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1' \ i men ti'.ihaiho de fotografo. compondo :i ILIX nuni espayo ob.scuro conex'bido como \ >iume. son au.sciente d;t scparacao do mundo do ver- bo daqucle da irn;tgem que eu qucro rcconciliar, ficando fiel ao iconofilo exterior cjuc eu era. e ao iconofilo interior cm que me transformer Po.sso dix.er que nunca pegitei nada em fotografia. Pegar em foto e uma constatacao valida para os outros, que me veem como fotografo. Na realidade eu tentei sobretudo fazer valcr uma imagem mental convertendo- se em pelfcula. Isto que eu fotografo, os outros nao podem faze-lo, e reci- procamente. Situando-me no ponto zero da fotografia eu devo refletir novamente sobre uma significance apropriada da camera obscura, da qual eu tenho a experiencia material em absolute. Se as minhas imagens existem para mini atraves da descricao dos outros, isto nao me impede em nada a pos- sibilidade de vive-las pela atividade mental. Elas existem mais para mim quanto mais elas possam se comunicar tambem com os outros. Talvez Filostrato tenha visto a galeria de Napoles; todavia, pelo seu texto podemos imagina-la. As pessoas que olham diretamente as minhas fotos me dao a possibilidade de me assegurar da realidade materializada dos meus atos mentais. For esta razao, eu me considero um artista concei- tual sempre obrigado a pre-imaginar a imagem sobre a pelfcula. O apare- Iho fotografico nao pode pensar por mim. Traduqao de Rubens Machado 466 MERLEAU-PONTY Obra de arte e filosofia Marilena Cbaui DESFAZENDO AS AMARRAS DA TRADIfAO Merleau-Pomy busca o Esgfrito Selvagem e o_Ser,Bruto. Sua imerro- gacao vem exprimir-se numa espanfosa nota de trabalho de seu livro pos- tumo e inacabado, O.viswel e o invisivel: "O Ser e o que exige de nos criacjo para que dele tenhamos experiencia". Frase cujo prosseguimento retine emblematicameme arte e filosofia, pois a nota continua.- "filosofia e arte, juntas, nao sao fabricacoes arbitrarias no universe da cultura, mas contatp com o ser justamente enquanto criacoes". Por que criafdo? Porque entre a realidade dada como um fato, institui- [- da, e a essencia secreta que a sustenta por dentro ha o momento instituinte no qual o Ser vem a ser: para que o ser do visfvel venha a visibilidade,' solicita o trabalho do pintor: para que o ser da linguagem venha a expres- sao, pede o trabalho do escritor; para que o ser do pensamento venha a inteligibilidade, exige o trabalho do filosofo. Se esses trabalhos sao cria- dores e justamente porque tateiam ao redor. de uma intencao de exprimir alguma coisa para a qual nao possuem um modelo que Ihes garanta o acesso ao Ser, pois e sua acao que se abre e abre a via de acesso para o contato pelo qual pode haver experiencia do Ser. Por isso, em A linguagem indi- reta e as voZes do silencio, opondo-se a teoria de Malraux sobre o artista como "genio e monstroincomparavel", Merleau-Ponty assinala que o pro- blema da arte moderna nao e o surgimento do indivfduo, mas o da coniu- nica^ao com o Ser sem ojigoio numa J^atureza^preestabelecida e fonte (*) Serao citadas as seguintes obras de MerJeau-Pomy: Le visible et I'hirisible, Paris. Gallimard, 1964 (trad, brasileira, O lisirel e o invisivel, Sao Paulo, Perspectiva. 1971); "Lc doiite de Cezanne", em Sens et non-sens, Genebra, Nagel, 1965: / 'oeit et /'esprit, Paris. Gallimard, 1964; "Le langage indirect et les voix du silence", em Signes. Paris, Gallimard, 1960: "L'algorithme et le mystere du langage", em La prose du motide, Paris, Gallimard, 19"!,

Obra de Arte e Filosofia

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Texto Marilena Chaui

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  • 1' \ i men t i ' . ihaiho de fotografo. compondo :i I L I X n u n i espayo ob.scuroconex'bido como \ > iume . son au.sciente d;t scparacao do mundo do ver-bo daqucle da irn;tgem que eu qucro rcconciliar, ficando fiel ao iconofiloexterior cjuc eu era. e ao iconofilo interior cm que me transformer

    Po.sso dix.er que nunca pegitei nada em fotografia. Pegar em foto euma constatacao valida para os outros, que me veem como fotografo. Narealidade eu tentei sobretudo fazer valcr uma imagem mental convertendo-se em pelfcula. Isto que eu fotografo, os outros nao podem faze-lo, e reci-procamente.

    Situando-me no ponto zero da fotografia eu devo refletir novamentesobre uma significance apropriada da camera obscura, da qual eu tenhoa experiencia material em absolute. Se as minhas imagens existem paramini atraves da descricao dos outros, isto nao me impede em nada a pos-sibilidade de vive-las pela atividade mental. Elas existem mais para mimquanto mais elas possam se comunicar tambem com os outros.

    Talvez Filostrato tenha visto a galeria de Napoles; todavia, pelo seutexto podemos imagina-la. As pessoas que olham diretamente as minhasfotos me dao a possibilidade de me assegurar da realidade materializadados meus atos mentais. For esta razao, eu me considero um artista concei-tual sempre obrigado a pre-imaginar a imagem sobre a pelfcula. O apare-Iho fotografico nao pode pensar por mim.

    Traduqao de Rubens Machado

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    MERLEAU-PONTYObra de arte e filosofia

    Marilena Cbaui

    DESFAZENDO AS AMARRAS DA TRADIfAO

    Merleau-Pomy busca o Esgfrito Selvagem e o_Ser,Bruto. Sua imerro-gacao vem exprimir-se numa espanfosa nota de trabalho de seu livro pos-tumo e inacabado, O.viswel e o invisivel: "O Ser e o que exige de noscriacjo para que dele tenhamos experiencia". Frase cujo prosseguimentoretine emblematicameme arte e filosofia, pois a nota continua.- "filosofiae arte, juntas, nao sao fabricacoes arbitrarias no universe da cultura, mascontatp com o ser justamente enquanto criacoes".

    Por que criafdo? Porque entre a realidade dada como um fato, institui- [-da, e a essencia secreta que a sustenta por dentro ha o momento instituinteno qual o Ser vem a ser: para que o ser do visfvel venha a visibilidade,'solicita o trabalho do pintor: para que o ser da linguagem venha a expres-sao, pede o trabalho do escritor; para que o ser do pensamento venha ainteligibilidade, exige o trabalho do filosofo. Se esses trabalhos sao cria-dores e justamente porque tateiam ao redor. de uma intencao de exprimiralguma coisa para a qual nao possuem um modelo que Ihes garanta o acessoao Ser, pois e sua acao que se abre e abre a via de acesso para o contatopelo qual pode haver experiencia do Ser. Por isso, em A linguagem indi-reta e as voZes do silencio, opondo-se a teoria de Malraux sobre o artistacomo "genio e monstroincomparavel", Merleau-Ponty assinala que o pro-blema da arte moderna nao e o surgimento do indivfduo, mas o da coniu-nica^ao com o Ser sem ojigoio numa J^atureza^preestabelecida e fonte

    (*) Serao citadas as seguintes obras de MerJeau-Pomy: Le visible et I'hirisible, Paris.Gallimard, 1964 (trad, brasileira, O lisirel e o invisivel, Sao Paulo, Perspectiva. 1971); "Lcdoiite de Cezanne", em Sens et non-sens, Genebra, Nagel, 1965: / 'oeit et /'esprit, Paris.Gallimard, 1964; "Le langage indirect et les voix du silence", em Signes. Paris, Gallimard, 1960:"L'algorithme et le mystere du langage", em La prose du motide, Paris, Gallimard, 19"!,

  • paradigmas. dc unia saida-oa incrcncia e da rruicao dc si para acederao univer.satatravc.s do particular, enconirando na particularidadc (o cstiio)o meio para dar a ver c a tonitccer a universalidade (a obraj. I:i.s por queMcrleau-Ponty, naquela mesma nota dc trabalho, accntua que . sc trata dacriacao em sentido radical, oferccendo-a com as expressoes contatd)coio Ser, reiniegrafdp no Ser, inscri^ao no Ser,, r, eenja^dfpj^tgniaru).

    Que laco amarra num tecido unico experiencia, criacao, origcm e Ser?Aquele que prende Espfrito Selvagem e Ser Bruto.

    Que e Espfrito Selvagem? E o espfrito de. praxi|'que quer e pode algu-ma coisa, o sujeito que nao diz "eu penso", elsirh "eu quero", "eu pos-so", mas que "nao saberia como concretizar isto que quer e pode senaoquerendo e podendo, isto e, agindo. O que torna possivel a experienciae a existencia de uma fgjta ou de uma lacuna a serem preenchidas, sentT-das pelo sujeito como intencao de significar alguma coisa precisa e deter-minada, fazendo do trabalho para realizar a intencao significative o pr6-prio caminho para preencher seu vazio e determinar sua indeterminacao,levando a expressao o que ainda e nunca havia sido expresso. Ha umaintencao significativa que e, simultarieamente, um vazio a ser preenchidoe um vazio determinado que soiicita o querer-poder do espfrito, suscitan-do sua a^ao significadora a partir do que se encontra disponfvel na cultu-ra como falta. e^excessp, que exige p surgimento de um sentido.novoi Ocriador, lemos em Senso e ndo-senso, nao se contenta em ser um ' 'animalculto", mas vai a origem da cultura para funda-ia^novamente. O EspfritoSelvagem e atividade :_nascida_de uma fpr^a "eu quero", "eu posso" e de uma carencia ou lacuna que exigem; preenchimento significative).;O sentimento do querer-poder e da falta suscitam a acao significadora quee, assim, ejcperienda atiyajje deterrninacao dpiindeterrninado; o pintordesvenda p irivisiver, o_.escritor quebra or Realizam um trabalho no quafverh exprimir-se o co-perten-cimeritede uma, intencao e de urn gesto inseparaveis, de um sujeito queso se efetua como tal porque^arde^para ex-por sua interioridade praticacomo obra. E isso^ criac^o, fazendo vir ao Ser aquilo que sem ela nosprivaria de experimenta-lo.

    Mas, por que Ser Bruto?O Set Bruto i o sgr_djridivisjiQ., descnnhpreridn^geparacap entre

    sujeito eopieto^jlma e corpo^ eonsciencia e mundo. Indiviso, no entan-to, epura diferenQi interna e nap positividade idnti_ea a si mesma: e pordiferenca.queTTao vermelho ou o verde entre as cores, o alto e o baixoou o proximo e o distante, fazendo existir espaco como_gualida_de ou pu-ra^ifje^ejTcJacaade^lugaces. Ser de indivisao, o Ser Bruto e o iHvisivel quefaz ver porque sustema gor_dentro o visivel, o indizivel que faz dizer por-que sustenta por dentro 'o dizfvel, o irnpens^velvque faz pensar porquesustenta por dentro o pensavel. Nao sendo urri positive, tambem nao e

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    um ncgativo, ma.s aqui lo que,/^or dentro. permitc a positividade de um'visfvel, dc um dizfvel, de um p?nsavel, "como a nervura secreta que sus-tenta e conserva unidas as partes de uma folha, dando-lhe a estrutura quemantem diferenciados e inseparaveis o dircito e o ayesso. O Ser Bruto ea dist3ncia interna entre um visfvel e outro que c seu invisivel. entre umdizfvel e outro que e seu indizivel, entre um pensavel e outro que e seuimpensavel. E um ''sistema de equivalencias'' diferenciado e diferencia-dor pelo qual ha mundp) Eis por que Renoir podia pintar a agua do riachodas Lavandieres olhando para o mar: pedia-lhe o acesso ao elemento If-quido como pura diferenca entre elementos e como sistema de equiva-lencias da substancia Ifquida. Desatando os liames costumeirbs entre ascoisas, o Ser Bruto abre o acesso a uma relacao originaria entre elas comodifereng|s qualitati vas que sp^xiJ2ej^e_seJmejprtarriajimesrrjas enquantpf^rrfflijs3acoresr9as texturas, dos sons, dos pdpresjque reenviam a subs-tancialidade impalpaverdo que as faz vir_a ser. Se o Ser exige de nos cria-

    ..; . . cao para que dele tenhamos experiencia, entretanto, nao deposita todaa iniciativa do vir-a-ser na atividade do Espfrito Selvagem. mas. como SerBruto, compartilha daquele o trabalho criativo, dando-lhe o fundo do quale no qual a criacao emerge.

    Ser Bruto e Espfrito Selvagem estao entrelacados, abracados e enlaca-dos.- pjnvisfyel permite o trabalho de criacao do visfvel, o indizfvel. o dodjziyd, ojmpensaveJ'," pi do]pensave). Merleau-Ponty fala numa visao, nu-ma fala e num perisanjnstituinjeljque empregam o institufdp a cultura para fazer surgrngJarnlffi^sjEp} jasiais_ditp>)arriais pensadd a pbra.O Ser Bruto era o que Cezanne desejava pintar quando dizia dirigir-se" "afonte impalpavel da sensacao" porque "a Natureza esta no interior". Eo origina"rio, nao como aJgo passado que se desejaria repetir, mas comoo aqui e agora que sustenta, pelo avesso, toda forma de expressao.

    Abracados e enlacados, Espfrito Selvagem e Ser Bruto sao a polpa car-nal dp mundo, carne de nosso corpo e carne das coisas. Carne.- habitadaspor significacoes, as coisas do mundo possuem interior, sao fulguracoesde sentido, como as estrelas de Van Gogh; como elas, nosso corpo tam-b6m possui interior, e e faz sentido. Se elas e nos nos comunicamos naoe porque elas agiriam sobre nossos 6rgaos dos sentidos e sobre nosso sis-tema nervoso, nem porque nosso entendimento as transformaria em ideiase conceitos, mas porque elas c nos paftjciBarnos da mesma Carne. A Carnedo Mundo e o que e visfvel por si mesmo, dizfvel por si mesmo, pensavelpor si mesmo, sem, contudo, ser um gleno macifp, mas, paradoxalmen-te, unipjeno^orosp, habitado por um'oco pelo qual um posjtjvp^comemnele mesmo o negative que aspirajjpr ser, uma falta nopToprio Ser, fissu-

    j^"queWpreencheaocavar-see que se cava aopreencher-se. Nao e, pois,uma presenca plena, masgrejenca habitada por uma ausencja que nao cessade aspirar pelo preenchimento e que, a cada plenitude, remete a um vazio

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  • J-'seni o qual nao poderia vir :i ser. H "^J^iasma do visivel e do invdo dizfvel e do indixivel. do pensavel e do impensavel. cuja rcversibilida-de e diferenciacao se fazem por si mesmas.

    Merleau-Ponty fala em deiscencia da Cctnic, vocabulo vindo da bo-tanica para referir-se a abertura cspontanea dos orgaos dos vegetais quan-do alcanc.am a maturidade, dispostos a fecundar e a ser fecundados. A Camee p originario, e este, genese interminavel que pede, exige nossa criacaopara que possamos experinienta-Jo. E podemos responder -ao seu apeloporque somos feitos da mesma polpa insondavel que ele. Somos espfritosverdadeiramehte encarnados., - - ^, < ,

    Ser de indivisao, o Ser Bruto e o que placessa dc djferencigr-sg ppxsi mesmo, duplicando todos os seres, fazendo-os ter um fora e um dentroreversfveis e parentes. Assim, se e por ele que somos dados ao ser, comoa crianca e dada a luz ao emergir do interior do corpo materno, no entan-to, e por nos que ele se manifesta, como no instante glorioso em que opintor faz vir ao visivel um outro visivel que recolhe o primeiro e Ihe con-fere um sentido novo. O/^Qun3p~da'cuiruraJfecundidadc que passa. masnao cessa, e o parto interminavel do Ser Bruto e do Espfrito Selvagem.

    Busca-los e desamarrar os lacos que amarravam o pensamento avtra-dicao filosofica evjecomecjiF a interrpgacao, interpelando, de um lado, asobras filosoficas para nelas encontrar as questoes que as fizeram nascere viver em seu tempo e sua hora, mas, por outro lado, interpelando a obrade arte como abertura para aquilo que a filosofia e a ciencia deixaram deinterrogar ou imaginaram haver respondido. "A ciencia manipula as coi-sas e recjjsa-se a habita-las", lemos na abertura de O olho e o espfrito. Em-pregando instrumentos tecnicos, constrdi o rhundo como nhjeto em Ge-ial, destinado a ser apenas aquilo que Ihe e permitido ser peias operacoesque o construfram. A filosofia, por seu turno, erige-se em Sujeito Univer-sal quf, de lugar algum e de tempo nenhum, ergue-se como puro_olharimejectual desencarnadp que contempla soberanamente o mundo, domi-nando-o por meio de representacoes construfdas pelas operacoes intelec-tuais. Nao ppjvacasp, diz Merleau-Ponty, filosofia e ciencia, desde Platao,erigiram amatematica):omo paradigma do conhecimento e do pensamentoverdadeiroT isto e, elegeram como ideal do saber o ta mdthema, aquelemodo de pensar que domina intelectualmente seus objetos porque os cons-troi inteiramente* A tradicao filosofico-cientffica e seii efeito principal a tecnologia como domfnio instrumental dos constructos

    indp, giais_yelho do,que n6s e do que nossas representacoes, e aban-dono do pensamento encarnado num corpo que pensappjrcoataig e porinerencia as coisas. alcahc,ando-as de modo oblfguo ejndiretp. O apeloa obra de arte compiecpfneco da interrogacao filosofica1 e apelo aqueles

    nao manipulam e sim manejam as coisas e que, "ruminandp o mun-, jarnais abandonam sua inerencia a ele, mas, de dentro dele, o"ttansfi-

    -^O

    guram para que scja vcrdadeiro sendo o que e quaiu: > encontra quem sai^ba vc-lo ou dixe-lo. isto e. quem consign arranca-lo de si mesmo para quesen scntido venha a cxpressao. Em outras palavras. a invocacao das obrasde arte rompe com a tradicao filosofica que as julgara c_6pias imaginativas

    /da perccpcao, sjmulacros.platoniccjs e, portanto, identificara ficcao, erro> e ilusao. O imaginario nao e, como supusera Sartre, a presenca plenamen-te observavel, porque a imagem e pura construcao subjetiva herdeira dasensacao e da memoria, mas, lemos em Oolho e o espfrito, e "o diagramado real em meu corpo" e a "textura do real que atapeta interiormeme"a visao, a linguagerh e o pensamento, Desfazer a tradicao filosofica, gracasao ensinamento da arte, e famais esquecer que o artista tern seu corpo "co-mo sentinela em vigflia as portas do sensivel" e que cabe a fiJosofia recu-perar a :"dignidade^ontolj5gica do sensivel". '

    Desamarrar^os nos da tradicao filosofica e, pois. renunciar aomodelo,Cl3Sl_do(Espfrite que a fiJosofia ergueu sobre uma imagem da consciencia senrqle ,e e indivisao que nao identifica Cezanne 030 e a Montanha Santa Vito-ria, Mozart nao e a Flauta Magica, Guimaraes Rosa nao e Diadorim. A ex-periencia e o ponto maximo de proximidade e de distancia, de inerdnciae diferenciacao, de unidade e pluralidade em que p Mesmo ,se faz Outro..DP interior_de si mesmo.^ "O que e a experiencia da visao? E o ato de ver, advento simultaneodo vidente e do visfvel como reversfveis e entrecruzados, gracas ao invi-sfvel que misteriojamente os sustenta. O que e a experiencia da lingua-gem? E o ato de dizer como advento simultaneo do dizente e do dizfvel,gracas ao silencio que mistef losamente os sustenta. O que e a experiSnciadapensamento? E o ato de pensar como advento simultaneo do pensantee do pensavel, gracas ao impensado que misteriosamente os sustenta. h.exrjeri|ncia e o que em n6s se ve quando vernos, o que em nos iB'falaquando falamos, o que em nos se pensa quando pensamos. Nenhum dostermos e origem: visfvel, dizfvel e pensavel nao existem egisj como eoi-

    ou ideias; vidente, falante e pensante nao sao operacoes de um sujeito

    conni pura conscicnda dc.scncarnada: viM'vcl. dizfvel e pensavel nao saocausas da visao. da linguagem e d01o (coisa ou consciencia, sujeito ou objeto, visfvel ou vidente, vi-sfvel ou invisfvel, palavra ou silencio), mas precisa sempre mover^e no^gn.-trt-dois}sendo mais importante o mover-se do que o entre-dois, pois entre-dois poderia fazer supor dois termos positivos separayeis, enquanto o

    re vela que a experiencia e "o~pensaniento T s a o l H M I a f c d e : um 'Jqnno por dentro do put.rp. passando pelos poros do outro7cada quaTrcefiviando ao outro sem cessar. Eis por que as artes ensinam a filosofia a im-possibilfdade de um pehsarnento de sqbrevdo que veria tudo de uma sovez, yeria cada coisa em seu lugar e com sua identidade, veria redes cau-sais completas, veria todas as relacoes possfveis entre as coisas, como oolhar do Deus de Leibniz, geometral de todos os pontos de vista. Merleau-Ponty insiste em que o artista ensina ao filosofo o que e existir como umbumano. ~ - v ' .

    A experiencia e esse fundo que sustenta a manifestacao da propriaexperiencia, sem o qual ela nao existiria como a figura nao existe semo fundo e gracas ao qual os termos que a constituem sao^eversfveis como o fundo que se torna figura e a figura que se torna funcTo. Essefundo imemorial, essa ausfincia que suscita uma presenca, e inesgotavel:nao W uma yosaoietal que veria tudo e completamente, pois para ver epreciso a profundidadftque nunca pode ser vista; nao ha uma linguagem

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  • otal que diria tudo c completamcnte. pojs para f'alar e precise o silenciosem o qual nenhuma palavra poderia ser proferida; nao ha um pensamen-to total que pensaria tudo t completamente. pois para pensar e precisooNimpensado' que faz pensar e da a pensar. Assim. se oQbndo e uma ausenciaque pede uma presenca, um vazip que pede preenchimento, ele e tam-bem, c simultaneamente, um i npei: o que nos leva a buscar novasex-pressoes e o excesso do que gnetempa exprimir sobre o que ja foi expresso.A cultura sedimenta e cristaliza as expressoes, mas o institufdo carrega umvazio e um excesso que pedem nova institiucao, novasjxpressoes. Comisto, o primeiro parentesco profundo entre filosofia e arte aparece: a obrade arte como a obra de pensamento sao interminaveis. O pintor nap po-de parar de pintar, o musico nao pode parar de compor, o poeta nao podeparar de escrever, o pensador nao pode parar de pensar. Cada expressaoengendra de si mesma e de sua relacao com as expressoes passadas e com Io mundo presente a necessidade de novas expressoes. A experiencia e asojder humano para transcender a faticidadejnua de uma situacao dada,conferindo-lhe um sentido que, sem a obra, ela nao possuiria. El Greconao pinta figuras longilmeas e curvilfneas por ser astigmata e esquizoide,

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  • ao contnirio, c porquc pinta riguras longilmeas e curvilineas quc e astig-niata c esqui/oidc.

    For scr ansioso c morbido. ter dificuldade na relacao com os outros.desconfiando deles e os temendo, isolando-se cm crises de deprcssao, Zolajulga Cezanne incapaz de atitudes flexiveis e de dominar situacoes novas,refugiando-se nos habitos, pintando apenas a natureza ou dando uma t'i-sionomia desumana aos rostos humanos, pintando-os como se fossem coi-sas. For outro lado, julga Emile Bernard que, distanciando-se dos impres-sionistas, Cezanne queria buscar a realidade sem se afastar da sensagao edas impressoes imediatas, sem cercar os contornos, sem enquadrar a corcom o desenho, sem compor a perspective, tentando alcancar a realidadesem recorrer aos meios que justamente permitiriam alcanca-la, mergulhan-do no caos das sensacoes, incapaz de oferecer um sentido inteligivel aosquadros, afogando "a pintura na ignorancia e seu espirito nas trevas".

    Zola e Bernard quiseram explicar Cezanne. Aplicaram a sua vida e asua obra as dicoto.mias tradicionais entre sensacao e pensamento, caos e

    r/.,Qrdem- Ora, o que Cezanne busca e a "natureza dando-se forma, a ordemnascendo por uma organizacao espomanea". Nao. quer separar as coisasfixas que aparecem ao nosso olhar e seu modo fugidio de aparecer; buscaajupjura_entre a ordem espontanea das coisas percebidaseja ordem hq- Lmgna d-as idetasjELda ciencia. "E esse mundo primordial que Cezanne quispintar e por isso seus quadros dao a impressao da natureza na origem, en-quanto fotografias dessas mesmas paisagens sugerem os trabalhos dos ho-mens, suas comodidades, sua presenc.a iminente." E a natureza em estado

    ; nascente, m7eTaFpT'esencaTTulna1nat/ que ele busca: a paisagem sem ven-to, o lago sem movimento, os objetos geladjbs hesitantes como na origemda terra, o fundo desumanc^primordial sobre o qual o humano se instala.

    Cezanne dizia desejar "unir natureza e arte", dar um sentido a expres-sao classica: a arte e o homem acrescentado a natureza. Nosso olho naoe um objeto tecnico, nao e um aparelho fotografico. Diferentemente damaquina fotografica, nao vemos obliquamente um cfrculo como se fosseuma elipse, vemos uma forma que oscila entre o cfrculo e a elipse, semser nenhum deles. A perspectiva buscada por Cezanne, assim como a pes-quisa da cor e seu emprego sao, do ponto de vista da geometria e da opti-ca, deforrnacjoes'deliberadas porque somente assim'" sao capazes de dara impressao de uma ordem nascente, de um objeto comecando a apare-cer e aparecendo, pondo-se a aglomerar-se sob nossos olhos". Cezanneevita a alternativa entre_marcarjQdos os contornos e marcar um so: para x

    ^oferecer uma coisa inesgotavel, busca modulacoes coloridas, de maneira-^que o desenho resulte da cor, dando o mundo em sua espessura, rnassa

    sem lacunas, organismo de cores, fazendo o espaco fulgurar como vibrac.ao.O mundo ser bruto e vertical, simultaneidade de todas as dirnen-

    soes (olfativas, gustativas, visuais, motrizes, sonoras, tacteis) para ser

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    expresso como totalidade leva Ce/anne a mcditar "as ve/cs d u i a n t c umahora antes de depositar o toque" sobre a tela, pois cada tociuc deve con-ter "o ar. a luz, o objeto, o piano, o carater, o desenho e o es t i l r j " . A ex-pressao do que existe, escre\ Merleau-Ponty, e uma tareta in f in i t a .

    Cezanne nao negligenciava a fisionomia dos objetos. mas a buscavaquando emerge da cor. Dizia que "o pintor interpreta um rosto". Inter-pretar nao e uma operacao do intelecto ou do pensamento que se senarada visao para explica-la e para conceituar um rosto visfvel. Interpretar umrosto em pintura e "ver o espirito que se le nos olhare's que sao apenasconjuntos coloridos", pois os "outros espfritos so se oferecem a nos en-carnados, aderentes a um rosto e a gestos". Cezanne deseja a^xperiencia

    >^rimordjal, aquela que desconhece a separacao conceitual entre a almae o corpo, deseja o misterio da aparic.ao de um outro humano no interiorda natureza.

    Que e o trabalho da pintura, para Cezanne!' No romance La peciu dechagrin, Balzac fala numa "toalha branca como uma camada de neve fres-camente cafda sobre a qual ele\avam-se simetricamente os talheres coroa-dos de paezinhos loiros". Dizia Cezanne: "durante toda a minha juventu-de quis pintar isto, essa toalha de neve fresca... Sei, agora, que e precisoquerer pintar apenas 'elevavam-se simetricamente os talheres' e 'paezinhosloiros'. Se eu pintar 'coroados', estarei fodido. entende? Se verdadeira-mente equilibro e matizo meus talheres e meus paes como na natureza,tenha certeza de que as coroas, a neve e todo o tremor al estarao". Dondeo comentario de Merleau-Ponty: Cezanne^ poe em suspenso o mundocultural, feito de utensilios e objetos que trazem a marca da intervencaohumana sobre a natureza, para pintar a vibracao e a fulguracao do mundoantes.do homem. E esse olhar do pintor, que revela ojiao-hurnano ouo ainda nao-humano, so e possfvel para um ser humano que vai as raizesdas coisas, abaixo do mundo constitufdo pela cultura, para captar ojnsti-tuinte como criafao.

    Cezanne busca o que chamava de "amgtiro^', como falamos no mo-tivo de uma renda ou de um bordado. o tema central que da coesao esentido ao todo. Dizia: "Ha um minuto do mundo que passa. e precisopinta-lo em sua realidade". Meditava horas, dias. e a longa meditacao termi-nava quando podia dizer: "agarrei meu motive". A partir desse momento,

    atacava o quadro por todos os lados ao mesmo tempo, cercava com man-chas coloridas o primeiro tra?o de carvao, o esqueleto geologico. A imagemse saturava, ligava-se, desenhava-se, equilibrava-se, vindo_a maturidade de umaso^ez. A paisagemrsepensa tm. mini, sou a consciencia dela.r. O pintor reto-ma e convene justamente em objeto visivel aquilo que, sem ele. ficaria en-cerrado na vida separada de cada^onsci6ncia: a vibracao das apardncias quee o berco do mundo... Para esse pintor, ha um s6 sentimento de estranhexa,um so lirismo: a existencia sempre recomecada.

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  • tambem conhccc surdas mutaes. H:i um tempo da cultura cm que as ohrasde arte e da ciencia se gastam. cmbora .stja um tempo mais lento do que oda historia e o do mundo fisico.'Na obra de arte como na obra teorica, assimcomo na coisa sensivel. o.scntido_e inigparavel dojigno. A expressao, por-tanto, nunca esta acabada.

    A OBRA DE ARTE COMO FILOSOFIA SELVAGEM

    "O pintor 'traz seu corpo'. Com efeito, nao vemos como um espiritopoderia pintar. E emprestando seu corpo ao mundo que o pintor trans-forma o mundo em pintura." Com essas palavras, Merleau-Ponty abre o-,ensaio O olho e o espirito.

    A pintura e transubstanciacao entre o corpo do pintor e o corpo dascoisas. Como e isso possivel? E que a visao e o movimento sao insepara-veis, embora diferentes: ver nao e apropriar-se do mundo em imagem,mas aproximar-se das coisas, te-las, mas ajiistancia; mover-se nao e reali-zar comandos que a alma envia ao corpo, mas o resultado imanente doamadurecimento de uma visao. Nosso corpo e uma potencia vidente e mo- triz que ve porque se move e se move porque re. Mas por que ha tran-Substanciac.ao entre nosso corpo e o mundo? j ' ,

    CKcorpo e um enigma. Entre as coisas visiveis, e um visivel, mas do-tado do poder de ver e vidente. Visivel vidente, o corpo tem o poderde ver-se quando ve, ve-se vendo, e um vidente visivel para si mesmo.Entre as coisas tacteis, o corpo 6 um tactil, mas dotado do poder de tocar e tocante. Tactil tocante, tem o poder de tocar-se ao tocar, e um tocan-te tactifpara si mesmo. Entre as coisas moveis, o corpo e movel, mas do-tado do poder de mover e urn movente. Movel movente, o corpo temo poder de mover-se movendo e movel movente para si mesmo. Ocorpo e sensivel para si.

    Quando Cezanne afirma que a natureza esta no interior e que pensaem pintura, quando Matisse se olha no espelho pintando-se a si mesmo,quando Klee diz que deseja fazer uma linha sonhar para com o novelode linhas chegar ao elementar, quando Rodin afirma que o que da movi-mento a um quadro ou a uma escultura e a figura do corpo quando cadauma de suas panes se encontra num instante temporal diferente, cada umdeles nao faz outra coisa senao celebrar o njist^rio do sensivel e do corpocomo reflexao.

    A presence das coisas e um misterio porque reivindicam a existenciacomo individuos e so podem te-la se forem mais ou menos do que indivf-duos. Mais: sao campps ou configura^pes, famflias ou estilos de ser afamilia das cores, dos bdores, dos sonoros. Menos: sao pjurasLdiferencia-coes. Uma cor e pura diferenca entre cores, nao uma coisa, uma onda'lu-

    minosa dotada de idcntidadc. As coisas se entrelagam e se cruzam: a su-perficie sc cnlac,a e se cruza com as cores e os sons que se enlagam e sccruzam com os odores e texturas que se enla^am e se cruzam em movi-mentos infindaveis, numa troca incessante na qual cada um e discernivelporque pertence a uma famflia diferente, mas tambem cada um e indis-cernivel dos outros porque juntos formam o tecido cerrado e poroso domundo.

    Nosso corpo, coisa sensivel entre as coisas, e sensivel para si. E eleque nos faz ver as coisas no lugar em que estao e segundo o desejo delas,realizando o misterio do ver e do tocar, pois visao e tato tem o dom daubiqiiidade: a visao se efetua simultaneamente a partir das coisas e dosolhos, o tato se realiza simultaneamente a partir das coisas e das maos.Nossos sentidos operam por transitivicialJe, enlacando-se como as coisas:o olho apalpa, as maos veem, os olhos se movem com o tato, o tato sus-tenta pelos olhos nossa mobilidade e imobilidade, compensando a imobi-lidade e a mobilidade das coisas.

    O pintor e o escultor desvendam o misterio das coisas e do corpoporque revelam o corpo como sensivel errante um sensivel entre ossensiveis e um sensivel concentrado um sensivel sentiente que e sen-sivel para si mesmo. O trabalho_do.jjrtiia-destr6i a distinc.ao metafiskaentre tfajsugdaj^e ajiYidad_, desvendando-as como simultaneas e indis-cerniveis. Pintura e escultura vao alem dessa destfuic.ao. Por elas, desco-brimos que o corpo e misterioso: preso no tecido do visivel, continua ase ver; atado ao tangivel, continua a se tocar; movido no tecido do movi-mento, nao cessa de mover-se. Sofre do visto, do tocado e do movidoa agap que exerce sobre eles. Sente de dentro seu fora e sente de fora seudentro. Sentindo-se, o corpo re/JexiOna. Pela primeira vez, na historia dafilosofia, graas_^obra de arte, descobrimos que asjeflexaj^nao e privile-

    da consci6ncia, mas que esta recoIhfTurna^reflexao mais antiga que a enslna a refletff: a_reflggo_corgoral. Ora, o tra-balhoselvagem do artista revela algo mais: a reflexapcorporal nao e ple-na_pjQsse_de_si^nem plena identidade do corpo consigo mesmoTfnasTne-rencia e c^on/jisao o^lje^ajnagpjmesmo e com as coisas. Essa descobertaensina a filosofia a impossibilidade, para a consciencia, de realizar umareflexao completa e de ser posse intelectual de si e do murftlo. Os olhosnos fazem descobrir quando a filosofia perdeu o foco: quando falou emolho no singular e o designou como olho do espfritd, Ha os olhos.Ha o olho e o espirito. \s Merleau-Ponty:

    A humanidade nao e produzida como feit$> de nossas aniculacoes, nem daimplantacao de nossos olhos, nem pela existencia dos espelhos que, no en-tanto, sao os unices a tornar nosso corpo inteiramente visivel para nos. Essas

  • contingencias c outras scmelhantcs, sem as quais nao haveria homem. naofazem, por simples soma, quc haja urn unico humano... L'm corpo humanoexiste quando, entrc vidente e visivel, entre tangivel e tangiclo, cntre urn olhoe outro, uma mao e outra se realiza uma especie de entrecruzamento. quan-do se acende a flama do sentiente-sensivel, quando "pega" esse fogo que naocessara de queimar ate que urn acidente do corpo fac.a desaparccer o que nenhum acidente teria bastado para fazer... Ora, desde que esse estranho sistemade trocas esteja dado, todos os problemas da pintura estao af. Eles ilustramo enigma do"corpo. la os justifica... Qualidade, luz, cor, profundidade, queestao la longe, s6 estao ali porque despertam um eco em nosso corpo, por-que ele as acolhe. Esse equivalente interno, essa f6rmula carnal de sua pre-senca que as coisas suscitam em mim, por que, por sua vez, nao suscitariamum tracado tambem visivel no qual um outro olhar reencontrara os motivesque sustentam sua inspec.ao do mundo? Entao, aparecera um visivel em se-gunda potencia, essencia carnal ou icone do primeiro. Nao se trata de umduplo enfraquecido nem de uma ilusao de otica, nao e uma outra coisa. Osanimais pintados na parede da caverna de Lascaux nao estao ali como ali es-tao a fenda ou o inchaco do calcario. Mas tambem nao estao alhures. Um poucoadiante, um pouco atras, sustentados pela massa da parede, dela se servindocorretamente, irradiam a volta dela sem jamais romper com ela a amarra ina-preensjvel. Eu teria multJFdificuJdade para dizer onde esta o quadro que olho.Pois nao o olho como olho uma coisa, nao o fixo num lugar, meu olhar va-gueia por ele como nos nimbos do Ser, vejo de acqrdo cojn ele ou vejo comele, muito mais do que o vejo... O quadro, como a mimica do ator, pertenceao imaginario... O imaginario esta muito mais perto e muito mais longe doatual!' Mais perto, pois e o diagrama da vida dele em meu corpo, sua polpaou seu avesso carnal exposto pela primeira vez aos olhares dos outros.. JSlui-to mais longe, pois o quadro nao e um analogo do mundo senao segundoo corpo, nao oferece ao espirito uma ocasiao para repensar as relacoes cons-titutivas das coisas, mas oferece ao olhar, para que este os espose, os vesti-gios da visao do dentro, oferece a visao o que a atapeta interiormente, a tex-rura imaginaria do real... O olho do pintor v6 o mundo e o que falta no mundopara ser quadro e o que falta ao quadro para ser ele mesmo, e sobre a paleta,a cor que o quadro espera, e ye", uma vez feito, o quadro que responde atodas essas faltas e v os quadros dos outros, as respostas dos outros a outrasfaltas... O olho do pintor e aquilo que foi emocionado por um certo impactodo mundo e ocestitui ao visivel pelos traces da mao [.-..] desde as cavernasde Lascaux ate hoje, pura ou impura, figurativa ou nao figurativa, a pinturanao celebra nunca outro enigma senao o da visibilidade (...] o mundo do pin-tor e um mundo visivel, nada alem de visivel, um mundo quase louco, poise completo sendo parcial. A pintura desperta e eleva a sua ultima potenciaum delirio que e a prdpria visao, pois ver 6 ter a distancia e a pintura esten-de essa bjzafrapoSSC a todos os aspectos do Ser que devem, de algum modo,tornar-se visiveis, para entrar nela [...] essa vis&o fefora/e,>para alem dos"dados visuais", abre para uma textura do Ser cujas mensagens sensoriais se-paradas sao apenas pontuacoes ou cesuras, pois o olho habita o Ser como o

    hom:;m sua ca.sa... Hnquanto pinta, o pintor pratica uma teorin magici: davisao (...] uma mesma co;^a esta la longe, no coragao do mundo e aqui perto,no coracao da visao, a mesma coisa aqui e la, genese e metamorfose do Serem sua visao. E a propria montanha que, la de longe, se faz ver pelo pintor,e e ela que ele interroga cam o olhar. Que Ihe pede ele? Que desvende osmeios puramente visiveis pelos quais ela se faz montanha aos nossos oihos.Luz, iluminacao, sombras, reflexos, cor: todos os objetos da investigacao eda busca do pintor nao sao seres completamente reais. Sao como os fan t as-j^as, pois so tern existencia visual [...] o olhar do pintor Ihes pergunta comoe que eles fazem para que, de repente, haja algurnaj:oisa, e para que esta coi-

    # sa componha o talisma do mundo, fazendo-nos ver o visivel.

    Teoria magica da visao, filosofia selvagem, pois o pintor como oescultor e o dangarino vivem ria'f^cjnagao! seus gestos parecem emanardas proprias coisas, serem exigidos por elas, estarem nelas como o dese-nho das constelagoes. Eis por que Klee confessa: "Numa floresta, senti,varias vezes, que nao era eu quern olhava a floresta. Senti, certos dias,q.ue eram as arvores que me olhavam, me falavam... Eu, eu ficava ali,escutando... Creio que o pintor deve ser trespassado pelo universe enao querer trespassa-lo. Espero estar interiormente submerse, enterra-do. Pinto para surgir.'E a conclusao extraordinaria de Merleau-Ponty es-cutando Klee: "O que chamamos inspiragao deveria ser tornado literal-mente: ha verdadeiramente inspirac.ao e expiracao no Ser, respira^ao noSer, acao e paixao tap pouco discernfveis guja nao sabemos quem vee quern evisto, quem pinta e quem e pintado... Poderfamos procurarnos proprios quadros uma filosofia figurada da visao e como que suaiconografia",

    V iFilosofia figurada^da J5^ o que a pintura ensina a filosofia e a im-ztsigi - cartesiano, kantiano, hegeliano, ou husserliano

    de uma tepria filosofica da sensibilida,de_cornq^ensamento de ver e pen-samento ele sentir. Isto e, como esforco intelectual para distinguir, sepa-

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    rar, analisar e diferenciar sujeito e objeto, consciencia e coisa, alma e^ sensive] e inteligivel. As -artes,) como filosolia selvagem do sensi-

    vel, desvendam as ilusoes^a jazap ocidentaj.como desejo de purificagaointelectual do mundo. Ensinamento tanto maior quanto mais a pinturamoderna e as artes modernas trabalharam para livrar-se da suposicao doilusionisrrio. Paradoxalrnente, diriamos, quanto mais as artes se desven-

    \m como o oposto da ilusao, tanto mais indicaram as ilusoes da filo-sofia.

    Examinando como os artistas trabalharam a profundidade, a cor, alinha e o movimento, como os artistas buscam a "animagao interna" dosensivel, Merleau-Ponty afirma: "A arte nao e construgao, artiffcio, rela-gao industriosa com um espago e um mundo exteriores [...] e o gritp inar-tjculado que se assemelha a voz da luz". Assim, por exemplo, no caso da

  • A incerteza c a solidao de Cezanne nao sc explicam por sen temperamento ner\'oso, mas pela intencao de sua obra. Hcreditariedade, meio so-cial, influencias artfsticas sao os acidentes e nao a essencia da vida do pin-tor, "a parte que a natureza c a historia Ihe deram para que as decifrasse".Sao as condigoes do senjjdxjjiteral de sua obra; esta, porem, e o sentidofigurado que o artista impos aqueles acidentes naturais e historicos. As con-difoes iniciais do trabalho artistico sao o monograma e o emblema de umavida que se intetpreta a si mesma livremente, tornando-se obra. A vidanao explica causalmente a obra. Vida e obra se comunicam, e "a verdadee que esta obra por fazer exigia esta vida por viver". Sao uma so aventu-ra. A obra revela o sentido metaffsico da vida: nao e destine nem absur-do, mas uma possibilidade geral para todo aquele que enfrenta o enigmada expressao.

    A liberdade de Cezanne nao esta desenraizada. Ejukcjsao selvagernde liberar as coisas para que o que queriam dizer e que nao poderiam di-zer, se Cezanne~nao transformasse seu temperamento em obra.

    Se, do lado de Cezanne, a liberdade parecia, a primeira vista, impos-sfvel, do lado de Leonardo, parecemos estar no polo oposto. Interpretadopor Valery, Leonardo e pura liberdade para pensar e agir como criador,sem as amarras de seu corpo, de seu temperamento, de sua sexualidade,de seu meio social e de seu meio artistico. No entanto, a interpretacao ofe-recida por Freud para o quadro A Virgem e a crian$a, a partir de umarecordacao infantil do pintor, fazem-nos duvidar da imagem proposta porValery.

    Leonardo se sente assombrado e perseguido pelos abutres, ele os pinta,os desenha, os inventa como maquinas, compondo-os com asas de cerasobre lagartixas. O manto da Virgem, interpreta Freud, e um abutre queroca a crianca, e Leonardo se recorda do sonho infantil em que um abutreabria seus la"bios para enfiar-se em sua boca. Leonardo e filho natural de uma

    . camponesa e de um homem abastado que a abandona para casar-se comuma mulher esteril, levando, apos quatro anos, o menino para morarcom ele, deixando a mae sozinha. Teria Leonardo uma vida sem fantas-mas? Sua incapacidade para ligagoes amorosas, tanto hetero quanto ho-mossexuais, suas obras sempre inacabadas, sua obsessao com o voo, nadaseriam?

  • busa, moderna do que Leonardo chamava dc "Im&Mfexuosa , a pintura.figurativaou nao figurativa, reyela quo a linha nao e imitacao das coisas,
  • um fundo primordial e inesgotavel de silencio. Sem duvida, temos o sen-timento de que nossa lingua exprime completa e diretamente as significa-goes. Quando em ingles se diz "The man 1 love", nossa tenddncia espon-tanea e julgar que falta na frase inglesa algo que existe na portuguesa eque a faria exprimir mais completamente o sentido "O homem que euamo". Todavia, esse sentimento de falta alheia e completude nossa deve-se apenas ao fato de que nossa lingua nos insere num mundo cultural on-de ehparece exprimir completamente e nap porque realmente o faca oupossa faze-lo. E por ser indireta_ealusiya,um fundo interior de silencio, que a palavra e exessFva:aTinguagerndiz peremptoriamente quando renuncia a jizer a or ooria coisa [...] signi-fica quando, em vez de copiar o pensamento, deixa-se fazer e refazerpor ele".

    Porem, que linguagem e esta cuja forca existe somente quando naose reduz a ser mera designacao de coisas nem mera copia de pensamen-tos? Nao e a linguagem empirica e costumeira de nossa vida cotidiana, jainstituida em nossa cultura. E a linguagem jCfjjdiQfiyiOperante, instituinte. ,E a linguagern do escritor quando esteJmprime uma^orcjk^na liriguagenTexistente, obriga-a a umak!,'jdlefpspac^)>coerente'?, rouba-lhe o equilfbriopara fa/e-la significar e dizer~q||p;ijffc "Como o tecelao, o escritor trabalhapelo avesso: s6 tem a ver com a linguagem e e assim que, subitamente,encontra-se rodeado de sejjtida^O misterio da linguagem esta em quefcs6 exprime quando se fazfesquecjer e s6 se deixa esquecer quando conse-jfgue exprimir. Quando spiLcativada por um livro, ngo vejo letras sobre'uma pagina, nao olho sinais, mas participo de uma aventura) que e purasignificacao e, no entanto, ele nao poderia oferecer-se a mim senao comolinguag*em. Um livro, escreve Merleau-Ponty, e "uma m^quina infernal deproduzir significances". A virtude gloriosa da linguagem esta exatamentenisto, nesse ppder para esconder-nps suas operacoes como o tecelaoque s6 nos oeixa^er o direito da tapecaria, embpra esta so exista gracasao trabalho feito pelo avesso. O triunfo da linguagem e o de nos fazer crer,ao termino de um livro, que nos comunicamos com o autor de espiritoa espirito, sem palavras.

    Preguigosarrffente, comedo a ler um livro. Contribuo com alguns pen-samentos, julgo entender o que esta escrito porque conheco a lingua eas coisas indicadas pelas palavras, assim como sei identificar as experi^n-cias ali relatadas. Escritor e leitor possuem qjriesmg rejjertdrio y^vdde^alaynis, coisas, fatos, experifincias, depositados pela cultura insti-tuida e sedimentados no mundo de ambos. De repente, porem, algumaspalavras me "pegam". Insensivelmente, o escritor as desviou de seu sen-tido comum e costumeirq e elas me arrastam, como num turbilhap, paraurrTsentido novo que alcanco apenas gracas a elas. O escritor me invade,passo a pensar de den&eKdcif e nao apenas com ele, ele s

  • fftfjgt*rtdjgrsf)licita nossa imagcm primeiro, numdo mundo mmcLa^Sais sentido".t