa tarefa essencial, que é menos a de medir ou usar

chaves padronizadas para solucionar problemas que a de criar um ambiente que não

só acolha as diferenças, mas (nas palavras de Pelbart) permita ao homem ser um

grande experimentador e afirmador de modos de existência singulares (Pelbart, 1996).

Um mundo que signifique, antes de mais nada, suscitar eventos é, talvez, o melhor

que tenha restado da imagem luminosa da pólis, a “cidade subjetiva”, onde haja a ligar

cidadania e subjetividade mais que um laço, um “relação interna”, na expressão de

Wittgenstein.

É preciso que o lugar da política seja reinventado em posição de

autonomia em relação à sociedade e que as pessoas sejam mais que clientes e e

usuários para que a cidade se torne um espaço relacional em que a subjetividade

cidadã possa florescer.

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