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Página 1 PAULO PUPO O VIAJANTE Volume I 1ª edição Araçatuba Paulo Roberto Bicalho Pupo 2013

O Viajante - perse.com.br · homem só é feliz fazendo o que quer, quando quer e onde e como quer. Mas o que quer o homem? Tu, se te sentes feliz ao longo das horas de embriaguez,

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Página 1

PAULO PUPO

O VIAJANTE

Volume I

1ª edição

Araçatuba

Paulo Roberto Bicalho Pupo

2013

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Dedicatória

A meus pais, como prestação de contas

A meus filhos, como herança

A minha esposa, como dedicação

A Claudemir Montoni (in memoriam) e Antônio Afonso de

Toledo (in memoriam), como testemunho

A todos os meus alunos, como farol

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I

Por onde andei, ao longo dos meus longos dias,

tenho ouvido gente a falar-me da felicidade. Este homem que

habita estas terras resume a felicidade a uma pequena casa,

uma boa esposa e muitos filhos, numa rotina eternamente

simples e confortável; este outro, em ter por satisfeitos todos

os seus desejos, grandes ou pequenos; outro, ainda, em

trabalho plenamente realizado; e aquele, que vive além das

montanhas do oeste, pouco se importa com ela, sequer pensa

nisso, basta-lhe estar vivo.

Todos estão certos ao se considerarem felizes, e

possível e provavelmente errados se consideram que um

homem só é feliz fazendo o que quer, quando quer e onde e

como quer.

Mas o que quer o homem?

Tu, se te sentes feliz ao longo das horas de

embriaguez, deves correr ao botequim mais próximo e gastar

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todo o teu dinheiro em muitas e fartas doses de aguardente

até que alcances a tua embriaguez e a tua felicidade.

Se teu irmão alcança a felicidade banhando em

sangue a sua espada, é bom que mate; e que mantenha a

morte sempre viva e vibrante em suas mãos.

Tu, porém, não concordas com os assassínios de teu

irmão, pois te fazem infeliz, e lhe dizes:

- Meu irmão, há muito que te tenho como amigo e,

tu bem o sabes, o que mais desejo é ver-te sempre em júbilo e

longe das preocupações e conflitos da alma. Por isso tenho

suportado em silêncio, durante toda a minha vida, as mortes

que carregas nas tuas mãos e nas tuas costas, e todas as que

ainda hás de levar contigo pelo caminho que percorres. Tenho

até, por muitas vezes, apoiado o teu modo de agir, em nome

da tua felicidade.

“Mas eis que meu coração já não suporta mais os

teus atos e meu Deus se envergonha do que fazes. Sinto nojo

da tua espada e do sangue que nela apodrece, cujo fedor

sinto até as entranhas de minhas narinas. A cada reencontro

contigo ouço o clamor dos entes amados da tua vítima,

desesperados, chorosos, saudosos e infelizes.”

“Aquele que mataste ontem tinha esposa e filhos e

era amado; anteontem mataste uma criança e seus pais estão

a maldizer o teu nome; semana passada foi uma mãe, e seus

filhos rogam por vingança...”

“Tua felicidade não vale tal preço. É necessário que

acabes de vez com essa matança vã. Estás a nos fazer

infelizes, a mim e ao meu Deus.”

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Teu irmão, entretanto, te diz:

- Meu irmão, nós somos um só, fruto do mesmo pai e

da mesma mãe; o mesmo seio que te amamentou, também a

mim alimentou; e eu nada faria que te pudesse magoar, pois

meus olhos nada veem além da tua completa felicidade... E

como és feliz na tua embriaguez eu mesmo, muitas vezes,

presenteei-te com tonéis dos melhores vinhos que o dinheiro

pode comprar...

“Mas nossos pais estão a chorar por ti por causa da

loucura que te advém da embriaguez. Passam noites e noites

insones temendo pela sorte da tua esposa e dos teus filhos,

que são obrigados a presenciar o terrível espetáculo da tua

chegada ao lar, ao mesmo tempo em que veem diminuir a cota

diária do pão para que tenhas dinheiro suficiente para te

embebedares.”

“Urge que abandones esse vício, e logo. Não é por

mim apenas que falo, mas por teus filhos, por tua esposa e

por nossos pais. Estás a fazer-nos infelizes, a todos.”

Acontece, então, que ambos vos recolheis à solidão,

tanto tu quanto teu irmão, na solenidade de um templo ou

na serenidade de um campo, para meditar sobre as vossas

felicidades e as infelicidades alheias, sempre pensando,

pensando e pensando...

Tu sentes a dor da esposa, dos filhos e dos pais, e teu

irmão sente o peso das palavras do irmão e do Deus. A

felicidade de ambos já não é felicidade, é guerra. Guerra de

almas. Dentro de vós, uma alma deseja a felicidade pura e

simples enquanto outra não quer a infelicidade alheia; mas

outra, ainda, quer abandonar a consciência, outra quer

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esquecimento do que foi ouvido, outra rejeita verdades, e

outra as quer impor.

E o que fazes então, tu que te embriagavas?

Ai, eu bem sei o que fazes...! Acorres nervosamente

ao mesmo botequim na esperança tola de encontrares a ti

próprio outra vez...! Tola, porque cada copo de aguardente

que sorves contém uma lágrima da tua esposa; tola, porque

cada rosto que te cruza o olhar parece ter a mesma expressão

do rosto do teus filhos; tola, porque o botequim já não é mais

o mesmo... Tola, porque tu já não és mais o mesmo. Ouviste

as palavras do teu irmão e não as podes rejeitar ou fingir que

não existem porque foram lançadas ao ar, como os ventos que

movimentam embarcações... E tu és embarcação, e palavras

são ventos... Palavras te impelem a navegar e teu pobre

raciocínio nada pode contra elas, se o quiseres usar como

âncora... Irás a pique.

Não tentes te apegar à tua passada felicidade, nem

queiras obrigar o passado a voltar à tua mente! A

embriaguez alegre já é perdida, o momento se foi, agora não

passa de ilusão! Tu te transformaste, alguma coisa mudou

em ti, não és mais o mesmo, não és mais o que eras nas

antigas noites nos bares! Tu, agora, és apenas um covarde

tentando voltar ao teu patético e pacato passado quando

eras feliz por seres ignorante das desgraças que causavas!

Maldizes a verdade que ouviste irromper da

garganta do teu irmão e o amaldiçoas também, a ele, que te

abriu os olhos, que te iluminou o que tua escuridão ocultava,

que te fez ver o quão errônea era a tua ideia de felicidade e

que te deixou assim, tonto, sem saber realmente o que ela

realmente é. Não, não és mais o mesmo. Não és o mesmo e

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julgas-te infeliz por sabê-lo. Ausência de conhecimento sobre

ti próprio, ausência de rumo a seguir...! Isso te fende e te

deprime...!

És um estúpido com medo da transformação

inevitável.

Mas eu, que caminho por desertos e geleiras, vales e

montanhas, pântanos e florestas, e que do alto dos meus

calcanhares faço vir à tona o coração dos homens, sei que

não sabes o que é a felicidade e nem quais são os teus desejos.

Lembra, já foste feliz, e com a mesma intensidade,

nas brincadeiras de ciranda e nos bailes do colégio, nas

manhãs tranquilas do campo e nas noites efervescentes das

cidades, na casa das prostitutas e na cama da tua esposa; e

amanhã, provavelmente, serás feliz de outra maneira em

qualquer outro lugar, de alguma outra forma... Inclusive na

morte, se esta vier a libertar-te das dores de algum intenso

sofrimento.

A cada minuto da tua vida foste feliz de um modo

diferente e independente dos teus desejos. Vieste a descobrir

a felicidade quando ela já ia longe no tempo. Quando

brincavas de roda vestias as roupas do teu pai sonhando usá-

las algum dia, e hoje tu sonhas com os tempos da tua

infância suspirando de saudades... Por isso não me venhas

com os teus desejos medíocres e tuas lamentações imbecis

sobre felicidade e infelicidade! Nada sabes a esse respeito.

Sentes apenas desejos e achas que teu querer resume-se a eles.

Não sabes o que queres, sabes apenas dos desejos que dizes

ter.

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Mas eu vou fundo no teu coração e sei que és

estúpido o suficiente para creres em felicidades e

infelicidades, e por isso imponho-te: “Encontra-te, antes de

pensares sobre tais coisas!” Tuas pequenas e variadas

felicidades ao longo da existência não passam de degraus,

simples estágios do teu desenvolvimento, meros meios para o

teu encontro contigo mesmo, e fazes enorme besteira ficando

a chorar pela destruição de qualquer uma delas.

Encontra outra.

Passa logo para o próximo degrau.

Tu, que agora passas longo tempo no costumeiro

botequim, tentando ver na embriaguez de hoje a mesma

alegria que viste ontem, afasta-te logo daí e volta para a tua

casa, para a tua esposa e para os teus filhos, pois não és mais

feliz na embriaguez. És agora um covarde tentando

inutilmente te apegares ao que o coração rejeita e o cérebro

quer ressuscitar, estando tu entre um coração e um cérebro

que tentam conciliação. Pretendes o impossível... Restam-te

agora, apenas, uma guerra entre as várias almas que em ti

residem e uma dúvida que te foi colocada na cabeça pelo teu

irmão. Tua felicidade não existe mais, não como a

vislumbravas através dos teus pobres desejos. Sobe mais um

degrau e descobrirás a felicidade do lar, da esposa e dos

filhos. Essa será também destruída algum dia, por um filho

canalha ou por uma esposa infiel. Mas continua subindo. De

degrau em degrau descobrir-te-ás a ti mesmo e só então

saberás da tua verdadeira felicidade, porque saberás o que

realmente queres, deixando de lado desejos que são vãos.

Cresce.

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Passa logo para o próximo degrau.

Repara, tu nem sabias que eras feliz brincando de

ciranda enquanto sonhavas ser adulto, e hoje tu suspiras,

nostálgico, saudoso da criança feliz que foste outrora...

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II

Atravessei o pequeno istmo que faz fronteira com o

reino do norte, o qual, dizia-se, era muito avançado e cujos

progresso e riqueza a todos maravilhavam. Fui ter com o

dono da propriedade imediatamente seguinte a fim de pedir-

lhe autorização para montar meu acampamento em suas

terras.

― De onde vens? ― perguntou-me ele.

― De todos os lugares e de lugar nenhum.

― De que nação tu és?

― Todas. Sou viajante.

― Ah! Tu és membro da Ordem dos Viajantes!

― Não, não sou.

― Qual é tua religião?

― Não tenho nenhuma.

― Tu exerces, então, o mesmo ofício que eu e,

portanto, pertences também à minha corporação...!

― Não sei qual é o teu ofício, e nem faço parte de

corporação alguma.

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― Como queres, então, fazer teu acampamento em

minhas terras? Não pertences a ordem alguma que possa pelo

menos indicar-me o que pensas e em que acreditas; não vives

num só lugar, não sei de que nação ou reino vieste, pareces

não ter nada em comum comigo, nem fé e nem ofício, e ainda

queres autorização para acampar em minha propriedade?

Como posso confiar a ti um pedaço de minhas terras se não

sei quais as leis que te governam?

Calei-me paciente enquanto o ouvia e a introspecção

guiou-me pelos caminhos do meu próprio pensamento...

Ó, estúpido...! Tua ignorância transborda para além

dos limites do teu corpo!

Julgas poder confiar em alguém pelo simples fato de

ser esse alguém membro de alguma organização invisível? Tu

não confias no homem e quer confiar em algo que é fruto

dele?

Ah, eu sei o que pensas saber...!

Já vi homens caminharem lado a lado, ao mesmo

ritmo dos passos, cabisbaixos e sem trocar palavras...

Subitamente, um vê no outro um sinal, ou um gesto, ou um

olhar, ou um símbolo qualquer que o identifica como

pertencendo a uma mesma instituição, ou a uma mesma

nação, ou a uma mesma corporação, ou a uma mesma seita,

ou a uma mesma ordem... E de pronto a situação se altera!

Começam a tagarelar como se fossem velhos amigos, na

crença de que algo os une! Ambos são judeus, ou são

ferreiros, ou são cristãos, ou são doutores, ou são

divorciados, ou são pais, e acham que isso os aproxima um do

outro! Se não vislumbrassem o sinal, o gesto, o olhar ou o

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símbolo continuariam ambos em suas respectivas passadas

solitárias, cabisbaixos e sem trocar palavra... E nunca

descobririam um no outro o amigo, o camarada, o

companheiro de percurso!

Tolo é o que és, se acreditas nessas coisas! Queres

encontrar nas organizações a unidade dos homens quando

deverias, antes, encontrar a unidade no homem. Vês apenas

uma de suas almas, a que ele diz ser a sua unidade, que ele

diz ser a imagem de si, de suas leis, de suas crenças, de seus

valores, de seus objetivos, de seus desejos...!

Mas ainda far-te-ei entender que são apenas desejos

o que chamas de vontade...

Queres que o ferreiro se una ao ferreiro, que o cristão

se associe ao cristão, que os divorciados se agreguem e que os

pais se reúnam!

Esqueces que o ferreiro pode ser também o cristão, o

pai e o divorciado, e não é dividindo as várias almas de um

homem e ajuntando-as em grupos de outras almas de outros

homens que alcançarás a unidade do homem. Chega o dia em

que o ferreiro conflita com o cristão, que por sua vez conflita

com o pai, que discorda do divorciado que discorda do

ferreiro...

E eis o que restará do homem, então: fragmentos,

cacos desordenados originários de uma guerra entre almas,

um espólio de humanidade.

Podes dizer que os desejos do ferreiro são

incompatíveis com os desejos do cristão, que são divergentes

dos do pai que são inconciliáveis com os do divorciado; podes

dizer ser necessário que o ferreiro se una ao ferreiro, que o

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cristão se una ao cristão, que o pai se una ao pai e que o

divorciado se una ao divorciado, para que o ferreiro lute pelo

ferreiro, que o cristão lute pelo cristão e que o pai lute pelo

pai, se quiserem subsistir e prosperar.

E eu te direi: ótimo para ti! Minhas congratulações!

Unes boa parte dos homens, que é o que querias! Tens agora

todos os homens agrupados e organizados segundo as tuas

pobres convicções! Alcançaste o teu objetivo! A humanidade

está unida! Os homens estão unidos!

Mas o homem não está.

O homem se encontra na mais completa desunião,

fragmentado, disposto aos pedaços. Não sabe o que é, não se

encontra, não tem lugar em si, pois insistes em que ele se

divida, pondo cada face sua num determinado lugar, lugar

esse que te parece o mais adequado. E é por isso que amas a

humanidade mas não consegues amar os homens; tuas

organizações, tuas ordens e tuas corporações são falhas

porque captam apenas partes de um homem.

E o homem ou é inteiro ou não é nada!

Se hoje crias organizações para os ferreiros, os

cristãos e os pais é porque teu raciocínio, teu pobre

raciocínio, não pode enxergar além de coerências e

incoerências.

É certo, os desejos do homem são incoerentes. O

ferreiro deseja o trabalho, o pai deseja o filho, o divorciado

deseja a solteirice e o cristão deseja o messias. E eu sou

forçado a concordar contigo quando dizes ser incoerência o

ferreiro desejar o messias, o cristão desejar a forja e o ferreiro

desejar a solteirice.