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O verão chileno Depois da primavera estudantil, Camila Vallejo e outros jovens líderes tentam abrir caminho entre os dinossauros do Congresso por JOSEFINA LICITRA Tamanho da letra: Esta é a cena. Aconteceu em 21 de maio de 2012. Naquela manhã, em Valparaíso, cidade litorânea localizada a 120 quilômetros de Santiago do Chile, o presidente Sebastián Piñera devia fazer a prestação de contas anual: um discurso perante o Congresso sobre o estado administrativo e político da nação. Ao contrário de anos anteriores, a situação naquele dia era particularmente tensa. No auge dos protestos estudantis – o movimento popular mais importante do Chile desde a redemocratização, em 1990 –, qualquer aparição pública de Piñera era garantia de, no mínimo, uma nova elevação da temperatura das ruas. Dentro e fora do Congresso havia gente posicionada, embora a tensão fosse diferente de cada lado. Dentro, num ambiente mais calmo, estava Jaime Parada: um vereador e militante dos direitos civis das minorias sexuais que ouvia o discurso sabendo que Piñera se pronunciaria sobre o assassinato de Daniel Zamudio, um rapaz gay. Fora, em compensação, protestando contra Piñera, estavam os estudantes liderados em grande parte por Giorgio Jackson (ex-presidente da Federação de Estudantes da Universidade Católica – Feuc), Francisco Figueroa (ex-vice-presidente da Federação de Estudantes da Universidade do Chile – Fech) e Camila Vallejo, vice-presidente da Fech, que, graças a um discurso perfeitamente alinhavado

O verão chileno

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O verão chilenoDepois da primavera estudantil, Camila Vallejo e outros jovens líderes tentam abrir caminho entre os dinossauros do Congresso

por JOSEFINA LICITRATamanho da letra:

Esta é a cena. Aconteceu em 21 de maio de 2012. Naquela manhã, em Valparaíso, cidade litorânea localizada a 120 quilômetros de Santiago do Chile, o presidente Sebastián Piñera devia fazer a prestação de contas anual: um discurso perante o Congresso sobre o estado administrativo e político da nação. Ao contrário de anos anteriores, a situação naquele dia era particularmente tensa. No auge dos protestos estudantis – o movimento popular mais importante do Chile desde a redemocratização, em 1990 –, qualquer aparição pública de Piñera era garantia de, no mínimo, uma nova elevação da temperatura das ruas.

Dentro e fora do Congresso havia gente posicionada, embora a tensão fosse diferente de cada lado. Dentro, num ambiente mais calmo, estava Jaime Parada: um vereador e militante dos direitos civis das minorias sexuais que ouvia o discurso sabendo que Piñera se pronunciaria sobre o assassinato de Daniel Zamudio, um rapaz gay. Fora, em compensação, protestando contra Piñera, estavam os estudantes liderados em grande parte por Giorgio Jackson (ex-presidente da Federação de Estudantes da Universidade Católica – Feuc), Francisco Figueroa (ex-vice-presidente da Federação de Estudantes da Universidade do Chile – Fech) e Camila Vallejo, vice-presidente da Fech, que, graças a um discurso perfeitamente alinhavado e a uma beleza incomum, deu voz e rosto ao movimento nos principais meios de comunicação do planeta.

Uma fora e outro dentro, Camila e Jaime Parada  trocavam mensagens pelo WhatsApp, o aplicativo de chat telefônico com que foi coordenada boa parte da revolta estudantil. “Leoa, isto aqui já está acabando, a gente precisa se encontrar”, escreveu para Camila quando o discurso terminou. “Vem pra rua e nos vemos”, ela respondeu, e Parada foi.

Procurou Camila entre a multidão até topar com a cena seguinte: no meio do caos dos protestos, ela avançava, dentro de um círculo de companheiros da Juventude Comunista – partido ao qual  pertence –, que a protegia do turbilhão a seu redor: uma horda de militantes da extrema esquerda que gritava “vendida” e amarilla (frouxa); dezenas de repórteres disparando

perguntas ao léu; e um punhado de espertinhos que esperavam o momento certo para esticar o braço e passar a mão na bunda dela, gritando “Me dá um filho”, “Deixa eu chupar esses peitos”, “Me aceita no Facebook”.– Era como um bando de lobos em volta da Camila, e ela caminhava impávida. A Camila é muito admirada, mas também muito odiada, ainda mais pelo pessoal da esquerda radical, que a considera uma vendida. Mas ela tira de letra. Você a via caminhar, e era como se nada estivesse acontecendo.  Essa cena explica melhor que qualquer outra a complexidade do movimento.

Isso é o que Jaime Parada diz agora, um ano e meio depois, enquanto toma chá num bar de Santiago. Dirá outras coisas, mas será essa imagem – esse transe cinematográfico – que voltará infinitas vezes ao longo da minha viagem, cada vez que eu precisar lembrar como é “a Camila” e, portanto, como é o movimento estudantil chileno: o maior levante social ocorrido no Chile desde o fim da ditadura de Augusto Pinochet.

No próximo dia 17 de novembro haverá eleições presidenciais e parlamentares no país. Muitos dos líderes que organizaram a revolta – entre eles Camila Vallejo, Giorgio Jackson e Francisco Figueroa – disputarão, com 26 anos de idade em média, uma cadeira num Congresso que há duas décadas é dominado por dinossauros políticos.

O salto, no entanto, tem suas particularidades. Nem todos os candidatos jovens estão saindo pelo mesmo partido. E, de todos eles, Camila foi quem chegou mais longe – e a um lugar mais complexo. Depois de repetir até o cansaço, durante os protestos, que jamais votaria na ex-presidente e hoje novamente candidata Michelle Bachelet, ela agora, obedecendo às ordens de seu partido, é candidata apoiando a mesma Bachelet. E isso teve consequências. Boa parte da população apoia Camila Vallejo, mas muitos estudantes reagiram como se reage a uma fraude. “Falsa”, “prostituta”, “mentirosa”, “política” (sic), “bufona” – são alguns dos qualificativos que ela  vem recebendo por entrar nas fileiras da Concertação, a coalizão de partidos e movimentos de centro-esquerda que se formou no Chile com a redemocratização e que cresceu vitaminada pela promessa – para muitos não cumprida – de devolver aos cidadãos os direitos sociais perdidos nos dezessete anos da ditadura de Pinochet (o golpe de Estado contra Salvador Allende completa 40 anos este mês).– Não sou principista. Tenho meus princípios, mas entendo que, para responder às demandas que hoje se apresentam no Chile, é preciso uma boa

correlação de forças políticas – dirá Camila Vallejo alguns dias depois, sem que uma única hesitação roube a graça de seu rosto.

 

amila é forte, mas ela também é absurdamente linda. Tão bonita que é impossível vê-la como uma façanha política dissociada de sua dimensão estética. A beleza de Camila levou o Chile aos meios de comunicação do mundo inteiro – o semanário alemão Die Zeit a entronizou como figura emblemática de 2011, os leitores do Guardian a escolheram como “personalidade do ano”, oNew York Times falou dela como “a revolucionária mais glamourosa” etc. Essa narrativa internacional, por sua vez, fortaleceu as bases, o alcance e o poder político da revolta chilena.– A Camila é muito inteligente, mas se fosse gorda e tivesse bigodes pode ter certeza de que não teria chegado tão longe – dirá, alguns dias depois, Patricio Fernández, diretor do semanário The Clinic, talvez a única publicação contestadora e de circulação maciça que existe no Chile.– O fato de ela ser bonita incomoda a direita, porque eles associam a esquerda à feiura. Chamaram Camila de “essa cadela” e fizeram piadas do tipo: “Agora os comunistas estão fazendo casting?” Os homens com a Camila e as mulheres com o Giorgio: assim se definia a sexualidade chilena há dois anos – diz Jaime Parada. 

stamos agora, ele e eu, num belo bar de Providencia, um dos bairros mais ricos do Chile, lugar que em 2012 Parada se elegeu vereador. Foi nessa época, quando assumia seu cargo político, que ele se tornou amigo de Camila. Mesmo militando em partidos diferentes no espectro da esquerda – Parada é do Partido Progressista –, conseguiram fazer amizade, graças, inclusive, a um fator sexual. Ela podia estar com ele – gay – sem que houvesse especulações a respeito.

– A Camila é muito assediada pelos homens, é a mulher mais desejada do Chile. Se você perguntar a um heterossexual qual a pessoa que ele mais deseja, vai responder “Camila Vallejo”. Por isso acho que, em todo caso, era bom para ela ter um amigo gay, com quem pudesse sair mais à vontade. A Camila é muito simples, não quer problemas desse tipo.

Com seus dedos finos, Jaime Parada pega a xícara e toma um gole de chá, que acompanha com torta de nozes. Ele é um homem de ossos delicados e barba impecável, que, como tantos outros, participou do movimento estudantil sem ser ele próprio estudante. Tem quase 36 anos, cresceu num distrito da elite santiaguina e foi estudante quando o modelo neoliberal – instalado por Pinochet e mantido pelos governos democráticos – vivia seu esplendor. Até 2011, o Chile era visto pelo mundo como “o tigre latino-americano”: um país que, segundo dados do Banco Mundial, tinha uma população em situação de quase pleno emprego, com apenas 14% de pobres, um Estado enxuto e eficaz.

A revolta estudantil escancarou o avesso desse modelo. E provou que as cifras macroeconômicas (que diziam, por exemplo, que cada cidadão tinha um poder de compra de 20 mil dólares ao ano) eram médias montadas sobre uma desigualdade social aguda e um modelo de Estado muito atrelado às oscilações do mercado. As classes médias e baixas tinham aspectos cruciais de sua existência entregues ao setor privado e deviam se endividar até limites insuportáveis para arcar com direitos básicos como a saúde, a educação e o cuidado na velhice.

Por que, então, foram os estudantes que protestaram, e não os velhos ou os doentes? Porque a transição chilena – que é como aqui se chama a saída gradual dos arranjos institucionais da ditadura – criou em torno da educação um ideal de ascensão social que, a despeito das boas intenções, mantinha os fundamentos da Escola de Chicago adotados pelo pinochetismo. Todos, dizia-se, podiam se realizar como indivíduos por meio do estudo, apenas com um porém: as universidades, além deruins,  eram pagas, e obrigavam boa parte da população a se endividar com os bancos privados para sustentar sua formação.

Milhares de estudantes começaram a se formar – ou a abandonar o curso – atolados em dívidas e, no melhor dos cenários, com um diploma que não lhes garantia um bom emprego, já que boa parte das universidades era academicamente deplorável. A educação se tornou um caso exemplar de como as armadilhas institucionais criadas na ditadura continuavam sendo mantidas na democracia.

– Os jovens foram a face visível de um movimento que expôs o lado mais complicado do Chile – diz Jaime Parada. – E pela primeira vez se fez valer a ideia de que na classe política há de fato vozes alternativas ao establishment. Vozes que, paradoxalmente, passam a integrar

o establishment, porque a Camila agora está saindo como candidata a deputada.– Isso é um erro?

– Não. O Giorgio está se candidatando, e o Francisco, um dos caras mais capazes do movimento, também. O que mais tem causado reações é o apoio da Camila a Bachelet.

A decisão de Camila Vallejo – que na realidade não é dela, mas do Partido Comunista – tem uma explicação. Para entendê-la é preciso conhecer o esquema político que o Chile arrasta desde o tempo de Pinochet.

Vigora no país um sistema de governo “binominal”, o que significa que o Chile está dividido em sessenta regiões e que cada região deve eleger dois deputados (há no Parlamento um total de 120 deputados). Para escolher os candidatos, dá-se um processo de sufrágio por listas: as duas listas que recebem mais votos em cada distrito põem seu deputado no Congresso. O detalhe é que as duas principais listas são sempre as mesmas: a da Aliança – a coalizão de direita a que pertence o presidente Piñera– e a Concertação, que tem em Bachelet seu maior expoente. Como essas listas sempre recebem o maior número de votos, em todas as regiões a Aliança e a Concertação obtêm uma cadeira cada, de modo que o Congresso sempre se vê dividido em metades ideológicas exatas. A isso se soma o fato de que toda lei, para ser aprovada, deve receber o aval de mais da metade do Parlamento. Não é difícil entender por que é praticamente impossível sancionar qualquer pacote que realize mudanças de fundo na realidade chilena.

Esse sistema está sendo questionado pela primeira vez em décadas, e são os líderes do movimento estudantil que estão buscando, por vias políticas, o seu ponto vulnerável. É um projeto difícil, entre outras coisas porque os candidatos jovens precisam disputar com partidos que contam com uma vantagem institucional: a Aliança e a Concertação,  diferentemente de partidos em geral menores, que não fazem coalizão,  podem apresentar, cada uma, dois candidatos por região, que na apuração somam seus votos sob o guarda-chuva que os aglutina. As legendas  independentes só podem apresentar um candidato. Por essa razão, qualquer figura política que queira concorrer à margem das coalizões – como Giorgio Jackson ou Francisco Figueroa – está obrigada a um esforço feroz, já que não disputa contra dois candidatos – um da Aliança e um da Concertação –, mas contra quatro.

– É um sistema perverso – explica Parada. – Foi por essa razão que os comunistas do pcse entenderam com Bachelet.

A explicação para muitos é insuficiente. Para a parte mais radical do movimento estudantil – que continua vivo, mas sem os líderes nem os picos de força dos anos 2011 e 2012 –, Camila está virando as costas para o coletivo que a projetou. Agora faz parte de um partido disposto a negociar suas convicções por um punhado de cadeiras no Parlamento.

Mas há outras maneiras de enxergar o problema:

– Você nunca é suficientemente de esquerda – dirá Camila dias mais tarde, com o rosto liso, iluminado.

– Camila fez o que seu partido pediu; o PC tem um traço pragmático muito forte, e ela é uma militante disciplinada – explica Parada. – Além disso, as pessoas gostam dela. Quando caminho com a Camila pela rua, ela não pode andar 100 metros sem que a abordem pelo menos três vezes para tirar fotos… A propósito – Parada parece acordar –, você conseguiu marcar a entrevista com ela?

– Tinha marcado para amanhã, mas ela cancelou.

– Ah… É que amanhã é um dia muito importante para a Camila. Amanhã ela vai fazer a prova final para se formar.

– Mas claro que vai ser aprovada – digo –, todo mundo deve apoiar o que ela representa.

Parada balança a cabeça, franzindo a testa: dúvida.

– Ela liderou um movimento que eclipsou o sistema educacional do Chile. Não pense que é assim tão fácil.

 

***

 

movimento liderado por Camila Vallejo e seus colegas foi o último e o mais vigoroso dentro de uma sequência de protestos que vinham pipocando desde o final dos anos 90. Entre eles, o mais importante ocorreu em 2006, na chamada Revolução dos Pinguins: um forte protesto dos estudantes secundaristas – cujos uniformes lembravam as cores do pinguim – questionava um sistema educacional caro e ruim. Os “pinguins” queriam estatizar a educação e obrigaram a então presidente Michelle Bachelet a trocar o ministro da área e a sentar para negociar com os estudantes, que a essa altura já tinham conquistado o apoio popular.

Tudo parecia apontar para o triunfo dos “pinguins”; mas ocorreu, então, um episódio que é visto como a pedra fundamental da desconfiança dos jovens no sistema político e, especificamente, na Concertação. Bachelet criou uma comissão integrada por estudantes, intelectuais e empresários para rever a Lei Orgânica Constitucional de Ensino, o que de fato foi feito. Mas o que se pôs no lugar foi uma lei que tinha muito pouco a ver com as reivindicações originais das ruas. A nova lei não mexia no ponto central: o Estado continuaria a financiar qualquer empresa educacional que se criasse no Chile. E as famílias continuariam a pagar o que essas empresas cobrassem. Desse diálogo frustrado ficou uma foto que hoje é um símbolo da “fraude progressista”: Michelle Bachelet aparece comemorando a nova lei com uma das mãos para o alto, balançando uma bandeirinha do Chile, acompanhada por todo o espectro partidário, direita incluída.

Foi esse antecedente que forneceu combustível à explosão social de 2011. Na época, os universitários, muitos deles “ex-pinguins”, confrontaram-se com um sistema que continuava sendo – como agora – caro e ruim. Hoje um curso universitário no Chile custa, por ano, entre 4 mil e 6 mil dólares. Como boa parte dos alunos não tem como arcar com essa despesa, já que metade da população chilena ganha 500 dólares por mês, quase todos recorrem ao chamado “crédito com aval do Estado”: uma modalidade de endividamento criada durante o governo de Ricardo Lagos – outro presidente da Concertação – que endivida os estudantes com os bancos privados a taxas que os obrigam a devolver no futuro quase o dobro do dinheiro que tomaram emprestado.

 

m abril de 2011, já durante o governo de Sebastián Piñera – educado em Harvard e fundador do Bancard, o maior cartão de crédito do Chile, hoje

vendido a uma multinacional –, explodiu a bomba social que transformou os jovens na face visível de um movimento que já transbordava as salas de aula e ganhava o apoio popular, com respaldo que beirava os 80%. Em dezembro do mesmo ano, após oito meses de mobilizações, os estudantes já haviam forçado a renúncia de dois ministros da Educação e conseguido levar a reforma do ensino ao topo da agenda parlamentar.

Toda a pressão e todas as conquistas estavam encarnadas em seus líderes: Camila Vallejo presidia a Federação de Estudantes da Universidade do Chile, uma instituição laica, pública e anticlerical – embora paga –, preferida da classe média ilustrada. E Giorgio Jackson presidia a Federação de Estudantes da Universidade Católica, frequentada pelos filhos do conservadorismo religioso e social do Chile.

– Na “Católica”, os garotos pobres se vestem como ricos. Na “Chile”, os ricos se vestem como pobres – resume o escritor Rafael Gumucio em um bar da Drugstore, espaço localizado em um shopping, onde se reúne boa parte do círculo intelectual de Santiago.

Gumucio acompanhou o movimento de perto. Em 2011, publicou na revista mexicanaGatopardo um perfil de Giorgio Jackson, revelando ao exterior um rosto da revolta alternativo a Camila.Aos 24 anos – hoje 26 –, Jackson era um estudante aplicado de engenharia, agradava as garotas e as mães das garotas, aparecia dando entrevistas para a Al Jazeera em perfeito inglês. Nessa época, quando arrastava um movimento que chegou a levar mais de 100 mil pessoas às ruas, ele morava com a mãe e as quatro irmãs em Las Condes, um bairro de classe alta que só deixou no ano passado. Agora mora em Providencia, numa casa antiga, dividindo aluguel com cinco amigos.

Pouco depois de falar com Gumucio, toco a campainha dessa casa e sou recebida por Auska Ovando, a assessora de imprensa da campanha de Giorgio Jackson para deputado. Uma moça amável que me convida a entrar e pede que eu aguarde. Jackson está no cômodo ao lado dando entrevista para uma rádio.

Sento e espero. Na sala impera uma mistura de objetos própria dos lugares onde mora muita gente. Veem-se uma coleção de relógios antigos, um pôster de Al Pacino, outro de Emiliano Zapata, máscaras indígenas, sifões de água, guarda-chuvas, uma pequena mala, um violão, uma planta, uma mandala, bibelôs tailandeses, livros: uma Enciclopédia Larousse, uma

biografia de Obama, Uma Confraria de Tolos, romance de John Kennedy Toole sobre um intelectual preguiçoso, glutão e egocêntrico.– As cartas vão ser lançadas daqui a duas semanas, mas mesmo assim temos que visitar os moradores casa por casa – escuta-se do outro lado da porta.

Jackson está falando da entrega das listas: dentro de duas semanas se saberá se ele, afinal (como acabaria acontecendo), pode se apresentar às eleições como independente por meio do seu movimento, Revolução Democrática. Sai de seu quarto e surge, alto e saudável, dono de uma barba rala sobre a pele pálida. Está esfregando um braço.

“Vinte minutos com o braço dobrado para segurar o telefone, preciso urgentemente trocar de aparelho”, diz. Faz frio. Com o braço bom, puxa um aquecedor que lança um ar morno e fraco. Jackson se senta e massageia o bíceps. Passou os últimos dois dias concedendo um sem-número de entrevistas.

– Acho que desta vez temos força suficiente para promover uma mudança. Alguns companheiros nos criticam por querermos entrar no Congresso, mas é lá que se trava a batalha. Mais de 90% dos parlamentares estão tentando a reeleição, não querem sair de lá. E me diga: quem é que vai querer sair por conta própria? Nós é que temos que tirá-los. Fomos nós que os colocamos lá, e isso não foi um presente. Quando o governo diz que é impossível oferecer educação gratuita no Chile porque não há dinheiro para isso, respondemos: Como não? Somos um país com renda de 20 mil dólaresper capita, só é questão de fazer uma reforma tributária, porque essa média de 20 mil dólares só é alcançada por menos de 10% da população do Chile. E mais: só 1% da população chilena acumula 30% da renda nacional. Então, claro, quando falam em média, escondem essa desigualdade e dizem que no Chile estamos superbem, mas oque ninguém diz é que 50% dos chilenos ganham menos de 500 dólares por mês. 

ackson despeja dados de um modo quase esportivo, como se a política fosse uma luta que não se ganha por nocaute, mas por pontos. Esse, de fato, sempre foi o trunfo do movimento estudantil: sabendo que eram jovens e de classe média, e que seriam criticados por isso, eles decidiram estudar e bombardear os rivais com toneladas de dados.

Rafael Gumucio me contou um caso que permite entender melhor esse aspecto: logo no início dos protestos, a revista The Clinic convidou os estudantes a participarem do conselho editorial de um número que seria totalmente dedicado ao movimento. A proposta estética para essa edição, disseram os editores da Clinic, era trazer Camila na capa, em nu frontal, e trazer na contracapa Giorgio Jackson, em nu posterior. Julio Sarmiento – quadro da Juventude Comunista, companheiro de Camila e convidado à reunião de pauta – fuzilou o pessoal da revista com os olhos.– Não gostaram nem um pouco – contou Gumucio. – Para nossa surpresa, eles não tinham o menor senso de humor. Eu tenho 43 anos, e minha geração foi a do punk e da exposição do corpo, por isso pensamos: “Vamos fazer essa capa e arrebentar”, mas eles são outra coisa. Levaram tudo muito a sério. Acreditam demais naquilo que acreditam. Têm uma certa solenidade. Quando mandavam os conteúdos, eram uns relatórios sociológicos com entrevistas a estudiosos e especialistas… era uma coisa despida de qualquer sinal de juventude, e ainda por cima cada coisa era submetida a um assembleísmo infinito. Eles têm sinais culturais diferentes dos nossos: não aceitam frivolizar, enfatizam o coletivo sobre o individual, têm uma visão da igualdade como uma coisa divertida e uma visão do público ou da social-democraciacomo uma coisa hype, assim como é hype andar de trem, frequentar hospitais públicos… bom, não: isso ainda não é hype, não.Lembrei-me das palavras de Gumucio enquanto escutava Jackson, que dizia a mesma coisa, mas do seu jeito.

– Os velhos sempre nos desprezaram, chamando-nos de “vagos” ou de “jovens sonhadores e idealistas”. Como eliminar esses preconceitos? Sendo supernerds, aplicados em certas coisas, dando entrevistas no exterior, mostrando números, falando sem poesia. E a verdade é que as pessoas acreditam tão pouco nos políticos que nem precisamos fazer grande coisa para que acreditassem em nós – Jackson sorri. – Bastou não sermos medíocres.

Deu certo, pelo menos até determinado ponto. Durante 2011 e boa parte de 2012, toda semana dezenas de milhares de pessoas tomavam as ruas clamando por uma mudança que – e é aí que não deu tão certo assim – se chocava contra os muros de um Congresso incapaz de aprovar reformas reais. Isso é o que Jackson diz agora, e é também o que ele diz em El País que Soñamos, um livro que lançou em abril deste ano,  no qual relata a experiência rica, mas ao mesmo tempo triste, dentro do movimento. Todos os principais líderes estudantis publicaram um livro. No caso de Camila

Vallejo, foi lançada uma compilação de seus discursos e colunas na imprensa, e Francisco Figueroa acaba de publicar um título que, por uma coincidência, um carteiro entregou na casa de Jackson quando eu estava lá.Francisco Figueroa também quer ser candidato – e finalmente será. Está saindo pelo Partido Humanista, o mesmo que Gabriel Boric – outro líder que hoje está em campanha no sul do Chile – e sob a mesma nuvem de problemas de Giorgio Jackson. Tanto Figueroa como Jackson sabem que brigam contra duas grandes máquinas políticas, e desconfiam que suas chances de ganhar dependem em grande medida do eleitorado jovem. Isso exige um trabalho duplo: devem convencer seus eleitores a votar neles, mas antes têm que convencê-los a ir votar. No Chile, o voto não é obrigatório e entre os jovens há uma grande descrença do poder de mudança pelo voto. Muitos deles, mesmo os que têm interesse por política, preferem ficar em casa em dias de eleição.

Giorgio Jackson se levantou e voltou ao quarto para dar outra entrevista à rádio. Enquanto o espero, dou uma “googlada” no seu nome pelo meu telefone. “Olha o Giorgio no Instagram”, leio. O link me leva a uma página cheia de fotos na qual se vê Jackson comendo empanadas, assando salsichas e passando sua camisa. Diz a legenda: “antes da primeira sessão de fotos que fizemos para a campanha”.

– Sou meio tapado para a tecnologia, mas acho que ela aproxima as pessoas e ajuda os jovens a entenderem que não é preciso fazer carreira política para ser um sujeito político – diz Jackson ao voltar. – Eu escolhi fazer carreira política, essa é a única diferença. Mas, no mais, sou como eles e tenho os mesmos problemas.

Um dos problemas comuns a boa parte dos estudantes é o atraso nos estudos. Em 2011, milhares de universitários se mostraram dispostos a pagar o preço da luta e perder o ano letivo, e isso significa que agora muitos militantes estão se formando tardiamente. Esta semana Jackson deve terminar seu trabalho de fim de curso e dentro de quinze dias fará sua defesa, para então receber seu diploma de engenheiro. Camila, por sua vez, neste momento está fazendo os exames finais para se formar geógrafa. Dentro de algumas horas, os jornais dirão que ela “se diplomou com distinção máxima”. Mas o que nenhum meio dirá, talvez por ser um dado óbvio, é que, uma vez formada, Camila deverá saldar uma dívida bancária de 10 mil dólares.

 

***

 

uma quarta-feira de sol. É de manhã. A assessoria de imprensa de Camila Vallejo marca nosso encontro para a entrevista em La Florida, o distrito de classe média pelo qual ela está saindo candidata. Camila cresceu aqui com a mãe – Mariela Dowling, dona de casa – e o pai, Reinaldo Vallejo, um membro veterano do pcque nos anos 80 foi estrela de uma telenovela popular no Chile e hoje tem uma pequena empresa de conserto de aquecedores.

O comitê eleitoral de Camila fica num condomínio simples, onde se entra depois de passar por um portão vigiado, e consiste numa casa pequena cuja dinâmica se organiza em torno da sala principal. Na entrada há um imenso cartaz com o rosto de Camila – sua pele luminosa, seu piercing no nariz – e no centro da sala há uma mesa comprida onde sete pessoas tomam seu café da manhã, com direito a pão com queijo. Faz frio. Um fogareiro – sobre o qual há um pedaço de pão – é o único aquecimento do lugar.

– Pode sentar, a Camila já vem.

Quem me recebe é Evelyn, uma moça de cabelo curto, sardas e uma austeridade de gestos que espelha um caráter. Evelyn é a assessora de imprensa e a pessoa com quem estive regateando cada minuto de entrevista até a última hora. Evelyn é marcial. E é marxista. Ela integra um corpo partidário que fez da disciplina um elemento fundamental e que escolheu Camila, entre tantas coisas, não só por sua inteligência e beleza, mas também por sua disposição para se submeter às normas impostas pelo partido.

Isso sustenta a maior crítica que Camila recebeu nas eleições da Federação de Estudantes de 2012: o fato de ser mais obediente ao pcque ao movimento estudantil. Temia-se, dado o forte pendor negociador do comunismo chileno, que eles acabassem se acertando com os políticos tradicionais da Concertação. Foi por isso mesmo que Camila perdeu: ficou em segundo lugar – e com a vice-presidência –, atrás de Gabriel Boric, um estudante de direito com visão mais radical, que agora não está em Santiago do Chile, mas no sul do país, onde é candidato a deputado com grandes chances de se eleger.

Quanto a Camila, terminou seu mandato em 28 de novembro de 2012 e hoje,confirmando os temores do movimento, é uma das figuras mais destacadas da Concertação.

– A Camila é uma menina comunista, inteligente e bonita, mas ninguém imaginava que ela chegaria tão longe – disse dias atrás o escritor Rafael Gumucio. – Eu nem acredito que ela estivesse preparada para tanto: não estava entre suas ambições. Uma coisa é você não estar preparado para ser John Lennon, quando você quer ser John Lennon! O problema é que ela não queria ser nem Ringo Starr.

A certa altura, chega Camila. Tem uma barriguinha que desponta entre a roupa preta – estava grávida de seis meses. E tem, acima de tudo, uma beleza que chega a angustiar. Camila é até mais linda do que nas fotos. Eu a olho como se olha uma imagem e me pergunto como deve ter sido difícil para ela ser levada a sério, e até onde o movimento teria crescido – com a imprensa internacional, com a imprensa local alimentando-se da internacional, com cidadãos alimentando-se da imprensa local – sem sua escandalosa beleza.

– A Camila é muito inteligente, mas sua beleza a colocou no topo e a transformou na peça de ouro de uma máquina mais ou menos enferrujada – disse Patricio Fernández, diretor da Clinic. – O engraçado é que ela sempre teve, e continua tendo, muita dificuldade em lidar com sua beleza, coisa que eu não entendo, porque a gente espera mais despreocupação de uma pessoa assim. Tirar partido da própria beleza em vez de esconder, como se tivesse vergonha; isso é um melindre, uma jequice típica do conservadorismo histórico do pc. Pois que assuma uma atitude mais roqueira, coloque uma minissaia, mostre a bunda e saia quebrando tudo!– A beleza da Camila ajudou muito – dirá Francisco Figueroa. – Deixou a ideia de que os dirigentes estudantis eram heróis apolíneos, o que era uma grande mentira. O Gabriel [Boric] estava gordinho, o Giorgio está ficando careca, eu tenho aqui as minhas olheiras de estimação, e na época mal conseguíamos tomar banho… Mas a beleza da Camila passou uma ideia de bom e de belo. Sem desmerecer ninguém, muito menos a Camila, acho que foi super-relevante. Quando ela foi eleita presidente da Fech, em 2011, o destaque da cobertura não foi a troca da liderança, isso pouco importava. O que importava eram seus olhos.– A alusão à minha aparência costuma ser recorrente – dirá depois Camila. – Durante os protestos, sabíamos que isso ia ser repisado, porque eu sou consciente da sociedade em que vivo e porque a direita ia usar esse aspecto

para banalizar as demandas do movimento. Mas nunca pensei que seria tanto assim.

 

amila se senta e apoia os cotovelos na grande mesa que ocupa o recinto. Há outras pessoas ao redor dela. Nossa conversa não será, exatamente, íntima. Alguns falam ao telefone, uns dizema Camila alguma coisa ligada à campanha e outros lhe perguntam pela gravidez. Aos 25 anos e com o carimbo de mito sexual, ela resolveu atentar contra a libido social e virar mãe. Ledo engano: agora só gritam “deixa eu te fazer outro neném”. O fato é que, para outubro – cerca de um mês antes das eleições –, ela espera a filha que decidiu ter com Julio Sarmento, seu companheiro de vida e de militância. Quando fala da criança, Camila diz uma coisa curiosa:

– Toda mulher se pergunta se vai ser uma boa mãe, e nisso não sou diferente. O importante é que a gente quer essa filha e ela vai ser muito amada: tem garantias de amor.

Garantia. Essa palavra é central na linguagem do mercado – tudo o que se compra vem com garantia – e foi central no movimento estudantil. Depois de infinitas fraudes políticas, os estudantes perceberam a necessidade de sinais confiáveis de que as demandas sociais provocariam mudanças. Por isso, este ano muitos resolveram se candidatar ao Parlamento: para ter garantias, se não de amor, pelo menos de que não serão enganados. Por isso, também, há tanta mágoa pela aliança entre Camila e Bachelet.

– Foi muito difícil enfrentar essas críticas?

– Acho que essa discussão faz parte do debate do que é ser mais ou menos de esquerda. Um dos problemas da esquerda é justamente não poder resolver quem é mais de esquerda do que o outro. E acho que muitas vezes se cai no principismo, o que no meu ponto de vista é um erro. Eu não sou principista. Tenho os meus princípios, mas também sei o que é tática e o que é estratégia. Personalizar as coisas não tem sentido, hoje todos os candidatos presidenciais têm passados mais ou menos questionáveis, e se alguém se aferrar a isso, acaba ficando muito isolado.

Essa posição conciliadora, ao contrário do que se poderia esperar, está rendendo apoio maciço a Camila Vallejo. Tanto que hoje ela não é só uma

candidata à Câmara dos Deputados, mas encarna expectativas ainda maiores dentro da coalizão progressista. Acredita-se que sua imagem poderia concretizar uma façanha: duplicar os votos sobre a direita e conseguir que a Concertação eleja não um, mas dois deputados por La Florida. Há toda uma máquina trabalhando para que Camila chegue ao Parlamento, mas também uma contrapartida: Engolfada pelo turbilhão do proselitismo, Camila poderia estar perdendo autenticidade. No Twitter, por exemplo, no qual tem mais de 735 mil seguidores, ela só escreve sobre temas de campanha. E no dia de sua formatura, longe de fazer uma catarse pública – que é o que talvez fizesse uma garota de 25 anos com centenas de milhares de seguidores nas redes sociais –, limitou-se a escrever um lacônico: “Muito obrigada, parabéns, custou, mas saiu!”

Pergunto a Camila sobre sua formatura, e sobre sua dívida.

– Sou de um segmento médio, e os segmentos médios no Chile são todos endividados – diz. – Esse é um dado que não cabe na pobreza estatística. É gente que tem certa renda, e por isso não conta com nenhum amparo social, e então tem que se endividar para tudo, porque tudo é pago no Chile. Eu estou endividada. Minha irmã está endividada. Minha família toda está endividada. Tenho uma dívida de 10 mil dólares, e isso ainda porque tive a sorte de contar com crédito mais barato, do Fundo Solidário. Mas há outros casos muito mais terríveis que o meu. Por exemplo, de gente que não termina o curso e mesmo assim é obrigada a pagar.

Camila fala com voz moderada, como esses nadadores que cortam a água sempre pelo meio da raia. Durante a conversa, suas respostas repetem palavras como “projeto”, “educação” e “coletivo”, e o que chama a atenção não é tanto o que ela diz, mas o fio perfeito em que as ideias vão sendo encadeadas. Ao lado, Evelyn checa o relógio de seu telefone e olha com insistência. O tempo acabou. Pergunto se posso voltar a vê-la. Sou convidada para uma atividade partidária, à noite, em La Florida. Será num centro cultural, um bate-papo aberto para explicar a importância de ter uma nova Constituição nacional, que é um debate central na campanha de Michelle Bachelet. Para conversar sobre o assunto, além de Camila, estarão o deputado e candidato a senador Carlos Montes e Fernando Atria, um professor de direito da Universidade do Chile que se tornou o maior exegeta da candidata presidencial.

 

inco horas mais tarde volto ao mesmo bairro. Agora é noite, e a região está diferente. Na avenida Vicuña Mackenna, uma das principais vias de La Florida, brilham os caça-níqueis e os luminosos dos bingos clandestinos. O encontro se realiza no Centro Cultural La Barraca, numa estrutura instalada num galpão nos fundos do terreno, aonde se chega depois de atravessar um quintal em que mulheres estão fazendo ioga sobre bolas imensas. Na entrada do galpão está Evelyn. Ela me dá as boas-vindas, à sua maneira:

– Oi. Entra.

Dentro, o lugar está cheio de gente animada. Alguns são militantes, mas outros – muitos outros – são vizinhos que vieram escutar e festejar. O clima é mesmo de festa. Assim que o mediador começa a apresentar os debatedores, as pessoas rebentam em aplausos e gritos de “bravo”, com um furor que passa do admirável ao bizarro em questão de segundos. “Quero saudar Fernando Atria! Obrigado por estar conosco!” “Bravo!!!” “Este é David Peralta, vereador do distrito de La Florida!” “Bravo!!!” “Esta é nossa candidata a deputado Camila Vallejo!”

– Deputada, corrige Camila.

As mulheres dão hurras pela intervenção. Gritam “Bravo!!!” e seguem as apresentações: “Quero cumprimentar os dirigentes do Partido Comunista que estão hoje conosco!” “Bravo!!!” “Os dirigentes do Partido pela Democracia!” “Bravo!!!” “Os dirigentes do Partido Socialista!” “Bravo!!!” “E não sei se há algum outro dirigente que não mencionamos e que sabemos que está aqui conosco, mas palmas para ele também e para todos os dirigentes independentes que estarão nesta reunião!” “Bravo!!!” “E agora vamos debater a reforma constitucional no Chile: Por que precisamos de uma nova Constituição?” “Bravo!!!”

O mediador passa o microfone. Atrás de uma mesa, Fernando Atria agradece o entusiasmo popular e procura explicar, abrindo caminho entre os “bravos”, por que é fundamental reformar a Constituição e por que essa iniciativa é central na campanha de Michelle Bachelet.

– Esta deverá ser a eleição mais importante dos últimos vinte anos – diz Atria, e se faz silêncio. – É o momento de mudar as bases políticas deixadas pelo governo Pinochet. O que precisamos agora é de um modelo político sem armadilhas. Por que não foi possível fazer isso até agora?

Porque há três impedimentos que travam qualquer esforço nesse sentido: o sistema binominal, a aprovação de mais de 50% para sancionar qualquer lei e a existência de um Tribunal Constitucional que pode anular projetos de lei antes que sejam discutidos. Hoje é impossível fazer uma reforma porque o sistema institucional do Chile é como as três lâminas de um barbeador: a primeira puxa o pelo, a segunda o corta, a terceira limpa o que restou.

Risadas, aplausos. Camila toma nota, sorri e de quando em quando pega e chupa uma das balas que estão sobre a mesa. Agora, limpa a garganta e pega o microfone: é sua vez de falar. Diante dela há umas 200 pessoas e um pequeno aquecedor elétrico soltando um calor inútil.

– Todas essas armadilhas que Atria acaba de mencionar protegiam certo modelo de sociedade – diz Camila. – A educação como bem de consumo e a possibilidade de o setor privado fazer dela um negócio estão garantidos pela atual Constituição. Com o movimento, nós abalamos uma grande hegemonia cultural. Essa imagem de que somos um país desenvolvido, de que estamos superbem e que aqui tudo pode ser conquistado com as ambições pessoais, essa imagem se rompeu. Nós demos um empurrãozinho, mas o povo já estava cansado.

Todos aplaudem. Camila falou, como sempre, como se cada palavra estivesse costurada por um fio de seda indestrutível. Enquanto ela falava, chegou Carlos Montes, deputado por La Florida desde 1990, que no tempo de Pinochet foi preso e torturado por liderar um movimento popular na clandestinidade. Montes hoje é um político de raça. Chega de terno e fala de pé com a naturalidade e a veemência de um pregador. Camila o escuta enquanto come algum doce. Uma mulher aponta para sua barriga, como se dissesse “alimente sua criança” e Camila sorri de volta.

– Em 2011, uma geração que quer outra sociedade foi para as ruas; nunca na história deste país aconteceu uma coisa assim – diz Montes. – Tenho certeza de que Camila Vallejo e Giorgio Jackson vão se eleger. O desafio deles é ver como traduzir os processos políticos dentro da institucionalidade. Apoiem Camila Vallejo, porque ela vai ter uma grande votação e será uma grande deputada!

O galpão vem abaixo: chovem aplausos e as pessoas se levantam gritando: “Bravo!” Alguns minutos depois, quando Montes termina sua fala, a discussão é aberta ao público. Um dos presentes pergunta se a nova Constituição tratará os membros das Forças Armadas como cidadãos sem

prerrogativas especiais. Outro pergunta por que deveria acreditar em tudo aquilo se a Concertação não fez nada nos últimos vinte anos. Outro fala de não ficar só em casa, de continuar a luta no trabalho. Outra fala da “pátria grande” e do imperialismo e diz: “Trabalhadores do mundo, uni-vos”, e todos abafam o riso.

– Sou professora – escuta-se então: é uma voz velha. – Ontem um jornalista da CNN disse que aqui “exageramos com o neoliberalismo”… Até a cnnestá dizendo que exageramos! Aqui tem gente que trabalha dezesseis horas por dia e ganha uma miséria, e depois tem que ouvir essa história de que no Chile “tudo é possível”; aqui continuam dizendo “você é pobre porque não é empreendedor”, e você tem que engolir essa mentira de “ser mais empreendedor”! A gente não melhora quando “empreende”! A gente melhora quando todo mundo melhora!

Viro a cabeça. Quem está falando é uma mulher já idosa, de óculos, com um casaco surrado que a protege do frio. Alguém pede silêncio, que escutem.

– A cultura, é aí que eu queria chegar. Sofremos uma mudança cultural patente no forte individualismo que cresceu entre nós. Aqueles homens primitivos dos quais descendemos não estavam sozinhos lutando contra as feras. Eles sobreviveram porque lutaram juntos! É isso que eu queria dizer.

O que se segue é um aplauso unânime e cerrado, mas ninguém chora de emoção. As pessoas sorriem, gritam “bravo!” As pessoas se mostram alegres, e fortes.

 

***

 

ós não estamos nos candidatando com a ideia de que, como deputados, vamos realizar os desejos da multidão mobilizada. Não vamos vender essa balela, porque a coisa é bem mais difícil. Essa briga vem de longe, e agora estamos por baixo, estamos perdendo. Bachelet teve a chance de fazer alguma coisa, mas não fez, e agora está tentando absorver parte do movimento.

Francisco Figueroa não é tão otimista como aquelas pessoas de La Barraca. Citado por todos como uma das cabeças mais brilhantes do movimento, Figueroa mora no Centro, numa região de universidades. É um rapaz pálido e magro que agora se senta de costas para uma vista admirável de Santiago do Chile. Seu apartamento fica no 24o andar de uma das torres que se ergue a poucos metros da Casa Central da Pontifícia Universidade Católica do Chile, o epicentro das ocupações de 2011. Ele lembra pouca coisa daqueles dias: tudo é uma longa confusão de assembleias, reuniões, debates, viagens e entrevistas que ele só pôde observar em perspectiva em duas ocasiões: no aniversário de sua mãe – quando viu sua família, pouco politizada, bem a par dos pormenores da luta estudantil – e na viagem à França e à Suíça que fez junto com Jackson e Camila: uma excursão rápida, na qual perceberam que o Chile era tema da agenda mundial e que eles tinham conseguido derrubar o mito do tigre latino-americano. Na época, Figueroa estava prestes a se formar jornalista, era vice-presidente da Fech e, com quatro anos dentro da Federação, tornara-se um dos analistas mais precisos do movimento.Agora, porém, sentado em sua sala – mora junto com a namorada –, enquanto serve café e coloca um tupper-ware com biscoitos numa mesinha baixa, Figueroa não parece um rapaz que faça de sua lucidez uma arma. Parece antes amável, calmo. E é com essa pachorra que afirma que as próximas eleições não são um evento a festejar tanto assim.

 

emos que ser frios. Esta eleição vai ser ganha folgadamente por Bachelet, mas isso ainda não é expressão do que está acontecendo no país. A transição só vai acabar quando esse modelo de Estado acabar. Acho que essa é a demanda de fundo do movimento. É uma reação contra a mercantilização da vida, e enquanto ela não se traduzir politicamente, vamos permanecer num período de agonia do velho, sem que tenha surgido o novo. É por isso que nós, da Esquerda Autônoma, enfrentamos estas eleições basicamente para continuar batendo firme no edifício da transição. Acreditamos que, para que o novo acabe de germinar, é preciso matar o velho. Matar, não… politicamente digamos, não é? Sabemos que é uma loucura tentar romper o esquema binominal como independentes, mas não somos loucos. Sabemos que é difícil, mas temos confiança. E tempo.

Francisco Figueroa, nos seus 27 anos,fala como quem amola uma faca lentamente. Parece inofensivo: com óculos. E talvez seja essa aparência –

que ele compartilha com muitos estudantes – que tenha gerado o maior equívoco entre os políticos de carreira. Figueroa chegou às manchetes dos jornais por causa de uma entrevista na CNN Chile em que conseguiu fazer Sergio Bitar perder as estribeiras. Bitar, ex-ministro da Educação de Ricardo Lagos, era o homem que havia implementado o famoso “crédito com aval do Estado”, que endividou boa parte das famílias chilenas. Era também um dos três maiores inimigos do movimento estudantil, e Figueroa estava bem ao lado dele num dos programas políticos mais importantes do Chile.

– A Concertação e a direita têm que decidir se vão continuar sendo o braço político dos bancos – disse Figueroa a certa altura do programa, no meio de uma discussão cheia de detalhes técnicos. – Porque os bancos foram bater às portas da Concertação e da direita pedindo garantias para um nicho de negócio financeiro, e o senhor, ministro, abriu a porta para eles.

Antes que Bitar pudesse abrir a boca, o apresentador exibiu um gráfico mostrando o nível de endividamento dos estudantes. Enquanto o apresentador lia os números, Bitar parecia bufar:

– É uma insolência – disse – imaginar que você tem moral e que os outros não lutaram pela…

– O senhor não tem moral.

– Se você acha que pode fazer uma política melhor, então entre na política, mas respeite os outros! Ninguém foi bater à porta do ministro dizendo “quero fazer um negócio”. Faça-me o favor, eu tenho uma vida inteira dedicada à política! Fui ministro do Allende e estive preso e exilado, e não é qualquer moleque que agora vai falar assim comigo!

Figueroa o olhava com os olhos alertas, mas sem se alterar. O apresentador tentou moderar e resolveu dar mais trinta segundos a cada um. Bitar começou. Figueroa esperava sua vez, sem imaginar que essa cena se tornaria um retrato do abismo entre a velha política da Concertação e a nova política do movimento estudantil. As demandas sociais estavam na boca de uma geração nascida na democracia, que não conhecia o medo, que estava livre dos traumas da ditadura, e para a qual as credenciais de praxe – “fui torturado”, “estava ao lado de Allende” – são sem dúvida importantes, mas não valem como uma carta branca capaz de purificar qualquer erro político.

– Eu não me toquei que a entrevista tinha sido tão importante, só falei e fui direto para a ocupação – diz Figueroa. – Eu sabia que o Bitar tinha pavio curto, mas…

– Você tem uma cópia desse programa?

– Está no YouTube.

– Com que título?

– Coloca “Sergio Bitar” – anoto, espero pelo que se segue – “enlouquece”.

“Sergio Bitar enlouquece.” Faço a busca pelo celular e acho o vídeo: quinze minutos de discussão com altos momentos técnicos, que terminam com Bitar perdendo o controle – não chega a ser excessivo: os chilenos são contidos –, e nos quais o apresentador Ramón Ulloa interveio de modo salomônico. Dá trinta segundos primeiro a Bitar e, em seguida, trinta segundos a Figueroa.

– O que é mais positivo em tudo isto – diz finalmente Figueroa, quando chega sua vez de falar – é que essa indecência que vem sendo cometida contra os estudantes e suas famílias não vai poder continuar, porque nossa geração chegou à política para ficar, e é isso o que mais irrita o ex-ministro Bitar. Eles tiveram o monopólio da política – Figueroa encara Bitar –, e isso vai deixar de acontecer.

Enquanto acabo de ver o vídeo, Figueroa se levanta, vai até seu quarto e volta com um livro – seu livro –, que tem na capa uma foto do movimento na rua. O título é Llegamos para Quedarnos [Chegamos para Ficar], e o que ele traz dentro, como logo saberei, é uma ácida crônica da revolta estudantil, mas também uma advertência que aponta para os próximos anos; para um futuro que, se sabe, é sobretudo dos que têm tempo.