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7/31/2019 o videoclipe como extenso da cano
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O videoclipe como extenso dacano: apontamentos para
anliseJeder Janotti Jnior Thiago Soares
Resumo: O presente artigo empreende um desdobramento da metodologia de anlise miditica da cano em direoao videoclipe. Tomamos como ponto de partida a verificao dos vnculos existentes entre cano e clipe,discutindo, atravs de conceitos da Semitica e dos Estudos Culturais, as noes de percurso, refro e dicoda cano no terreno da imagem no videoclipe. Os conceitos de gneros musicais ajudam a debater esse
audiovisual para alm de uma anlise textual, compreendendo suas dinmicas de consumo. Atravs da noode performanceda cano popular massiva, discutimos conceitos que nos ajudam a empreender algumascategorias que podem se configurar numa futura metodologia de anlise miditica de videoclipes.
Palavras-chave: videoclipe; cano; gneros musicais; performance
Abstract: The videoclip as an extension of music: Points for analysis This article scrutinizes the mediatic analysismethodology of the shift of popular songs towards the videoclip. Our starting point is an analysis of the bondslinking music to videoclips, discussing the ideas of passage, chorus and diction of the song in the field ofvideoclip imagery based on concepts of Semiotics and on Cultural Studies. The concepts of musical genresunderpin our debate on this audiovisual instrument, extending it beyond a textual analysis to understand itsdynamics of consumption. Through the idea of the performance of mass pop music, we discuss concepts thathelp us outline categories that can be applied in a future methodology of mediatic videoclip analysis.
Keywords: videoclip; pop music; musical genres; performance
Ao localizar a discusso do videoclipe nos estudos da msica pop1, uma questo parece premente:
de que forma som e imagem perpassam os encontros e tenses que
Apesar do uso recorrente do termo Msica Popular Massiva, como no livro Comunicao e Msica Popular Massiva, dosorganizadores Jeder Janotti Jnior e Joo Freire Filho, adota-se o termo msica pop para se referirs expresses musicais produzidas e consumidas a partir da configurao das indstrias fonogrficas ao longo dosculo XX. O termo msica pop d relevo problemtica dos gneros musicais forjados a partir do rocke que possuem estreitarelao com certas produes audiovisuais presentes no universo da cultura jovem.
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Revista Galxia, n. 15, p. 91-108, jun. 2008.
envolvem cano e videoclipe? A indagao pode parecer um tanto quanto banal, uma vez que
bastante evidente que videoclipe e cano so participantes de um sistema de produo que integra
itinerrios semelhantes. Uma investigao mais detalhada sobre essas duas instncias e mais, sobre a
relao estabelecida entre esses dois produtos da cultura miditica , no entanto, pode resultar na
revelao de nuances que ajudem a mapear evidncias nos percursos que liguem cano e clipe. Tal
percurso pode proporcionar, portanto, a visualizao de uma metodologia de anlise do videoclipe que se
baseie em conceitos e aportes oriundos da msica pop(e a materializao da cano),
aliados s especificidades televisivas e cinematogrficas do videoclipe. Assim, acredita-se
que, ao abordar o videoclipe como produto miditico, deve-se levar em considerao suas dimenses
sonora e musical, tanto em seus aspectos plsticos quanto em relao sua insero nas indstrias
culturais do audiovisual. Nesse sentido, este artigo procura assinalar os elementos que caracterizam aelaborao de uma metodologia de inspirao semitica articulada aos estudos culturais em suas
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aplicaes s manifestaes musicais, direcionada anlise e interpretao dos aspectos miditicos do
videoclipe como uma forma de expresso da msica pop. Desde j torna-se necessrio esclarecer que a
idia de msica pop est ligada s expresses musicais surgidas no sculo XX e que se valeram do
aparato miditico contemporneo, ou seja, tcnicas de produo, armazenamento e circulao tanto em
suas condies de produo quanto em suas condies de reconhecimento. Na verdade, em termos miditicos, pode-se relacionar a configurao da msicapopao desenvolvimento dos aparelhos de reproduo e gravao musical, o que envolve
as lgicas mercadolgicas da indstria fonogrfica, os suportes de circulao das canes
e os diferentes modos de execuo, audio e circulaes audiovisuais relacionados a essa estrutura.
Sabe-se, por exemplo, que o aumento do consumo da msica por uma parcela da populao que no
possui conhecimento da notao musical est diretamente ligado ao aparecimento dos primeiros
aparelhos de reproduo sonora: o gramofone, o fongrafo, o rdio e o toca-discos, e que, por outro lado,
a popularizao de expresses musicais, como o rock a partir da dcada de 50, est ligada no s
indstria fonogrfica como tambm televiso e ao cinema. preciso reconhecer, ento, que a
expresso msica poprefere-se, em geral, a um repertrio compartilhado 2 mundialmente e intima-mente
ligado produo, circulao e ao consumo da msica conectados indstria
fonogrfica. Esse adendo permite a compreenso de que, apesar de popular, a msica,pelo menos em sentido estrito, passa pelas condies de produo e reconhecimento
inscritas nas indstrias culturais. Inserir o videoclipe nesta discusso entender que o
percurso histrico desse audiovisual acompanha os desdobramentos dos aparatos
tcnicos da msica pop, estando,
2 Essa idia devedora dos comentrios e sugestes apresentados pela Professora Silvia Borelli no XVIII Congresso Brasileiro deCincias da Comunicao.
portanto, sujeito s variaes que a histria desses suportes abarca. No se pode esquecer tambm de
que historicizar determinado produto miditico identificar condies de reconhecimento e o entorno no
qual ele mapeia as suas trajetrias de circulao. Produo, armazenamento e circulao na dinmica do
videoclipe obedecem a um itinerrio que leva em considerao preceitos oriundos das lgicas dos
sistemas produtivos da msica popem suas condies tanto de produo quanto de reconhecimento.
Investigar a dinmica do videoclipe nessas circunstncias , portanto, no reduzir, exclusivamente, o
estudo a uma cartilha de preceitos de ordem imagtica (embora saibamos do papel fundamental da
decupagem e da identificao dos elementos imagticos desse audiovisual), mas levar em considerao
que as configuraes presentes no mbito desse audiovisual so resultantes tambm de uma dinmica
que envolve o encontro entre os elementos musicais e imagticos. Para que possamos empreender a
dimenso do videoclipe na comunicao e na cultura contemporneas, precisamos mapear entornos e
trajetos que so fundamentais na constituio do videoclipe. Tentaremos mostrar de que forma o
videoclipe se configura numa extenso da cano, entendendo que no jogo de foras da produo do
clipe so levadas em considerao noes de pertencimento a determinados gneros musicais e as
narrativas imagticas particulares presentes nos videoclipes. Definiremos o que venha a ser a cano pop
para, em seguida, identificarmos de que forma os artefatos visuais presentes nos videoclipes vo sendo
incorporados s noes de gneros musicais e s performancesj previamente inscritas nas canes.
Cano e videoclipe: percursos
A noo de cano est ligada aos encontros entre a cultura popular e os artefatos miditicos.
Inicialmente, a cano se refere capacidade humana de transformar uma srie de contedos culturais
em peas que configuram letra e melodia. O trajeto histrico da cano popular at a sua configurao de
massa perpassa, portanto, a execuo ao vivo para, em seguida, estar submetida s diversas formas de
mediaes tcnicas. Segundo o pesquisador da cano brasileira Luiz Tatit (2004), o surgimento do
primeiro gnero da cano popular brasileira, o samba, est diretamente relacionado ao aparecimento dogramofone, j que foram as primeiras gravaes que colocaram a necessidade de repetio da letra, de
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uma estruturao precisa da msica e o reconhecimento da importncia de autores e/ou intrpretes
dessas peas musicais. Um aspecto que merece destaque em relao configurao da cano a
regularidade rtmica e meldica que privilegiava os refres e os temas recorrentes. O refro pode ser
definido como um modelo meldico de fcil assimilao que tem como objetivos principais sua
memorizao por parte do ouvinte e a participao (cantar junto) do receptor no ato de audio. Ele
uma frase94
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musical que se repete ao longo da cano, servindo de baliza para os outros elementos da msica de
massa (as estrofes, as pontes e os solos), podendo valorizar tanto o ritmo quanto a rima e os aspectos
semnticos da letra.
Ao considerarmos que a cano detentora de um percurso, de uma trajetria, e que
o refro esse ponto de referncia nesse it inerrio, cabe questionar como esse elemento
plstico da cano configurado no percurso visual no videoclipe pode ser apreendido.
John Mundy (1999) j havia pensado essa relao, uma vez que a cano produzidaantes de o vdeo ser concebido e o diretor normalmente cria imagens tendo a cano
como guia. Alm disso, o videoclipe vende a cano. E ele , tambm, responsvel por a cano estar
nos olhos dos artistas, da gravadora e do pblico. A noo de percurso do clipe sobre a cano pode se
dar de inmeras formas. Para o autor, os videoclipes
freqentemente refletem a estrutura da cano e se apropriam de certos artefatos musicais no domnio da melodia,
ritmo e timbre. A imagem pode at parecer imitar as batidas e
fruies do som, indeterminando, com isso, as fronteiras entre som e imagem. Video-makers tm
desenvolvido uma srie de prticas para colocar a imagem na msica na qual a imagem adquire um status
de autonomia e abandona certos modos de representao
mais direta da cano. Em troca, a imagem ganha em flexibilidade e desenvoltura, assim como na
polivalncia de significados. Muitos dos significados do videoclipe recaem nestedar-e-pegar entre som e imagem e nas relaes entre seus vrios modos de continuidade. (MUNDY, 1999,
p. 21)
No cabe tentar estabelecer relaes fechadas na identificao do percurso que
a cano evoca e que o videoclipe pode percorrer. Como atesta Mundy, a relao que se estabelece
entre cano e clipe angariada no dar-e-pegar entre som e imagem. Segundo Michel Chion (1994), a
msica agregaria valor imagem, mas pode-se pensar que, dependo do caso, tanto a imagem como a
cano podem agregar valor ao produto
final, essa hierarquia ir variar de acordo com as especificidades de cada videoclipe. Ou seja, possvel
que algumas canes tragam em sua sonoridade e na articulao vocal
do intrprete, por exemplo, uma dico3
conectada a determinados traos imagticos.Segundo Tatit (1997, 1999, 2001, 2004), pode-se, a princpio, estruturar as diferentes
formataes da cano popular brasileira, em trs dices diferenciadas: 1) a tematizao,
caracterizada por uma regularidade rtmica centrada nas estruturas dos refres e de temas
recorrentes, como as canes da Jovem Guarda e a msica ax; 2) a passionalizao, caracterizada por
uma ampliao meldica centrada na extenso das notas musicais,
exemplificada pelo samba-cano, sertanejo e baladas em geral e 3) figurativizao,
3 O conceito de dico da cano formulado pelo semioticista Luiz Tatit (2004), que considera como dico
o encontro entre letra e melodia na cano brasileira. Ele aqui estendido cano popem sentido amplo.
A dico caracteriza tanto canes especficas quanto traos estilsticos dos diversos gneros musicais presentes
na msica popular massiva.
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em que h uma valorizao na entoao lingstica da cano, valorizando os aspectos
da fala presentes nessas peas musicais, tal como acontece no rape no samba de breque.
Naturalmente, a configurao das canes no se esgota em um desses modelos. Na
verdade, boa parte da produo musical de massa, que possui uma potica diferenciada, como as
composies de Tom Jobim ou dos Beatles, se caracteriza pela variao dessas dices em uma mesma
cano.Pode-se observar que hoje a dico da cano pop est diretamente associada a uma cadeia
miditica em que os aspectos comerciais so mais bem evidenciados, cujo ponto de partida o esforo
para atingir o maior nmero possvel de ouvintes. Tal esforo se configura numa mxima da prpria
indstria fonogrfica que pressupe a gerao de produtos que sigam essa regra. No percurso da cano
ao videoclipe, o reforo dos aspectos comerciais capitaneado por uma tentativa de legitimar uma
imagtica o mais universal possvel no audiovisual, gerando nos videoclipes produzidos no centro da
indstria fonogrfica um padro que vai estar presente, por exemplo, em vdeos que tenham seus
artistas-protagonistas pertencentes a gneros musicais distintos, como o hip hop, o heavy metal ou o
rock. Esse padro a que nos referimos integra uma mxima presente nas instncias produtivas da
indstria fonogrfica que visa criar um circuito cada vez mais transnacional de circulao do videoclipe.
Integram esse padro comercial dos videoclipes, por exemplo, a escolha de certos suportes em geral,de carter flmico , bem como a opo pela saturao cromtica, por determinadas apresentaes
performticas nos clipes que obedeam a uma linhagem composta para no gerar atrito no espectador e
que pressuponha um dilogo e uma construo dos aparatos de imagem articulados a horizontes de
expectativas presentes nos gneros musicais.
O videoclipe permite a visualizao de um cenrio em que a dico da cano se desenvolve.
Pode-se perceber, ento, que parte das canes que circulam na paisa-gem miditica contempornea j
fornece visualidades articuladas a determinados traos estilsticos. No jogo de dar-e-pegar a que John
Mundy se refere, no entanto, bastante comum que o videoclipe pegue da imagem uma dico para a
cano que sintetiza. Ou seja, possvel perceber que determinadas canes as quais no trazem uma
dico evidenciadora, por exemplo, das imagens que podem lhes reverter, tm a sua dico sugerida pela
imagem. Exemplos para essa relao so bastante comuns: canes inscritas em gneros musicais quetrazem uma dico marcada, como o heavy metal ou o hip hop engajado, tm seus videoclipes
dificilmente distanciados, ora da iconografia masculina, satnica e marcadamente noturna (nos clipes do
heavy metal), ora do universo das ruas, dos subrbios, do grafite (no caso do hip hop). J o que se
convencionou chamar de bubblegum music4, por no trazer canes com evidenciadora dico aliada a
um cen4A bubblegum music caracterizada pela reunio de inmeros artefatos expressivos do campo da msica pop
que evidenciam a figura do produtor em detrimento da do prprio artista. A bubblegum musicassume-se como
msica de massa e insere, nos seus produtos, dispositivos plsticos que reforam isso.
rio especfico, se utiliza, na concepo de seus videoclipes, de imagens que no trazem
possibilidades de encontros entre as sonoridades evocadas na prpria cano. A imagem, em geral,
criada para esse tipo de videoclipe, gera um cenrio em que a dico da cano se desenvolve, portanto,
na observao das relaes de percurso entre a cano e o videoclipe, fundamental observar como se
do essas implicaes de troca entre som e imagem, ou seja, interrogar: em que medida se d essa
troca, articulada, por exemplo, a que valores implcitos nos prprios sistemas de circulao da msica
pop?
possvel falar em refro visual no videoclipe?
H inmeros fatores que podem aproximar ou distanciar as estruturas sonora e visual no trajeto da
cano e do clipe. Sabe-se, por exemplo, que, dependendo do gnero musical em que uma determinadacano est inserida, possvel vislumbrar uma nfase, por exemplo, no refro ou uma fuga e tentativa
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de subverso dessa mxima. Os gneros seriam, ento, modos de mediao entre as estratgias
produtivas e o sistema de recepo, entre os modelos e os usos que os receptores fazem desses
modelos atravs das estratgias de leitura dos produtos miditicos. Antes de ser um elemento imanente
aos aspectos estritos da msica, o gnero estaria presente no texto atravs de suas condies de
produo e reconhecimento: Momentos de uma negociao, os gneros no so abordveis em termos
de semntica ou sintaxe: exigem a construo de uma pragmtica, que pode dar conta de como operaseu reconhecimento numa comunidade cultural (MARTIN-BARBERO, 1997, p. 302).
O refro, um dos principais elementos constitutivos da cano pope gancho narrativo para uma boa
parte dos videoclipes, tem como propriedade marcar o momento em que a cano convoca o ouvinte a
um cantar junto de maneira mais evidente. Trata-se da marcao sonora mais premente e responsvel
pelo momento em que o texto sonoro se dirige com mais veemncia ao seu destinatrio. Nas
aproximaes entre cano e videoclipe, cabe questionar de que forma o refro, como ponto de
referncia da cano, pode aparecer visualizado no videoclipe. Essa indagao nos leva a examinar os
dois
objetos. No momento do refro de uma determinada cano, possvel que se dem
inmeras aes no mbito do clipe que marquem aquela passagem: o olhar do cantor
para a cmera, o clmax dramtico de uma seqncia narrativa, a apario propriamentedo grupo tocando, entre outras, entretanto mais comum que o videoclipe no respeite as normas de
refro impostas pela cano e crie o seu prprio momento de convocao do espectador, imponha o seu
prprio ditame narrativo e se projete para seu destinatrio obedecendo s suas prprias regras. Dessa
forma, podemos inferir que o videoclipe, inmeras vezes, foge da imposio do refro da cano e cria o
que chamamos de refro visual, ou seja, um momento em que se demarca de maneira mais evidente a
necessiRevista Galxia, n. 15, p. 91-108, jun. 2008.
dade de pertencimento do clipe ao espectador. O refro visual no clipe est articulado convocao de
um estar junto (um desdobramento do cantar junto da cano), traduzindo tal efeito em marcaes
visuais que acentuam o estreitamento e a projeo da imagtica do clipe em direo a seu espectador.
Assim, o refro visual, em geral, est determinado por uma procura retrica da imagem em pertencer ao
espectador, em estar em consonncia com as satisfaes desse espectador no mbito da msica pop.
preciso relativizar essa mxima em dois aspectos: primeiro, que h gneros musicais que
tensionam a noo de cano (e, conseqentemente, de refro), da ser perceptvel que,
nesses gneros musicais (por exemplo, a msica eletrnica5 um deles), tambm se tem
diludo o conceito de um refro visual nos videoclipes; segundo, que, obedecendo a
critrios de ordem dos valores inscritos nos produtos em circulao da msica pop, h clipes que
propositalmente negam essa estruturao.
Sobre a dico comercial da cano e sua extenso ao videoclipe
A imagem do artista que o clipe sintetiza articulada a uma proposta de construo de um discurso
imagtico galgado nos preceitos universais e que leve em considerao variveis dessa construo tanto
articulada aos gneros musicais que as canes ou os artistas sintetizam quanto as narrativas
particulares dos protagonistas dos videoclipes. A cano poppressupe, portanto, uma interao tensiva
entre a criao e sua configurao como produto miditico. Assim, a msica de massa, em seus diversos
formatos, tambm valoriza no s a execuo mas tambm as tcnicas de gravao/reproduo, levando
em conta os timbres eletrnicos ou acsticos, salincia de sons graves ou agudos, a reverberao e a
sensao de extenso sonora. possvel pensar, portanto, que, da configurao do som imagem, as
categorias elencadas como oriundas dos registros da cano poppodem se manifestar imageticamente:
ou seja, timbres eletrnicos ou acsticos pressupem uma cenrio visualizado no ato da audio; asalincia de sons graves ou agudos, como j apontaram trabalhos que dialogavam com a noo de
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sinestesia no terreno do audiovisual (BASBAUM, 2002; MACHADO, 1988, 2001, 2003), pressupe a
visualizao de aportes imagticos que sejam mais abertos (agudos) ou fechados (graves), podendo
essa configurao se apresentar atravs de cores, formas ou cenrios, ou de tratamentos imagem que
levem em considerao tais aspectos plsticos; e a sensao de extenso sonora pode se apresentar a
partir de recursos presentes tanto na imagem quanto na edio que imposta a essa imagem. Segundo
Helosa Valente, o som [] controlvel por
5 Gnero musical que, de maneira geral, abole o vocal e estabelece um parmetro de msica que est mais prximo de algo cclico, feitopara a pista de dana. No esteio da msica pop, por exemplo, a eletrnica j encontra artistas que se valem do formato cano emseus lbuns, como Chemical Brothers, Soulwax, Fischerspooner, entre outros.
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parmetros estticos, pode ser delimitado pelo ndice de reverberao, controle de canais,
fazendo-se sobressair um ou outro, de acordo com a conveno esttica de gnero ou do artista em
particular (VALENTE, 2003, p. 101). Aspectos ligados circulao da cano popvia cinema, rdio, TV,
computador etc. apiam-se em modelos de divulgao em que as divises entre gneros musicaistendem a ser embotadas.
Videoclipe e gneros musicais: mercados
No incomum encontrarmos nos artigos e apresentaes que envolvem a anlise e
compreenso da cultura miditica afirmaes a respeito dos hibridismos, das interfaces e
at da imaterialidade dos suportes comunicacionais na cultura contempornea. Diante desse cenrio,
parece at retrgrado falar em gneros musicais. Mas uma rpida olhada sobre a circulao de produtos
comunicacionais, seja na internet6, nas lojas especializadas
ou na crtica musical, permite ao observador atento perceber que o excesso informacional tambmpressupe segmentao e que muitas vezes, at para filtrar esse excesso, tanto
o campo da produo como o da circulao e reconhecimento desses produtos se vale
de rtulos extremamente codificados.
Assim, preciso reconhecer que boa parte daquilo que consumido como rock ou MPB, por
exemplo, pressupe valoraes que nem sempre esto ligadas diretamente aos aspectos estritamente
musicais de uma determinada cano. Intrpretes como Raul Seixas e Cssia Eller so rotulados como
roqueiros, mesmo que, em determinadas canes, se aproximem do universo musical da MPB. Assim,
pode-se notar que a rotulao um
importante modo de definir as estratgias de endereamento de certas canes em termos tanto
mercadolgicos quanto textuais. O gnero musical definido, ento, por elementos
textuais, sociolgicos e ideolgicos, uma espiral que vai dos aspectos ligados ao campo da produo sestratgias de leitura inscritas nos produtos miditicos. Na rotulao, est presente um certo modo de
partilhar a experincia e o conhecimento musical, ou seja, dependendo do gnero, elementos sonoros
como distoro, altura e intensidade da voz, papel das letras, autoria e interpretao, harmonia, modo,
melodia e ritmo ganham contornos e importncias diferenciadas.
6 A lgica dos gneros musicais perpassa no s os ambientes fsicos lojas, prateleiras, ambientes de sociabilidade , mas tambm os lugares virtuais. Dirigindo-se a certos programas destinados a baixar (realizar
downloads) msica na internet, salta vista que os nomes das canes so acompanhados por catalogaes
que localizam os gneros a que essas mesmas canes pertencem. Dessa forma, possvel baixar, por
exemplo, canes de hip hop, de rock, de heavy metalou do que se convencionou chamar de pop, procurando pelo gnero em que a cano est classificada segundo os usurios dos programas. Em rdios virtuais, os gneros musicaistambm se fazem presentes atravs de canais especficos: possvel ouvir, por exemplo,uma programao organizada nesses canais somente de msica sertaneja, de rockou de MPB. Dessa forma,
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podemos verificar que a noo de gnero musical ultrapassa as barreiras do que seria intrnseco obra e passa a operacionalizar asua existncia e sua ordem classificatria na dinmica social.
Pensar o videoclipe no mbito do gnero musical perceber que a produo de clipes est inserida
numa dinmica que leva em considerao horizontes de expectativas gerados a partir de determinadas
regras de gneros musicais; que a imagtica de um videoclipe articula plos de produo de sentido que
atravessam tanto as cenografias dos gneros musicais quanto as narrativas especficas dos artistas da
msica pop e que o clipe articula uma composio msico-imagtica que se projeta em direo aopblico, levando em considerao valores articulados aos gneros musicais sintetizados na obra
audiovisual. Numa leitura imagtica do gnero musical, podemos, por exemplo, nos utilizar da observao
de capas de lbuns, encartes, cartazes e flyersde showse eventos. O apelo a certas leituras e a projeo
de uma imagtica que seduza o f vo sendo pontuais no reconhecimento imagtico de um gnero
musical. Os ambientes futuristas presentes em flyers de festas de msica eletrnica, o design de
elementos retr nos eventos saudosistas de dcadas como 70 ou 80, e a visualizao de elementos
satnicos nos cartazes sobre eventos de heavy metalvo construindo uma imagtica associativa que, na
maioria das vezes, vai habitar lbuns, cartazes e todo o aparato de divulgao do artista, incluindo o
videoclipe.
Essa visualizao d indcios da construo dos cenrios onde acontecem os eventos ligados aos
gneros musicais, de modo que possvel, por exemplo, apontar elos entre garagens, pores, ambientesescuros e de pouca iluminao com algumas matrizes da cultura do rocke do heavy metal; o grafite, o
muro, o asfalto, com certas matrizes do hip hop mais engajado; ou o universo das luzes coloridas,
estroboscpicas, os sintetizadores, as mesas de discotecagem como ligados a uma imagtica da msica
eletrnica. Essas imagens associadas vo permitindo um direcionamento e condicionando determinadas
leituras que reconheam os gneros musicais associados a um artista.
sintomtico, portanto, que, nas instncias produtivas de videoclipes, as decises sobre as
estratgias de insero de um produto se dem, fundamentalmente, sob regras genricas, o que envolve
perceber o cruzamento de mercados e de interesses socioeconmicos: que itinerrio um lbum ou um
artista segue, onde se posicionar um novo produto lanado. Tendo cincia de que o clipe est, assim
como os produtos articulados msica popular massiva, disposto e ocupando uma espacialidade
comercial, chegamos a uma problemtica: quais as linhas que demarcam a validade de um videoclipe emsuas especificidades, se parte de seu reconhecimento efetivada por elementos externos sua
visualizao particular? A complexidade dessa questo no pode ser exaurida neste artigo, no entanto
nosso intuito apontar balizas para que possamos empreender de que forma um gnero musical se
visualiza atravs do videoclipe e como se estabelecem as conexes de confirmao ou negao de um
gnero musical como estratgia de produo de sentido articulada tanto ao horizonte de expectativas do
prprio gnero quanto da narrativa particular de um artista da msica pop.
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Sobre as regras dos gneros musicais nos videoclipes
Os gneros musicais envolvem, ento: regras econmicas (direcionamento e apropriaes culturais),
regras semiticas (estratgias de produo de sentido inscritas nos produtos musicais) e regras tcnicas
e formais (que envolvem a produo e a recepo musical em sentido estrito). As regras econmicas de
gneros musicais podem ser visualizadas nos videoclipes a partir de uma identificao dos itinerrios presentes em cada um dos produtos.
Questionar quais as instncias produtoras e as condies de elaborao dos videoclipes
so indcios e condicionantes de como determinados elementos formais se apresentam
no esteio do audiovisual, podendo relacionar-se a formataes de gneros musicais que
estejam no centro ou margem das cadeias produtivas das indstrias fonogrficas. As regras
econmicas de gneros podem determinar no videoclipe o uso de suportes flmicos ou videogrficos, avisualidade de elementos condicionantes de ordem artstica (direo de arte, decorao de set, uso de
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aparatos de direo de fotografia, figurino, maquiagem) e as estratgias de ps-produo (interferncias
grficas, uso de filtros e elementos plsticos, entre outros), dependendo da localizao do clipe na cadeia
produtiva da indstria
fonogrfica7. H convergncias na identificao dos suportes ocupados pelos videoclipes,
alm dos percursos e espacialidades dos trnsitos da divulgao que um determinado clipe empreende.
As cadeias de divulgao de entretenimento (via canais como MTV,VH1 ou redes de TV a cabo) determinam aproximaes com a indstria fonogrfica, as
chamadas gravadoras, sejam elas majors8 ou consideradas de aura mais independente 9, e as exposies
de clipes, por exemplo, em festivais e eventos comerciais ligados, sobretudo, a marcas publicitrias da
cultura jovem. Perceber, portanto, por onde o videoclipe transita, sobre que suportes ele se projeta
comercialmente e como os gneros musicais
7 A produo de videoclipes fora dos conglomerados de entretenimento tambm levada em consideraonesta abordagem. So inmeras as experincias de grupos que, no tendo lanado um lbum fonogrfico, jpossuem videoclipes das faixas dispostas, muitas vezes, em EPs (CDs de divulgao, sobretudo, em rdios, e que possuem poucascanes) e em sites. Os videoclipes produzidos nessas condies demandam, freqentemente, o entendimento de regraseconmicas restritivas que reverberam na prpria estrutura do audiovisual. Mais recentemente, numa comparao irnica aos
remdios chamados genricos, o vocalista do grupo pernambucano Mundo Livre S/A, Fred Zero Quatro, em entrevista aodocumentrio Vamos Fazer Um Clipe? (2004), chamou os videoclipes feitos fora dos esquemas das grandes gravadoras comoclipes genricos,ou seja, aqueles que no so oficiais.
8 As gravadoras chamadas majorsou grandes gravadoras so aquelas que, segundo Roy Shuker, alcanam maisde 90% do mercado fonogrfico de um pas. Discute-se muito sobre as implicaes econmicas e culturais desse controle demercado, principalmente sobre a resistncia das indstrias fonogrficas locais globalizao das indstrias culturais (SHUKER,1999, p. 151). Podemos identificar como majorsgravadoras como Warner, Sony/BMG, Universal etc.
9 Jeder Janotti Jnior analisa, por exemplo, a Natasha Records como uma gravadora nesses moldes. Segundo oautor, apesar de possuir uma boa cadeia de distribuio e de ser relativamente acessvel nos grandes centrosbrasileiros, os produtos da gravadora possuem uma aura de independncia, uma vez que ela no considerada uma grandegravadora e portanto no estaria atrelada somente aos ditames da lgica empresarial que moveparte da indstria fonogrfica (JANOTTI JNIOR, 2005, p. 6).
esto inseridos nessa dinmica so atividades de percepo e identificao das regras
econmicas atreladas ao videoclipe.
As regras semiticas de gneros musicais so visualizadas nos videoclipes atravs de estratgias de
produo de sentido e expresses comunicacionais do texto musical, na medida em que, por meio da
investigao de elementos componentes da cano da qual
o videoclipe se origina, possvel perceber certos juzos de valor em relao a noes
de autenticidade e cooptao na msica pop. A composio imagtica da cano pode tensionar essas
noes de algo autntico ou cooptado, principalmente porque aparatos de negao, sobretudo da
visualidade da cooptao, so freqentemente empregados. A escolha de diretores, por exemplo, do
universo da videoarte ou das experincias estticas ligadas cultura undergroundpor artistas da msica
pop, muitas vezes, explicita a tentativa de legitimao da musicalidade valorativamente julgada como
cooptada com uma aura imagtica autntica. Os sentidos de autenticidade e cooptao no trnsito
entre a cano e o videoclipe acabam entrando num jogo cujas variveis perpassam as condies de
reconhecimento da obra, estratgias mercadolgicas e a prpria narrativa particular do artista pop. Os
tensionamentos das regras semiticas articuladas ao videoclipe podem ser visualizados atravs dos
modos com os quais clipes se referem a outros videoclipes, formando uma cadeia de sentido em que o
gnero musical atravessa certas apreenses visuais, temticas e de letras das canes. Estamos nos
referindo ao videoclipe como uma instncia de um conjunto de regras que pressupem um cenrio de
enunciao
de um gnero musical, identificando, tambm, como diferentes gneros operam questes
ligadas a um determinado modo de enunciao. As regras tcnicas e formais de gneros musicais podem
ser visualizadas nos videoclipes atravs de convenes e habilidades musicais especficas de cada regra genrica
e de que forma essa referncia se apresenta no mbito do audiovisual. Ou seja, como o andamento da
cano e o ritmo trazem uma srie de implicaes ao clipe, que podem ser de ordem tcnica
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propriamente dita (atravs de recursos de edio ou de movimentao de cmeras que sugiram ritmo no
quadro televisual, efeitos de ps-produo que geram uma noo de continuidade ou ruptura nos
quadros, entre outros aspectos) ou de ordem dramtica (atravs da nfase de determinadas aes por
meio de cdigos narrativos
especficos ou do percurso de narrao de uma histria relatada no videoclipe atravs de uma referncia
rtmica), percebe-se, com isso, como a voz se materializa na imagem videoclptica e de que forma pode-se fazer inferncias acerca das relaes entre voz e
gneros naturais (masculino e feminino) em balizas articulatrias aos gneros musicais. As regras
tcnicas implicam tambm a percepo de como determinados timbres de instrumentos musicais ganham
materialidade na imagem do clipe, tentando articular esse princpio s prprias especificidades das
performancesdos artistas protagonistas do audiovisual. Entendendo que os gneros musicais envolvem
uma gama de aparatos tecnolgicos inerentes, possvel estabelecer princpios de que alguns gneros
so de102
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tentores de timbres musicais que carregam, numa ordem interna e cultural, convenes de visualidades
muitas vezes usadas nos videoclipes. O esboo dessas convergncias entre gnero musical e videoclipe
pode ser problematizado sobretudo em funo das constantes mutaes dos gneros e, com isso, das
alteraes das regras genricas. Para
se distanciar de uma noo imamente e estilstica do gnero, atribumos que os gneros
no so demarcados somente pela forma ou estilo de um texto musical em sentido estrito e, sim, pela
percepo de suas formas e estilos e por traos que caracterizam suas condies de produo e
reconhecimento.
Videoclipe e performance: imagticas
Um dos campos privilegiados para se abordar a materialidade do sentido na msica pop a
observao das performances10 que envolvem a configurao dos gneros musicais e as caractersticas
individuais dos diversos intrpretes. A performancemusical um ato de comunicao que pressupe uma
relao entre intrprete e ouvinte. Nesse sentido, a performanceaponta para uma espiral que vai das
codificaes de gnero s especificidades da cano. Mesmo que, de maneira virtual, a performance
esteja ligada a um processo comunicacional que pressupe uma audincia e um determinado ambiente
musical. Assim, a performance define um processo de produo de sentido e, conseqentemente, de
comunicao, que pressupe regras formais e ritualizaes partilhadas por produtores, msicos e
audincia, direcionando certas experincias diante dos diversos gneros musicais da cultura
contempornea. preciso destacar que, sendo registrada em suporte miditico, a cano tem sua
performance inscrita: seja nas condies de registro vocal, na dinmica de audio (que poder sergalgada na repetio), na organizao em torno de lbuns fonogrficos, no alcance de circulao e nas
configuraes que regem o star system da msica popular massiva. As execues miditicas das
canes populares massivas no s permitem tornar as vozes dos cantores familiares ao cidado
comum, como tambm resultam na identificao desses cantores a partir de signos. Ou seja, a
performancepassa a ser dotada de camadas e os artistas, com isso, passam a estar disponveis em
inmeros signos em circulao. Helosa Valente atesta que o descolamento mais ou menos parcial da
identificao ator-cantor/personagem s iria acontecer a partir do momento em que a tecnologia, por meio
do universo das mdias, pudesse desmembrar as diversas camadas da performance, tornando o artista
mais acessvel ao seu pblico (signicamente) (VALENTE, 2003, p. 46). A performanceda cano pop
ganha formas de estar em circulao e de ocupar espaos. A metfora de que, num perodo em que no
havia a configurao miditica, a performancedo artista ao vivo era seu objeto de
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10 Adota-se aqui a idia de que as canes populares massivas trazem inscritas performancesque so atualizadas a cada audio doregistro miditico.
criao passa a ser substituda por uma regra em que o objeto de criao passa a criar
outros objetos. Seguindo esse conceito, perceberemos quais os constituintes que levaram a performance
miditica inscrita na cano poppara os caminhos do videoclipe.
A camada visual da performance
O videoclipe se situa como um desdobramento da performanceda cano popular massiva, uma vez
que integra a cadeia de produo de sentido que articula o sonoro e
o visual, sendo regido por uma sistemtica de construo de imagens que opera com signos visuais
inseridos na cano e segundo pressupostos das prprias performancesapresentadas. Nessa lgica,
podemos entender o videoclipe como uma nova camada de mediao sobre a cano popular massiva,
desta vez, estando sujeita sobreposio de uma camada visual. Essa nova camada de mediao
visual est articulada
construo de um objeto (o videoclipe) que seja o mais prximo e fiel ao universo do
objeto que sintetiza (a cano) e, portanto, estando articulado ao gnero musical e narrativa particulardo artista que performatiza a cano. O videoclipe como construtor de um espao na cano popular
massiva obedece a uma srie de regras que articulam, portanto: o percurso da prpria cano, as
reverberaes sonoras existentes na cano, a dinmica da construo imagtica do gnero musical e a
narrativa particular do artista protagonista do videoclipe.
Os atos performticos da msica popesto diretamente conectados ao universo dos gneros. Ser
um astro do cenrio heavy metalou da msica eletrnica exige relaes com a audincia que seguem as
especificidades dessas expresses musicais. Do mesmo modo que uma cano simultaneamente a
msica e sua respectiva performance, a audincia no consome somente as sonoridades ou a
performance virtual inscrita nos gneros. A relao entre ouvir msica e responder corporalmente a
determinada sonoridade uma questo de convenes que, muitas vezes, parecem naturalizadas pelos
consumidores de um gnero.
A dana das canes e suas performances
Alm dos aspectos performticos ligados ao ritmo e execuo musical, a configurao corporal e a
voclica tambm esto ligadas s estratgias comunicacionais que envolvem a constituio da imagem
dos intrpretes da msica pop que possibilita o estabelecimento de vnculos entre msico e ouvinte,
envolvendo a tnue relao entre intrprete, personagem e pessoa pblica. As diferentes relaes de
intensidade sonora, reverberao, altura de voz em relao aos instrumentos percussivos e harmnicos
esto diretamente atreladas aos horizontes de expectativa dos diferentes gneros musicais.
Toda expresso musical da cultura popular de massa indica modos de especficos de corporificao,
que incluem, claro, determinados modos de danar. Dana aqui no significa somente uma expressopblica de certos movimentos corporais diante da msica e, sim, a corporificao presente na prpria
msica, mesmo para os gneros musicais que pressupem uma audincia passiva em termos de
movimentos corporais. Quando danamos (pelo menos em se tratando de danas codificadas
socialmente), sujeitamos os movimentos de nossos corpos a regras musicais, o que revela um senso
fsico da produo de sentido diante da msica. Danar, como demonstram, por exemplo, o samba e o
funk, um modo codificado de processar a msica. Isso sem falar nos aspectos gestuais que, muitas
vezes, envolvem movimentos os quais funcionam como estmulos/respostas relacionados prpria
estruturao de refres e solos das canes.
Por outro lado, a corporificao da produo de sentido da msica popest atrelada s dices
dos gneros e canes, ou seja, toda execuo musical implica determinadas questes: qual a voz que
canta (ou fala)? Ou, no caso de alguns subgneros da msica eletrnica: quais os corpos que tocam edanam a msica? Quem est tocando, falando e/ou cantando?A performatividade da voz ou do ato de
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tocar descreve um senso de personalidade, um modo peculiar de interpretar no s determinada msica
como as
prprias convenes de gnero, um modo caracterstico de corporificao das expresses
musicais. Diferentes canes e gneros musicais apresentam timbragens, mixagens e dices
caractersticas; antes de se reconhecer quem ou o que se canta, a cano endereada
ao ouvinte atravs do modo de cantar. Assim, a vocalizao e a interpretao de uma certa cano soincorporaes musicais. Ouvir msica incorpar no s as vozes mas tambm os instrumentos
harmnicos e percussivos. S para citar um exemplo, vozes
masculinas e femininas, mesmo quando interpretando a mesma cano, so definidas de maneira
estrutural, como sons ouvidos de maneira interdefinida com outras sonoridades
que, nesse caso, no esto, necessariamente, restritas ao campo musical. Ns ouvimos
e vivenciamos vozes masculinas e femininas, e suas respectivas corporificaes, de
acordo com nossas preferncias e prazeres. Em relao voz, deve-se tambm levar em considerao
os aspectos da gravao da voz e a utilizao tcnica/performtica do
microfone como importantes elementos na configurao da msica popular massiva: O
microfone nos permitiu ouvir as pessoas em modos que normalmente implicam intimidade o sussurro,
a delicadeza, o murmrio (FRITH, 1996, p. 187).
Visualizando a voz no videoclipe
Como j alertou Paul Zumthor (1997), a voz emitida, pensada e apreciada iconicamente. Ou seja,
ao nos determos na audio de uma determinada voz, somos impelidos a registrar de maneira imagtica
as operaes executadas pelo intrprete. As
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inflexes das execues dos cantores podem ser uma porta de entrada para o universo
dos intrpretes da msica popular massiva que se utilizam do videoclipe como aporte conceitual de suascarreiras: a virtuosidade do canto de Bjrk 11, por exemplo, pressupe uma srie de gestuais do rosto, das
mos e do corpo da intrprete que, inevitavelmente,
so incorporados nos seus clipes; a guturalidade das inflexes do canto de Derrick Green,
vocalista do Sepultura, pressupe a visualizao de movimentos do rosto e do corpo do intrprete que se
apresentam tanto em performancesao vivo quanto em videoclipes como constituintes de uma presena
cnica miditica; os sussurros no canto de Madonna nas fases mais sexualizantes de sua carreira
tambm apontam para uma modulao vocal e da imagem da cantora como aportes de algo
essencialmente imagtico.
Dessa forma, a partir da percepo de que os esforos e as apresentaes vocais interferem no
fraseado, na forma de dizer e na expressividade, e a partir de uma srie de inferncias sobre as
determinaes tecnolgicas que acentuam certos timbres ou corrigem falhas vocais, podemos inferir quea voz um dos alicerces da compreenso de como a performancese materializa imageticamente. Essa
materialidade imagtica da voz na performance pode empreender tambm inferncias de ordem
sinestsica nos suportes de registro do visual no videoclipe. Ou seja, h determinadas configuraes
sonoras extensivas que podem se articular imageticamente a movimentos de cmeras contnuos e longos
(contradizendo grande parte das classificaes que insistem em tratar o videoclipe como oriundo de uma
tessitura imagtica fragmentada), e a guturalidade vocal como empreendida a partir da reverberao do
som que tremula os suportes de registro (a cmera) e o sussurro vocal como condizente a uma lentido
felina na movimentao dos suportes.
Alguns desses aspectos da performanceso fundamentais para a compreenso do que se possa
considerar uma interpretao autntica, cooptada, impessoal ou verdadeira; valoraes
fundamentais para as estratgias de produtores, msicos e crticos no processo de endereamento doproduto musical ao seu pblico. Aqui, possvel notar de maneira clara como o entretenimento, a potica
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e a esttica dos produtos da cultura popular de massa esto atrelados tanto s lgicas mercadolgicas
quanto estrutura musical das canes. A msica pop expressa emoes a partir do modo como as
letras e sonoridades so interpretadas, embaladas e consumidas.
Consideraes finais
Traar a genealogia de um videoclipe a partir das configuraes da cano envolve localizar
estratgias de convenes sonoras (o que se ouve), convenes de performance (regras formais e
ritualizaes partilhadas por msicos e audincia), convenes de mer11
Cantora islandesa com marcante caracterstica excntrica. Tem uma voz com forte acento infantil e realiza
maneirismos vocais a partir de gritos e sussurros.
cado (como a msica popular massiva embalada) e convenes de sociabilidade (quais valores e
gostos so incorporados e excorporados em determinadas expresses musicais). Assim, o crtico e/ou analista pode partir das relaes que vo do texto ao contexto, dos msicos
audincia, do gnero aos relatos crticos, dos intrpretes ao mercado para
dar conta das questes que envolvem a formao dos gneros musicais.
O videoclipe, portanto, integra-se a essa cadeia na medida em que tensiona certas convenes
sonoras, podendo legitimar ou negar determinadas performances musicais sobretudo em funo da
necessidade de atrelamento narrativa particular de um artista; da mesma forma que serve como
incremento das convenes de mercado, sobretudo de sua embalagem, gerando matrizes de
sociabilidade como valores, gostos e afetos que so incorporados ou excorporados em determinadas
expresses musicais. Nesse sentido, a utilizao de conceitos acerca das canes, dos gneros musicais
e das configuraes de performance pode empreender numa perspectiva de localizao de regras
econmicas, semiticas, tcnicas e formais, e de identificao de certas convenes imagticas, que
tensionam os questionamentos e as problemticas acerca do videoclipe na comunicao e cultura
contemporneas. Assim, aliar os elementos plsticos/miditicos da cano aos elementos imagticos do
videoclipe permite ao analista a compreenso de como a produo de sentido dos produtos miditicos
passa por uma complexa rede scio-semitica, caracterizada tanto por elementos expressivos das
produes comunicacionais quanto por suas configuraes como expresses das indstrias culturais.
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JEDER JANOTTI JNIOR Professor e Coordenadordo grupo de pesquisa Mdia & Msica Popular Massiva no
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Programa de Ps-Graduao em Comunicao e Cultura Contemporneas
(UFBA), autor dos livros Aumenta Que Isso A Rock and Roll: Mdia, Gnero
Musical e Identidade (E-papers, 2003b) e Heavy Metalcom Dend: Rock
Pesado e Mdia em Tempos de Globalizao (E-Papers,
2004).
THIAGO SOARES Doutorando em Comunicao e Cultura
Contemporneas (UFBA), integrante do grupo
de pesquisa Mdia & Msica Popular Massiva, autor do
livro Videoclipe: O Elogio da Desarmonia (Livro Rpido, 2004a).
Artigo recebido em 30 de julho de 2007 e aprovado em 30 de
setembro de 2007.