o videoclipe como extensão da canção

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    O videoclipe como extenso dacano: apontamentos para

    anliseJeder Janotti Jnior Thiago Soares

    Resumo: O presente artigo empreende um desdobramento da metodologia de anlise miditica da cano em direoao videoclipe. Tomamos como ponto de partida a verificao dos vnculos existentes entre cano e clipe,discutindo, atravs de conceitos da Semitica e dos Estudos Culturais, as noes de percurso, refro e dicoda cano no terreno da imagem no videoclipe. Os conceitos de gneros musicais ajudam a debater esse

    audiovisual para alm de uma anlise textual, compreendendo suas dinmicas de consumo. Atravs da noode performanceda cano popular massiva, discutimos conceitos que nos ajudam a empreender algumascategorias que podem se configurar numa futura metodologia de anlise miditica de videoclipes.

    Palavras-chave: videoclipe; cano; gneros musicais; performance

    Abstract: The videoclip as an extension of music: Points for analysis This article scrutinizes the mediatic analysismethodology of the shift of popular songs towards the videoclip. Our starting point is an analysis of the bondslinking music to videoclips, discussing the ideas of passage, chorus and diction of the song in the field ofvideoclip imagery based on concepts of Semiotics and on Cultural Studies. The concepts of musical genresunderpin our debate on this audiovisual instrument, extending it beyond a textual analysis to understand itsdynamics of consumption. Through the idea of the performance of mass pop music, we discuss concepts thathelp us outline categories that can be applied in a future methodology of mediatic videoclip analysis.

    Keywords: videoclip; pop music; musical genres; performance

    Ao localizar a discusso do videoclipe nos estudos da msica pop1, uma questo parece premente:

    de que forma som e imagem perpassam os encontros e tenses que

    Apesar do uso recorrente do termo Msica Popular Massiva, como no livro Comunicao e Msica Popular Massiva, dosorganizadores Jeder Janotti Jnior e Joo Freire Filho, adota-se o termo msica pop para se referirs expresses musicais produzidas e consumidas a partir da configurao das indstrias fonogrficas ao longo dosculo XX. O termo msica pop d relevo problemtica dos gneros musicais forjados a partir do rocke que possuem estreitarelao com certas produes audiovisuais presentes no universo da cultura jovem.

    92

    Revista Galxia, n. 15, p. 91-108, jun. 2008.

    envolvem cano e videoclipe? A indagao pode parecer um tanto quanto banal, uma vez que

    bastante evidente que videoclipe e cano so participantes de um sistema de produo que integra

    itinerrios semelhantes. Uma investigao mais detalhada sobre essas duas instncias e mais, sobre a

    relao estabelecida entre esses dois produtos da cultura miditica , no entanto, pode resultar na

    revelao de nuances que ajudem a mapear evidncias nos percursos que liguem cano e clipe. Tal

    percurso pode proporcionar, portanto, a visualizao de uma metodologia de anlise do videoclipe que se

    baseie em conceitos e aportes oriundos da msica pop(e a materializao da cano),

    aliados s especificidades televisivas e cinematogrficas do videoclipe. Assim, acredita-se

    que, ao abordar o videoclipe como produto miditico, deve-se levar em considerao suas dimenses

    sonora e musical, tanto em seus aspectos plsticos quanto em relao sua insero nas indstrias

    culturais do audiovisual. Nesse sentido, este artigo procura assinalar os elementos que caracterizam aelaborao de uma metodologia de inspirao semitica articulada aos estudos culturais em suas

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    aplicaes s manifestaes musicais, direcionada anlise e interpretao dos aspectos miditicos do

    videoclipe como uma forma de expresso da msica pop. Desde j torna-se necessrio esclarecer que a

    idia de msica pop est ligada s expresses musicais surgidas no sculo XX e que se valeram do

    aparato miditico contemporneo, ou seja, tcnicas de produo, armazenamento e circulao tanto em

    suas condies de produo quanto em suas condies de reconhecimento. Na verdade, em termos miditicos, pode-se relacionar a configurao da msicapopao desenvolvimento dos aparelhos de reproduo e gravao musical, o que envolve

    as lgicas mercadolgicas da indstria fonogrfica, os suportes de circulao das canes

    e os diferentes modos de execuo, audio e circulaes audiovisuais relacionados a essa estrutura.

    Sabe-se, por exemplo, que o aumento do consumo da msica por uma parcela da populao que no

    possui conhecimento da notao musical est diretamente ligado ao aparecimento dos primeiros

    aparelhos de reproduo sonora: o gramofone, o fongrafo, o rdio e o toca-discos, e que, por outro lado,

    a popularizao de expresses musicais, como o rock a partir da dcada de 50, est ligada no s

    indstria fonogrfica como tambm televiso e ao cinema. preciso reconhecer, ento, que a

    expresso msica poprefere-se, em geral, a um repertrio compartilhado 2 mundialmente e intima-mente

    ligado produo, circulao e ao consumo da msica conectados indstria

    fonogrfica. Esse adendo permite a compreenso de que, apesar de popular, a msica,pelo menos em sentido estrito, passa pelas condies de produo e reconhecimento

    inscritas nas indstrias culturais. Inserir o videoclipe nesta discusso entender que o

    percurso histrico desse audiovisual acompanha os desdobramentos dos aparatos

    tcnicos da msica pop, estando,

    2 Essa idia devedora dos comentrios e sugestes apresentados pela Professora Silvia Borelli no XVIII Congresso Brasileiro deCincias da Comunicao.

    portanto, sujeito s variaes que a histria desses suportes abarca. No se pode esquecer tambm de

    que historicizar determinado produto miditico identificar condies de reconhecimento e o entorno no

    qual ele mapeia as suas trajetrias de circulao. Produo, armazenamento e circulao na dinmica do

    videoclipe obedecem a um itinerrio que leva em considerao preceitos oriundos das lgicas dos

    sistemas produtivos da msica popem suas condies tanto de produo quanto de reconhecimento.

    Investigar a dinmica do videoclipe nessas circunstncias , portanto, no reduzir, exclusivamente, o

    estudo a uma cartilha de preceitos de ordem imagtica (embora saibamos do papel fundamental da

    decupagem e da identificao dos elementos imagticos desse audiovisual), mas levar em considerao

    que as configuraes presentes no mbito desse audiovisual so resultantes tambm de uma dinmica

    que envolve o encontro entre os elementos musicais e imagticos. Para que possamos empreender a

    dimenso do videoclipe na comunicao e na cultura contemporneas, precisamos mapear entornos e

    trajetos que so fundamentais na constituio do videoclipe. Tentaremos mostrar de que forma o

    videoclipe se configura numa extenso da cano, entendendo que no jogo de foras da produo do

    clipe so levadas em considerao noes de pertencimento a determinados gneros musicais e as

    narrativas imagticas particulares presentes nos videoclipes. Definiremos o que venha a ser a cano pop

    para, em seguida, identificarmos de que forma os artefatos visuais presentes nos videoclipes vo sendo

    incorporados s noes de gneros musicais e s performancesj previamente inscritas nas canes.

    Cano e videoclipe: percursos

    A noo de cano est ligada aos encontros entre a cultura popular e os artefatos miditicos.

    Inicialmente, a cano se refere capacidade humana de transformar uma srie de contedos culturais

    em peas que configuram letra e melodia. O trajeto histrico da cano popular at a sua configurao de

    massa perpassa, portanto, a execuo ao vivo para, em seguida, estar submetida s diversas formas de

    mediaes tcnicas. Segundo o pesquisador da cano brasileira Luiz Tatit (2004), o surgimento do

    primeiro gnero da cano popular brasileira, o samba, est diretamente relacionado ao aparecimento dogramofone, j que foram as primeiras gravaes que colocaram a necessidade de repetio da letra, de

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    uma estruturao precisa da msica e o reconhecimento da importncia de autores e/ou intrpretes

    dessas peas musicais. Um aspecto que merece destaque em relao configurao da cano a

    regularidade rtmica e meldica que privilegiava os refres e os temas recorrentes. O refro pode ser

    definido como um modelo meldico de fcil assimilao que tem como objetivos principais sua

    memorizao por parte do ouvinte e a participao (cantar junto) do receptor no ato de audio. Ele

    uma frase94

    Revista Galxia, n. 15, p. 91-108, jun. 2008.

    musical que se repete ao longo da cano, servindo de baliza para os outros elementos da msica de

    massa (as estrofes, as pontes e os solos), podendo valorizar tanto o ritmo quanto a rima e os aspectos

    semnticos da letra.

    Ao considerarmos que a cano detentora de um percurso, de uma trajetria, e que

    o refro esse ponto de referncia nesse it inerrio, cabe questionar como esse elemento

    plstico da cano configurado no percurso visual no videoclipe pode ser apreendido.

    John Mundy (1999) j havia pensado essa relao, uma vez que a cano produzidaantes de o vdeo ser concebido e o diretor normalmente cria imagens tendo a cano

    como guia. Alm disso, o videoclipe vende a cano. E ele , tambm, responsvel por a cano estar

    nos olhos dos artistas, da gravadora e do pblico. A noo de percurso do clipe sobre a cano pode se

    dar de inmeras formas. Para o autor, os videoclipes

    freqentemente refletem a estrutura da cano e se apropriam de certos artefatos musicais no domnio da melodia,

    ritmo e timbre. A imagem pode at parecer imitar as batidas e

    fruies do som, indeterminando, com isso, as fronteiras entre som e imagem. Video-makers tm

    desenvolvido uma srie de prticas para colocar a imagem na msica na qual a imagem adquire um status

    de autonomia e abandona certos modos de representao

    mais direta da cano. Em troca, a imagem ganha em flexibilidade e desenvoltura, assim como na

    polivalncia de significados. Muitos dos significados do videoclipe recaem nestedar-e-pegar entre som e imagem e nas relaes entre seus vrios modos de continuidade. (MUNDY, 1999,

    p. 21)

    No cabe tentar estabelecer relaes fechadas na identificao do percurso que

    a cano evoca e que o videoclipe pode percorrer. Como atesta Mundy, a relao que se estabelece

    entre cano e clipe angariada no dar-e-pegar entre som e imagem. Segundo Michel Chion (1994), a

    msica agregaria valor imagem, mas pode-se pensar que, dependo do caso, tanto a imagem como a

    cano podem agregar valor ao produto

    final, essa hierarquia ir variar de acordo com as especificidades de cada videoclipe. Ou seja, possvel

    que algumas canes tragam em sua sonoridade e na articulao vocal

    do intrprete, por exemplo, uma dico3

    conectada a determinados traos imagticos.Segundo Tatit (1997, 1999, 2001, 2004), pode-se, a princpio, estruturar as diferentes

    formataes da cano popular brasileira, em trs dices diferenciadas: 1) a tematizao,

    caracterizada por uma regularidade rtmica centrada nas estruturas dos refres e de temas

    recorrentes, como as canes da Jovem Guarda e a msica ax; 2) a passionalizao, caracterizada por

    uma ampliao meldica centrada na extenso das notas musicais,

    exemplificada pelo samba-cano, sertanejo e baladas em geral e 3) figurativizao,

    3 O conceito de dico da cano formulado pelo semioticista Luiz Tatit (2004), que considera como dico

    o encontro entre letra e melodia na cano brasileira. Ele aqui estendido cano popem sentido amplo.

    A dico caracteriza tanto canes especficas quanto traos estilsticos dos diversos gneros musicais presentes

    na msica popular massiva.

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    em que h uma valorizao na entoao lingstica da cano, valorizando os aspectos

    da fala presentes nessas peas musicais, tal como acontece no rape no samba de breque.

    Naturalmente, a configurao das canes no se esgota em um desses modelos. Na

    verdade, boa parte da produo musical de massa, que possui uma potica diferenciada, como as

    composies de Tom Jobim ou dos Beatles, se caracteriza pela variao dessas dices em uma mesma

    cano.Pode-se observar que hoje a dico da cano pop est diretamente associada a uma cadeia

    miditica em que os aspectos comerciais so mais bem evidenciados, cujo ponto de partida o esforo

    para atingir o maior nmero possvel de ouvintes. Tal esforo se configura numa mxima da prpria

    indstria fonogrfica que pressupe a gerao de produtos que sigam essa regra. No percurso da cano

    ao videoclipe, o reforo dos aspectos comerciais capitaneado por uma tentativa de legitimar uma

    imagtica o mais universal possvel no audiovisual, gerando nos videoclipes produzidos no centro da

    indstria fonogrfica um padro que vai estar presente, por exemplo, em vdeos que tenham seus

    artistas-protagonistas pertencentes a gneros musicais distintos, como o hip hop, o heavy metal ou o

    rock. Esse padro a que nos referimos integra uma mxima presente nas instncias produtivas da

    indstria fonogrfica que visa criar um circuito cada vez mais transnacional de circulao do videoclipe.

    Integram esse padro comercial dos videoclipes, por exemplo, a escolha de certos suportes em geral,de carter flmico , bem como a opo pela saturao cromtica, por determinadas apresentaes

    performticas nos clipes que obedeam a uma linhagem composta para no gerar atrito no espectador e

    que pressuponha um dilogo e uma construo dos aparatos de imagem articulados a horizontes de

    expectativas presentes nos gneros musicais.

    O videoclipe permite a visualizao de um cenrio em que a dico da cano se desenvolve.

    Pode-se perceber, ento, que parte das canes que circulam na paisa-gem miditica contempornea j

    fornece visualidades articuladas a determinados traos estilsticos. No jogo de dar-e-pegar a que John

    Mundy se refere, no entanto, bastante comum que o videoclipe pegue da imagem uma dico para a

    cano que sintetiza. Ou seja, possvel perceber que determinadas canes as quais no trazem uma

    dico evidenciadora, por exemplo, das imagens que podem lhes reverter, tm a sua dico sugerida pela

    imagem. Exemplos para essa relao so bastante comuns: canes inscritas em gneros musicais quetrazem uma dico marcada, como o heavy metal ou o hip hop engajado, tm seus videoclipes

    dificilmente distanciados, ora da iconografia masculina, satnica e marcadamente noturna (nos clipes do

    heavy metal), ora do universo das ruas, dos subrbios, do grafite (no caso do hip hop). J o que se

    convencionou chamar de bubblegum music4, por no trazer canes com evidenciadora dico aliada a

    um cen4A bubblegum music caracterizada pela reunio de inmeros artefatos expressivos do campo da msica pop

    que evidenciam a figura do produtor em detrimento da do prprio artista. A bubblegum musicassume-se como

    msica de massa e insere, nos seus produtos, dispositivos plsticos que reforam isso.

    rio especfico, se utiliza, na concepo de seus videoclipes, de imagens que no trazem

    possibilidades de encontros entre as sonoridades evocadas na prpria cano. A imagem, em geral,

    criada para esse tipo de videoclipe, gera um cenrio em que a dico da cano se desenvolve, portanto,

    na observao das relaes de percurso entre a cano e o videoclipe, fundamental observar como se

    do essas implicaes de troca entre som e imagem, ou seja, interrogar: em que medida se d essa

    troca, articulada, por exemplo, a que valores implcitos nos prprios sistemas de circulao da msica

    pop?

    possvel falar em refro visual no videoclipe?

    H inmeros fatores que podem aproximar ou distanciar as estruturas sonora e visual no trajeto da

    cano e do clipe. Sabe-se, por exemplo, que, dependendo do gnero musical em que uma determinadacano est inserida, possvel vislumbrar uma nfase, por exemplo, no refro ou uma fuga e tentativa

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    de subverso dessa mxima. Os gneros seriam, ento, modos de mediao entre as estratgias

    produtivas e o sistema de recepo, entre os modelos e os usos que os receptores fazem desses

    modelos atravs das estratgias de leitura dos produtos miditicos. Antes de ser um elemento imanente

    aos aspectos estritos da msica, o gnero estaria presente no texto atravs de suas condies de

    produo e reconhecimento: Momentos de uma negociao, os gneros no so abordveis em termos

    de semntica ou sintaxe: exigem a construo de uma pragmtica, que pode dar conta de como operaseu reconhecimento numa comunidade cultural (MARTIN-BARBERO, 1997, p. 302).

    O refro, um dos principais elementos constitutivos da cano pope gancho narrativo para uma boa

    parte dos videoclipes, tem como propriedade marcar o momento em que a cano convoca o ouvinte a

    um cantar junto de maneira mais evidente. Trata-se da marcao sonora mais premente e responsvel

    pelo momento em que o texto sonoro se dirige com mais veemncia ao seu destinatrio. Nas

    aproximaes entre cano e videoclipe, cabe questionar de que forma o refro, como ponto de

    referncia da cano, pode aparecer visualizado no videoclipe. Essa indagao nos leva a examinar os

    dois

    objetos. No momento do refro de uma determinada cano, possvel que se dem

    inmeras aes no mbito do clipe que marquem aquela passagem: o olhar do cantor

    para a cmera, o clmax dramtico de uma seqncia narrativa, a apario propriamentedo grupo tocando, entre outras, entretanto mais comum que o videoclipe no respeite as normas de

    refro impostas pela cano e crie o seu prprio momento de convocao do espectador, imponha o seu

    prprio ditame narrativo e se projete para seu destinatrio obedecendo s suas prprias regras. Dessa

    forma, podemos inferir que o videoclipe, inmeras vezes, foge da imposio do refro da cano e cria o

    que chamamos de refro visual, ou seja, um momento em que se demarca de maneira mais evidente a

    necessiRevista Galxia, n. 15, p. 91-108, jun. 2008.

    dade de pertencimento do clipe ao espectador. O refro visual no clipe est articulado convocao de

    um estar junto (um desdobramento do cantar junto da cano), traduzindo tal efeito em marcaes

    visuais que acentuam o estreitamento e a projeo da imagtica do clipe em direo a seu espectador.

    Assim, o refro visual, em geral, est determinado por uma procura retrica da imagem em pertencer ao

    espectador, em estar em consonncia com as satisfaes desse espectador no mbito da msica pop.

    preciso relativizar essa mxima em dois aspectos: primeiro, que h gneros musicais que

    tensionam a noo de cano (e, conseqentemente, de refro), da ser perceptvel que,

    nesses gneros musicais (por exemplo, a msica eletrnica5 um deles), tambm se tem

    diludo o conceito de um refro visual nos videoclipes; segundo, que, obedecendo a

    critrios de ordem dos valores inscritos nos produtos em circulao da msica pop, h clipes que

    propositalmente negam essa estruturao.

    Sobre a dico comercial da cano e sua extenso ao videoclipe

    A imagem do artista que o clipe sintetiza articulada a uma proposta de construo de um discurso

    imagtico galgado nos preceitos universais e que leve em considerao variveis dessa construo tanto

    articulada aos gneros musicais que as canes ou os artistas sintetizam quanto as narrativas

    particulares dos protagonistas dos videoclipes. A cano poppressupe, portanto, uma interao tensiva

    entre a criao e sua configurao como produto miditico. Assim, a msica de massa, em seus diversos

    formatos, tambm valoriza no s a execuo mas tambm as tcnicas de gravao/reproduo, levando

    em conta os timbres eletrnicos ou acsticos, salincia de sons graves ou agudos, a reverberao e a

    sensao de extenso sonora. possvel pensar, portanto, que, da configurao do som imagem, as

    categorias elencadas como oriundas dos registros da cano poppodem se manifestar imageticamente:

    ou seja, timbres eletrnicos ou acsticos pressupem uma cenrio visualizado no ato da audio; asalincia de sons graves ou agudos, como j apontaram trabalhos que dialogavam com a noo de

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    sinestesia no terreno do audiovisual (BASBAUM, 2002; MACHADO, 1988, 2001, 2003), pressupe a

    visualizao de aportes imagticos que sejam mais abertos (agudos) ou fechados (graves), podendo

    essa configurao se apresentar atravs de cores, formas ou cenrios, ou de tratamentos imagem que

    levem em considerao tais aspectos plsticos; e a sensao de extenso sonora pode se apresentar a

    partir de recursos presentes tanto na imagem quanto na edio que imposta a essa imagem. Segundo

    Helosa Valente, o som [] controlvel por

    5 Gnero musical que, de maneira geral, abole o vocal e estabelece um parmetro de msica que est mais prximo de algo cclico, feitopara a pista de dana. No esteio da msica pop, por exemplo, a eletrnica j encontra artistas que se valem do formato cano emseus lbuns, como Chemical Brothers, Soulwax, Fischerspooner, entre outros.

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    parmetros estticos, pode ser delimitado pelo ndice de reverberao, controle de canais,

    fazendo-se sobressair um ou outro, de acordo com a conveno esttica de gnero ou do artista em

    particular (VALENTE, 2003, p. 101). Aspectos ligados circulao da cano popvia cinema, rdio, TV,

    computador etc. apiam-se em modelos de divulgao em que as divises entre gneros musicaistendem a ser embotadas.

    Videoclipe e gneros musicais: mercados

    No incomum encontrarmos nos artigos e apresentaes que envolvem a anlise e

    compreenso da cultura miditica afirmaes a respeito dos hibridismos, das interfaces e

    at da imaterialidade dos suportes comunicacionais na cultura contempornea. Diante desse cenrio,

    parece at retrgrado falar em gneros musicais. Mas uma rpida olhada sobre a circulao de produtos

    comunicacionais, seja na internet6, nas lojas especializadas

    ou na crtica musical, permite ao observador atento perceber que o excesso informacional tambmpressupe segmentao e que muitas vezes, at para filtrar esse excesso, tanto

    o campo da produo como o da circulao e reconhecimento desses produtos se vale

    de rtulos extremamente codificados.

    Assim, preciso reconhecer que boa parte daquilo que consumido como rock ou MPB, por

    exemplo, pressupe valoraes que nem sempre esto ligadas diretamente aos aspectos estritamente

    musicais de uma determinada cano. Intrpretes como Raul Seixas e Cssia Eller so rotulados como

    roqueiros, mesmo que, em determinadas canes, se aproximem do universo musical da MPB. Assim,

    pode-se notar que a rotulao um

    importante modo de definir as estratgias de endereamento de certas canes em termos tanto

    mercadolgicos quanto textuais. O gnero musical definido, ento, por elementos

    textuais, sociolgicos e ideolgicos, uma espiral que vai dos aspectos ligados ao campo da produo sestratgias de leitura inscritas nos produtos miditicos. Na rotulao, est presente um certo modo de

    partilhar a experincia e o conhecimento musical, ou seja, dependendo do gnero, elementos sonoros

    como distoro, altura e intensidade da voz, papel das letras, autoria e interpretao, harmonia, modo,

    melodia e ritmo ganham contornos e importncias diferenciadas.

    6 A lgica dos gneros musicais perpassa no s os ambientes fsicos lojas, prateleiras, ambientes de sociabilidade , mas tambm os lugares virtuais. Dirigindo-se a certos programas destinados a baixar (realizar

    downloads) msica na internet, salta vista que os nomes das canes so acompanhados por catalogaes

    que localizam os gneros a que essas mesmas canes pertencem. Dessa forma, possvel baixar, por

    exemplo, canes de hip hop, de rock, de heavy metalou do que se convencionou chamar de pop, procurando pelo gnero em que a cano est classificada segundo os usurios dos programas. Em rdios virtuais, os gneros musicaistambm se fazem presentes atravs de canais especficos: possvel ouvir, por exemplo,uma programao organizada nesses canais somente de msica sertaneja, de rockou de MPB. Dessa forma,

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    podemos verificar que a noo de gnero musical ultrapassa as barreiras do que seria intrnseco obra e passa a operacionalizar asua existncia e sua ordem classificatria na dinmica social.

    Pensar o videoclipe no mbito do gnero musical perceber que a produo de clipes est inserida

    numa dinmica que leva em considerao horizontes de expectativas gerados a partir de determinadas

    regras de gneros musicais; que a imagtica de um videoclipe articula plos de produo de sentido que

    atravessam tanto as cenografias dos gneros musicais quanto as narrativas especficas dos artistas da

    msica pop e que o clipe articula uma composio msico-imagtica que se projeta em direo aopblico, levando em considerao valores articulados aos gneros musicais sintetizados na obra

    audiovisual. Numa leitura imagtica do gnero musical, podemos, por exemplo, nos utilizar da observao

    de capas de lbuns, encartes, cartazes e flyersde showse eventos. O apelo a certas leituras e a projeo

    de uma imagtica que seduza o f vo sendo pontuais no reconhecimento imagtico de um gnero

    musical. Os ambientes futuristas presentes em flyers de festas de msica eletrnica, o design de

    elementos retr nos eventos saudosistas de dcadas como 70 ou 80, e a visualizao de elementos

    satnicos nos cartazes sobre eventos de heavy metalvo construindo uma imagtica associativa que, na

    maioria das vezes, vai habitar lbuns, cartazes e todo o aparato de divulgao do artista, incluindo o

    videoclipe.

    Essa visualizao d indcios da construo dos cenrios onde acontecem os eventos ligados aos

    gneros musicais, de modo que possvel, por exemplo, apontar elos entre garagens, pores, ambientesescuros e de pouca iluminao com algumas matrizes da cultura do rocke do heavy metal; o grafite, o

    muro, o asfalto, com certas matrizes do hip hop mais engajado; ou o universo das luzes coloridas,

    estroboscpicas, os sintetizadores, as mesas de discotecagem como ligados a uma imagtica da msica

    eletrnica. Essas imagens associadas vo permitindo um direcionamento e condicionando determinadas

    leituras que reconheam os gneros musicais associados a um artista.

    sintomtico, portanto, que, nas instncias produtivas de videoclipes, as decises sobre as

    estratgias de insero de um produto se dem, fundamentalmente, sob regras genricas, o que envolve

    perceber o cruzamento de mercados e de interesses socioeconmicos: que itinerrio um lbum ou um

    artista segue, onde se posicionar um novo produto lanado. Tendo cincia de que o clipe est, assim

    como os produtos articulados msica popular massiva, disposto e ocupando uma espacialidade

    comercial, chegamos a uma problemtica: quais as linhas que demarcam a validade de um videoclipe emsuas especificidades, se parte de seu reconhecimento efetivada por elementos externos sua

    visualizao particular? A complexidade dessa questo no pode ser exaurida neste artigo, no entanto

    nosso intuito apontar balizas para que possamos empreender de que forma um gnero musical se

    visualiza atravs do videoclipe e como se estabelecem as conexes de confirmao ou negao de um

    gnero musical como estratgia de produo de sentido articulada tanto ao horizonte de expectativas do

    prprio gnero quanto da narrativa particular de um artista da msica pop.

    100

    Revista Galxia, n. 15, p. 91-108, jun. 2008.

    Sobre as regras dos gneros musicais nos videoclipes

    Os gneros musicais envolvem, ento: regras econmicas (direcionamento e apropriaes culturais),

    regras semiticas (estratgias de produo de sentido inscritas nos produtos musicais) e regras tcnicas

    e formais (que envolvem a produo e a recepo musical em sentido estrito). As regras econmicas de

    gneros musicais podem ser visualizadas nos videoclipes a partir de uma identificao dos itinerrios presentes em cada um dos produtos.

    Questionar quais as instncias produtoras e as condies de elaborao dos videoclipes

    so indcios e condicionantes de como determinados elementos formais se apresentam

    no esteio do audiovisual, podendo relacionar-se a formataes de gneros musicais que

    estejam no centro ou margem das cadeias produtivas das indstrias fonogrficas. As regras

    econmicas de gneros podem determinar no videoclipe o uso de suportes flmicos ou videogrficos, avisualidade de elementos condicionantes de ordem artstica (direo de arte, decorao de set, uso de

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    8/14

    aparatos de direo de fotografia, figurino, maquiagem) e as estratgias de ps-produo (interferncias

    grficas, uso de filtros e elementos plsticos, entre outros), dependendo da localizao do clipe na cadeia

    produtiva da indstria

    fonogrfica7. H convergncias na identificao dos suportes ocupados pelos videoclipes,

    alm dos percursos e espacialidades dos trnsitos da divulgao que um determinado clipe empreende.

    As cadeias de divulgao de entretenimento (via canais como MTV,VH1 ou redes de TV a cabo) determinam aproximaes com a indstria fonogrfica, as

    chamadas gravadoras, sejam elas majors8 ou consideradas de aura mais independente 9, e as exposies

    de clipes, por exemplo, em festivais e eventos comerciais ligados, sobretudo, a marcas publicitrias da

    cultura jovem. Perceber, portanto, por onde o videoclipe transita, sobre que suportes ele se projeta

    comercialmente e como os gneros musicais

    7 A produo de videoclipes fora dos conglomerados de entretenimento tambm levada em consideraonesta abordagem. So inmeras as experincias de grupos que, no tendo lanado um lbum fonogrfico, jpossuem videoclipes das faixas dispostas, muitas vezes, em EPs (CDs de divulgao, sobretudo, em rdios, e que possuem poucascanes) e em sites. Os videoclipes produzidos nessas condies demandam, freqentemente, o entendimento de regraseconmicas restritivas que reverberam na prpria estrutura do audiovisual. Mais recentemente, numa comparao irnica aos

    remdios chamados genricos, o vocalista do grupo pernambucano Mundo Livre S/A, Fred Zero Quatro, em entrevista aodocumentrio Vamos Fazer Um Clipe? (2004), chamou os videoclipes feitos fora dos esquemas das grandes gravadoras comoclipes genricos,ou seja, aqueles que no so oficiais.

    8 As gravadoras chamadas majorsou grandes gravadoras so aquelas que, segundo Roy Shuker, alcanam maisde 90% do mercado fonogrfico de um pas. Discute-se muito sobre as implicaes econmicas e culturais desse controle demercado, principalmente sobre a resistncia das indstrias fonogrficas locais globalizao das indstrias culturais (SHUKER,1999, p. 151). Podemos identificar como majorsgravadoras como Warner, Sony/BMG, Universal etc.

    9 Jeder Janotti Jnior analisa, por exemplo, a Natasha Records como uma gravadora nesses moldes. Segundo oautor, apesar de possuir uma boa cadeia de distribuio e de ser relativamente acessvel nos grandes centrosbrasileiros, os produtos da gravadora possuem uma aura de independncia, uma vez que ela no considerada uma grandegravadora e portanto no estaria atrelada somente aos ditames da lgica empresarial que moveparte da indstria fonogrfica (JANOTTI JNIOR, 2005, p. 6).

    esto inseridos nessa dinmica so atividades de percepo e identificao das regras

    econmicas atreladas ao videoclipe.

    As regras semiticas de gneros musicais so visualizadas nos videoclipes atravs de estratgias de

    produo de sentido e expresses comunicacionais do texto musical, na medida em que, por meio da

    investigao de elementos componentes da cano da qual

    o videoclipe se origina, possvel perceber certos juzos de valor em relao a noes

    de autenticidade e cooptao na msica pop. A composio imagtica da cano pode tensionar essas

    noes de algo autntico ou cooptado, principalmente porque aparatos de negao, sobretudo da

    visualidade da cooptao, so freqentemente empregados. A escolha de diretores, por exemplo, do

    universo da videoarte ou das experincias estticas ligadas cultura undergroundpor artistas da msica

    pop, muitas vezes, explicita a tentativa de legitimao da musicalidade valorativamente julgada como

    cooptada com uma aura imagtica autntica. Os sentidos de autenticidade e cooptao no trnsito

    entre a cano e o videoclipe acabam entrando num jogo cujas variveis perpassam as condies de

    reconhecimento da obra, estratgias mercadolgicas e a prpria narrativa particular do artista pop. Os

    tensionamentos das regras semiticas articuladas ao videoclipe podem ser visualizados atravs dos

    modos com os quais clipes se referem a outros videoclipes, formando uma cadeia de sentido em que o

    gnero musical atravessa certas apreenses visuais, temticas e de letras das canes. Estamos nos

    referindo ao videoclipe como uma instncia de um conjunto de regras que pressupem um cenrio de

    enunciao

    de um gnero musical, identificando, tambm, como diferentes gneros operam questes

    ligadas a um determinado modo de enunciao. As regras tcnicas e formais de gneros musicais podem

    ser visualizadas nos videoclipes atravs de convenes e habilidades musicais especficas de cada regra genrica

    e de que forma essa referncia se apresenta no mbito do audiovisual. Ou seja, como o andamento da

    cano e o ritmo trazem uma srie de implicaes ao clipe, que podem ser de ordem tcnica

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    propriamente dita (atravs de recursos de edio ou de movimentao de cmeras que sugiram ritmo no

    quadro televisual, efeitos de ps-produo que geram uma noo de continuidade ou ruptura nos

    quadros, entre outros aspectos) ou de ordem dramtica (atravs da nfase de determinadas aes por

    meio de cdigos narrativos

    especficos ou do percurso de narrao de uma histria relatada no videoclipe atravs de uma referncia

    rtmica), percebe-se, com isso, como a voz se materializa na imagem videoclptica e de que forma pode-se fazer inferncias acerca das relaes entre voz e

    gneros naturais (masculino e feminino) em balizas articulatrias aos gneros musicais. As regras

    tcnicas implicam tambm a percepo de como determinados timbres de instrumentos musicais ganham

    materialidade na imagem do clipe, tentando articular esse princpio s prprias especificidades das

    performancesdos artistas protagonistas do audiovisual. Entendendo que os gneros musicais envolvem

    uma gama de aparatos tecnolgicos inerentes, possvel estabelecer princpios de que alguns gneros

    so de102

    Revista Galxia, n. 15, p. 91-108, jun. 2008.

    tentores de timbres musicais que carregam, numa ordem interna e cultural, convenes de visualidades

    muitas vezes usadas nos videoclipes. O esboo dessas convergncias entre gnero musical e videoclipe

    pode ser problematizado sobretudo em funo das constantes mutaes dos gneros e, com isso, das

    alteraes das regras genricas. Para

    se distanciar de uma noo imamente e estilstica do gnero, atribumos que os gneros

    no so demarcados somente pela forma ou estilo de um texto musical em sentido estrito e, sim, pela

    percepo de suas formas e estilos e por traos que caracterizam suas condies de produo e

    reconhecimento.

    Videoclipe e performance: imagticas

    Um dos campos privilegiados para se abordar a materialidade do sentido na msica pop a

    observao das performances10 que envolvem a configurao dos gneros musicais e as caractersticas

    individuais dos diversos intrpretes. A performancemusical um ato de comunicao que pressupe uma

    relao entre intrprete e ouvinte. Nesse sentido, a performanceaponta para uma espiral que vai das

    codificaes de gnero s especificidades da cano. Mesmo que, de maneira virtual, a performance

    esteja ligada a um processo comunicacional que pressupe uma audincia e um determinado ambiente

    musical. Assim, a performance define um processo de produo de sentido e, conseqentemente, de

    comunicao, que pressupe regras formais e ritualizaes partilhadas por produtores, msicos e

    audincia, direcionando certas experincias diante dos diversos gneros musicais da cultura

    contempornea. preciso destacar que, sendo registrada em suporte miditico, a cano tem sua

    performance inscrita: seja nas condies de registro vocal, na dinmica de audio (que poder sergalgada na repetio), na organizao em torno de lbuns fonogrficos, no alcance de circulao e nas

    configuraes que regem o star system da msica popular massiva. As execues miditicas das

    canes populares massivas no s permitem tornar as vozes dos cantores familiares ao cidado

    comum, como tambm resultam na identificao desses cantores a partir de signos. Ou seja, a

    performancepassa a ser dotada de camadas e os artistas, com isso, passam a estar disponveis em

    inmeros signos em circulao. Helosa Valente atesta que o descolamento mais ou menos parcial da

    identificao ator-cantor/personagem s iria acontecer a partir do momento em que a tecnologia, por meio

    do universo das mdias, pudesse desmembrar as diversas camadas da performance, tornando o artista

    mais acessvel ao seu pblico (signicamente) (VALENTE, 2003, p. 46). A performanceda cano pop

    ganha formas de estar em circulao e de ocupar espaos. A metfora de que, num perodo em que no

    havia a configurao miditica, a performancedo artista ao vivo era seu objeto de

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    10 Adota-se aqui a idia de que as canes populares massivas trazem inscritas performancesque so atualizadas a cada audio doregistro miditico.

    criao passa a ser substituda por uma regra em que o objeto de criao passa a criar

    outros objetos. Seguindo esse conceito, perceberemos quais os constituintes que levaram a performance

    miditica inscrita na cano poppara os caminhos do videoclipe.

    A camada visual da performance

    O videoclipe se situa como um desdobramento da performanceda cano popular massiva, uma vez

    que integra a cadeia de produo de sentido que articula o sonoro e

    o visual, sendo regido por uma sistemtica de construo de imagens que opera com signos visuais

    inseridos na cano e segundo pressupostos das prprias performancesapresentadas. Nessa lgica,

    podemos entender o videoclipe como uma nova camada de mediao sobre a cano popular massiva,

    desta vez, estando sujeita sobreposio de uma camada visual. Essa nova camada de mediao

    visual est articulada

    construo de um objeto (o videoclipe) que seja o mais prximo e fiel ao universo do

    objeto que sintetiza (a cano) e, portanto, estando articulado ao gnero musical e narrativa particulardo artista que performatiza a cano. O videoclipe como construtor de um espao na cano popular

    massiva obedece a uma srie de regras que articulam, portanto: o percurso da prpria cano, as

    reverberaes sonoras existentes na cano, a dinmica da construo imagtica do gnero musical e a

    narrativa particular do artista protagonista do videoclipe.

    Os atos performticos da msica popesto diretamente conectados ao universo dos gneros. Ser

    um astro do cenrio heavy metalou da msica eletrnica exige relaes com a audincia que seguem as

    especificidades dessas expresses musicais. Do mesmo modo que uma cano simultaneamente a

    msica e sua respectiva performance, a audincia no consome somente as sonoridades ou a

    performance virtual inscrita nos gneros. A relao entre ouvir msica e responder corporalmente a

    determinada sonoridade uma questo de convenes que, muitas vezes, parecem naturalizadas pelos

    consumidores de um gnero.

    A dana das canes e suas performances

    Alm dos aspectos performticos ligados ao ritmo e execuo musical, a configurao corporal e a

    voclica tambm esto ligadas s estratgias comunicacionais que envolvem a constituio da imagem

    dos intrpretes da msica pop que possibilita o estabelecimento de vnculos entre msico e ouvinte,

    envolvendo a tnue relao entre intrprete, personagem e pessoa pblica. As diferentes relaes de

    intensidade sonora, reverberao, altura de voz em relao aos instrumentos percussivos e harmnicos

    esto diretamente atreladas aos horizontes de expectativa dos diferentes gneros musicais.

    Toda expresso musical da cultura popular de massa indica modos de especficos de corporificao,

    que incluem, claro, determinados modos de danar. Dana aqui no significa somente uma expressopblica de certos movimentos corporais diante da msica e, sim, a corporificao presente na prpria

    msica, mesmo para os gneros musicais que pressupem uma audincia passiva em termos de

    movimentos corporais. Quando danamos (pelo menos em se tratando de danas codificadas

    socialmente), sujeitamos os movimentos de nossos corpos a regras musicais, o que revela um senso

    fsico da produo de sentido diante da msica. Danar, como demonstram, por exemplo, o samba e o

    funk, um modo codificado de processar a msica. Isso sem falar nos aspectos gestuais que, muitas

    vezes, envolvem movimentos os quais funcionam como estmulos/respostas relacionados prpria

    estruturao de refres e solos das canes.

    Por outro lado, a corporificao da produo de sentido da msica popest atrelada s dices

    dos gneros e canes, ou seja, toda execuo musical implica determinadas questes: qual a voz que

    canta (ou fala)? Ou, no caso de alguns subgneros da msica eletrnica: quais os corpos que tocam edanam a msica? Quem est tocando, falando e/ou cantando?A performatividade da voz ou do ato de

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    tocar descreve um senso de personalidade, um modo peculiar de interpretar no s determinada msica

    como as

    prprias convenes de gnero, um modo caracterstico de corporificao das expresses

    musicais. Diferentes canes e gneros musicais apresentam timbragens, mixagens e dices

    caractersticas; antes de se reconhecer quem ou o que se canta, a cano endereada

    ao ouvinte atravs do modo de cantar. Assim, a vocalizao e a interpretao de uma certa cano soincorporaes musicais. Ouvir msica incorpar no s as vozes mas tambm os instrumentos

    harmnicos e percussivos. S para citar um exemplo, vozes

    masculinas e femininas, mesmo quando interpretando a mesma cano, so definidas de maneira

    estrutural, como sons ouvidos de maneira interdefinida com outras sonoridades

    que, nesse caso, no esto, necessariamente, restritas ao campo musical. Ns ouvimos

    e vivenciamos vozes masculinas e femininas, e suas respectivas corporificaes, de

    acordo com nossas preferncias e prazeres. Em relao voz, deve-se tambm levar em considerao

    os aspectos da gravao da voz e a utilizao tcnica/performtica do

    microfone como importantes elementos na configurao da msica popular massiva: O

    microfone nos permitiu ouvir as pessoas em modos que normalmente implicam intimidade o sussurro,

    a delicadeza, o murmrio (FRITH, 1996, p. 187).

    Visualizando a voz no videoclipe

    Como j alertou Paul Zumthor (1997), a voz emitida, pensada e apreciada iconicamente. Ou seja,

    ao nos determos na audio de uma determinada voz, somos impelidos a registrar de maneira imagtica

    as operaes executadas pelo intrprete. As

    Revista Galxia, n. 15, p. 91-108, jun. 2008.

    inflexes das execues dos cantores podem ser uma porta de entrada para o universo

    dos intrpretes da msica popular massiva que se utilizam do videoclipe como aporte conceitual de suascarreiras: a virtuosidade do canto de Bjrk 11, por exemplo, pressupe uma srie de gestuais do rosto, das

    mos e do corpo da intrprete que, inevitavelmente,

    so incorporados nos seus clipes; a guturalidade das inflexes do canto de Derrick Green,

    vocalista do Sepultura, pressupe a visualizao de movimentos do rosto e do corpo do intrprete que se

    apresentam tanto em performancesao vivo quanto em videoclipes como constituintes de uma presena

    cnica miditica; os sussurros no canto de Madonna nas fases mais sexualizantes de sua carreira

    tambm apontam para uma modulao vocal e da imagem da cantora como aportes de algo

    essencialmente imagtico.

    Dessa forma, a partir da percepo de que os esforos e as apresentaes vocais interferem no

    fraseado, na forma de dizer e na expressividade, e a partir de uma srie de inferncias sobre as

    determinaes tecnolgicas que acentuam certos timbres ou corrigem falhas vocais, podemos inferir quea voz um dos alicerces da compreenso de como a performancese materializa imageticamente. Essa

    materialidade imagtica da voz na performance pode empreender tambm inferncias de ordem

    sinestsica nos suportes de registro do visual no videoclipe. Ou seja, h determinadas configuraes

    sonoras extensivas que podem se articular imageticamente a movimentos de cmeras contnuos e longos

    (contradizendo grande parte das classificaes que insistem em tratar o videoclipe como oriundo de uma

    tessitura imagtica fragmentada), e a guturalidade vocal como empreendida a partir da reverberao do

    som que tremula os suportes de registro (a cmera) e o sussurro vocal como condizente a uma lentido

    felina na movimentao dos suportes.

    Alguns desses aspectos da performanceso fundamentais para a compreenso do que se possa

    considerar uma interpretao autntica, cooptada, impessoal ou verdadeira; valoraes

    fundamentais para as estratgias de produtores, msicos e crticos no processo de endereamento doproduto musical ao seu pblico. Aqui, possvel notar de maneira clara como o entretenimento, a potica

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    e a esttica dos produtos da cultura popular de massa esto atrelados tanto s lgicas mercadolgicas

    quanto estrutura musical das canes. A msica pop expressa emoes a partir do modo como as

    letras e sonoridades so interpretadas, embaladas e consumidas.

    Consideraes finais

    Traar a genealogia de um videoclipe a partir das configuraes da cano envolve localizar

    estratgias de convenes sonoras (o que se ouve), convenes de performance (regras formais e

    ritualizaes partilhadas por msicos e audincia), convenes de mer11

    Cantora islandesa com marcante caracterstica excntrica. Tem uma voz com forte acento infantil e realiza

    maneirismos vocais a partir de gritos e sussurros.

    cado (como a msica popular massiva embalada) e convenes de sociabilidade (quais valores e

    gostos so incorporados e excorporados em determinadas expresses musicais). Assim, o crtico e/ou analista pode partir das relaes que vo do texto ao contexto, dos msicos

    audincia, do gnero aos relatos crticos, dos intrpretes ao mercado para

    dar conta das questes que envolvem a formao dos gneros musicais.

    O videoclipe, portanto, integra-se a essa cadeia na medida em que tensiona certas convenes

    sonoras, podendo legitimar ou negar determinadas performances musicais sobretudo em funo da

    necessidade de atrelamento narrativa particular de um artista; da mesma forma que serve como

    incremento das convenes de mercado, sobretudo de sua embalagem, gerando matrizes de

    sociabilidade como valores, gostos e afetos que so incorporados ou excorporados em determinadas

    expresses musicais. Nesse sentido, a utilizao de conceitos acerca das canes, dos gneros musicais

    e das configuraes de performance pode empreender numa perspectiva de localizao de regras

    econmicas, semiticas, tcnicas e formais, e de identificao de certas convenes imagticas, que

    tensionam os questionamentos e as problemticas acerca do videoclipe na comunicao e cultura

    contemporneas. Assim, aliar os elementos plsticos/miditicos da cano aos elementos imagticos do

    videoclipe permite ao analista a compreenso de como a produo de sentido dos produtos miditicos

    passa por uma complexa rede scio-semitica, caracterizada tanto por elementos expressivos das

    produes comunicacionais quanto por suas configuraes como expresses das indstrias culturais.

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    JEDER JANOTTI JNIOR Professor e Coordenadordo grupo de pesquisa Mdia & Msica Popular Massiva no

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    Programa de Ps-Graduao em Comunicao e Cultura Contemporneas

    (UFBA), autor dos livros Aumenta Que Isso A Rock and Roll: Mdia, Gnero

    Musical e Identidade (E-papers, 2003b) e Heavy Metalcom Dend: Rock

    Pesado e Mdia em Tempos de Globalizao (E-Papers,

    2004).

    [email protected]

    THIAGO SOARES Doutorando em Comunicao e Cultura

    Contemporneas (UFBA), integrante do grupo

    de pesquisa Mdia & Msica Popular Massiva, autor do

    livro Videoclipe: O Elogio da Desarmonia (Livro Rpido, 2004a).

    [email protected]

    Artigo recebido em 30 de julho de 2007 e aprovado em 30 de

    setembro de 2007.