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Obscena #5 - Junho/Julho 2007

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Obscena-revista de artes performativas #5 - Junho/Julho 2007

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A edição que está a ler é a primeira respostaao desafio que significa fazer a OBSCENA,de há seis meses a esta parte. As últimas edi-ções – disponíveis no nosso site – deixavam-nos com a estranha sensação de vazio, comose algo estivesse por completar. No momen-to em que escrevo, não posso saber da sen-sação de agarrar esta revista; por isso, o queagora projecto será também uma sensaçãoigual à sua. Foi sempre assim que quisemosfazer a OBSCENA, passo a passo, junto dequem nos lê, aprendendo e descobrindo,mas também propondo e discutindo o quenos rodeia.A OBSCENA surgiu há muito pouco tempo,meio ano que serviu para percebermos que olugar que viemos ocupar, sem falsas modés-tias, esperava por ser ocupado. Aconteceusermos nós a fazê-lo, com as nossas(minhas) pressas, os nossos olhares, os nos-sos meios, as nossas ambições. Aconteceu.Não escondemos que sempre quisemos che-gar ao papel. Fazemo-lo ao quinto número,em parceria com o Festival Internacional deTeatro de Almada que, na pessoa do seudirector, Joaquim Benite, nos sugeriu asso-ciarmo-nos a esta 24ª edição, que decorrerá,nas duas margens do Tejo, mas de coraçãofeito do lado de lá, de 4 a 18 de Julho. Nãopoderíamos estar em melhor companhia,nem mais orgulhosos.Este é só um primeiro passo, uma experiên-cia, um risco, uma aposta, uma aventura quequer contrariar a inércia e desânimo que facil-mente se instala “neste pequeno país dina-marquês”. No número seguinte voltamos aoonline mas, como ensinou Platão, incapazes,estou certo, de ignorar o que existe fora dacaverna. Razão pela qual todos os nossosesforços estão concentrados numa rápida eregular presença em papel: os desafios e aspropostas são mais do que encorajadores.Destacamos o facto de a OBSCENA integrar,a partir de agora, a TEAM – TransdisciplinaryEuropean Art Magazines, uma rede interna-cional que integra doze revistas europeias:Alternatives théâtrales e etcetera, da Bélgica,Mouvement e Stradda, de França, 3xt, daNoruega, Art’O, de Itália, Ballettanz, da

Alemanha, Ellenfény, da Hungria, Highlights,da Grécia, a espanhola Exit e a eslovenaMaska. Juntamo-nos assim a um prestigiadoconjunto de publicações independentes,preocupado com a arte contemporânea, con-tribuindo, do nosso lado, enquanto únicarepresentante de Portugal, para que o cruza-mento de nomes e referências, discussõespúblicas e políticas, reflexões sobre a criaçãomas também o que a envolve, possam acon-tecer a uma outra escala, mais abrangente,mais atenta, mais presente. E, certamente,com outra relevância e outra consequência. Foi sempre assim que imaginámos a OBS-CENA, pensando localmente para agir glo-balmente. Mês a mês ficamos mais pertodesse desígnio, crentes de que o trabalhofeito não é um ponto de chegada mas umnovo nó que queremos desatar.Também este número apresenta vários nós,ou antes, pontos de contacto. O Festival deAlmada levou-nos a conceber uma ediçãoquase inteiramente dedicada aos festivais.Assim, do Teatro Azul viajamos até Avignon,Bruxelas e Praga, lançando pistas para o quese vai apresentando no teatro, na dança, naperformance, na música ou nas artes visuais,e que encontrarão repercussão nas futurasedições da OBSCENA.Lançamos cada número sabendo que pode-ríamos ter feito melhor, de outra forma, pro-pondo outras ligações, falando de outrostemas, com mais pessoas, convidando maiscolaboradores. Este número, por ser empapel, especial e duplo, obrigou-nos a umexercício de síntese que deixou muito defora. Por estranho que possa parecer, agra-da-nos essa ideia de insuficiência – sabemosque, desse modo, teremos razão para voltarno mês seguinte. Agrada-nos ainda saberque o que fazemos está a ter uma recepçãomuito para além do que esperávamos, cien-tes de que, a cada conquista, as responsabi-lidades aumentam. Confesso, no entanto, umsegredo: soubéssemos nós como fazer estarevista de olhos fechados, sem incertezas,não tínhamos passado do primeiro número..

TIAGO BARTOLOMEU COSTA

EDITORIAL

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NÚMERO 5 JUNHO-JULHO 2007

DirectorTiago Bartolomeu Costa

[email protected]

EditoresMiguel-Pedro Quadrio

[email protected]ónica Guerreiro

[email protected]

ColaboradoresBandeira

Bruno HortaEugénia VasquesJosé Luís Neves

Pedro Manuel

Participam neste númeroArnd Wessemann, Caeli Gobatto, Cláudia Marisa

Oliveira, Cristina Peres, Elisabete França,Francisco Valente, Gil Mendo, Gisela Pissarra,Halima Tahan, Henrique Silveira, Jaime Rocha,

João Paulo Sousa, John Romão, José Mário Silva,Luís Rodrigues, Patrícia Brito, Pascal Bély,

Rosário Santana Paixão, Rui Monteiro, Silvina Díaz

AgradecimentosTeatro Al Sur – Revista latinoamericana,

Ballettanz, Jeroen Peteers, Diana Raspoet(Damaged Goods), Les Solitaires Intempestifs,

Geraldine Chaillou (Théâtre de la Bastille), Casa da Cerca – Centro de Arte Contemporânea

Fotografia CapaThe End of Reality (enc: Richard Maxwell, 2006)

© Lieven De Laet – Academie Anderlecht

DesignMERC

[email protected]

[email protected]

Assinaturas e informações [email protected]

A OBSCENA é uma revista de periodicidade men-sal com distribuição electrónica gratuita através de

assinatura. A OBSCENA aceita propostas de colaboração dos leitores. Os materiais publicadossão da responsabilidade dos respectivos autores,

estando sujeita a autorização expressa a sua reprodução total ou parcial.

As informações devem ser enviadas até dia 8 de cada mês.

www.revistaobscena.com

EESSPPRREEIITTAARR OO MMUUNNDDOO

OPINIÃO

Coxia | Bandeira (6)

Os efeitos sonoros de um motim podem provocar um motim verdadeiro Mónica Guerreiro (7)

Visto dos Bastidores | Miguel-Pedro Quadrio (32)

Ponto Crítico | Eugénia Vasques (73)

ARRITMIA(8)

O ciclo que Lisboa dedica à coreógrafa Meg Stuart, um olhar especial sobre o Festival d’Avignon, em França, e o balanço do KunstenFestivaldesArts, em

Bruxelas, cruzam o teatro, a dança e a performance actual num retrato vivo dacena internacional

APOSTA(30)

A 11ª Quadrienal de Praga dedicada à cenografia e arquitectura conta com o cenógrafo João Mendes Ribeiro como representante oficial. Uma curta-metragem

da coreógrafa Olga Roriz e uma peça do igualmente coreógrafo Miguel Pereira completam a presença portuguesa no mais importante evento mundial do género

TRÁFICO(34)

Porque quando Almada recebe o seu Festival de Teatro nos abre portas para oresto do mundo, desvendamos-lhe, num dossier especial, os nomes e os

espectáculos, nacionais e estrangeiros, que fazem esta 24ª edição. Entrevistas,perfis, críticas, diálogos e pré-publicação de um conto vietnamita

DIAS DO JUÍZO(74)

O encenador italiano Pippo Delbono, o Festival da Fábrica, no Porto, a ópera no S. Carlos, a exposição dos suíços Fischli & Weiss, em Paris, e o livro Concerto

das Artes são os destaques críticos desta edição. Outras críticas a espectáculos,livros, filmes e discos podem ser lidas nas diferentes secções da revista

ENSAIO(82)

O Processo de Bolonha introduzirá novas regras no funcionamento das escolasartísticas. Gil Mendo, programador e professor da Escola Superior de Dança,

dá-nos conta de algumas das dúvidas que o documento lhe suscitou

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OS EFEITOS SONOROS DE UM MOTIM PODEM PROVOCAR UM MOTIM VERDADEIRO Mónica Guerreiro

A conversa era sobre festivais de Verão. Àminha entusiasmada antecipação do SuperRock deste ano, cujo “segundo acto” desper-ta definitivamente a atenção, a minha interlo-cutora respondeu com indiferença, afirmandoperemptoriamente: já comprei os passespara o Sudoeste. Foi a minha vez de ficarsurpreendida. Com um cartaz, em finais deMaio, ainda incipiente para as quatro noitesde música, tornava-se nítido que não era aqualidade das bandas que a fazia aspirar, acada ano, pelos dias quentes que se vivem aSudoeste. Não: ela busca, como milhares dejovens, viver “uma experiência”. Nada denovo, aliás, mas que eu considerara um pro-pósito ultrapassado. O que há ainda de expe-rimental na liberdade sem guarda, no álcooldesmedido, nos acampamentos insones?Tenho acompanhado com desenfreada curio-sidade os episódios do reality show da MTVI’m From Rolling Stone – um dos raros pro-gramas feitos com pessoas que se candida-tam a uma “experiência” temporária (vivercom estranhos numa casa, ou numa quinta)que, ao contrário do costume, não é total-mente inútil. I’m From Rolling Stone acompa-nha o dia-a-dia competitivo de um grupo deestagiários na reconhecida publicação homó-nima, a braços com os prazos apertados, aexigência do trabalho jornalístico, a complica-da relação com os artistas. Os editores sãoimplacáveis e os aprendizes sofrem com asreprimendas. Destacados para o últimoLollapalooza, dois candidatos a jornalistasagarraram no festival com perspectivas anta-gónicas: um deixou-se fascinar pelo fácilacesso às estrelas de rock’n’roll e não escre-veu nada de jeito; o outro aventurou-se poruma selecção de 30 concertos e viu a suareportagem publicada na Rolling Stone. Faceà multiplicidade de formas de abordar umevento desta natureza, a dificuldade está emencontrar a “cacha”, escrever sobre aquiloque é mesmo importante.Quando, há dez anos, comecei a escreversobre festivais de Verão (no Super Rock 97,onde alinharam os Rage Against TheMachine, as L7 e os Simple Minds), os jorna-listas do Blitz tinham indicações para perce-ber aqueles ajuntamentos de gente para ládo evento musical: para o verem como acon-tecimento de carácter ritualístico, pagão, des-regrado e sazonal. Uma espécie de Carnavalfora de época, cuja análise teria de ser feita

não apenas pela componente artística, comoa imprensa “séria” fazia, mas enquanto factosociológico. Foi assim que me vi a entrevistarnão só os artistas actuantes, mas também osadolescentes agarrados às grades oito horasantes de o seu ídolo subir a palco. Foi assimque consegui entender a atracção que, de hádez anos a esta parte, resultou num florescerde festivais: nem sempre importa a música,mas importa sempre a experiência.Entretanto, esta abordagem ao “fenómeno”parece ter-se institucionalizado e a questão

juvenil ganha anualmente protagonismo nacobertura dos festivais. Mas aí vemos privile-giar o folclore e a caricatura, longe do espíri-to das reportagens que comecei por recordar:trabalhos jornalísticos que visavam relatar aactualidade relevante, as histórias do dia.Havia, portanto, também algo de “experimen-tal” naqueles artigos, que com a repetição daoferta e dos festivais se perdeu. Talvez osfestivais tenham de assumir que servem pri-mordialmente para promover experiências, esó depois música. Em Portugal montou-seum primeiro evento em torno desse conceito,o Creamfields Lisboa. Isso, sim, parecia ino-vador.O subtítulo explicava: “música, experiênciase etc., muito etc.”, tornando evidente que aprioridade consistia em reunir pessoas (eforam umas 40 mil) em torno de uma noçãode partilha lúdica que recriasse ao ar livre aanimação do Club Cream, de Liverpool.Deste “conceito” já se realizaram festasCreamfields na Europa e América Latina.Mas de que “experiências inéditas” falamos?Uma marca de champô assegurava visuaisarrojados (a fila nunca teve um tamanho con-

vidativo); outra de refrigerante organizou umjantar a 30 metros de altitude para os premia-dos em passatempo prévio; um enigmático“labirinto de luzes” gerava outra fila desani-madora. De que “experiências” poderia usu-fruir quem não estivesse disposto a perder osconcertos e DJ sets que ocupavam sete pal-cos? Por exemplo, a “tenda silenciosa” pro-metia possibilitar a mil dançantes, munidosde auscultadores, a opção entre dois DJ: sóque ao som escolhido sobrepunha-se umamistura de outras músicas trazidas pelo

vento, tornando a experiência... improvável.Se as “experiências” e os “etc.” (um standhumanitário, mas principalmente os espaçosdos patrocinadores) não proporcionaramuma noite memorável, e a música? Tambémnão. Apenas a curta distância do palco erapossível evitar a contaminação dos sons quese tocavam noutros palcos. Os Placebo che-garam mesmo a comunicar um pedido dedesculpas por terem terminado abruptamen-te o concerto, devido ao frio. Os Vicious Fivederam um espectáculo à altura. E safou-se oconcerto dos Da Weasel, à vontade com ascanções do novo Amor, Escárnio & Maldizermas com os antigos êxitos também, recor-dando os tempos de militância na MargemSul, cujas palavras de ordem permanecemna memória. O mote, que Pacman ostentatatuado no braço direito, remete para as ori-gens: “Almada Cru”. A tripulação segue-os, ea atitude almadense animam-na eles nascanções, revoltadas e apaixonadas. Agoraque se prepara o arranque de um novoFestival de Almada, o maior acontecimentoteatral do país, será que a tripulação conti-nuará a fazer-se ouvir?.

ALMADA CRU: SOBRE FESTIVAIS

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ARRITMIA

MEG STUART

DE 3 A 13 DE JULHO A COREÓGRAFA NORTE-AMERICA-NA MEG STUART OCUPA O CCB, A CULTURGEST E OTEATRO CAMÕES COM UM CICLO DE ESPECTÁCULOS,PERFORMANCES E FILMES, QUASE TODOS EMESTREIA NACIONAL. OPORTUNIDADE ÚNICA PARACONHECER A FUNDO O TRABALHO RECENTE DE UMACRIADORA ICONOCLASTA QUE MANTÉM HÁ MUITO UMARELAÇÃO PARTICULAR COM A DANÇA PORTUGUESA.

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ARRITMIA MEG STUART

Não foi por acaso que Jean-Marc Adolphe, editor da revistaMouvement, apelidou a norte-americana Meg Stuart de “coreógrafa dodesastre” (Janeiro 2002) depois de assistir a Alibi (o filme que reequa-ciona a peça mostra-se dia 9 de Julho no CCB), peça marcada, cons-cientemente ou não pelos ataques às torres gémeas. “Política no quediz, actual pelo que faz surgir no instante da representação, toda umagenealogia de informações, de energias, de gestos derrotados. É bomverificar que esta encenação de clichés sobre a dominação surge deuma artista americana exilada na Europa depois de dez anos”.O crítico queria salientar a raridade de um discurso de resistência, deatenção, de desconforto, de coerência que, em vez de súbita e passa-geira, lhe era intrínseca.Para Meg Stuart esta ideia de catástrofe é anterior a 2001. “O meu tra-balho foi sempre sobre a catástrofe. Quando eu estou no estúdio a tra-balhar, sozinha e às voltas, estou sempre a lidar com a recuperaçãode um acidente, de uma catástrofe… Ou seja, trabalho em busca deuma cura, de uma recuperação… de uma reintegração do corpo quetem um problema de mau funcionamento… mas tudo de uma formamuito profunda, muito implicada com aquilo que me rodeia”. De Disfigure Study, a peça que a trouxe para a Europa, apresentadaem 1991 no Klapstück, na Bélgica, o mesmo festival que firmou aNova Dança Portuguesa – e é por aqui que começam as relações comvários criadores nacionais, que resultaram, por exemplo, em Blessed,um solo para Francisco Camacho que traz a Lisboa (CCB, 3, 6 e 10Julho) – até It’s not funny! (CCB, 7 de Julho), obra a negro que des-monta a ligeireza dominante com que tendemos a abordar a tragédia,mais próxima ou universal, o centro do seu discurso está na identifica-ção das razões que nos levam a agir desta ou daquela maneira. Assim, é no seu universo pessoal e referencial – que pode ir, de facto,do 11 de Setembro ao esforço físico do intérprete – que vai buscar amatéria que constitui um dos mais polémicos e pessoais discursos dacena contemporânea europeia. “Continuo a criar o meu mundo, asminhas ligações, as minhas pessoas, os meus projectos… uma espé-cie de abrigos temporários que por vezes cedem e eu crio novos. Euvivo num outro espaço que não está dividido por realidades físicas,como teatros específicos ou dependente de relações pessoais”, diz,enquanto parte para mais uma viagem Bruxelas-Berlim, cidades ondese divide. A primeira porque é lá que tem a sede da sua companhia,Damaged Goods; a segunda, porque reside artisticamente naVolksbühne, o ex-teatro nacional de Berlim Leste, facto tanto maisraro por se tratar de uma mulher. Ser ou não americana, estar ou não na Europa, existir ou não umponto de vista feminino, ter surgido ou não num momento em quevários outros criadores surgiam, em diferentes pontos da Europa, sãoquestões que, se são circunstanciais e podem introduzir dinâmicasdiversas na criação e recepção dos seus espectáculos, não enfermamo seu discurso ao ponto de o condicionaram a uma mensagem. Elaesclarece: “não quero fazer passar nenhuma mensagem, não queroeducar ninguém, não faço statements”. E mais: “o meu maior conflitocom a ideia de afirmação é que, quem quer fazer afirmações numpalco, normalmente esquece-se de fazer um espectáculo e não assu-me que, simplesmente, não sabe. Há coisas que as pessoas não

sabem, que levam tempo a aprender. E não saber faz parte. Antes dequalquer afirmação sobre o teatro ou a dança, é preciso saber-se oque se quer fazer, é preciso ser-se reconhecido, é preciso lidar comos lados negros, com o que é desconfortável… E a maior parte não oquer fazer, razão pela qual o expõe de forma tão evidente no palco.Mas o que é preciso dizer ao público é que, num teatro, eles estão asalvo, não precisam ter medo do que está a ser mostrado”.Não acreditando num discurso de afirmação tout court, é na exposi-ção de certos vícios – dela, daqueles com quem trabalha, dos que arodeiam e dos que a vêem –, que sustenta o seu trabalho quase sem-pre em parceria. Do videasta americano Gary Hill ao coreógrafo cana-diano Benoît Lachambre, do dramaturgo e crítico flamengo JeroenPeteers ao encenador inglês, Tim Etchells, dos Forced Entertainment,já foram muitos os músicos, intérpretes, coreógrafos, ensaístas, artis-tas visuais e realizadores que com ela colaboraram. É neste princípio – mais de generosidade e desejo de descoberta con-junta que de simples partilha discursiva – que Meg Stuart, de discur-so mais retraído quando tem que falar do seu trabalho, e mais explo-sivo quando o mostra num palco, procura construir uma dança “dodesastre”, certamente, mas sempre na tentativa de entender o trági-co, essa condição que nos domina..

TEXTO TIAGO BARTOLOMEU COSTA

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Há muito tempo que rir já não é um pecado. Et pour cause, diz-se,várias liberdades tornaram-se adquiridas. Afinal rimos de quê, paraquem e porquê? Estreado em 2006, por encomenda do SalzburgerFestspiele, It’s not funny! explora algumas das linhas mais fortes dotrabalho de Meg Stuart, nomeadamente teatralidade e representação,excesso e falhanço do movimento. Obedecendo, dessa forma, a umaobsessiva busca por um certo fil rouge que possa dar ao corpo, aogesto e à estrutura uma coerência (uma linearidade) que o resgate dasimples exposição de virtuosas sequências ou coerentes dramatur-gias. Ou seja, balança permanentemente entre a queda no abismo ea certeza de um terreno seguro.It’s not funny! não é diferente de outras pesquisas centradas na dificul-dade em aceitar a passividade: a raiva contida nos movimentosdesesperados de Alibi (2001); a fragmentação do indivíduo emVisitors Only (2003), o comportamento do outro quando exposto nassuas fragilidades em Forgeries, Love and Other Matters (2004), comBenôit Lachambre, só para citar os mais recentes. Mas aqui o binómioacção-reacção vive de um constante questionar da validade da pala-vra, da acção e do sentido. Depende, por inteiro, da reacção já que énela que se joga a legitimação do que se diz. Aqui o diálogo é maisdirecto, é menos metafórico, é mais cru, sendo outro o tipo de humorproposto. Composto por diversos números, como se de um grandeshow de entretenimento se tratasse, recorda-nos, mesmo que apenasprojectando, Las Vegas e a sua cultura da superficialidade. Não faltauma imensa escadaria em madeira crua a ocupar o palco, um núme-ro de dança inicial, à la Busby Berkley, no qual sete intérpretes (trêsmulheres e quatro homens, entre os quais a estrela convidada, ocoreógrafo francês Boris Charmatz), fazem de pin-ups com as cabe-leiras louríssimas de plástico, os ridículos fatos e os maillots berran-tes. O slapstick toma, depois, conta do palco e dos intérpretes quecaem de escadas, lançam tartes de creme à cara uns dos outros,guerreiam-se, criam armadilhas, divertem-se a gozar com tudo e comtodos, contam anedotas, tentam subir vários móveis com patins, ati-ram-se, enrolados em tapetes, pela escadaria, dançam desajeitada-mente uma qualquer música de salão, … Tudo tragicamente e iluso-riamente encenado. Estes palhaços tristes vivem presos nanecessidade de fazerem rir.O texto que Meg Stuart e Tim Etchells, encenador da companhiaForced Entertainment, assinam na folha de sala é sintomático da difi-culdade em distinguir o que pode ser matéria de humor e o que, deforma alguma, é engraçado. A guerra no Iraque, a bomba atómica, osnovos role models impostos pela futilidade da sociedade americana,os discursos pacifistas, a salvação do mundo, os espectáculos decasino, o stand-up comedy, os reality shows, o furacão Katrina, os pri-sioneiros em Guantánamo, a autobiografia… tudo pode ser muitoengraçado (sobretudo em palco, porque ficcional), mas, e novamentedo programa, “uma piada é muitas vezes engraçada quando contadanum contexto. Um comentário sexista no dia-a-dia é doloroso; na bocade um comediante transforma-se em anedota, por isso, ‘inofensiva’”.Há aqui uma ideia de voyeurismo escatológico que atinge proporçõesalarmantes no momento que a peça passa de um conjunto de gagspara um terreno mais negro e muito menos confortável (para o espec-

tador, claro). Os intérpretes juntam-se para agredir um deles, LejaJurisic, e o que parecia uma brincadeira torna-se numa selvagemagressão à intérprete que, saindo naturalmente ilesa, não mais seráolhada – nem o espectáculo –, da mesma forma. A passagem para olado negro do humor (e que não é a mesma coisa que humor negro)é ampliada pela presença cruel e sádica de Boris Charmatz que seimpõe aos outros através de uns longos braços de borracha de corpúrpura e, com eles, maltrata e importuna os parceiros. Percebemos que já não há grande esperança, nem para aquelespalhaços-tristes nem para nós, incapazes de sair da posição passivade espectadores expostos ao nosso próprio gozo na tragédia dosoutros. Ridículo e embaraço são sobrepostos num espectáculo emdiscurso de directa confrontação. Razão pela qual o último número destand-up (e este é um espectáculo que destrói por completo toda equalquer ideia que possamos ter sobre a validade do stand-up come-dy) é um longo manifesto sobre o futuro. Um dos intérpretes lança-seno desafio de enunciar os temas sobre os quais já não se pode fazerhumor. Entre eles a concentração e campos de concentração, aciden-tes de aviação, violência desnecessária, pessoas que não conseguemraciocinar, os grandes teatros europeus e a sua ideia de tudo saberemsobre o mundo, o público, sobre como as coisas poderiam ter sidodiferentes, sobre como as coisas são, sobre a ténue linha entre odivertido e a loucura, etc., etc... Depois disto, pouco resta a It’s notfunny!. Aquilo que começara como uma desmontagem humorada dohumor transforma-se numa dolorosa tomada de consciência dos ris-cos desse humor. Meg Stuart, na sua iconoclastia e consistente ques-tionamento, oferece-nos a possibilidade de reflexão. Apanhados quefomos na liberdade perversa do riso, somos obrigados a antever quelimites devemos impor a nós mesmos para que não sejamos domina-dos pela superficialidade do riso. Mais uma vez a relação com a res-ponsabilidade, palavra-chave na obra desta autora..

TEXTO TIAGO BARTOLOMEU COSTA

(versão revista da crítica publicada em Setembro de 2006 no blogue O MelhorAnjo, escrita com o apoio do Programa de Apoio à Dança da Fundação

Calouste Gulbenkian)It’s not funny!, apresenta-se no CCB dia 07 de Julho às 21h00

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ARRITMIA MEG STUART

Chuva, chuva incessante a cair no palco. O seu impacto destruidorcomeça por vergar a palmeira de papelão e depois faz com que sedesmorone o cisne gigante, também de papelão. Por fim, acaba porceder o derradeiro refúgio, uma paragem de autocarros de papelãoque não resiste ao impacto da chuvada. A chuva sepulta o bailarinoFrancisco Camacho que, ainda pouco minutos antes, estava a admi-rar a palmeira e a acariciar o cisne, atravessando, tal jovem Nijinsky,o seu paraíso bailando ao ralenti e em chinelas de borracha. O pobrediabo acaba sepultado por todos estes objectos provisórios.Dissolvem-se, em tempo real, os símbolos do Sul, do bailado e detudo aquilo que nos protege. O que nos resta do exotismo é apenasEl Niño. Nada daquilo que nos deveria proteger resiste contra os tsu-namis, os tornados, os glaciares e os pólos. A chuva permanente des-faz estas obras em decomposição da artista Doris Dziersk, tal como,ao fim e ao cabo, toda a Bolívia acabou por ser submergida pelaenchente.É nisto que pensamos, porque Camacho, que, com uma falta desenso cada vez maior, procura abrigar-se por debaixo de pedacinhosde papelão cada vez mais pequenos, acabando por tapar a face com

uma máscara de barbas vermelhas e pompons multicolores, umamáscara boliviana, sugerindo assim uma espécie de dança da chuvade sinal invertido. Mas de nada lhe serve. Recomeça a chover.Não logramos interromper a cadeia de associações do regresso dohomem feliz à idade da pedra, a miséria invade as filas de assentos,inexoravelmente, como uma corrente fria e húmida: os sem-abrigo emParis, os desamparados em Nova Orleães, o próprio dilúvio – tudo istotrespassa, gotejando, do princípio ao fim, toda a pequena obra de arteda coreógrafa Meg Stuart – Blessed (“abençoados”) – sem qualquervestígio de alívio. E quando este alívio acaba por surgir, é tão descon-solado, que quase não o conseguimos aguentar. Não podemos imagi-nar um maior contraste do que aquele que nos surge entre os dentesarreganhados, quase simiescos, de Francisco Camacho, acocoradono papelão empapado, e uma impudência de revista. Porque a subti-leza sumptuosa da composição do compositor americano Hahn Roweaparece salpicada de laivos de música de salão, um pontapé depalhaço, a bailarina Kotomi Nishiwaki com toucado javanês.Empoleirada em saltos altíssimos, com uma faixa graciosa, ela dança

O areal da praia é aquele chão instável e movediço que nem é terranem mar. Onde não se caminha em frente, mas de lado. A areia éonde os corpos se afundam.Serve a introdução para apresentar Sand Table, de regresso aPortugal depois de apresentado no CCB, em 2005, no âmbito doFestival Temps d’Images. Aí, os espectadores assistiam ao espectácu-lo num foyer do Grande Auditório, olhando de cima para baixo, comopara o fundo de um poço, onde a água se agita em sombras e refle-xos. No fundo, existia uma mesa coberta de areia, ladeada por doisintérpretes. A mesa é o palco, o espaço definido da representação,onde se projectam imagens sobre a superfície da areia, imagens debailarinos a dançar sobre o chão. A imagem vídeo, plana, ganha volu-me nos contornos da areia. Os intérpretes movimentam a areia sobrea mesa, procurando acompanhar os movimentos dos corpos dos bai-larinos. Daí resulta uma subtil sensação de presença física dos corposprojectados e uma intensa dinâmica entre o movimento das imagense dos manipuladores. Um primeiro nível de diálogo estabelece-seentre os materiais, o vídeo e a areia, ambos materiais fragmentadosmas dos quais resulta uma nova presença, volúvel e ambígua. As ima-gens tornam-se corpos granulares e a dissociação entre a imagem docorpo e a sua materialidade cria interrupções de onde nascem defor-mações, breves monstros. O segundo nível de diálogo é entre os cor-pos reais e os corpos granulares. Qual o estatuto destes corpos reais,intérpretes ou manipuladores? Aqui, a dança, mais que o conteúdo daexperiência tecnológica, subsiste ainda como linguagem, e é enquan-to diálogo de movimentos que podemos entender a relação de mani-pulação, como jogo. O momento em que o rosto do intérprete projec-tado na areia se vai desfazendo é especialmente emblemática,apontando para uma tensão e uma ambiência obsessiva, própria dostrabalhos de Meg Stuart e que aqui é exercitada através das relaçõesentre corpos, não entre personagens, mas na relação entre corposfátuos e os seus manipuladores..

TEXTO PEDRO MANUEL

Sand Table apresenta-se no CCB dias 6 e 7 Julho às 19h00 e 20h00

CHUVA DEMOLIDORA

O FÁTUO GRANULAR

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a sua grande alegria no meio de toda aquela miséria. Nunca houve nada de mais brutal: o contraste entre a impotência danatureza humana e o seu prazer nesta dança sobre um vulcão.Camacho é repescado da imundice Tal como alguém que salvaram doafogamento, Jean-Paul Lespargnard veste-o habilmente no estilo danossa época. Sobre o bailarino, qual Cristo petrificado, ele coloca ócu-los, casacos, uma máscara mortuária – a miséria exige estes modelospara que surjam como exemplos de vencedores e para que, tal comoos rapeiros recuperados dos bairros de latas de Chicago, sejam ospovoadores do palco da ignorância..

TEXTO ARND WESSEMANN CRÍTICO

Tradução do alemão: Anneliese MoshPublicado em colaboração com a revista Ballettanz

Blessed apresenta-se no CCB dias 3, 6 e 10 de Julho às 21h00

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Os títulos dos vídeos e filmes do ciclo Meg Stuart são esclarecedoresem uma das linhas fundamentais da coreógrafa: o lugar de pertença.Between two chairs (Jorge Léon, vídeo 16’25”), the invited (JonathanInksetter, vídeo 12’22”), Meg Stuart’s Alibi (Maarten Vanden Abeele,vídeo 24’) e Somewhere in between (Pierre Coulibeuf, filme 70’).Apenas o último. Coulibeuf, autor, entre outros, de Pavillion Noir (ver OBSCENA #1) eartista visual, explorou o universo de Stuart numa longa-metragemque, ao contrário das outras, não surge a partir ou prolongando umacoreografia. Sabe-se que não agradou completamente à coreógrafa,existindo uma outra versão, In Between, mais curta.Reconhecemos na luminosa média-metragem (a luz, reveladora einquietante, é explorada plasticamente tornando quase irreal, e pro-fundamente cénico, o que a câmara mostra) elementos característicosdas peças: grandes espaços e a errância dos corpos neles, nervosis-mo coreográfico que faz os corpos explodirem de surpresa, tensãonos diálogos como se escondessem mais do que dizem, uma aluci-nante espiral de sequências angustiantes.Mas ao hesitar entre registar passivamente o movimento e dominá-loencerrando-o nos espaços, ou nos planos, força o olhar do especta-

dor, essencial para fazer activar o discurso de Stuart, a desistir deseguir a ténue narrativa para observar, isolada e descontextualizada-mente, cada uma das sequências. E as suas coreografias sempre qui-seram tudo, menos deixar o espectador à deriva. Não sendo um filmeextraordinário tem o mérito de rasgar cenográfica e espacialmente osespaços de Stuart. A habitual claustrofobia contrasta aqui com o mar(de uma intensidade ofensiva), o prédio abandonado, o salão ou asruas. Porque o realizador nunca ousa questionar directamente o olharda coreógrafa, aquilo que poderia sugerir um deslocar dos corpospara espaços mais amplos, numa projecção que os tornasse maisnus, falha na estilização do plano, seco e distante.Os restantes filmes, menos ambiciosos, expõem algumas das obses-sões de Stuart. O mais radical, num processo de aliteração dramatúr-gico que vai mais fundo na premissa coreográfica, é Between twochairs, retrato pungente e biográfico do bailarino americano RonaldBurchi enredado nos processos burocráticos de legalização de estran-geiros na Europa. É um desfiar de memórias sobre o que significavaser artista nos anos 80 em Nova Iorque, as técnicas de sobrevivênciaa que se sujeitam para trabalhar, e um questionar da validade da artequando confrontada com as necessidades básicas da vida. Partiu deReplacement (2006), peça de inteligência rara, onde os intérpretesviviam num limbo – um enorme edifício em ruínas, que os impedia dese movimentarem, enquanto metáfora de um mundo também instável

Sobre a mesa, a dança

Ela pede disponibilidade para esperar que daquela roda de cadeirasonde todos se sentam, “como numa conferência”, algumas “situaçõesse tornem desproporcionais”. Eles são os coreógrafos BorisCharmatz, Terry O’Connor, Vera Mantero e António Tavares, o actorMiguel Borges, o performer e director da revista eslovena Maska, EmilHrvatin, a dramaturga da peça Maybe Forever (na Culturgest a 4 e 5)e co-directora do portal flamengo Sarma, Myriam Van Imschoot, e osmúsicos Carlos Zíngaro e Hahn Rowe. Ela, Meg Stuart, à cabeceirade uma roda imaginária a conduzir uma improvisação chamada Aufden Tisch! ou, em português, sobre a mesa.

Auf den Tisch! mostra-se dias 12 e 13 de Julho, às 21h00, nopalco do Teatro Camões.

ESPELHO MÁGICO

MAIS MEG STUART

Bodies as Filters: on Boris Charmatz, Benoît LaChambre and MegStuart, Jeroen Peteers, CC Maasmechelen/Bruxelas, 2004, €8;

No wind no Word: Neue Choreographie in der Gesellschaft desSpektakels, Helmut Ploebst (em inglês e alemão), K.Kieser/Munique,

2001, €19,90;

O portal flamengo Sarma (www.sarma.be) reúne textos de carácterensaístico, notas para programas, entrevistas e críticas ao trabalhoda coreógrafa em inglês, alemão e flamengo (seleccione Search na

página inicial e escreva “Meg Stuart” na tábua de opções);

O arquivo da revista francesa Mouvement (www.mouvement.net)guarda entrevistas, críticas e artigos de opinião sobre Meg Stuart(seleccione “Ressources” e escreva Stuart na opção “mot clef”);

Meg Stuart em entrevistahttp://omelhoranjo.blogspot.com/2006/11/na-primeira-pessoa-meg-

stuart.html;

O Centro de Documentação do Fórum Dança (www.forumdanca.pt)disponibiliza para visionamento os espectáculos Held (1990) e

Disfigure Study (1991);

Site da coreógrafa: www.damagedgoods.be

–, constantemente procurando o equilíbrio e o lugar de pertença. Sentimento também explorado em the invited, curtíssima alegoria queprolonga uma das cenas de Visitors only (2004), negra peça de cor-pos errantes. O filme encerra-os (e a nós) num hangar cinzento, dei-xando que a imagem e o som manipulem e vampirem um sentimentode identificação. Alibi é, por outro lado, uma das mais marcantespeças de Stuart (2001) onde perpassam os ecos, trágicos mas tam-bém denunciadores, da ressaca do 11 de Setembro. O trabalho visualdo fotógrafo Maarten Vanden Abeele re-ordena, sem impor, um con-fronto entre ficção e realidade, num exercício exploratório sufocante e,surpreendentemente, intimista..

TEXTO TIAGO BARTOLOMEU COSTA

O ciclo passa no CCB a 9 de Julho às 21h00

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AVIGNONVERÃO EM FRANÇA É SINÓNIMO DE FESTIVALD’AVIGNON, O MAIS IMPORTANTE ENCONTRO INTERNACIONAL DE TEATRO NO VELHO CONTINENTEQUE, CADA VEZ MAIS, SE MOSTRA (INEVITAVELMENTE)ABERTO A OUTRAS DISCIPLINAS. DE 6 A 31 DE JULHO A 61ª EDIÇÃO APRESENTARÁ OS NOMES QUE, NOSPRÓXIMOS MESES, IRÃO CIRCULAR POR VÁRIOS PAÍSES EM ESPECTÁCULOS QUE DESAFIAM AS FRONTEIRAS DA CRIAÇÃO ARTÍSTICA. NUM DOSSIERESPECIAL A OBSCENA DÁ-LHE CONTA DA PRESENÇAPORTUGUESA EM ANOS ANTERIORES NO FESTIVAL,DESVENDA O PROCESSO CRIATIVO DO ENCENADORARGENTINO RODRIGO GARCÍA E RECORDA A POLÉMI-CA EDIÇÃO DE 2005, QUE QUESTIONOU O LUGAR DOSFESTIVAIS, EM PARTICULAR O DE AVIGNON, NA DEFINIÇÃO DAS TENDÊNCIAS PERFORMATIVAS.

BARALHAR E VOLTAR A DAR

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“Num momento em que é evidente a redução do espaço dado à arte e à cultura, tanto nos discursos políticos como nos media, devemos, emconjunto com artistas e espectadores, testemunhar a vitalidade da criação artística, bem como a importância que esta pode ter quando se cruzacom a vida, e a necessidade de permitir o seu usufruto frequente”. É assim que abre o editorial de apresentação da nova edição do Festivald’Avignon, mais de 60 anos depois da inauguração do mais importante encontro de teatro do Velho Continente.Com Frédérich Fishbach nos comandos da programação deste ano – depois das polémicas edições de Thomas Ostermeier, Jan Fabre e JosefNadj – aponta-se agora para um consenso no cruzamento do teatro com a dança, as artes plásticas e mesmo a ópera ou as marionetas, dadoo percurso deste encenador, um dos nomes que integra a associação Sans Cible (em francês, sem alvo, mas também sugerindo sensível) quejunta vários encenadores na reflexão sobre o lugar do teatro no espaço público.É essa noção de presença num espaço partilhado que a direcção de Vincent Braudiller e Hortense Archambault, 34 e 32 anos respectivamen-te, deve reforçar, sobretudo depois de ter sido confirmada a renovação por mais dois anos da condução do festival. Uma decisão nada pacífica– e uma aposta pessoal do anterior Ministro da Cultura Renaud Donnedieu de Vabres – que visa relançar Avignon como o centro da criaçãointernacional. O mote é dado por René Char: “L’acte est vierge, même répété” (A acção é virgem, mesmo que repetida), uma das 237 frases deFeuillets d’Hypnos, que Fishbach encenará. A edição deste ano junta os alemães Frank Castorf (numa adaptação do romance Nord, de Céline),Sasha Waltz (primeiro espectáculo após a saída da direcção da Schaubühne) e Raimund Hoghe (que regressa ao solo em 36, Rue GeorgesMandel, título que recupera a última morada de Callas, em Paris) aos já habituais Romeo Castelluci (Hey Girl!, estreado no Festival d’Automneà Paris 2006 e criticado na OBSCENA #4), Ariane Mnouchkine (que repõe Les Éphémères: recueils 1 & 2) , Krzysztof Warlikowski (com umaencenação dos dois tomos de Angels in América, de Tony Kushner), Ludovic Lagarce (que apresenta uma reescrita de Ricardo III, deShakespeare, pelo polémico e profícuo autor flamengo Peter Verhelst) ou Rodrigo Garcia (que para além de Cruda… ainda apresenta Approchede l’idée de méfiance, uma recolha de histórias mínimas projectadas, para que o tempo de leitura seja um tempo de descoberta teatral). Emano de nítida reconciliação, os programadores acreditam que “deste momento de partilha poderão nascer discussões, interrogações, que divi-dam ou juntem, mas que permitam a cada um de avançar um pouco mais, e livremente, o seu próprio caminho”. A programação do festival, bemcomo imagens e outros documentos, pode ser consultada em www.festival-avignon.com..

PONTO DA SITUAÇÃO

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A presença portuguesa no Festival de Avignon tem sido residual. Em2002, a bailarina Leonor Keil foi uma das convidadas da rubrica Le Vifdu Suject, onde os intérpretes escolhem os coreógrafos para produzirum solo. Em 2006, o convite foi feito a João Paulo dos Santos, queescolheu o coreógrafo Rui Horta. E, nos idos de 1988, Luís MiguelCintra teve um convite particular de José Gil (na altura à frente daorganização de um ciclo de colóquios) para fazer um espectáculo apartir de Fernando Pessoa.A OBSCENA falou com estes três convidados. Sobre a organizaçãodo festival são unânimes em referir o seu bom funcionamento, o aco-lhimento, as condições para os artistas, isto é, um evento que funcio-na como uma máquina bem oleada. Luís Miguel Cintra, repetente em Avignon, como espectador e comoartista, lembra-se da sua primeira vez, no Verão de 1968, poucodepois do Maio mais quente de França. “Havia um clima de contesta-ção contra a direcção de Jean Vilar e o festival foi muito marcado peloimpacto da presença do Living Theater. Havia muitos debates e dis-cussões, um público muito interessado com uma participação fantás-tica. Nesse ano todo o festival era Off e os espectáculos eram quaseespontâneos e à margem da organização”. Vinte anos depois, o actor e encenador apresentou O Príncipe, comMaria de Medeiros, que lhe valeu um convite para participar noFestival de Outono, em Paris. Para Cintra, o público continuava, duasdécadas depois, a não ser convencional. Acredita, no entanto, que édifícil haver em Avignon espectáculos nacionais que não sejam “espe-cialmente portugueses” (como foi o seu caso com Fernando Pessoa)e que os convites não surgem “porque continuamos a ser muito peri-féricos”. Cintra constata ser fraca a participação portuguesa neste tipode eventos e acredita ser a difusão de produções nacionais no estran-geiro um dos papéis do Instituto das Artes. “Mas isso remete-nos parao problema da responsabilização do Estado pela actividade cultural,quando a tendência é a contrária e o Estado se responsabiliza cadavez menos e deixa cada vez mais espaço à iniciativa privada”.Leonor Keil convidou Javier de Frutos para coreografar um solo queseria para si um grande desafio, e partiu para Avignon com a respon-sabilidade de ser a primeira bailarina portuguesa no festival. Foi con-vidada por Héla Fatoumi, que a vira dançar em apresentações noestrangeiro da companhia Paulo Ribeiro. Concentrada no espectáculo Solitary Virgin (na página ao lado) e nasua participação, Leonor Keil acha que não aproveitou o festival comoespectadora. A reacção que teve ao seu trabalho foi principalmente ade alguns amigos, mas igualmente de uns quantos desconhecidos.“Há um grande fenómeno turístico, que as pessoas da cidade acom-panham. Regra geral mistura-se todo o tipo de gente e ninguém sesente mal com isso”, comenta, acrescentando que o que mais a mar-cou em Avignon foi a quantidade de acontecimentos em simultâneo ea enorme movimentação de pessoas. Para Leonor Keil “o trabalhoartístico em Portugal muitas vezes não têm continuidade. Temos von-tade, mas ainda temos muito que aprender perante organizaçõescomo a de Avignon”. João Paulo Pereira dos Santos tem apenas 28 anos e é um artistaligado ao novo circo. Foi convidado na edição do ano passado do Le

EXPERIÊNCIAS PORTUGUESASNUM FESTIVAL DE REFERÊNCIA

Suject à Vif e escolheu o coreógrafo português Rui Horta para fazerum trabalho em co-criação, Contigo (na foto), considerado entre asrevelações de Avignon em ano de comemoração do 60º aniversário. Santos fez parte da sua formação na área do circo em França e foiconvidado a participar no festival pela SACD, a entidade que gere osdireitos de autor naquele país. Apesar de passar grande parte do seutempo em França e achar que é essencial rasgar fronteiras, Santostem apego a Portugal e sente a necessidade e o dever de mostrar acultura portuguesa. Para João Paulo Santos foi uma óptima oportuni-dade de chegar onde nunca sonhara e, embora a satisfação tenhasido enorme, diz: “Fiquei sereno. Não procurei a sobre-exposição nemcaí na ilusão de ser uma estrela. Não procurei a glória porque já atinha dentro de mim”. Quanto a Avignon, o artista acha o festival eli-tista. “Há um excesso de elitismo. Mas, por outro lado, é um aconteci-mento que dá algumas hipóteses a novos valores”. No entanto, man-tém, desagrada-lhe o lado “supermercado” do evento e a banalizaçãodo espectáculo”..

TEXTO GISELA PISSARRA JORNALISTA

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ARRITMIA FESTIVAL D’AVIGNON

O ENCENADOR ARGENTINO RODRIGO GARCÍA REGRESSOU A CASA, DEPOIS DE ANOS “EXILADO” EM ESPANHA,PARA CRIAR CRUDA. VUELTA Y VUELTA. AL PUNTO. CHAMUSCADA., UMA PEÇA TRIBAL ONDE OS MURGUEROS

LOCAIS ADQUIREM VOZ PRÓPRIA. O ACTOR PORTUGUÊS JOHN ROMÃO, ASSISTENTE DA DIRECÇÃO ARTÍSTICADESTA PEÇA, QUE SE APRESENTA NO FESTIVAL DE AVIGNON, DÁ-NOS CONTA DO PROCESSO DE TRABALHO.

RODRIGO GARCÍAUMA VISÃO INTERIOR

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O Rodrigo desenvolve um teatro experimental centrado no corpo, nasmatérias e na oralidade, privilegiando uma linguagem crua e poética.Construção e desconstrução, fragmentos, explosões e violência,fazem parte desta dramaturgia pouco conformista. Da escrita à cena,a proposta política e radical do dramaturgo parece encarnar visões daactualidade e do Mundo.Começar uma criação com o Rodrigo é sempre uma aventura emdirecção a “terra incógnita”. Ninguém sabe como será o espectáculo.Primeiro escolhem-se os actores. Às vezes há uma imagem/ideiaassombrada que o Rodrigo associa a um determinado actor. Umasvezes o título dá o mote à criação, como em Esparcid mis cenizas enEurodisney (2006). Neste caso, o título surgiu depois do primeiroperíodo de trabalho em Buenos Aires. Cruda. Vuelta y vuelta. Al punto.Chamuscada. é o ritmo a que se submete a carne vendida nas barra-cas, massificadas no período do Carnaval, quando as murgas (gruposorganizados dos distintos bairros) saem à rua e apresentam as coreo-grafias e as músicas que ensaiaram e os trajes repletos de estampa-dos e lantejoulas que fizeram minuciosamente durante o ano. Estestermos referem-se à celebração do dia-a-dia da classe trabalhadoraargentina, onde a cor, a dança e a música se reúnem como forma deprotesto social. Foi com esta memória e fascínio da infância que oRodrigo quis voltar a Buenos Aires e desenvolver um trabalho com 15murgueros (aqueles que dançam e cantam e outros que tocam per-cussão nas murgas) e um actor profissional, o seu inseparável JuanLoriente.Se contasse o que se passou em Buenos Aires com o Carnaval, umaequipa de produção, uma outra de vídeo, 20 murgas, milhares de mur-gueros, crianças e adultos com síndrome de Down, chuvas tropicais,campos de futebol, bairros marginais…, dava para escrever umanovela. Melhor, nada de literatura e a ver como explico o que se pas-sou. Feita uma pré-selecção de 22 murgueros e passadas duas sema-nas de audições (porque, ao contrário das nossas expectativas,nenhum desistiu!), chegámos aos 15. Seleccionámos apenashomens. Aconteceu. São os mais espontâneos, os mais virtuosos,mais vandekeybusianos. Apercebemo-nos, pois, do material quetínhamos em mão: uma energia intensamente masculina, corpos quedançam de forma tribal, marcados, excessivos, com histórias, vozesrasgadas, gritantes, com passado, e estados emocionais à espera deserem provocados.No primeiro dia entendemos o funcionamento dos ensaios. Tínhamosde cuidar cada detalhe e sobretudo das pessoas: dar-lhes comida,bebida, dinheiro, confiança, seriedade e não muitas limitações. Nabase do “quem é que tem tomates para fazer isto?” chegámos a esta-dos absolutamente incríveis. Eles próprios, no dia seguinte, pergunta-vam-nos se aquilo tinha realmente acontecido. Quando pensámosque teríamos de encontrar argumentos para algumas propostas deimagens/esquissos do Rodrigo (desenhados e apresentados diaria-mente), já os víamos a pegar nos objectos e a responder à proposta,ou a sugerir novas imagens. Assistimos a momentos sublimes, nosensaios, em que se criaram energias e silêncios esquisitos, desconhe-cidos. O Juan, misturado com os murgueros, faz com que o grupo sejafluído e veja que “quem não deixar os tomates em cena faz de idiota”.“Agora é tudo mais calmo, mas nem por isso mais ligeiro. Pelo con-trário, creio que é um discurso mais grave. Digamos que aqui já nãogrito. É um rumor. Mas o que sussurro não é agradável e talvez façadoer mais os ouvidos que um alarido” (escreveu o Rodrigo a propósi-to recentemente).

As obras do Rodrigo apresentam-se como uma paisagem teatral,composta por corpos, movimentos, fluidos e estados emocionais.Grande parte do texto é projectado, o que permite ao espectador fazeros seus próprios linques entre o que vê e o que lê, alimentando umaambiguidade que permite que o espectador não crie uma ansiedadede compreensão. A desconstrução formal resulta numa progressivaaplicação do trabalho dramatúrgico nos corpos dos intérpretes. Estesrelacionam-se com objectos e materiais orgânicos (barro, espuma debarbear, vísceras), propondo uma nova percepção da matéria.Mostrar o corpo humano como algo repulsivamente belo pressupõe

infringir os cânones de beleza e de gosto, através da figura freudiana“Unheimliche” (o inquietante), que explica a ambivalência do especta-dor e a ambiguidade de reacções: “repulsa e atracção por uma reali-dade oculta e que se manifesta acoplada à simbologia da morte”(António Pinto Ribeiro). Neste desejado “lugar de todas as presenças”(Claude Regy), o real faz-se presente da forma mais brutal, numarevolta perante a qual o espectador deve reagir, pôr em jogo os seuspróprios critérios de selecção, estar alerta.A partir deste desconhecido, do encontro com pessoas que nuncafizeram teatro (mas que possuem uma linguagem artística), o desejoé de criar uma outra forma de ficção, de procurar um novo universo.Textos projectados, imagens gravadas, acções cénicas e muitas músi-cas ao vivo compõem este novo “atentado poético.”Estamos a três semanas da estreia. Salamanca, Atenas, Roma eAvignon. Nenhum dos murgueros subiu alguma vez a um avião ou aum palco. Há pouco perguntavam se os deixávamos actuar na rua,para passarem um chapéu e levarem mais dinheiro para casa. Eudisse-lhes que claro que sim, mas que não fosse preciso ir parar àesquadra, porque no dia seguinte tínhamos de actuar à noite. EmAvignon, teremos outro “off!” O Off Murguero!.

Cruda. Vuelta y vuelta. Al punto. Chamuscada. Estreou a 14 de Junho em

Salamanca, Espanha, no âmbito do III Festival de Artes de Castela e Leão.

Apresenta-se entre 7 e 14 de Julho no Festival d’Avignon

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Para surpresa, ou talvez não, de muitos a verdade é que a edição de2005 do Festival d’Avignon marca um ponto de viragem na história domítico festival francês, assim como na importância dos festivaisenquanto agentes legitimadores de tendências e valores. Depois deem 2003 os intermitentes – os profissionais do espectáculo sem con-trato certo – terem paralisado todas as manifestações de verão, como festival a ter que ser anulado, decisão que só encontra eco na edi-ção de 1968, ano de todas as mudanças políticas e culturais, achava-se que o caminho aberto pelo encenador alemão Thomas Ostermeier,director artístico da Schaubühne, traria um apaziguamento das rela-ções entre o público, os criadores e a crítica. Doce engano! A propos-ta de Jan Fabre, o célebre criador flamengo, disruptor por excelênciae valor seguro quando se trata de revolver as convenções, deixoumarcas profundas que só o tempo dirá se Avignon as soube interpretar. A opção de entregarem o grosso da programação oficial a um criador,em torno do qual surgiriam depois várias manifestações, fez parte daestratégia desenhada pela dupla de programadores Vincent Braudillere Hortense Archambault, para que “cada olhar de cada artista pudes-se traçar um mapa da criação artística”. 2005 foi-lhes fatal. Não tanto pelas propostas, nem mais nem menosradicais do que as apresentadas em qualquer festival internacional na

Europa que se queira actual, mas por ser ali, em Avignon, esse lugarsagrado, quase intocável, e onde o fantasma de Jean Vilar, o funda-dor em 1947, ainda se faz sentir. É essa, pelo menos, a ideia de mui-tos programadores europeus, chocados com o choque. Mas que fezFabre? No essencial deu a Cour d’ Honneur du Palais des Papes, oepicentro do festival, aos coreógrafos que, ultraje, dançavam menosdo que falavam – quando falavam. Apresentou leituras de clássicosque faziam tábua rasa de séculos de doutrina dogmática, incluindoaquelas protagonizadas por Avignon. Propôs um teatro trágico, negro,depressivo, sem esperança, sem solução. E acusou todos, público,crítica e criadores, de terem contribuído para o buraco onde as artesperformativas tinham caído. As respostas foram, natural e igualmente,

radicais. Acusações de parte a parte, boicotes aos espectáculos, ata-ques verbais e físicos… e todos os dias, na imprensa, o combate deboxe contabilizava mortos e feridos. Até que o mal encontrou umbode: a própria imprensa. Acusada de parcialidade, tendenciosa,maniqueísta e traiçoeira, a comunicação social foi a primeira a perdera batalha. Ora, numa tentativa de corrigir essa ideia, apresentando um outrolado, que só o tempo podia fazer serenar, Georges Banu e BrunoTackels, reputados teatrólogos e editores, o primeiro da belgaAlternatives Théâtrales, o segundo da francesa Mouvement, reuniram,em tempo recorde, um conjunto impressivo de testemunhos que resu-mem bem a dificuldade de um ponto de equilíbrio. Chamaram-lhe, iro-nicamente, Le Cas Avignon 2005 – regards critiques (não existe ver-são em português). Escrevem os críticos e especialistas Jean-PierreHan, Gérard Mayen (o seu texto “De que dança falamos?” é funda-mental para a compreensão do futuro das relações entre teatro edança), Jean-Marc Adolphe, Jean-Louis Perrier, os sociólogos da cul-tura Emmanuel Ethis, Jean-Louis Fabiani e Damien Malinas (quedesde 1994 estudam os públicos deste festival e perguntam, certeiros,se devemos “falar do público ou para o público”) e algumas figurasligadas a instituições de fomento cultural, como o Office National deDiffusion Artistique, o organismo responsável pela difusão de espectá-culos. Mas, em contraponto, recolhem-se os diálogos entre váriosencenadores presentes nessa edição. Fabre, claro, mas tambémRomeo Castelluci e Krzysztof Warlikowski (o seu espectáculo Krum,apresentado em Maio no CCB, foi um dos que mais polémica causou)que numa troca estimulante dão conta do óbvio: o desfasamento émuito anterior. Destaque ainda para o encenador Olivier Py, polemis-ta como (lhe) convém, num texto “Avignon, teatro de questões”, quesó pode ser lido enquanto enunciado de um programa cultural a cum-prir, para mais quando, um ano e meio depois se soube que vai dirigiro Ódeon – Théâtre de l’Europe, em Paris.Se é verdade que muitas das questões levantadas se encerram nascaracterísticas particulares de um festival como Avignon, não tãoaberto como Edimburgo nem tão institucional como o Festivald’Automne à Paris, é também verdade que a importância dessesacontecimentos reflecte um divórcio grande entre um modelo de cria-ção e o público, como se um e outro tivessem, a dada altura, viradocostas e seguido caminhos diferentes. Não sendo nova, esta não éuma questão de somenos importância. O que se passou em Avignonfoi um alerta, depois de anos de rupturas, muitas delas sem conse-quência ou verdadeira reformulação. Não se trata somente de umaguerra entre “novos e velhos”, trata-se de uma discussão que, longede ter um fim, procura esclarecer equívocos. É essa a grande maisvalia desta obra, contrária à efemeridade, atenta à responsabilidade.(Éditions L’Entretemps, €10).

TEXTO TIAGO BARTOLOMEU COSTA

2005: CASO DE ESTUDO

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KUNSTENFESTIVALDESARTS

PELA 14ª VEZ BRUXELAS RECEBEU, ENTRE 4 E 26 DE MAIO, O KUNSTENFESTIVALDESARTS, UM DOSMAIORES E MAIS IMPORTANTES FESTIVAIS DE ARTESPERFORMATIVAS DA EUROPA. FORAM TRÊS SEMANASONDE VÁRIOS OLHARES SE CRUZARAM NUMATENTATIVA DE MAPEAMENTO DA REALIDADE CULTURALE ARTÍSTICA QUE NOS CERCA. RECUPERANDO UMADAS FRASES-CHAVE DESTA EDIÇÃO “EXPANDA-SE OESPAÇO EM VEZ DE O REDUZIR”, A OBSCENA TRAÇAUM PERCURSO PELO FESTIVAL A PARTIR DE ALGUNSDOS ESPECTÁCULOS APRESENTADOS NA CAPITALBELGA, PROMETENDO REGRESSAR, EM EDIÇÕESFUTURAS, A ALGUNS DOS OUTROS QUE, PELA SUARELEVÂNCIA, NOS PARECEM MERECEDORES DE UMOLHAR MAIS APROFUNDADO.

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A recta final do KunstenFestivaldesArts, que decorreu em Bruxelas de4 a 26 de Maio, foi um sinal evidente da importância deste festival. Namesma semana podiam-se ver nomes como os do colectivo norte-americano The Wooster Group (La Didone, em estreia mundial, agen-dado para o CCB em 2008), ou dos coreógrafos Anne Teresa deKeersmaeker e William Forsythe (ambos com um programa duploonde procuraram a reinvenção). Mas também o lituano AlvisHermanis, recentemente galardoado com o Prémio Europa de Teatropara as Novas Realidades, que apresentou The Ice, violenta leitura deum romance nada piedoso para uma ex-União Soviética onde grassa-va a depravação sexual e a violência, ou os suíços Rimini Protokoll(que estiveram em Lisboa, na Culturgest, com Mnemopark), que mer-gulharam a fundo no Das Kapital, de Karl Marx. Pelo meio houve descobertas, algumas provocadas pelo próprio festi-val, como o jovem encenador japonês Toshiki Okada que, com FiveDays in March, uma parábola sobre os efeitos, na China, da aliançaentre os Estados Unidos e a Grã-Bretanha na ofensiva iraquiana, seapresentou pela primeira vez fora do Japão, numa iniciativa arriscadae solitária do Kunsten; ou Little Red Play: Herstory, desmontagemarguta do que significa pertencer à última geração de alemães a nas-cer com o Muro de Berlim (a que ficou conhecida por “bebés da fral-da vermelha”), assinada pela companhia andcompany & Co; mas tam-bém, e para ampliar ainda mais a dimensão internacional deste“festival que a Europa inveja” (classificou o Le Soir, 4 Maio), o novoespectáculo de João Fiadeiro, co-produzido pelo Kunsten, Para ondevai a luz quando se apaga? (apresentado na Culturgest, a 4 e 5 deMaio); os brasileiros Companhia de Actores, cuja versão bufona eGodardiana de A Gaivota, de Tchekov, chega ao CCB em Abril do pró-ximo ano; ou o sul-africano Mpumelelo Paul Grootboom, com umretrato agridoce dos subúrbios de Pretória a fazer eco nas cidadeseuropeias onde os imigrantes se sujeitam a tudo. E outros nomes há,na dança, no teatro, nas artes visuais, na filosofia ou na música queencontram em Bruxelas aquilo que Christophe Slagmuylder, 40 anosfeitos durante o festival e pela primeira vez seu programador, gosta dechamar “um convite para serem livres”.Criado há 14 anos, o festival foi pioneiro na apresentação ao públicobelga de novos nomes vindos do Oriente, prosseguindo uma aberturacriada pelo Klapstük, a bienal que terminou em 2005. “Uma iniciativade cidadãos para cidadãos”, explica Slagmuylder, “que não seria pos-sível numa outra cidade ou num outro país”. De facto, o Kunsten estáintrinsecamente ligado a uma Bélgica sem identidade, país dividido, ofrancês e o flamengo como línguas, com diferentes ritmos, estruturas,meios e conceitos de apoio à cultura. Por isso, quando este ano o fes-tival assumiu como mote “uma política de autores”, justificando que “oartista-autor é uma personalidade que baralha os nossos olhares fixossobre o que nos rodeia e o que consideramos familiar, tornando visí-veis preocupações que estruturam as nossas opiniões quotidianas eaquilo em que acreditamos”, as perguntas tornaram-se eminentemen-te políticas. Por exemplo: que Europa para celebrar quando a suaConstituição hesita em sair do papel? Como compreender o resultadodas eleições presidenciais em França e o avanço galopante das polí-ticas opressivas?

O programador, consciente de que estas questões atravessaram mui-tas das conversas pós-espectáculos, assume, contudo, um distancia-mento político. Enquanto “festival de criações”, o Kunsten defende aideia de que “o artista é independente, podendo desenvolver as suasposições livremente, observando e reflectindo sobre uma realidade, eatravés de uma linguagem comunicar com o público”. Interessa-lhe “aespecificidade do olhar”, mais do que “ser interventivo só porque sim”.Este não é, assegura, “um festival para os outros, mas porque é pre-ciso fazer”. E é aí que esta ideia de abertura encontra a maior característica dacena cultural belga: “não temos grandes tradições, tal como nãotemos muita oferta internacional na cidade. E mesmo sendo um festi-val reconhecido, o Kunsten não é, entendem os políticos, uma boavitrina para ninguém”. Como? O festival que oficializa o início da tem-porada de festivais não interessa a um país que já foi o centro da cul-tura europeia? “Nós não pertencemos a lado nenhum, nem aos fla-mengos nem aos franceses. Recebemos apoios e trabalhamos comos dois lados, e quando um deles deixar de nos apoiar o festivalacaba. Mas isso não significa um reconhecimento político. É maisuma evidência de que devem apoiar do que outra coisa. Não somosnem nunca fomos uma prioridade para ninguém. Só temos apoios por-que estamos a fazer o que queremos”. Slagmuylder garante: “É con-fuso mas fascinante”.Talvez seja esta liberdade política, económica ecultural que faz do Kunsten um ponto de passagem obrigatório paraprogramadores de toda a Europa. Uns que vêm negociar novas co-produções ou verificar se apostaram no artista certo, outros que vêmcomprar, alguns que só vêm ver o que se anda a fazer. Mas todosgarantem que as novas tendências das artes performativas passampor aqui. Razão pela qual não surpreende que jovens criadores, comoo japonês Hiroaki Umeda (que em Outubro e Novembro vem aPortugal, respectivamente ao Temps d’Images, Lisboa, e ao Frame,Porto), ou nomes já estabelecidos, como Richard Maxwell, se possamcruzar numa mesma programação, mesmo que as relações nãosejam, a princípio, evidentes para quem convida. “Só quando fazemoso mapa da programação é que temos noção da moldura que criámos”,diz o programador. E é então que “percebemos o que fizemos e quaisas relações entre eles”. Este ano um dos temas fortes foi repensar ocomunismo enquanto falência utópica que marca o século XX e que,seis anos depois, representa, de facto, o fim de um período, de umaHistória mas, sobretudo, de uma memória. Mas também, e esta é umaideia que liga Hong-Kong a Nova Iorque, Riga a Pretória, Berlim aoRio de Janeiro, uma noção de espaço urbano e cosmopolitismo cria-do pelo mesmo Homem que já não encontra o seu lugar e cujo retra-to se desenha a trágicos e desesperados traços. Durante três sema-nas Bruxelas é, de facto, o centro do mundo. Ideia confirmada “napartilha de processos, nos riscos em que nos colocamos ao assumir-mos que é a identidade do artista, mais do que a originalidade do tra-balho, aquilo que interessa”, mas também, e sobretudo, nesta imensaBabel multicultural que recusa qualquer ideia de modismo para falarde criação contemporânea, “expandir em vez de reduzir”..

TEXTO TIAGO BARTOLOMEU COSTA

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“Hamlet revisitado”. É este o slogan com que termina o texto do programa de K.O.D. (Kiss of Death) de Isabella Soupart (KVS-Box, 16 a 20Maio). A coreógrafa poderia ter inovado dentro da continuidade da sua pesquisa, mas ela repete até ao infinito as suas novas linguagens feitasde movimentos coreográficos transversais, das linhas verticais suspensas acima de nós, de imagens em vídeos de pendor crítico que nos dãoum meta-contexto. Todos estes cruzamentos ambicionam fazer deste “Hamlet revisitado” um fresco moderno, mas não é mais do que um mosaico onde as formasse sobrepõem às ideias, num labirinto onde o espectador se perde tanta que é a multiplicação de linguagens impostas em vez de comunicati-vas. Muito à imagem de uma sociedade mediática sempre pronta a criar novas ferramentas de comunicação sem que seja óbvio o seu uso.É assim que K.O.D. se relaciona com o público, enquanto espaço de uma extrema verticalidade: quando chega ao limite de uma linguagemSoupart propõe-nos outra sem que tivéssemos a possibilidade de perceber a sua pesquisa. A velocidade de cada sequência não dura, com rarasexcepções, o tempo de uma canção. O espectador poderá, mais tarde, ressentir-se e quase infantilizar o desafio na impossibilidade de se liber-tar dele.Bombardeado de vídeos (de uma beleza perturbadora quando ela projecta os rostos em grande plano), de achados sonoros (frequentementeinteligentes), de legendagens (bravo aos tradutores), de danças (joelhos na terra… um pouco limitado e sobretudo já visto em In the wind oftime), acabo por me divertir com toda esta excitação. Isabella Soupart parece bulímica de metáforas, esquecendo a complexidade criada porcolocar dois homens a interpretarem o papel de Hamlet, multiplicando as cenas num mesmo espaço como se um devesse explicar o outro.Ela acaba por nos propor um vídeo que reinventa um outro cenário como se o “aqui e agora” não fossem suficientes: é verdade que os objec-tos (mesas, cadeiras de escritório e mobiliário do IKEA) reduzem a dança e entravam a relação entre as personagens e o público. A relação cria-da entre o texto de Shakespeare e os fragmentos de entrevistas extraídas de documentos da ex-União Soviética não é mais do que um truquede estilo. Fora de contexto perdem-se num vulgar “corta e cola” demasiado publicitário. Este Hamlet não esclarece nada: tudo se adiciona, nadase multiplica.Isabella Soupart acaba por fazer aquilo que queria denunciar. Para assumir o seu poder enquanto artista toda poderosa face a um público deso-rientado ela manipula as formas, descontextualiza a história, recicla os símbolos da literatura. Perante este jogo K.O.D. torna-se um agradávelmomento de divertimento, muito tendencioso e visualmente impecável..

TEXTO PASCAL BÉLY CRÍTICO

O ZAPPING SHAKESPERIANO DE ISABELLA SOUPART

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Com Mpumelelo Paul Grootbomm a África do Sul chegou aoKunstenFestivaldesArts. Este autor e encenador (n. 1975) apresentouTelling Stories (18 a 22 de Maio, KVS-Bol) uma longa epopeia de trêshoras e meia em que o público mergulha no universo claustrofóbicodos subúrbios. É a história de um escritor negro, Madi (interpretadopor um magnífico Mandla Gaduka) que, ansioso por escrever uma his-tória sobre a criminalidade nos subúrbios, acompanha um grupo dejovens delinquentes. Duas trajectórias irão cruzar-se e traçar umapanorâmica geral sobre a dura realidade de um país sujeito a violên-cias de toda a natureza. Mas impõe-se uma questão prévia: porquêapresentar esta peça no contexto do Kunsten?Em que é que Telling Stories se inclui nas novas formas artísticas?Como é que esta história nos pode ajudar a imaginar um futuro?Telling Stories é um divertimento agradável, pertinente no quadro daprogramação anual de um teatro. E isso explica um pouco do emba-raço que se pode sentir, encurralados entre o desejo de aplaudir aprestação dos actores, reservados em relação à encenação e ao inte-resse da história e francamente desiludidos pela escolha dos progra-madores do Kunsten (esta peça teria sido seleccionada se produzidaem Bruxelas ou Paris?)O texto no programa do festival levanta uma questão: “em quemomento o ‘tudo pela arte’ já não se justifica de um ponto de vistaético? Quando a representação/apresentação da violência cai novoyeurismo”. Francamente não vejo a relação! Em que é que TellingStories responde a essas questões? Para mais, Mpumelelo PaulGrootboom tem o talento de nos apresentar uma primeira parte entu-siasmante, plena de colorido e ricochetes. A passagem da vida doescritor para a ficção oferece um contexto pertinente para produzir umexcelente modelo de teatro popular, pontuado de momentos musicaisestandardizados (contudo mais inovadores do que a Norah Jones quetambém faz parte da banda-sonora).Após o intervalo a trama enterra-se na história do escritor. O vídeodeixa-se iludir pelo ridículo de nos mostrar cenas de amor dignas deum mau filme erótico de fim de tarde no M6 [canal de televisão fran-cês]. O barulho de um comboio, apresentado ao ralenti, é um calváriopara o espectador que se pergunta em que momento vai a sequênciaterminar. Assim, surpreendemo-nos com a facilidade com que desliga-mos do contexto da história, sempre violenta. Se na primeira parte arelação entre o escritor e o contexto era hesitante (por momentosradioso quando já não sabíamos o que era ficção e o que era realida-de, ideia reforçada pelo cenário que articulava as duas realidades,uma ao fundo, outra mais perto), a segunda aproxima-se mais de umteatro tradicionalista, de narração linear, com uma encenação semsurpresas, que deixa o tempo fugir lentamente.A aposta era colocar em causa os questionamentos dos programado-res do Kunsten citados acima. Em vez disso, aborrecemo-nos numdivertimento. A força de um projecto como o Kunsten é a de nos fazerviver num tal paradoxo!.

QUANDO O SUBÚRBIOSE TORNA UM DIVERTIMENTO

(OU NÃO) Alvis Hermanis e o Novo Teatro de Riga foram castigados por tenta-rem fazer de The Ice (Théâtre National, 18 a 22 Maio) o acontecimen-to do Kunsten. O subtítulo não deixava dúvidas acerca das intençõesdo encenador e da audaciosa encenação do romance do escritorrusso Vladimir Sorokin: “uma leitura colectiva do livro, com a ajuda daimaginação, em Riga”.Para criar este colectivo Hermanis apoiou-se num dispositivo cénicocomplicado: um espaço cénico circular, como uma pista de circo, onde14 actores faziam uma leitura do romance. Enquanto alguns represen-tavam ao centro, o público participava (silenciosamente) nessa leituracolectiva folheando dois álbuns de fotografias e uma banda-desenha-da. O que não se podia ver em cena imaginava-se na leitura dessesálbuns. Por fim, e para que pudesse acompanhar a tradução destapeça apresentada em letão, os espectadores tinham um capacete na

cabeça, onde ouviam um “tradutor” (recrutado à Comissão Europeia?)que, no interior de uma cabina, parecia ler um anuário.Desde o início que este era um dispositivo violento: a tradução estavaconstantemente desfasada, os álbuns de fotografias eram de umafealdade (artística?) indefinível e a banda-desenhada jamais encon-traria um comprador entre a vasta oferta fornecida pela Fnac. Ao longodas três horas e meia de duração do espectáculo, estes quatro níveisde linguagem desarticularam-se e deram-me uma cefaleia indescrití-vel. Da minha parte (enfim) participei nesta leitura colectiva tantoquanto é doloroso o tema do romance: The Ice evoca uma seita dehomens louros de olhos azuis ansiosos por aniquilarem uma socieda-de corrupta (a Rússia?) e criarem um estado purificado dos seus para-sitas.Um universo de ficção-científica traduzido com dificuldade por umaencenação de uma pobreza desconcertante. Os objectos em cenadefiniam o tempo, marcando-o, como se os intérpretes dependessemda complexa orquestração de Hermanis. O contexto sectário reforça-va o peso do dispositivo e encerrava um pouco mais a encenação emsi mesma, deixando o público abandonado..

UM OLHAR OBSTINADO

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A folha de sala alerta: Richard Maxwell, encenador e dramaturgo ame-ricano, do colectivo New York City Players, é adepto das “graças anti-teatrais”, “estáticas”, com um “estilo minimalista” e “humor afiado”.Com The end of reality (15 a 18 Maio, Théâtre Les Tanneurs) dou osprimeiros passos num território desconhecido até agora. Estamos no escritório de uma empresa de vigilância em Manhattan.Uma projecção vídeo restitui a vista do quarteirão e remete-nos parauma cultura paranóica onde tudo é um perigo, mesmo a psicologiadas personagens (“Aquilo que gosto em ti é que te compreendemosmuito depressa”, diz uma das mulheres ao seu colega de trabalho).Eles estão ora com a roupa do trabalho ou com fatos de treino, massempre fardados. Como tal, as esferas privada e profissional acabampor se fundir provocando um sentimento de asfixia.Seis actores confrontam-se neste huis-clos, reforçado por uma ence-nação racionalista onde os movimentos ocupam o espaço à seme-lhança de um ecrã de telemóvel. Eles entram e saem da peça numatentativa de ludibriarem o inconsciente, potencialmente perigoso. Foraisso, tudo está sob controlo. Os tumultos são interpretados a umaoutra velocidade (momento jubilatório que torna próximos os agresso-res e os agredidos…); a relação amorosa que surge entre dois segu-ranças e se reduz a um jogo de engate na esfera da Internet onde oscorpos, como que contaminados, se culpabilizam por desejaremtocar-se. Todas estas interacções “na diagonal” permitem algunsespaços livres que os protagonistas se apressam a ocupar: o dossierno qual são descritas as delinquências, o jornal do dia (gratuito?) colo-cado em cima da mesa para leitura e tradução mediática. A armadilhaestá montada. É certo que Richard Maxwell não se esquece de criaralgumas margens de autonomia dramatúrgica que conduzem a queum oficial liberte um delinquente sem que se perceba porquê.Num clima tão pesado, o espectador aborrece-se (à minha volta osespectadores esforçavam-se por não cabecearem). O minimalismoseco, bastante caricatural, torna tão linear a história que nos transfor-ma numa super câmara de vigilância. Somos constantemente remeti-dos para a condição de homens nos momentos mais tristes do seuquotidiano onde tudo é racionalizado. Durante hora e meia resisti aoestabelecimento de relações com o contexto da eleição [presidencial]de Nicolas Sarkozy. A encenação de Maxwell lembrou-me os proces-sos redutores que o novo poder instalou para impedir o surgimento detodo o pensamento global, focando-se no indivíduo em detrimento deuma aproximação colectiva. Mas talvez seja aí que reside a forçadesta obra: com esta aproximação minimalista, Maxwell cria um espa-ço para (re)pensar a nossa sociedade, atendendo ao nosso posicio-namento. Eis-nos regressados ao início, já que só o pensamento com-plexo exporá o medo..

TEXTOS PASCAL BÉLY

BIG BROTHER TEATRAL

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APOSTA

PELA PRIMEIRA VEZ EM 44 ANOS – QUE É COMO QUEM DIZ, EM ONZE EDIÇÕES DA QUADRIENAL DE PRAGA, AMAIS RECONHECIDA EXPOSIÇÃO DE CENOGRAFIA E ARQUITECTURA TEATRAL – PORTUGAL ESTÁ REPRESENTADOCOM UM PAVILHÃO NACIONAL, RESPONSABILIDADE QUE FOI ATRIBUÍDA AO ARQUITECTO JOÃO MENDES RIBEIRO,UM DOS MAIS PROLÍFEROS CENÓGRAFOS DOS ÚLTIMOS ANOS. A QUADRIENAL DE PRAGA 2007 DECORRE DE 14 A24 DE JUNHO E A PARTICIPAÇÃO PORTUGUESA, PATENTE NO PALÁCIO DA INDÚSTRIA, DEBRUÇA-SE SOBRE DOIS

FOCOS TEMÁTICOS PRINCIPAIS: A CENOGRAFIA COMO REPRESENTAÇÃO ARQUITECTÓNICA E OS OBJECTOSCOMO EXTENSÃO DO CORPO HUMANO.

ARQUITECTURAS EM PALCOJOÃO MENDES RIBEIRO NA XI QUADRIENAL DE PRAGA

A partir de uma selecção de 16 projectos cenográficos para teatro edança, datados de 1997 a 2006 – em espectáculos de Ricardo Pais,João Lourenço, Olga Roriz ou António Pires – o arquitecto residenteem Coimbra concebeu um conceito expositivo, a que chamouArquitecturas em Palco, que parte de dois objectos seus com carác-ter icónico: o protótipo OR Mala-Mesa, originalmente construído paraum espectáculo da Companhia Olga Roriz (Anjos, Arcanjos,Querubins, Serafins... e Potestades, 1998); e um outro dispositivo,também transformável, que configura um pequeno auditório para pro-

jecção de vídeo, concebido para uma exposição da Ordem dosArquitectos no Congresso Mundial de Arquitectura (2002). Ambos emmadeira e de fisionomia modular, estes dois objectos sintetizam a ver-satilidade e plurioperacionalidade dos trabalhos de João MendesRibeiro, ao mesmo tempo que são os contentores da própria matériaexpositiva. Assim, as “malas-mesa” estão dispostas em duas banca-das paralelas, onde se encontram pousados esquiços, fotografias,desenhos e outro material documental das cenografias, e o pavilhãocompleta-se com a apresentação de um filme no interior do auditório

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nicantes. A questão da flexibilidade é também determinante e corres-ponde a uma investigação em torno da metamorfose dos espaços eda manipulação dos dispositivos cénicos para configurar diferentesrepresentações do mundo ou hipotéticas situações vivenciais. A ideiade contraste ou ruptura prende-se quer com as particularidades dosdiferentes guiões ou intenções coreográficas, quer com a transposi-ção de algumas premissas estéticas e conceptuais da arquitecturapara o universo da criação cenográfica, assinalando a vertente trans-disciplinar do projecto”.A 11ª edição da Quadrienal de Praga integra, além da secção de expo-sições nacionais, uma secção de arquitectura e tecnologia e uma sec-ção para estudantes, reunindo trabalhos de cerca de 60 nacionalida-des diferentes, numa tentativa de antecipar o que poderá ser acenografia e arquitectura para teatro no século XXI. Portugal esteve járepresentado, em edições anteriores, nas áreas de cenografia e dese-nho de figurinos, por José Manuel Castanheira, João Brites, NunoCarinhas e António Casimiro. Em 2007, porém, a organização desa-

fiou os países participantes a apresentar uma exposição individualdedicada a um tema que reflicta a singularidade da cultura teatral dopaís, possibilitando a oficialização de representações nacionais. Alémdas secções, a Quadrienal inclui ainda um intenso programa de inicia-tivas, como conferências, workshops, exposições temáticas e perfor-mances. No âmbito desta programação paralela, destaca-se a inter-venção do coreógrafo português Miguel Pereira com Costumes, a terlugar numa praça central da cidade de Praga. Pereira foi desafiado aprolongar as suas pesquisas em torno das roupas e dos figurinos – ini-ciadas no projecto Everything But The Clothes e materializadas noespectáculo Corpo de Baile – numa performance que contará comintérpretes recrutados localmente.Depois da apresentação em Praga, está prevista uma digressão deArquitecturas em Palco por Barcelona (no Fomento de ArtesDecorativas de 12 de Julho a 8 de Agosto), São Paulo (no InstitutoTomie Ohtake, entre 3 de Outubro a 18 de Novembro) e, no primeirotrimestre de 2008, em Lisboa e no Porto..

Mais informações em www.pq.cz e em www.iartes.pt/qp07

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modular, A Sesta, encomendado a Olga Roriz. Nesta curta-metragem,as “malas-mesa” reassumem o protagonismo e são manipuladas porum grupo de intérpretes que se juntam para um piquenique no bos-que, sendo dispostas em duas filas paralelas, replicando a configura-ção da exposição.Desta participação oficial de Portugal na Quadrienal de Praga foipublicado um catálogo, bilingue, co-editado pelo Instituto das Artes epela Almedina, que reúne documentação visual do trabalho cenográfi-co de João Mendes Ribeiro e um conjunto de textos críticos – deDaniel Tércio, Miguel-Pedro Quadrio, Antoní Ramón Graels e RicardoPais, entre outros – que o contextualizam e problematizam. Um textodo arquitecto complementa esta edição, onde são explicitados os tra-ços fundadores da sua obra – como a componente experimental e anoção de contraste ou ruptura – tal como se apresentam emArquitecturas em Palco:“Por meio de uma linguagem essencial, austera e depurada, nãomuito distante da prática da arte minimal e do expressionismo abstrac-

to, as intervenções em causa enfatizam um certo subjectivismo, ondeas propriedades físicas do espaço, escala e materiais, são exploradascomo fenómenos autónomos, nas suas intrínsecas qualidades plásti-cas. A cenografia é abordada enquanto experimentação de processose linguagens comuns à arquitectura, nomeadamente, no que toca àmodelação dos espaços a partir de temas como a escala, os aspectoscompositivos e construtivos ou o recurso a dispositivos geométricos emodulares. A componente humana e vivencial dos espaços é determi-nante e traduz-se na estreita relação do objecto cénico com o corpoou as características dos seus utilizadores: os dispositivos são catali-sados pela sua presença, desenhados à sua medida e em função dosseus gestos e percursos. É no contacto com os intérpretes que serevela, efectivamente, a habitabilidade dos espaços cenográficos eque estes se convertem em objectos reconhecíveis, em signos comu-

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VISTO DOS BASTIDORES Miguel-Pedro Quadrio

Em Julho de 2003, na crónica “A doçura daarte”, publicada na revista Magazine Artes,escrevia Jorge Silva Melo: “Daqui a unsanos, já não vai ser assim, já haverá teatroconstruído, já cresce dos alicerces o edifíciodesenhado pelo Manuel Graça Dias e EgasJosé Vieira, corolário óbvio do imenso traba-lho realizado pela Companhia de Teatro deAlmada [CTA] e por este extraordinárioFestival. […] Julho é o mês do Festival deAlmada que sobe Tejo acima e ainda bem.”Entretanto, completou-se o sólido e modernoedifício do Teatro Azul, o novo espaço já fun-ciona regularmente desde 5 de Julho de2006 – ou seja, desde o início da 23ª ediçãodo Festival Internacional de Teatro de Almada[FITA] – e continua a “ser assim”: o únicoevento cultural português onde, ano apósano, uma libérrima descontracção mediterrâ-nica se alia à renovada qualidade das progra-mações, a um profissionalismo irrepreensí-vel, a uma internacionalização esclarecida econsequente da nossa cultura (proporciona-da não só pelo cruzamento de propostas,como pela visibilidade que a produção nacio-nal ganha junto dos criadores e críticosestrangeiros que por lá passam) e à multipli-cação de espaços de acolhimento (além daimprescindível esplanada da Escola D.António da Costa, em Julho Almada tambémé no CCB, na Culturgest, no Teatro Municipalde São Luiz ou no Teatro Nacional D. Maria II).Este “Abril em Julho”, que o actor, encenadore realizador português celebrava efusiva-mente naquele texto, seria, por si só, um feitodigno de nota para um grupo teatral que oEstado, eximindo-se às suas inalienáveisresponsabilidades, insiste em subfinanciar.Ora, as excelentes condições de trabalho donovo Teatro Municipal de Almada e a progra-mação variadíssima que o vem ocupandoininterruptamente demonstraram que este“Abril em Julho” só carecia dos meios ade-quados para se tornar num “Abril sempre!”(slogan que tantos repetiram no auge dafesta, mas poucos quiseram e souberamtransformar em projecto efectivo, recuandopara modelos cediços, onde se consolamlambendo as feridas duma renovação frustra-da ou, situação mais deprimente mas nãoinvulgar, tornando-se em neófitos graves deum neoliberalismo inculto e selvagem).Na entrega a Joaquim Benite – director daCTA e do FITA – da Menção Honrosa do

Prémio da Crítica 2004 que distinguiu a suaencenação d’O Fazedor de Teatro, deThomas Bernhard, assinalei que era “… asageza de dar a ver o melhor teatro nas con-dições ideais para que qualquer tipo de públi-co a ele tenha acesso […] que transforma o[seu] trabalho […] com a Companhia deTeatro de Almada num dos mais relevantes einteligentemente comprometidos projectos donosso panorama teatral.”1

Esta valorização estética e ética do percursoque a CTA vem desenvolvendo em Almada,

desde que o Grupo de Campolide se mudoupara a margem sul do Tejo, em Janeiro de1978, ganhou novo e evidente fôlego com aabertura do Teatro Azul. Num só ano, lá seapresentaram criações de encenadores euro-peus de referência, como Bernard Sobel –que regressa nesta 24ª edição do FITA, diri-gindo a CTA e o Teatro dos Aloés em ACharrua e as Estrelas, de Sean O’Casey –,Giorgio Strehler (Os Dias Felizes, de Beckett)ou Alain Olivier (O Marinheiro, de FernandoPessoa); a temporada regular integrou cola-borações de prestigiados criadores portugue-ses (além de Joaquim Benite, trabalharamem Almada Rogério de Carvalho, JorgeListopad ou Luís Miguel Cintra); deu-se lugara jovens dramaturgos (a estreia de QuartoMinguante, primeira peça de RodrigoFrancisco, constituiu um êxito); habitaram-seos vários espaços do novo teatro com dança,concertos vários, conferências, debates,exposições de artes visuais, ateliers destina-dos à infância e, last but not the least, o halldo Teatro Azul abriu-se a bailes públicos deconvívio, gratuitos, com música ao vivo.

A consistência deste programa, a sua inegá-vel vocação cívica e reconhecimento comuni-tário conferem pertinência renovada à possi-bilidade, várias vezes avançada por JoaquimBenite, de uma total reconfiguração do apoioestatal às artes performativas. Demonstradaa exequibilidade e sucesso de um pólo des-centralizado, pluridisciplinar, multifuncional(onde a criação se articulou com a produção,a programação e o acolhimento), internacio-nalizado e efectivamente procurado porpúblicos diversos (semelhante a um “centre

dramatique national” francês ou a um “teatrostabile” italiano), resta saber se o Ministérioda Cultura entenderá esta experiência inova-dora e genuinamente democrática comoalternativa ao conceito macrocéfalo, onerosoe tantas vezes errático de “teatro nacional”(basta relembrar a acidentada história doTeatro Nacional D. Maria II) e se estará dis-posto a incentivá-la – e a outras que a multi-pliquem – com um investimento financeirosemelhante ao que realiza nos orçamentos sig-nificativos dos teatros nacionais existentes..1 “Thomas Bernhard ‘servido’ por Joaquim Benite,

Sinais de Cena, dir. Maria Helena Serôdio, Lisboa,

Associação Portuguesa de Críticos de Teatro /

Centro de Estudos de Teatro, Junho de 2005, n.º 3,

p. 20. Cito a partir desta versão revista do texto lido

na cerimónia da entrega dos prémios, que teve

lugar no Salão Nobre do Teatro Nacional D. Maria II,

em 28 de Março de 2005.

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24ºFESTIVALDE ALMADA

24º FESTIVAL DE ALMADA, 4 A 18 DE JULHO, VÁRIOS LOCAIS

A Charrua e as Estrelas, Sala Principal do Teatro Azul, dias 17 e 18 (p. 36)

Sizwe Banzi is dead, Sala Principal do Teatro Azul, de 6 a 9 (p. 42)

Les Paradis Aveugles, Fórum Romeu Correia, dia 9 (p. 46)

Marionetas de Água do Vietname, Centro Cultural de Belém, de 15 a 17(p. 47)

Nada ou o Silêncio de Beckett, Palco Grande, dia 7 (p. 50)

Cabaret Molotov, Palco Grande, dia 8 (p. 51)

Gulliver, Palco Grande, dia 12 (p. 51)

Romeu e Julieta/ teatro (Oskaras Korsunovas), Teatro Nacional D. MariaII, dias 16 e 17

(p. 52)

Romeu e Julieta/ dança (Mauro Bigonzetti), São Luiz – Teatro Municipal, dias 13 e 14

(p. 54)

Burger King Lear, Palco Grande, dia 10 (p. 55)

Living Costa Brava, Palco Grande, dia 5 (p. 56)

La Estupidez, Palco Grande, dia 4 (p. 57)

Anathema, Culturgest, de 7 a 11 (p. 58)

História de Amor (Últimos Capítulos), Instituto Franco-Português, de 5 a 13

(p. 59)

Cavaterra, Palco Grande, dia 18 (p. 60)

Ifigeneia, Fórum Romeu Correia, dia 14 (p. 62)

Sete Contra Tebas, Culturgest, de 10 a 15 (p. 63)

O Cerejal, Palco Grande, dia 14 (p. 64)

Rabih Abou-Khalil, São Luiz – Teatro Municipal, dias 5 e 6 (p. 68)

Canções Heróicas de Lopes Graça, Fórum Romeu Correia, dia 8 (p. 69)

E AINDA

Sobel/García: olhares sobre o desespero contemporâneo (p. 41)

Carmen Dolores, homenageada pelo Festival, e a memória do TeatroModerno de Lisboa (p. 44)

Pré-publicação de A Peste, conto vietnamita de Phan Huyen Thu (p. 48)

Festival X: quando Almada teve um Off (p. 55)

Olhares cénicos de Costa Pinheiro (p. 70)

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BERNARDSOBELBERNARD SOBEL É UM DOS MAIS IMPORTANTESENCENADORES FRANCESES DA ACTUALIDADE.CRIADOR DO THÉÂTRE DE GENNEVILLIERS, NOSSUBÚRBIOS DE PARIS, DURANTE 43 ANOS (ATÉ ATINGIRO LIMITE DE IDADE LEGAL, EM DEZEMBRO DE 2006),SOBEL MONTOU MAIS DE 80 PEÇAS, SOBRETUDO DEAUTORES RUSSOS E ALEMÃES.A SUA ABRANGÊNCIAESTÉTICA LEVOU A QUE SE INTERESSASSE TANTOPELOS CLÁSSICOS GREGOS (ÉSQUILO, EURÍPEDES)COMO PELA CONTEMPORANEIDADE (SARAH KANE).TAMBÉM DIRIGIU ESPECTÁCULOS DE ÓPERA E FOIREALIZADOR DE CINEMA E TV. A ALMADA TROUXETRÊS ESPECTÁCULOS: O REFÉM, DE PAUL CLAUDEL(2002); DOM, MECENAS E ADORADORES, DEOSTROVSKI (2006); E A CHARRUA E AS ESTRELAS, DE SEAN O’CASEY QUE SOBE AGORA À CENA EMTRADUÇÃO DE HELENA BARBAS NO NOVO E MUITOAZUL TEATRO MUNICIPAL.

O ENCENADOR QUE FALA TEATRO

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ENTREVISTA JOSÉ MÁRIO SILVA FOTOGRAFIA JOSÉ LUÍS NEVES

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Por que é que escolheu encenar Sean O’Casey, um dramaturgoirlandês que nunca antes tinha subido ao palco em Portugal, eesta peça – A Charrua e as Estrelas – em particular? Existe algu-ma lógica de continuidade com os trabalhos de encenação quetem feito nos últimos anos?Isto tudo começou quando o Joaquim Benite, director da Companhiade Teatro de Almada, me disse: “Queres vir fazer qualquer coisaaqui?” A primeira questão que me coloquei tinha a ver com o meioenvolvente do Teatro Azul, como é conhecido o novo Teatro Municipal.Isto é, tinha a ver com as pessoas que vivem à volta dele. Porque virencenar um clássico não fazia sentido para mim, por muito generosaque fosse a proposta do Joaquim. Era preciso que eu sentisse umaverdadeira necessidade de estar ali, no Teatro Azul, naquele contextodemográfico, digamos assim. E parece-me que um homem comoO’Casey, quando fala dos subúrbios e bairros operários de Dublin, quesão de certo modo o seu território, fala também das pessoas que habi-tam à volta do Teatro Azul. Porque o Teatro Azul, em si mesmo, é ummilagre e um paradoxo. Podemos perguntar-nos o que é que ele fazali. A coragem da autarquia e a teimosia do Joaquim criaram um ins-trumento precioso, respondendo de certo modo à indignação do ReiLear, quando diz: “Se derem aos seres humanos apenas aquilo de queeles necessitam, estarão a tratá-los como animais.” A mim, pareceu-me que se um almadense que habite perto da milagrosa casa azuldecidir descer ao teatro, não digo que se reconheça em O’Casey, maspode ver pessoas, sentimentos, emoções, esperanças e desesperosque continuam a ser os seus, mesmo hoje.Entre a Dublin de 1916 e a Almada (ou a Europa) de 2007, o que éque mudou e o que é que ficou na mesma?O que mudou foi apercebermo-nos de que o animal humano nãomuda. Ele faz a História, ele altera o mundo, mas não se altera a simesmo. Quer dizer, altera-se mas não muda: não se torna bom, nãose torna melhor. Se quisermos falar hoje do nosso tempo, evocando ainvenção da lei, a democracia, a liberdade, a relação do indivíduo coma comunidade, etc., a obra mais moderna de que podemos partir é aOresteia, de Ésquilo. Tornou-se claro que não é Shakespeare que énosso contemporâneo, como dizia Jan Kott, mas somos nós que con-tinuamos a ser contemporâneos de Shakespeare. O animal humano,que é uma parte da Natureza, é a parte da Natureza menos natural, amais monstruosa. E essa constatação sempre foi o que esteve na ori-gem da prática artística a que chamamos teatro.O’Casey era um autor empenhado não apenas politicamente mastambém socialmente.Não acho que fosse mais empenhado do que Shakespeare. Era umhomem do seu tempo, sem dúvida. Tinha opiniões, assistia às lutas eaos combates, mas não creio que fosse mais ou menos empenhadodo que Shakespeare. Dizer isso seria reduzi-lo.Já que refere o autor de Macbeth, há quem diga que a linguagemde O’Casey era muito shakespeariana.Mas claro que sim. Ele foi, acima de tudo, um poeta. Um poeta que foiadmirado por homens como Beckett. O seu problema foi ter escolhidoheróis que aparentemente nada têm de heróico. Falou da arraia miúdade Dublin, como António José da Silva falou dos habitantes do BairroAlto, Goldoni dos desgraçados de Veneza e Valle-Inclán dos miserá-veis de Madrid. O que O’Casey mostra é que essa arraia miúda deDublin só conseguia sobreviver a condições de vida muitíssimo precá-rias graças a duas drogas: a poesia e o álcool. Todos os seus heróissão poetas. É a poesia que lhes permite suportar o lado implacável darealidade. Em O’Casey, ao contrário de Brecht, não há uma mensa-

gem que se quer passar, uma lição. Considero-o mais inovador econstrutivista do que Brecht, que se queria moderno. Brecht é maisclássico do que O’Casey. Mas isso não se vê. Ficamos com a impres-são de que Brecht é muito mais moderno e que O’Casey tem umamodernidade mais secreta. O’Casey é idealista mas não é ideólogo.Eu diria antes que ele é um poeta a viver no meio de outros poetas,que não sabem que o são. Há também um lado simbólico nesta peça. Porque a metáfora dacharrua e das estrelas aborda a possibilidade de uma certa supe-ração dos constrangimentos que prendem os homens à terra e auma vida insatisfatória.Sim, era um pouco isso. A política na Irlanda podia ser ao mesmotempo sangrenta e poética. Mas O’Casey fez com A Charrua e asEstrelas a sua mais bela peça. Ele foi beber aos gregos, aos isabeli-nos, aos filósofos. E também há lá dentro a Nora de Ibsen, a Ofélia deShakespeare, Tirésias, figuras do teatro que aparecem como vindasdo nada. Quando o poema é verdadeiro, regressam automaticamenteas figuras mitológicas da humanidade. Há a Bíblia, há profetas bêbe-dos. É uma mistura onde cabe tudo, de Ésquilo e Homero até Chaplin.

Mas sempre a partir de tipos urbanos ainda hoje reconhecíveis.Sim. As suas personagens são operários, mulher-a-dias, pedreiros. Étalvez por isso que a maioria dos encenadores torcem o nariz aO’Casey. Mas pensei que em Almada – onde não faltam mulher-a-dias, pedreiros, carpinteiros e... desempregados – fazia sentido abor-dar este universo.A peça já tinha sido montada por si, em 1986. Mais de 20 anosdepois, em que é que difere o seu olhar de encenador sobre otexto?O meu olhar difere porque entretanto pude descobrir o artista enormeque O’Casey é. Discernir a sua arte. Uma arte que absorve tudo o queentão se passava na Europa, mesmo sem que ele se apercebessedisso. Há ali ideias de montagem, ecos do nascimento do cinema. Emalguns aspectos, eu diria mesmo que A Charrua e as Estrelas é umapeça cubista. A actual produção vai ser falada em português. Este facto impli-cou algum tipo de ajustes no seu método de trabalho?Não. Mas é óbvio que se trata de um desafio. E de uma enormedemonstração de coragem por parte do Benite. Foi ele que me fez o

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casting. Corrigi-o depois um pouco, mas não muito. Quanto aosjovens actores que trabalham comigo, só espero estar à altura doentusiasmo de que já me deram provas. Eles estão muito cansados, otrabalho tem sido muito duro.Você é muito exigente como encenador?Nem por isso. Ou melhor, não sou eu que sou exigente. É O’Casey.A língua não está a ser uma barreira?Quando se monta uma peça, seja de quem for, depressa se com-preende que a “fala” do teatro é uma outra fala. Mesmo quando estounum palco em França, não é francês que eu falo. Falo outra coisa.Falo teatro.É um idioma à parte.Não. É uma língua que não é a língua do uso quotidiano. E é por issoque eu posso entender-me com os actores portugueses, mesmo quenão perceba o que eles dizem. Porque quando estamos juntos fala-mos teatro. E quando falamos teatro, entendemo-nos.A sua formação começou na Alemanha, com o BerlinerEnsemble. Qual foi a importância desse começo, dessa desco-berta do teatro sob o signo de Brecht?Não sei dizer. Eu não tenho uma teoria do teatro mas descobri que eleé cada vez mais útil porque o teatro, tanto em Molière como emOstrovski, tenta oferecer ao animal humano, consciente ou incons-cientemente, a coragem de compreender que a sua vida não tem umsentido pré-estabelecido. É como diz Shakespeare: a vida signifyingnothing, a nossa vida, que nada significa. Não quer dizer que sejadesesperado. Mas a esperança é uma paixão triste. Não devemos teresperança nem desesperar. Devemos viver. Diz que não tem uma teoria do teatro, mas em Gennevilliers pôdeentregar-se à prática do teatro durante mais de 40 anos.Pois. Mas durante essas quatro décadas deu-se o aparecimento datelevisão, o desabar do socialismo real existente...E o seu trabalho foi reflectindo tudo isso...Sim, essa era mesmo a sua razão de ser.Registar as transformações do mundo.As transformações que eu próprio vivia. E os poetas antigos foram-meensinando que o mundo sempre sofreu transformações brutais.Quando montava Ésquilo, não tinha a impressão de montar um velhopoeta. Compreende?Joaquim Benite sempre disse que o projecto de Almada – fazerteatro e criar um público na periferia da capital – se inspirou noseu trabalho em Gennevilliers. Por que é que escolheu fazer tea-tro longe do centro de Paris, nos subúrbios?Porque é nos subúrbios que as mudanças têm efeitos mais violentos.É ali que se tem medo de perder o trabalho, é ali que assistimos aoconsumo nas grandes superfícies comerciais, é ali que reina oMcDonalds.E é também ali que emerge a rebelião, como em 2005, com osautomóveis a arder.Claro. É na periferia das grandes cidades que o maremoto que varrea Terra se faz sentir de forma mais evidente. Na Europa, a nossa prin-cipal preocupação é proteger o que temos, porque já nos mostraramque de um só golpe podemos perder tudo. A exacerbação dos nacio-nalismos, de que O’Casey também fala, é uma tentativa de esquecera realidade. E a realidade é que a “fábrica do mundo” fica nos arredo-res de Pequim, já não é aqui. Ao trabalhar nos subúrbios, conseguiu sentir de perto esses pro-blemas económicos e sociais?De muito perto mesmo. E também por isso considero que a chegada

ao poder de Sarkozy é um sinal fortíssimo.Sarkozy disse que um dos seus objectivos é pôr fim ao que restado espírito de Maio de 68.Há uma coisa que é surpreendente na aventura Sarkozy. Ele própriome disse uma vez que nós pertencíamos à mesma profissão. É um encenador? Um actor?Sim. Ele é o actor dos discursos de outrem. Se virmos bem, tudo seresume ao poder das palavras. Quais são as palavras que vão causarmaior impacto? E nesse sentido há uma proximidade entre Sarkozy eum grande actor, que pede a autores que lhe escrevam os seus tex-tos e que sabe os efeitos que as palavras produzem.Isso foi muito evidente no célebre episódio em que Sarkozy,ainda ministro do Interior, se referiu à “racaille” (ralé) quandofalava dos jovens que protestavam contra a morte, num transfor-mador de electricidade, de dois adolescentes perseguidos pelapolícia.A palavra “racaille” teve um peso tremendo, como agora essas duaspalavras que andam sempre juntas: valor e trabalho. Aliás, penso quea esquerda, depois de ter sido espoliada da ideia de progresso, foiincapaz de encontrar outra linguagem. Permaneceu na velha lingua-gem. Ao contrário de Sarkozy, que se adaptou e por isso acho que elemereceu ganhar as eleições presidenciais. Agora, se não concordocom ele, porque sou de esquerda, tenho que encontrar uma outra lin-guagem, tão eficaz quanto a dele. E este é um problema de teatro.Teme a encenação que ele vai preparar para a França?Isso não sei. Ele vai fazer como o Joaquim Benite. Procurar o seupúblico, aqui e ali.No final de 2006, abandonou o Théâtre de Gennevilliers. Foiduro? Como é que viveu essa saída?Foi muito duro. Acho que quem tomou a decisão se enganou. Masespero que o meu substituto faça um bom trabalho. Da minha parte,vou fazendo o que posso.Gostava de voltar?Não, não. Isso é impossível. Mas penso que podia ter continuado a serútil.Qual é o seu projecto neste momento?Encontrar um lugar, um espaço modesto, para uns 100 ou 200 espec-tadores. Para mim, o que é interessante é dar um rosto a uma casa,uma identidade. Ainda não encontrou esse espaço?Ainda não.O que é que vai fazer depois desta passagem por Almada?O director do Teatro Nacional de Estrasburgo, StéphaneBraunschweig, convidou-me a montar um espectáculo de Yuri Olecha,um grande escritor soviético, contemporâneo de Mandelstam. Vai serem Outubro e irá depois para o Théâtre de la Colline, em Paris.Quando encontrar esse espaço, acha que ainda vai ter a energianecessária para recomeçar um projecto da estaca zero, comnovos artistas?Espero ter força para isso, sim. Não lhe falta vontade.Claro que não. Caso contrário, creio que não teria quaisquer razõespara viver.A sua vida foi sempre o teatro.Sim, mas nunca tive vocação para o teatro. Nunca?!Nunca tive. Foi tudo por acaso. E tenho a impressão que é apenasaquilo que eu posso fazer menos mal..

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TRÁFICO FESTIVAL DE ALMADA

EM NOVEMBRO DE 2004 CERCA DE TRÊS MIL ENCENADORES, DRAMATURGOS, COREÓGRAFOS, FILÓSOFOS,ACTORES, POLÍTICOS, INVESTIGADORES, CRÍTICOS E PROGRAMADORES REUNIRAM-SE EM RENNES, NO

NOROESTE DE FRANÇA, PARA O COLÓQUIO INTERNACIONAL ENCENAÇÕES DO MUNDO. DAS ACTAS DO ENCON-TRO TRANSCREVEMOS UM EXCERTO DO DIÁLOGO ENTRE OS ENCENADORES BERNARD SOBEL E RODRIGO

GARCÍA, QUE INTEGRARAM O PAINEL “ENCENAÇÃO E ORDEM POLÍTICA”: A PROCURA DE UMA RELAÇÃO ENTREPROPOSTAS DE INTERVENÇÃO PÚBLICA E A RESPONSABILIDADE

DE TRANSMITIR VALORES, IDEIAS E SENTIDOS.

SOBEL VS GARCÍAOLHARES SOBRE O DESESPERO CONTEMPORÂNEO

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Bernard Sobel Ao vir até aqui pensava na impressão extraordináriaque me causou o espectáculo de Rodrigo García Comprei uma pá noIKEA para cavar a minha campa [2003]. Nunca tinha visto nenhumdos seus espectáculos. Ali passou-se qualquer coisa que não é daordem do espectáculo, mas que lhe corresponde que por isso me dei-xou profundamente tocado. Até aí tinha como referência a visão deBrecht sobre os pequenos-burgueses. E sinto-me agradecido aGarcía, porque o que ele nos mostrou não foi o desprezo pelos peque-no-burgueses, mas que o objecto do seu trabalho é a resistência des-ses seres humanos. Posso dizer que me sinto muito orgulhoso epenso que, se tivesse morrido há dez ou vinte anos, poderia dizer-seque tinha morrido estúpido. Ao passo que hoje, em relação ao proble-ma das ilusões, das utopias, estamos perante uma realidade que édescrita, de certa forma, pelo Rodrigo. Faço uma diferença entre o seutrabalho e o modo como fala. Eu sei que aquilo que é difícil sendopoeta – contrariamente ao Rodrigo, eu não sou um poeta – é de ape-lar à inteligência. Visto que, e sem o dizer, ele fez uma evidente refe-rência a Heidegger, e eu faço referência a Spinoza para dizer que odesespero é uma paixão triste. Ou seja, nós não podemos fazer nada.O teatro, portanto a encenação do mundo, falou sempre do ultraje quea humanidade fez ao humanismo. Ora, o humanismo não existe. Masnão conheço teatro que não fale dos ultrajes que a humanidade fez aesse dito humanismo existente. Portanto, a encenação do mundo con-siste em falar desse ultraje. É isso que faz o Rodrigo. Agora, se ele fazreferência a Heidegger e aos problemas metafísicos que se colocamao indivíduo, estou de acordo. Mas penso mais nos problemas daespécie. No Le Monde vinha hoje uma fotografia de uma fábrica naChina onde vemos os operários a trabalhar. O problema para nós éque não podemos condenar isto, não temos o direito de ficar deses-perados. Não podemos ignorar uma criança que passa fome em Áfri-ca. Mas eu tenho a impressão de que a humanidade se encontrousempre nesta situação. Quando Shakespeare escreveu Rei Lear, foipara falar desse ultraje. Os poetas, os verdadeiros poetas, como diziaProust citado por Yves Saint-Laurent, são os depressivos e os depres-sivos são o sal da terra. Ora, eu não posso dizer que seja um depres-sivo. Mas preciso dos depressivos.Rodrigo García Eu defendo o facto de que as pessoas que vemosnessa fotografia são pessoas que têm um atractivo poético. Eles têmum quotidiano real, uma relação com a terra, com a vida de todos osdias. Creio que na Europa nos recusamos ao direito à poesia. Creioque o problema da poesia é que ela desapareceu no quotidiano, nonosso quotidiano. Mas em momento algum eu posso dizer que essaspessoas, por exemplo na China, não têm um grande nível poético. Eupelo menos invejo o seu universo. É verdade, tendemos a ignorar queeles por vezes são pobres. Isso faz-me falta neste momento.BS Desculpe-me, isso parece um pouco pretensioso. Mas eu estou aler a Ética de Espinoza e penso que isso me é muito útil. Quando elefala de homens que controlam a razão, ele sabe que isso não existe.Mas, em última análise, o que nos permite ser poéticos é aquilo quepodemos partilhar, é a inteligência. E a inteligência não deve baixar osbraços diante da poesia. A inteligência é o que nos faz afrontar omundo de hoje tal como ele é. Penso que nós, que o teatro na suaespecificidade (não como no cinema), tentamos mostrar o lado nãonatural do homem. Ou seja, que o humanismo não existe, fabrica-secontinuamente. E não há um homem assim tão bom, há um fabrico dohomem. E os homens de teatro são essencialmente, e sem cessar,trabalhados. Portanto, hoje não é tão desesperante como ontem. Masestou de acordo que o mais difícil é sermos conscientes disso. Lido

mal com isso enquanto pequeno-burguês, mas não estou desespera-do, porque se me deixo ir, bem, como diria Heidegger, a technè, anatureza distancia-se, etc. Mas eu continuarei a comer.RG Mas eu não oponho a poesia à inteligência. Para se fazer poesiaé preciso ser-se inteligente. O que me pergunto é: a que nos leva essainteligência? Qual o caminho a percorrer? Para mudar o destino justodessa inteligência, porque não pensar antes na intuição e no carácteranimal? Se o encenador não é um poeta, devia ser. Há uma diferen-ça entre aqueles que fazem teatro por razões artísticas e aqueles quese contentam em perpetuar a tradição.BS Eu penso que somos animais que têm a possibilidade de estardesesperados e de comunicar esse desespero aos outros. Isso já éalguma coisa. Os animais não transformam o mundo. É verdade queo teatro é, a meu ver, uma ramificação da filosofia. Quando mostreiesta imagem, eu que pretendo ser comunista, é na China comunistaque isto se passa. Entre estes trabalhadores alinhados e aqueles quefazem fila na ANPE [Centro de Emprego], eu questiono-me. Não é umapelo ao desespero porque há, talvez, coisas maravilhosas que seconstroem. E na nossa profissão é preciso continuar a trabalhar. É anossa tarefa, a de Büchner, a de Ésquilo, a tua, a de Sarah Kane.Büchner falava de desespero. E tinha razões para estar desesperadoporque quando redigia os panfletos pela paz nas cabanas e a guerranos palácios, quando esses tratados escorregavam pela porta doscamponeses, os camponeses denunciavam-no à polícia. Mas o queBüchner nos deixou é algo que nos alimenta todos os dias.RG Produziu-se um fenómeno estranho. O meu discurso foi interpre-tado como qualquer coisa de desesperado, enquanto que eu vejo-ocomo um discurso cheio de esperança. Eu sou um artista que ques-tiona e que se interroga sobre o seu trabalho. E eu acredito que issodá esperança.BS Quando eu falava há pouco, repetindo estupidamente o discursode Spinoza, em que ele dizia que o desespero era uma paixão triste,isso quer dizer que Beckett, por exemplo, não era desesperado.Depende de como o entendemos. Eu não sou poeta. Mas o facto dealguém como Rodrigo García o ser – Matthias Langhoff trabalhou osseus textos, por exemplo – e faça parte daqueles que, justamente,falam de resistência, mostra que o ser humano não pode senão resis-tir ao ultraje que se pratica constantemente sobre si mesmo. Enfim, étudo, e é enorme. Como será feito amanhã ninguém o sabe. Ninguémse pode considerar nu hoje tendo em conta o que as gerações ante-riores nos deixaram de instrumentos de pensamento e reflexão. Hojealegremo-nos pelas dificuldades. Agora, é certo que o Rodrigo podiafazer como Rimbaud, deixar a poesia e ir vender armas para África,porque não? É difícil saber como falar daquele operário chinês e dizero que é a sua vida. São pesquisas. As pessoas procuram, experimen-tam. Brecht é isso. Ele procurava sem parar. E nós, encenadores, ten-tamos que façam parte dessas experiências. Agora, naturalmente,Büchner ficava profundamente desiludido quando o camponês o iadenunciar à polícia. Nós não carregamos a esperança mas falamos doorgulho de se ser humano tendo em conta todos os horrores de que oHomem é capaz, e isto sem dizer que há bons e maus. Foi isso queShakespeare fez e foi isso que os gregos fizeram. Não há bons emaus. Mas então o que há, perguntam? Eu não vos irei responder.Porque não há resposta. Mas dizer que não há bons nem maus já émuito importante..O diálogo integral encontra-se publicado com o título Mises en Scénedu Monde, edições Les Solitaires Intempestifs (2005, €15).

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A POESIA ÁRIDA DE PETER BROOKDE QUE É QUE FALAMOS QUANDO SÓ TEMOS MEDO E JÁ NÃO SABEMOS QUEM SOMOS? ESTA PARECE SER A

QUESTÃO QUE OS SUL-AFRICANOS ATHOL FUGARD, JOHN KANI E WINSTON NTSHONA PRETENDERAM DEBATEREM SIZWE BANZI IS DEAD, PEÇA QUE CHEGA A ESTA VIGÉSIMA QUARTA EDIÇÃO DO FESTIVAL INTERNACIONAL DE

TEATRO DE ALMADA, DIRIGIDA PELO CÉLEBRE ENCENADOR E REALIZADOR CINEMATOGRÁFICO BRITÂNICOPETER BROOK (LONDRES, 1925). AS CIRCUNSTÂNCIAS QUE RODEARAM A SUA ESCRITA E ESTREIA, EM 1972, SÃO,

POR SI SÓ, SUFICIENTEMENTE INDICATIVAS DO PROGRAMA ÉTICO-POLÍTICO QUE A ENFORMOU.

Harold Athol Lannigan Fugard (1932) – um branco, filho de um casalanglo-africânder – chegou tarde à actividade teatral. Abandonada auniversidade e as vantagens socioeconómicas que a cor de pele lheteriam proporcionado na África do Sul do apartheid, decide corrermundo, como embarcadiço, em navios da marinha mercante.Regressa só nos últimos anos da década de 50, quando casa com aactriz Sheila Meiring e se torna funcionário judicial. É justamente nestafunção silenciosa que se apercebe das humilhações constantes sofri-das pela população negra, obrigada a possuir “passes”, quase impos-síveis de obter, para poder circular pelo país em busca de trabalho oude melhores condições de vida.Esta perversa forma de escravidão, que aprisionava os cidadãos àsmiseráveis e degradas townships e os “ilegalizava” no restante territó-rio nacional, impulsionou-o a conceber uma forma de intervenção efi-caz e simultaneamente cativante, onde não só se denunciasse adesumanidade implacável do regime sul-africano, como se devolves-se a estas populações o seu inalienável sentido de dignidade e deidentidade.O teatro surge-lhe, pois, como estratégia perfeita para alcançar doisobjectivos imediatos. Em primeiro lugar, recorrendo a elencos mistosde actores negros e brancos (realidade então inimaginável), captarpopulações previsivelmente apreensivas para uma ideia de naçãopartilhada. Depois, e dado que estas apresentações nas própriastownships de debatiam com uma inevitável escassez de meios econó-micos – tanto da produção, como do(s) público(s) –, avançar comremontagens simples e vibrantes de situações do quotidiano, portodos reconhecíveis, que estimulassem tanto a consciencializaçãoética e sociopolítica, como uma sadia interacção que afrouxasse ódiosseculares.Sizwe Banzi Is Dead é um espectáculo que aparece quando AtholFugard já fundara a companhia Circle Players, na cidade de PortElizabeth, já se mudara para Joanesburgo e já regressara a PortElizabeth, lançando um novo grupo teatral (os The Serpent Players).Neste percurso acidentado, Fugard seguiu sempre o rumo de umpedagógico teatro de intervenção, claramente inspirado pelo marxis-

mo e pela urgência de uma revolução que estabelecesse na África doSul a democracia, a liberdade e a igualdade.É uma peça, portanto, que surge em plena maturidade criativa de umdos seus autores e no momento em que a companhia já possuía reco-nhecimento e maturidade suficientes para radicalizar a sua experiên-cia de “teatro improvisado”. Os actores e co-autores Bonsile John Kani(n. 1943) e Winston Ntshona (n. 1941) – ambos negros – já há algumtempo que intervinham na concepção deste teatro vivo, marcadamen-te oral e, a mais das vezes, deixado inédito. Ora é precisamente comSizwe Banzi Is Dead – a que seguirá, em 1973, The Island – que estetrio criativo firma o seu sucesso, alcançando mesmo forte visibilidadee reconhecimento nos países de língua inglesa (ambas as peças rece-beram um Tony Award, em 1975).

Não se espere, todavia, uma escrita apenas engajada. A sua força edinamismo resulta, ao contrário, de um olhar tão ácido e provocador,quanto poético e profundamente humano, sobre duas personagensque, antes de mais, se assumem como um qualquer outro excluído,

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irremediavelmente marcado para falhar (interroga-se Sizwe: “Umnegro não poderá viver em paz?”, concluindo logo de seguida:“Impossível! O problema é a nossa pele!).Esta diferença gritante e inapagável segue aqui o mais imprevisto dostrilhos. Na primeira parte do espectáculo, Styles relembra, num longomonólogo, os vários percalços que o levaram a adiar o seu sonho departir e de abrir um estúdio de fotografia. Peter Brook contrasta a exu-berância da personagem, o seu generoso apelo à participação dopúblico e as superabundantes ironia e versatilidade com que matiza asua própria frustração – antes de se tornar fotógrafo, fora operárionuma fábrica da Ford – com um eloquente cenário de desolação. A crí-tica de teatro Anne-Sylvie Sprenger descreve-o incisivamente: “Em

cena, quatro projectores, paredes de cartão unido por fita isoladoragrossa, sacos de plástico verdes em forma de bidão e meia dúzia deobjectos suspensos perfazem a cenografia.”Nesta produção de 2006 do Centre International de CréationsThéâtrales (CICT) – sediado em Paris, no Théâtre des Bouffes duNord –, Peter Brook utiliza a tradução francesa de Marie-HélèneEstienne, sua colaboradora desde 1977. Desde que, nos anos 70, seradicou em França e fundou o CICT, Brook persegue uma linha decriação que se afastou do cânone cénico do Ocidente – consideradogasto e excessivamente centrado na fabricação de imagens belas,mas destituídas de sentido –, trocando-o pelo “teatro vivo”, despojado,enérgico e suficientemente interpelativo que encontrou no Magrebe ena África negra.La Tragédie d’Hamlet, apresentado no Teatro Municipal Maria Matos,em 2003, foi um dos espectáculos onde este diálogo de culturas atin-giu um superlativo grau de depuração e eficácia (basta relembrar omovimento “swingado” do protagonista, quase em desconstrução rap,desempenhado pelo excelente actor negro William Nadylam).Também sobre a patológica experiência do apartheid – tema agoraretomado em Sizwe Banzi Est Mort –, Lisboa já vira em 2002, naCulturgest, a encenação de Peter Brook de Le Costume, peça dos sul-

africanos Mothobi Mutloatse e Barney Simon.Foi com elementos que intervieram em ambos os trabalhos que Brookavançou para a peça de Athol Fugard, John Kani e Winston Ntshona,considerando que este olhar “…vindo do passado nos toca hoje aindapelo rigor da sua magnífica derisão, infelizmente, premonitória.” É,aliás, na segunda parte da peça – quando Sizwe (Habib Dembélé) dia-loga com Styles (Pitcho Womba Konga) – que se torna flagrante arasura das suas identidades e o inconsciente consentimento das víti-mas neste implacável processo de desumanização.Segundo Jean-Marie Wynants, que apresentou o espectáculo no jor-nal francês Le Soir, os dois actores assumem-se como pólos antitéti-cos face a este angustiante processo, pois enquanto Dembélé desen-

volve um registo “folgazão, malicioso e vigoroso”, Womba Konga “jogaa carta da sobriedade”, mais adequada à desarmante verdade da suarevolta. Gilles Rof chega mesmo a comparar Dembélé a “um EddyMurphy africano” que, na sua interpretação de múltiplas vozes, atingeo “histrionismo profundo” de um bardo do Mali (país donde o actor éoriginário). O crítico do Marseille l’Hebdo enfatiza, porém, o ascetismoe simplicidade que preside a esta leitura de Brook, características quelevarão Nicole Laffont, no Nice Matin, a falar de “felicidade reencontra-da”: “… uma irrepreensível direcção de actores, uma subtil alquimiaentre emoção e humor, um casamento feliz entre a vivacidade do tra-balho e os silêncios do coração que nos familiarizam com este dramados indocumentados fazem de Sizwe Banzi Est Mort uma propostasedutora e irrecusável.”Deste projecto, podemos esperar, então, um equilibrado cruzamentoentre a poesia árida do espaço vazio de Peter Brook com as coresvariegadas e ostensivamente denunciadoras de um teatro que se querinteligentemente comunicativo, politicamente comprometido com ummulticulturalismo saudável e exigente..

TEXTO MIGUEL-PEDRO QUADRIO

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CARMEN DOLORES: RETRATO INACABADOCOM DESCULPAS À ACTRIZ, TOMA-SE-LHE O TÍTULO DAS MEMÓRIAS PUBLICADAS EM 1984 (RETRATO INACABADO

FOI O PRIMEIRO VOLUME DUM CONJUNTO, CUJO SEGUNDO VIRÁ A CAMINHO), JÁ QUE NÃO SE PODE PRETENDER, EM MEIA DÚZIA DE TRAÇOS, RETRATAR SEJA QUEM FOR. MUITO MENOS ALGUÉM, COMO CARMENDOLORES, CUJO CONTRAPONTO ENTRE A DISCRETA ATITUDE E O IMPONENTE CURRÍCULO – REPARTIDO POR

RÁDIO E CINEMA, TEATRO E TELEVISÃO – INDICIA FORÇA INTERIOR E DETERMINAÇÃO, SUBLINHADAS PELAINTENSIDADE DO OLHAR, MUITO PARA ALÉM DO QUE PODE DEIXAR SUPOR A SUA DELICADEZA DE MODOS, A

ARTICULAÇÃO PAUSADA, A FRAGILIDADE FÍSICA APARENTE.

Tanto mais aparente quanto, ainda em 2005, a intérprete deCopenhaga voltava a pisar o palco do Teatro Aberto, na reposição dapeça, que já protagonizara, no mesmo espaço, em 2003. Como senão lhe pesassem os 80 anos de idade nem os 66 de actividade,desde que, aos 14 – em Outubro de 1938 –, se estreara aos microfo-nes da Rádio Sonora, a dizer poesia. Poesia que Carmen Doloresainda dizia, durante os anos de ausência em França (1976-1982), aacompanhar o marido, enquanto escrevia as memórias. De regresso,tomava-a uma ansiedade quase de estreante, na volta ao palco – emComédia à Moda Antiga, de Alexei Arbuzov, encenação de JorgeListopad, apresentada em 1983 no antigo Teatro Aberto –, que antesde partir inaugurara com o Grupo 4, integrando o elenco d’O Círculode Giz Caucasiano de Brecht, encenado por João Lourenço, comquem já fizera As Espingardas da Mãe Carrar, na Casa da Comédia(outra sala onde actuou repetidamente) e em digressão pelo país, cor-ria o tempo quente do PREC. No entanto, a actriz sempre veio dizen-do que só na rádio se sentia “completamente à vontade”.Nascida em Lisboa, a 22 de Abril de 1924 – de mãe espanhola e paiportuguês, jornalista no Diário de Notícias e tradutor –, CarmenDolores Cohen Sarmento andava no 6.º ano do liceu (actual 10.º),com o curso de Filologia Germânica no horizonte, quando seu pai fale-ceu e a rádio se lhe atravessou no caminho – da Sonora passou àRenascença, aos poemas seguiu-se o teatro radiofónico, mais tardeviria o Rádio Clube Português, depois a Emissora Nacional. Seduzidopelo timbre claro dessa voz, António Lopes Ribeiro convidou-a parainterpretar Teresa de Albuquerque, no seu filme Amor de Perdição(1943), que seria um sucesso e daria, à intérprete da ultra-românticaprotagonista camiliana, sucessivos papéis no cinema, até à agonia daprodução nacional, nos anos 50. Ao grande ecrã, só esporadicamen-

te voltaria, nas décadas de 70 – n’O Princípio da Sabedoria deAntónio de Macedo – e de 80 – em A Mulher do Próximo e Balada daPraia dos Cães, de José Fonseca e Costa. Foi também Lopes Ribeiro, produtor teatral além de cineasta, quemencaminhou Carmen Dolores, dois anos após a estreia no cinema,para Os Comediantes de Lisboa, companhia cujo director artístico eraseu irmão Francisco Ribeiro, Ribeirinho. Passados três anos, a actriztransitou para a companhia de Amélia Rey Colaço no Teatro Nacional,onde se manteve uma década, até voltar a trabalhar com Ribeirinho,no então novo Teatro Nacional Popular (residente no Trindade), doqual saiu para a aventura do Teatro Moderno de Lisboa. Tal aventura manteve Carmen Dolores longe de uma outra, que foi ado Cinema Novo, nos primeiros anos 60. Por essa altura, dava a actrizo seu melhor – com Fernando Gusmão e Rogério Paulo, nomeada-mente – ao projecto teatral citado, uma sociedade de actores commemoráveis sessões no Cinema Império, ao fim da tarde, de êxitostão assinaláveis quanto os enfrentamentos com a Censura, que leva-riam ao fim da companhia. Esta fizera as temporadas 1961-62, 62-63e 64-65, acabou com O Render dos Heróis, de José Cardoso Pires,encenação de Fernando Gusmão. Outros “heróis” se seguiriam àque-les, daí a pouco formava-se o Grupo 4, mas, com este, CarmenDolores só mais tarde iria trabalhar. Entretanto, após uma fase deassídua actuação em teleteatro, naqueles últimos anos 60, a actriz(das primeiras consagradas a integrar, mais tarde, elencos de teleno-vela) voltava aos palcos em 1969, dirigida por Jorge Listopad, um dosencenadores com quem mais trabalhou desde então, a par de CarlosAvilez e de João Lourenço. Mas também foi dirigida por alguns maisnovos, como Mário Viegas (Três Actos de Beckett na Companhia doChiado, após uma primeira experiência no Teatro Aberto) ou Diogo

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Infante (O Jardim Zoológico de Cristal de Tennessee Williams, noTeatro Nacional D. Maria II).Numa carreira tão longa que inclui duasparticipações no Frei Luís de Sousa de Garrett – a primeira como intér-prete da jovem Maria de Noronha e a segunda no papel de sua mãe,Madalena de Vilhena –, Carmen Dolores, teleteatro à parte, interpre-tou, e não raro protagonizou, meia centena de peças, pelo menos. Deautores tão diversos como Jean Giraudoux, Oscar Wilde,Shakespeare, Gil Vicente, Molière, Goldoni, Pirandello, Raul Brandão,Lorca, Adamov, Edna O’Brian, Strindberg, Alves Redol, Tchékhov,Beckett, Brecht ou Tennessee Williams, entre muitos outros. Detentorade múltiplos prémios de interpretação, também recebeu medalhas deMérito Cultural – da Secretaria de Estado da Cultura (1991) e dosmunicípios de Oeiras e Cascais (2004) – e foi condecorada comoOficial da Ordem do Infante D. Henrique (2005)..

TEXTO ELISABETE FRANÇA JORNALISTA

A homenagem que o Festival de Teatro de Almada presta a CarmenDolores coincide com um conjunto de iniciativas que recordam a acti-vidade do Teatro Moderno de Lisboa – Sociedade de Actores, do quala actriz fez parte desde a fundação. O Museu Nacional do Teatro, emLisboa, organizou, até 15 de Maio, uma exposição comissariada porJosé Carlos Alvarez, director do Museu, onde se reuniram fotografias,programas, cartazes, correspondência da companhia, maquetas decenário, documentos, objectos, recortes de imprensa e “a memória dequem viu em cena ou trabalhou” na cooperativa que, de certo modo,fundou o teatro independente em Portugal, em Outubro de 1961. A sua curta existência, durou apenas até 1965, não é significativa daamplitude do seu trabalho, unanimemente considerado como dos“mais inovadores, estimulantes e importantes projectos teatrais nonosso país, durante a segunda metade do século XX”. O realizadorLauro António recorda que a companhia “pretendia acima de tudorumar contra o marasmo, abrir horizontes, rasgar janelas”. A estreia, a2 de Maio com O Dia Seguinte, de Luís Francisco Rebello, numaencenação de Rogério Paulo, respondia a necessidades de “adequa-ção a actualizados padrões estéticos”, escreveu o próprio autor, anosmais tarde, em Breve História do Teatro Português. Apresentaram José Cardoso Pires, Carlos Muñoz e Steinbeck ao ladode Shakespeare, Ádamov e Strindberg, mas o trabalho iniciado pelosactores Fernando Gusmão, Armando Cortez, Costa Ferreira e CarmenDolores foi traído pelas dificuldades financeiras. E “a vontade de fazeruma coisa nova”, escreve Jorge Silva Melo na sua biografia SéculoPassado, contrariada por um “fim triste e a amargura dos trabalhosfinais”. A mais impressiva imagem que Silva Melo guarda é a da “dig-nidade e o equilíbrio de Carmen Dolores” Emocionado, o encenador garante: “não foi em vão, não foi inútil, foitão bonito aquele gesto colectivo que veio no tempo certo, semprecedo demais nesta terra ingrata, mas no tempo certo do coração”. Erelembra a sensação que teve, muito novo, ao ver O Render dosHeróis, de José Cardoso Pires, que a companhia apresentou em 1965em encenação de Fernando Gusmão: “fui de autocarro um domingode manhã — eram, ao domingo, sessões às 11h, e o Império estava

cheio de gente. Não sei se entendi bem a peça — ainda hoje, leio-acom alguma perplexidade — mas aquilo encantou-me, a majestadeque vinha do palco, a dignidade da representação, a tristeza da peça,a sobriedade dos efeitos, a força do espectáculo. E durante anosaquele espectáculo, com as suas cores pesadas, os castanhos e osnegros da pintura realista, foi-me ficando na cabeça. Nem eu sabiacomo — mas não esqueci. E era um vento novo e fresco, um espec-

táculo de grandes meios, enorme elenco, muita matéria — e haviauma convicção no palco que me conquistou, uma dignidade, uma cer-teza: ninguém estava sozinho, o mundo era possível e o povo tinharazão”.Foi também em jeito de agradecimento que Frederico Corado reali-zou, a convite do Museu do Teatro, o documentário Teatro Moderno deLisboa – Sociedade de Actores estreado a 24 de Março no 9ºFamaFest – Festival de Cinema de Famalicão. Com depoimentos dequem dele fez parte, entre os quais e para além de Carmen Dolores,os actores Ruy de Carvalho, Morais e Castro, Rui Mendes, ArmandoCaldas e Clara Joana, o filme-documentário aguarda distribuiçãocomercial. O programa de homenagens termina com um livro do críti-co Tito Lívio, a ser editado brevemente pelo Museu do Teatro.

QUANDO O TEATRO FOI MODERNO

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VIETNAME EM ALMADANESTA VIAGEM PELO GLOBO, PARAGEM OBRIGATÓRIA NUMA GEOGRAFIA DISTANTE. DO VIETNAME, CHEGAM AS TRADIÇÕES

ANCESTRAIS – AS MARIONETAS DE ÁGUA –, MAS TAMBÉM A PRODUÇÃO LITERÁRIA CONTEMPORÂNEA – CONHEÇA A ESCRITA DA“ESCRITORA MALDITA” DUONG THU HUONG, AUTORA DE LES PARADIS AVEUGLES, A PARTIR DA QUAL A COMPANHIA FRANCESAM-G PESSOA MONTOU UM ESPECTÁCULO SOBRE A DIGRESSÃO DA MEMÓRIA. E, A PROPÓSITO DAS SESSÕES DE LEITURAS DE

JOVENS CONTISTAS VIETNAMISTAS, A OBSCENA PRÉ-PUBLICA UM EXCERTO DE UM CONTO, DE PHAN HUYEN THU.

Uma “puta dissidente” chamam-lhe os ex-camaradas do PartidoComunista do Vietname do Norte. E o insulto já dá para perceber queé de uma mulher que se trata em Les Paradis Aveugles, peça basea-da em um romance de Duong Thu Huong, que vê o seu país com enle-vo e desespero.Pelo nome dificilmente se chegaria lá. Duong Thu Huong tem 60 anos,vive em Hanói, é uma escritora maldita. A dor, costuma dizer, é o quea move. Talvez por isso, quando, há dois anos, foi entrevistada peloNew York Times falou menos da literatura do que do seu inferno pes-soal. Disse, por exemplo, que o regime lhe ofereceu uma bela casa,por volta de 1987, na esperança de que moderasse a sua prosa. “Omeu princípio é: pode-se perder tudo, até a vida, mas nunca a honra”.Não aceitou a casa. Nessa altura, já tinha publicado dois romances:Au delà des Illusions, em 1987, e, no ano seguinte, Les ParadisAveugles, ambos best-sellers nomeados para o Prémio Fémina Étran-ger. Era membro do partido, tinha estudado na União Soviética, naRDA e na Bulgária e feito digressão, como cantora, na frente de bata-lha, durante a guerra contra os EUA, mas cansada da distância entreo discurso e a prática do partido único, protestou, em 1989, num con-gresso de escritores, enquanto assinava na imprensa artigos inflama-dos. Foi expulsa do partido e proibida de publicar e viajar. Dois anosdepois, prenderam-na durante oito meses, sob a acusação de passardocumentos secretos para o estrangeiro – o mesmo é dizer, manus-critos de romances seus, que, de outro modo, nunca veriam a luz dodia. Porém, ao contrário do que pretendia o regime, esses oito mesesviriam a revelar-se fundamentais para a divulgação da sua obra noOcidente. Terão sido aliás as pressões do governo francês e daAmnistia Internacional a determinar o fim do cativeiro. Seguiu-se umaonda de solidariedade, que incluiu a tradução dos seus romances tam-

bém na América do Norte e na Europa, principalmente em França.Vem isto a propósito de Les Paradis Aveugles, adaptação dramatúrgi-ca feita pelo fotógrafo e dramaturgo Philippe Malone e pelo encenadorGilles Dao, da companhia francesa M-G Pessoa, estreada no ano pas-sado, em Paris. A peça passa-se na Rússia dos anos 1980. Gilles Daodiz que é um retrato de um Vietname desconhecido no Ocidente. Umamulher, Hàng, parte da sua aldeia em direcção a Moscovo para visitaro tio Chinh, gravemente doente. Esta viagem real funciona como pre-texto para uma outra digressão, memorial. Hàng há-de rever, a bordodo comboio, os dias da infância: “Emergem na minha memória cente-nas de rostos, dos meus amigos, das pessoas da minha geração.Rostos corroídos pela preocupação, degradados, desmoronados, sul-cados, empoeirados. Rostos de medo... O medo de não poder com-prar algumas mercadorias, de não as poder enviar, de saber que umvelho pai e uma velha mãe não resistem à miséria, enquanto esperampor miseráveis subsídios”. A infância de Hàng, que não se sabe secorresponde à de Duong Thu Huong, está imersa nestes dramas.Malone e Dao procuraram por imagens na escrita poética de DuongThu Huong. Construíram dois espaços simbólicos, correspondentesàs viagens do comboio e da memória. A personagem principal apare-ce replicada, sob a forma de Hàng mulher, na Rússia, e de Hàng crian-ça, no Vietname. O enfoque situa-se na analepse do contexto familiar:a infância é central, funcionando a viagem e a doença do tio como dis-positivo narrativo. Também a alimentação age enquanto metáfora: dacarência, ao espelhar a realidade social que se acentuou com aimplantação do regime comunista, ou da abundância, denunciado ummundo em que só importa o que se come, isto é, os bens que se possui.Duong Thu Huong vive uma liberdade condicionada. A França ofere-ceu-lhe asilo político. Recusou. Prefere continuar a viver em Hanói eser uma pedra na engrenagem: “No meu país, o medo esmaga tudo,ao ponto de bravos soldados se terem tornado cidadãos cobardes”..

REGRESSO À INFÂNCIA DA ESCRITORA MALDITA

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O Teatro Nacional de Hanói traz ao Festival de Almada uma das maisantigas formas de arte do Vietname do Norte. Uma arte em que osdragões cospem fogo e os camponeses são acrobatas é o que se vaiver quando estrear em Portugal o espectáculo das tradicionais mario-netas de água.É com o ribombar de tambores, gongos e flautas que pessoas e ani-mais entram em cena. A música é tocada ao vivo, por uma pequena

orquestra. Há uma piscina com dez metros de largura – é o palco. Euma tela pintada com cores fortes – o cenário. Atrás dele, os marione-tistas, com água pela cintura: através de varas e longas cordas, mani-pulam os bonecos anfíbios.As marionetas de água são uma das mais antigas formas de arte doSudeste asiático. Apareceram há, pelo menos, oito séculos, durante adinastia Ly, entre os anos 1010 e 1225 (as marionetas europeias nas-ceram no século V a.C., na Grécia). De acordo com VietnameseTraditional Water Puppetry, de Nguyen Huy Hong e Tran Trung Chinh,foi nos lagos comunais de que se serviam e servem diversas aldeias(no Delta do Rio Vermelho, Norte do Vietname, perto de Hanói), quetudo começou. Os pagodes de Thay (dinastia Le, 1533-1708) e deDong (1775) são os mais antigos vestígios de espectáculos destanatureza e ainda hoje são utilizados. Os vietnamitas chamam a estaarte mua roi nuoc, o que, à letra, significa “marionetas que dançam naágua”. Feitas à mão, com madeira de figueira, e impermeabilizadascom resina do sumagre, podem ter entre 30 centímetros e um metrode altura e pesar cerca de cinco quilos. Em palco são controladasatravés de varas e cordas, que ficam debaixo de água, razão por queo líquido não pode ser cristalino, sob pena de denunciar o mecanis-mo. Os marionetistas, homens ou mulheres, ficam escondidos atrásdo cenário, o que constitui uma das grandes diferenças em relação àsmarionetas e aos fantoches que conhecemos na Europa.As personagens são, segundo o mesmo livro, heróicas ou míticas,mas, a maior parte das vezes, representam apenas pessoas normais,aldeões, cujas casas são cercadas por enormes bambus. As peças

costumam ser dominadas pela acção, como forma de substituir aexpressão facial dos bonecos, que é sempre a mesma, pois apenas acabeça e os braços se movimentam. E não é de estranhar que hajadecapitações em cena. Essa é a imagem de marca da maioria daspeças e tende a assinalar o clímax da narrativa. Em simultâneo, háfogo de artifício e a música cresce.Antigamente, uma apresentação podia ter até 200 cenas, mas hoje anorma são 25. Em artigo publicado no sítio thingsasian.com Steven K.Bailey escreve que o palco de um espectáculo da companhia deThang Long, a que assistiu, estava ornamentado por uma estruturadourada, imitando um pagode, e que à direita existia uma plataforma

para os músicos. Referindo-se a uma das cenas que compunham apeça, onde os bonecos plantavam arroz e regavam o campo, o autorrecorda que 80 por cento dos vietnamitas vivem em áreas rurais, oque explica o pendor rústico dos temas. No fim, apareciam para umadança os quatro animais mágicos da mitologia local: o dragão, o uni-córnio, a tartaruga e a fénix. “Os marionetistas lançavam no palcoaquático dragões que cospem fogo, agricultores acrobatas e virgensdançarinas”, descreve.A fama destes bonecos tem vindo a crescer nas últimas décadas. Ascompanhias de marionetas de água de muitas aldeias do país costu-mam fazer espectáculos na Europa, no Japão, no Canadá e nos EUA.E os actores têm vindo a renovar o reportório clássico, incorporandoelementos da vida moderna com o objectivo de manter vivas as mario-netas de água e, ao mesmo tempo, instruir os habitantes das zonasrurais, transmitindo-lhes informações sobre a organização actual dasociedade vietnamita.Os marionetistas são geralmente agricultores, cuja principal activida-de é o cultivo do arroz, embora por todo o país, especialmente nacapital, existam grupos de teatro que o fazem profissionalmente.O segredo mais bem guardado desta arte é o da forma como as per-sonagens anfíbias são manipuladas – que nunca é revelada a estra-nhos. E apesar de os lagos onde a tradição nasceu terem sido troca-dos por piscinas rectangulares, a forma de operar estas marionetas épraticamente a mesma desde há séculos..

TEXTOS BRUNO HORTA

MARIONETAS DE ÁGUAOU A ARTE VIETNAMITA DE CONTAR A VIDA

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O telefone toca. Olho para o relógio. São onze e um quarto. A minhamãe levanta-se e pergunta: “Quem é? – É a minha amiga Hanh queestá à minha espera no Queenbee.” Ela diz: “Não vás!” Meto-medebaixo do cobertor. Ela diz: “Qual é a tua ideia com o Cuong? – Voucasar com ele. – Quando? – Quando eu me sentir ok. E o Quang? –Gosto dele. Quando é que te decides? – Não sei. – E se o Cuong sou-besse? – Ele provavelmente já sabe. No pior dos casos será out… –Eu proíbo-te… Mãe, não te preocupes com essas coisas…Estas his-tórias não têm interesse, posso muito bem resolvê-las sozinha. – Nãosei o que te fiz noutra vida...”Hanh chega e diz-me: “Vai mudar de roupa! (…) Hanh e eu somosduas “testemunhas históricas” da decadência. Será a moral temporalou intemporal? O meu avô conta: “Fui excluído do Partido por causado meu amor pela tua avó. O teu pai foi fruto das nossas paixões per-versas…” Hoje em dia, as séries B americanas colam-no vinte e qua-tro horas por dia à sua cadeira de reformado. O meu pai diz: “Fui cri-ticado diante de todos os meus colegas da universidade e castigadocom uma semana a lavar as casas de banho por ter olhado para a tuamãe numa reunião do Movimento da juventude da repartição.” Depoisvê as horas, antes de ligar ao motorista para o vir buscar. (…) A minhamãe diz: “És tão mimada que perdes o juízo. Então não lês os jornais?Arriscas a tua vida a namoriscar de um lado para o outro! Um diaencontrarás um homem irreflectido e arrepender-me-ei de me ter dadoao trabalho de te educar.” Respondo com um ar abatido: “Não estouapaixonada por ninguém. Na nossa época os rapazes são uma nuli-dade. Aqueles que ganham dez mil dongs gastam cem mil e aquelesque ganham milhares, gastam milhões... Aqueles que não ganhamnada, refugiam-se nos livros, ou bocejam ou discutem assuntos quenem lembrariam ao Bill Clinton.” O meu pai diz: “Se a Nhi se apaixo-nasse por um rapaz e se fosse embora com ele, levando todos os nos-sos bens, concordavas?” A minha mãe troça: “Não precisamos delapara isso. Os nossos bens já estão a ser levados por outros!” O meupai procura fazer as pazes: “Esta noite as velhas gagás não te convi-daram para ir ao clube de dança clássica?”Hanh diz-me: “Em princípio vou para a Austrália. – Para estudar? –Vem comigo! – Porquê? Estás farta? – Sim. Os meus velhos queremque eu me case. – Com quem? – Um tipo que acaba de ser nomeadopara os Negócios Estrangeiros. Aposto que é o segurança. Ontemveio ver-me. Disse-me: “Ello. Hao ariou?” Retorqui: “Sopa estragada”[Hanh responde ao segurança Canh thiu (deformação de Thank you)que significa “sopa estragada”]. Olhou-me pasmado, sem entendernada. Repeti: “Sopa estragada”. Ficou vermelho como um tomate.Sem esconder o meu espanto digo a Hanh: “só há imbecis noVietname! – Esse gajo é primo do patrão. Ouvi dizer que tem apenaso diploma do liceu da sua aldeia. E depois de uma temporada naURSS, fez um curso de inglês intensivo... (...) Conheces a Nga? –Quem? – Nga, a vaidosa. Ah, o suposto modelo da virtude? – O aman-te dela, que é director numa empresa, afinal é casado e pai de doisfilhos em Saigão. Ele emprenhou-a, mas recusa-se a casar com ela...”A minha mãe diz-me sempre: “A Nga faz-me sonhar. Ela é pura, sim-ples, limpa. Tem menos habilitações do que vocês e no entanto traba-lha como secretária e ganha cem dólares por mês…” Contesto: “Mãe,hoje em dia as aparências enganam. As raparigas simples, limpas, decamisa sintética e tranças vão abortar na maternidade C como quem

vai ao supermercado. (...)” A minha mãe diz-me: “Vai ver-te ao espe-lho. Tens nós nos cabelos. As tuas roupas estão remendadas aqui,cerzidas ali. Rasgaste-as de propósito. Nunca te faltou nada. Por queé que te vestes dessa maneira? Envergonhas-me! Além disso os teusamores são ambíguos!” Replico: “Não me faças seguir o exemplo daNga. Podes vir a arrepender-te”.Quando Nga provoca escândalo, a minha mãe deixa-me em pazdurante uma semana, pois pára de cantar as suas virtudes. Mas aofim de uma semana, diz-me: “Tens de tomar cuidado senão ainda ficascomo ela...” Suplico-lhe: “Mãe, sê boazinha! Lutar o tempo todo paraviver já é cansativo o bastante. Se ainda por cima me chateias otempo todo com os teus conselhos e histórias, dou em doida. – Comoqueiras! Não sei o que te fiz noutra vida...” (...)Depois do jantar a minha mãe prepara as oferendas, pede-me quedesligue a rádio e começa a salmodiar as suas orações. Mudo deroupa antes de sair. O Cuong está à minha espera. Vamos ao zoo, (...)que parece um curral com as suas tábuas de madeira. Ouvem-se ruí-dos... O Cuong pede: “Dois sumos de laranja bem frescos!” Digo-lheque quero ir embora. “Responde à minha pergunta e eu levo-te devolta!” Diz ele. “Que pergunta? – Queres casar comigo?” Digo que simcom a cabeça. Ele diz-me: “Óptimo! Vamos embora!”Quando chego a casa a telenovela Osin [telenovela japonesa] jácomeçou. Se a Hanh estivesse aqui diria: “Com que então voltas antesdas nove e segues o exemplo da Nga?” Mas quem estava lá era oQuang. Cansado, pergunta-me: Ele também gosta de ti?” Faço quesim com a cabeça. Pergunta ainda: “E tu, gostas de mim?” Pergunto-lhe: É assim tão importante? – Não queres responder? – Gosto de ti.Quero ver-te todos os dias”, digo, baixinho. Ele suspira, aliviado:“Queres casar comigo?” Consinto imediatamente. De repente, Quangdá-me um beijo na bochecha e sussurra: “Amo-te loucamente!” Tenhoo coração aos pulos. (...)Como é que o tempo passa tão rápido? Digo-me todas as manhãs:“Hoje já é um novo dia! Se a longevidade média é de sessenta anos,faltam-me apenas treze mil e quinhentas e cinco manhãs. (...) Não meapetece tomar o pequeno-almoço. Mudo de roupa e corro para a para-gem do autocarro (sem gabardina, claro). Hoje já passou. E amanhãserá um novo dia. Tomo a decisão de encontrar-me com Cuong eQuang para dizer-lhes a verdade e pôr fim a esta comédia de propos-tas de casamento. Amanhã será um novo dia! Eu, Hanh, Cuong eQuang temos tantas coisas por fazer, por viver. (...) Não! É precisomudar! Despachemo-nos que o ano 2000 aproxima-se! Século XXI,estou à tua espera!O despertador toca. Levanto-me e compreendo que acabei de falar nomeio de um sonho. O céu está de uma pureza incrível. Não há nemchuva nem nuvens cinzentas. Mas não mudo de ideias. Quem nãoconcordar comigo que diga: “Não sei o que te fiz noutra vida...”!.

In Au rez-de-chaussée du Paradis – Récits vietnamiens 1991 –2003; recolha, tradução francesa e apresentação de Doan Cam Thi.Paris: Philippe Picquier, 2005. Versão portuguesa de Lucy Delbreil.

Poeta, novelista e cenógrafa, Phan Huyen Thu vive em Hanói e nasceu em 1972. Tornou-se célebre com esta novela, escrita em

1994, quando a autora tinha 22 anos.

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““AA PPEESSTTEE””,, DDEE PPHHAANN HHUUYYEENN TTHHUU

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MARIONETAS DO MUNDONÃO HÁ SÓ MARIONETAS DE ÁGUA PARA VER EM ALMADA. O TEATRO DE MARIONETAS DO PORTO REGRESSA, EM

DOSE DUPLA. COM NADA OU O SILÊNCIO DE BECKETT, DE 1999, CUMPRE A REPOSIÇÃO DO ANO ANTERIOR, NAQUALIDADE DE ESPECTÁCULO DE HONRA. E, COM CABARET MOLOTOV, APRESENTAM EM ALMADA A MAIS RECENTE ENCENAÇÃO DE JOÃO PAULO SEARA CARDOSO. E AINDA MAIS MARIONETAS: DO CHILE CHEGA

GULLIVER, ESPECTÁCULO ILUSIONISTA DE JAIME LORCA A PARTIR DO ROMANCE AGRIDOCE DE JONATHAN SWIFT.

Talvez a fórmula mais exacta para definir o trabalho da companhiaseja a que foi utilizada por João Paulo Seara Cardoso, o seu directorartístico, quando disse que o Teatro de Marionetas do Porto (TMP)realizava, na verdade, um teatro com marionetas. A mudança de pre-posição serve aqui para evidenciar como os bonecos utilizados pelogrupo não obedecem à lógica tradicional. Com efeito, nunca nestacompanhia foram utilizadas marionetas de fios, visto que elas sãoantes perspectivadas como objectos, como mais um elemento para aconstrução do espectáculo.Esta dimensão experimental, bem presente no propósito de construiras marionetas de maneira adequada à linguagem de cada criação,quase esconde as origens do grupo, que remontam aos tempos doTeatro Amador de Intervenção (TAI). Foi no final da década de 1970que o interesse de Seara Cardoso pelo teatro de inspiração popular olevou à descoberta de um património cultural que incluía representa-ções do Auto de Floripes, do Enterro do Judas, da Serração da Velhaou das Bugiadas de Sobrado. Ainda, o contacto com o mestre bone-creiro António Dias permitiu a definição de um modelo de teatro emque a marioneta desempenha um papel central, que foi sendo ensaia-do até se chegar à apresentação de Miséria, em Charleville-Mézières,no Festival Mundial de Marionetas. A necessidade de atribuir aí umnome ao colectivo deu origem ao nascimento do TMP, em 1988, queherdaria assim um repertório do TAI, mais especificamente tradicional.O propósito de criar espectáculos de marionetas com uma dimensãocontemporânea, dando expressão à vontade de reflectir sobre omundo actual, esteve na base de uma progressiva mudança de regis-

to, em trabalhos como Entre a Vida e a Morte (1989) e Vai no Batalha(1993) – em que, antecipando o actual panorama cinzento do teatrono Porto, a figura de La Féria aparecia, então, com o desejo de impor,através de decisões políticas, um “teatro nacional obrigatório”.O êxito desse espectáculo não desviou a companhia de um caminhoem que a experimentação significa recusa da cristalização do projec-to. Com o pequeno Teatro de Belomonte como sede, o primeiro espa-ço do género em Portugal, o grupo evoluiu no sentido de explicitar aartificialidade da utilização das marionetas, expondo em definitivo osactores que as manipulam. À marioneta é, assim, atribuído o estatutoambíguo de objecto e, em simultâneo, de espelho ou metáfora do serhumano. A sua presença em palco ao lado do manipulador confere-lheuma estranha efemeridade, como se a sua “vida” estivesse presa deum modo arbitrário às decisões daquele ser que detém o poder de aanimar. Não surpreende, portanto, em função da existência absurda aque as marionetas, deste modo, aparecem condenadas, que Becketttenha sido um dos autores a incluir no repertório. Confirmar o modocomo os traços fundamentais do autor estruturam a peça sem textoNada ou o Silêncio de Beckett (1999) é uma das melhores maneirasde aceder ao mundo destas marionetas e da forma como elas cons-troem um olhar sobre a existência humana, marcado pelo desencan-to, mas também por um evidente sentido de humor.Se a ausência de texto não causou estranheza, tal poderá ter ficado adever-se ao modo como as palavras são encaradas nos espectáculosdo TMP: como signos cénicos, à imagem dos adereços ou da banda-sonora, as palavras ultrapassam o registo naturalista impondo-secomo elemento aberto a uma exploração polissémica. A excepção aotrabalho com um texto pré-determinado verifica-se nas peças parapúblico infanto-juvenil, cerca de metade do repertório do TMP: Óscar

O ACTOR E O SEU DUPLO: BREVE APRESENTAÇÃO DO TEATRO DE MARIONETAS DO PORTO

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(1999), Os Três Porquinhos (2000), Polegarzinho (2002), História daPraia Grande (2003), ou o recentíssimo Bichos do Bosque (2007). Nocapítulo dos trabalhos para adultos, um dos espectáculos em que aspalavras originais mereceram mais respeito na sua integralidade foiMacbeth (2001); outros resultaram de textos construídos durante osensaios. O que todos esses títulos, como Exit (1998), Paisagem Azulcom Automóveis (2001), Os Encantos de Medeia (2005), ou CabaretMolotov (2006), têm em comum é o propósito conseguido de estabe-lecerem uma relação profícua com outras áreas da criação, como adança, as artes plásticas e a música.Com uma intensa actividade deitinerância em Portugal e no estrangeiro, a par da participação regularem festivais internacionais, o TMP tem sabido fazer de cada espectá-culo uma renovação do diálogo que estes actores estabelecem comos seus duplos, as marionetas..

TEXTO JOÃO PAULO SOUSA ESCRITOR

O CIRCO DE PULGAS E O CABARÉ SUBLIME

Mais do que um cabaré fictício, o espectáculo é um coquetel cénicoque tem de tudo um pouco: marionetas, dança, teatro, circo, music-hall, todos juntos numa reunião familiar em que os parentes próximose afastados vêm das mais longínquas pátrias e tradições das artescénicas, apresentando os seus números e falando versões macarró-nicas de russo, italiano, alemão e espanhol, numa profusão de actose línguas de palhaço. Há coristas, trapezistas, acrobatas, homens-bala e funâmbulos, ursos e coelhinhas, […] criados por actores emarionetas alternadamente, num circo em miniatura que muda para aescala real, sempre que o olhar do espectador é focado nos manipu-ladores, e regressa a um mundo de sugestão […] pela manipulaçãodos objectos. […]Todos se encontram num lugar de lembrança popular: a área de jogoencimada pelo pano de boca que evoca tanto a arena de circo comoos tablados mais escusos. […] Os manipuladores expõem os truquestodos, como se na apresentação de um circo de pulgas o amestradoravisasse previamente que não existe pulga alguma, e ao espectadorcoubesse ver o invisível e fazer vista grossa ao que entra pelos olhosdentro. O público desfia em conjunto com os actores o rol de memó-rias de atracções de cena que, por magia, ganham corpo. […]As marionetas somos nós, parece, manietados pela projecção dasfiguras que nos calham. As referências escondidas ao cinema e aspiscadelas de olho ao público mais cúmplice coabitam com o humorfísico e farsesco. […] O espectáculo é tanto sobre o circo e o cabaré,e sobre essas memórias, como sobre o romance de Vladimir eMatrioska, como sobre o próprio acto da manipulação, numa síntesebem feita entre arte e entretimento.Manipulando ícones do nosso imaginário, Cabaret Molotov reproduz ematerializa os sonhos pessoais dos autores, partilhando-os com oespectador mais ou menos anónimo. Nos claustros de um velho con-vento, convertido em sala de concerto, a memória do teatro encerracom um último olhar sobre o espectáculo da decadência de fim denoite no cabaré; e a manipulação dos objectos, representando conti-nuamente a ilusão da arte e o fracasso do quotidiano, parece pergun-tar, mesmo quando nos rimos: o que fiz do meu sonho?

JORGE LOURAÇO FIGUEIRA, PÚBLICO, 23 DEZEMBRO 2006

Estreado há um ano em Santiago do Chile, e em digressão pelaEuropa desde então, Gulliver tem cativado públicos de todas as ida-des em torno das aventuras narradas por Jonathan Swift, que trans-portam o espectador numa viagem ilusionista e encantatória, que seserve das escalas e das proporções para recriar em palco seres lilipu-tianos e outros gigantes.A encenação de Jaime Lorca, a primeira com a sua nova companhia(depois de 18 anos de criações com La Troppa, de que saiu para fun-dar um novo colectivo, com o seu nome), reúne marionetas de fios eactores numa estrutura de ferro estilizada cujos anéis sobem e des-

cem, revelando planos diferenciados. A perspectiva é, assim, o princi-pal recurso de Lorca, nesta montagem dinâmica e virtuosa: o críticodo Punto Final, Leopoldo Ibarra, escreveu que “a qualidade do movi-mento das marionetas, com as vozes dos actores, revela uma perfei-ta sincronia física, mental e emotiva. A peça utiliza a cenografia comoum interessante território de jogo: reencontramos o desejo de contaruma história através de uma complexa maquinaria teatral, que impres-siona pela grandeza e pela relação dramática que estabelece entremarionetas e humanos. Gulliver preserva os principais traços da tra-jectória artística de Jaime Lorca, como a dimensão da viagem do serhumano e a sua capacidade de sobreviver e de sonhar”.Outros críticos falam de poesia de imagens, humor, manipulação céni-ca e ilusões de óptica. Lorca deixou-se atrair pela “experiência da via-gem, a sede de percorrer mundos imaginários” e trabalhou as dimen-sões da expedição e da descoberta em função dessas deslocações emudanças de planos. “Os objectivos mesquinhos de Gulliver transfor-mam a sua viagem numa transição, o seu universo sonhador numaprisão de pesadelo. O nosso propósito é apresentar Gulliver com oscoloridos da sua alma doente, como um fiel espelho da vida: uma nar-rativa descarnada e afectada sobre a nossa sociedade, tal como foi otexto de Swift na sua época. O seu génio traça-nos um retrato deta-lhado e descarnado da frágil e volúvel natureza humana”..

TEXTO MÓNICA GUERREIRO

A VIAGEM TAMANHA DE GULLIVER

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ROMEU(S) E JULIETA(S)DURANTE O FESTIVAL DE ALMADA É POSSÍVEL ASSISTIR A DUAS VERSÕES CÉNICAS, RADICALMENTE DISTINTAS,

DO DRAMA IMAGINADO POR WILLIAM SHAKESPEARE. A TRÁGICA HISTÓRIA DE JULIETA E DO SEU ROMEU É NARRADA NUMA ARROJADA PRODUÇÃO TEATRAL LITUANA, PELA MÃO DO PREMIADO ENCENADOR OSKARAS

KORSUNOVAS, QUE, PELA PRIMEIRA VEZ, SE APRESENTA NO NOSSO PAÍS. ESTE CRIADOR DE 38 ANOS TEM ASSINADO ALGUMAS ENCENAÇÕES MAIS “EXCITANTES” (A CRÍTICA INTERNACIONAL ABUSA DO ADJECTIVO) DE SÓFOCLES A MAYENBURG, PASSANDO POR STRINDBERG, SARAH KANE OU OS IRMÃOS PRESNIAKOV.

JÁ O ROMEU E JULIETA DE MAURO BIGONZETTI ESTREOU EM 2006, ENVOLVENDO TODO O ATERBALLETTO.

O lugar comum é um ponto onde concordam vários caminhos. A ence-nação de um clássico faz convergir, pelo menos, dois sentidos: o dotexto, canonizado como teatro, sendo obra literária, nas suas múltiplasleituras; o da encenação do texto, próximo das palavras, dos diálogose das didascálias, que se constituem como partitura mínima do espec-táculo. A isto acresce o confronto entre dois tempos, o do momento decriação do texto e o da criação actual do espectáculo. Assim, encenarum clássico é, desde logo, mais do que uma versão, um exercício deperversão, onde o espaço de jogo está delimitado pelo conhecimentoprévio que gera um conflito de expectativas: por parte do público, queespera reencontrar o que conhece; e dos artistas, que esperamencontrar a sua particular nota de variação sobre o clássico, autori-zando-os sobre o autor. Hitchcock dizia que mais vale partir do clichédo que chegar a um.No Romeu e Julieta de Oskaras Korsunovas, a nota de variação é acozinha de alumínio. A acção de Verona é concentrada numa pizaria,algures nos anos 50, entre a massa de pão e muita farinha. A cozinhada pizaria, os figurinos dos fifties são o primeiro deslocamento, plásti-co, em relação ao contexto original da peça e resulta no desdobra-mento do espaço em vários espaços e na transformação dos objectos:o caldeirão que é usado com diferentes funções; o uso metafórico dafarinha, sobretudo quando pinta os rostos de branco; um caixão aoalto; máscaras de alumínio.

O segundo deslocamento é dramatúrgico. Nas palavras deKorsunovas: “o Romeu e Julieta é normalmente entendido como umacelebração do amor romântico. De facto, é um momento de dramasocial. Quis analisar como é que o ódio cria diferenças e se torna umplano comum. O amor nega a diferença, cria liberdade e na liberdadenão há oposições”. Assim, mais que concentrar a acção na paixão eagonia de um amor, a encenação tende a destacar o conflito entreCapuletos e Montéquios como modelo mínimo de socialização, isto é,de que o ódio gera diferenças e é na defesa das diferenças que todosse assemelham. O sentido trágico da peça decorre de que o amor deRomeu e Julieta, não reconhecendo as diferenças entre as duas famí-lias, fica desde logo marcado pelo ódio, condenando os apaixonadosà morte. Mas, como nota Korsunovas, “quando eles morrem, a famíliamorre com eles. O sacrifício da liberdade arruinou não só os valoresmodernos que os amantes criaram mas também a tradição que ospais pensavam proteger”. De certa forma, como em O Leopardo, serianecessário que tudo mudasse para que tudo ficasse igual. Mas tudo isto se passa numa cozinha de alumínio, habitada por figu-ras dos anos 50 (e um frade), onde as famílias lutam com instrumen-tos de cozinha e há massa e farinha a voar. Com estes dois desloca-mentos, plástico e dramatúrgico, a encenação do clássico fica inscritana própria acção teatral, entre o metateatral e o teatro de objectos,entre a dimensão poética e o humor. A ironia atravessa o espectácu-lo, e serve-se crua. Buon apetit..

TEXTO PEDRO MANUEL

O AMOR AMADURECE ATÉ AO SEU CONTRÁRIO

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TRÁFICO FESTIVAL DE ALMADA

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Romeu e Julieta dos nossos dias, em pizarias concorrentesValdas Vasiliauskas

Crítica publicada no jornal Lietuvos Rytas, em 4 de Novembro de2003

A mais inesperada descoberta de Oskaras Korsunovas foi a inovado-ra revelação do drama de Romeu e Julieta. Ódio e temperamentoagressivo acumulam-se, antes de mais, dentro da família e entre ami-gos – os inimigos não são mais do que pretextos para o irromper deintolerância e fúria. Se não existem inimigos, há que os encontrar.Mercucio discute com Benvolio, Teobaldo com Capuleto e este comJulieta. Então, todos estão preparados para o ódio: procuram o inimi-go como a uma droga. E também no sentido contrário: para o amor, aAma preparou Julieta e o Frei Lourenço preparou Romeu. Agredido oamor com o seu ódio, o mundo não tem futuro: no final a farinha damorte espalha-se não apenas sobre Romeu e Julieta, mas sobretodos os cidadãos de Verona. Só um jovem artista poderá aclamar oamor desta forma, tão elevada: fico por isso muito satisfeito queKorsunovas não envelheça.O cenário de Jurate Paulekaite é uma obra-prima da cenografia: doisarmários de cozinha em alumínio, munidos de caçarolas, púcaros,conchas e colherões. No século XX achava-se um experimentalismoinsolente do teatro moderno representar Shakespeare em figurinoscontemporâneos. Mais tarde, soube-se que essa modernidade erapraticada pelo próprio Shakespeare: os actores do Globe Theatreinterpretavam as personagens do grande bardo em roupagens suascontemporâneas. (...)

A excelente história de amor, coberta de farinhaRita Bociulyte

Crítica publicada no jornal Klaipeda, a 5 de Novembro de 2003

A estética do espectáculo assemelha-se à dos filmes de Vittorio deSica. Como estes, está repleta do espírito italiano do neo-realismo. Asguerras de massa e de farinha, o humor hesitante a roçar a obsceni-dade, as relações sociais, os figurinos dos anos 50 criados pela artis-ta Jolanta Rimkute – tudo nos remete para o neo-realismo e classicis-mo do cinema italiano. A música composta por Antanas Jasenkaenfatiza a estrutura da acção do espectáculo e as alusões ao passa-do e ao presente: eleva graciosamente o estrato romântico da históriae faz do cenário uma banda-sonora, de uma forma, mais uma vez, típi-ca da arte cinematográfica. (...)

Inclinação sexualMarina Davydova

Crítica publicada no jornal Izvestia, a 6 de Novembro de 2003

A acção ocorre numa cozinha. Para ser mais exacta, na cozinha deuma pizaria, dado estarmos em Itália. Duas equipas, não famílias,mas efectivamente equipas, competem com inventividade e jovialida-de. (...) A presença da massa das pizas – moldável, facilmente manu-seada, obediente e pegajosa – torna-se na metáfora principal destaprodução. O outro elemento metafórico dominante é a farinha.Representa talco, a máscara branca da morte, o veneno para Romeue um soporífero miraculoso para Julieta. Lourenço será visto a espa-lhar farinha acima da cabeça como se de cinzas se tratasse. E o cal-

deirão cheio de farinha tornar-se-á lugar de morte, de matrimónio e deiniciação sexual.Como sempre nas produções de Korsunovas há cenas espantosa-mente poderosas. Por exemplo, a cena em que a Ama veste a Julietao vestido de casamento enquanto esta dorme profundamente e, logoem seguida, dispõe os seus braços sobre o peito: o leito nupcial torna-se em leito de morte. Surpreendente é também a cena final, em queFrei Lourenço, depois da morte dos protagonistas, tenta desesperada-mente abrir o tampo do caixão num mausoléu familiar. Romeu eJulieta, cobertos de farinha, giram dentro do caldeirão no palco van-guardista. Que belo carrossel! O tampo do caixão descai. As persona-gens de repente dão de si. A morte parece ser mais forte que a vida.

MORTE DE ROMEU E JULIETABanda-sonora dos Cindy Kat

edição Armazém 42, 2005

É um álbum intenso, de música e palavras intensamenteinflamadas, retomando a encenação de António Pires e abanda-sonora dos Cindy Kat do espectáculo apresentadoem Janeiro de 2005, no Teatro do Bairro Alto. Não se trataapenas da música destes – o grupo que junta os “vetera-nos” Paulo Abelho e Pedro Oliveira (Sétima Legião) e JoãoEleutério (Comboio Fantasma) e se estreou nas ediçõesdiscográficas em 2006, com Admirável Mundo Novo.Porque, longe de ser um musical, o espectáculo – prota-gonizado por Nuno Lopes, Carla Salgueiro e MargaridaVila Nova – integrava as canções e ambientes musicaisdos Cindy Kat de forma envolvente, acentuando a tensãoemocional com rigor, inventividade e sofisticação. A ence-nação revelava um dinamismo coreográfico para o qual amúsica terá contribuído. Assim, não será de espantar quetambém as frases e as réplicas, dirigidas por Pires emestúdio, se deixem ouvir nestas 17 faixas, explicitando ocontexto e o desenvolvimento da trama, numa paleta vocalcompletada pelos convidados especiais JP Simões e MitóMendes. É já longo o percurso de colaboração dos músi-cos dos Cindy Kat em espectáculos teatrais e a maturida-de desta banda-sonora atesta essa experiência.

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TRÁFICO FESTIVAL DE ALMADA

Há mais de uma década que as companhias de dança de reportóriose tornaram estruturas curiosas. À luz de um presente que se foi for-matando em práticas mais ágeis (mais sumárias, mais simples, maisversáteis e mais preparadas para um mercado de múltiplas formas deapresentação), as companhias de reportório têm modos de funciona-mento que vão deixando transparecer o seu anacronismo em relaçãoa uma velocidade que o mundo adquiriu recentemente, mas com gran-de rapidez. Têm um papel de reposição histórica na medida em queeram estas companhias que faziam, à sua maneira, a história ao vivode um certo “mainstream” de dança à medida que encomendavamnovas peças para incluir no reportório, que exibia ao mesmo tempodas montagens de sucessos criados para outras companhias congé-neres. No centro da sua actividade está o elenco, o conjunto dos bai-larinos que são tanto mais excepcionais quanto mais forem capazesde aplicar a versatilidade da sua técnica à interpretação daquilo quedefine a sua linha artística: as coreografias. E um bailarino está emconstante formação.É evidente que este preâmbulo evoca o Ballet Gulbenkian cuja extin-ção, em Julho de 2005, fez deste país um país diferente. É tambémevidente que uma parte da dança que ali vimos ao longo de 40 anosnão fez mais que entrar para uma lista de acontecimentos cuja impor-tância artística o tempo se encarregou de arrumar de forma clara.“Fiz a Cantata para o Ballet Gulbenkian em 2000”, dizia MauroBigonzetti (Roma, 1960) numa entrevista a propósito de uma apresen-tação recente da companhia de que é director artístico, o Aterballeto,em Nova Iorque. A frase poderia ter sido dita a propósito de qualqueroutra coisa, mas Mauro Bigonzetti tem a sua estreia em Portugal liga-da à companhia que mais faria (e fazia) sentido apresentá-lo entrenós, o Ballet Gulbenkian. Mauro Bigonzetti goza dos louros de umcoreógrafo que chegou à dança na geração em que muitas compa-nhias de reportório começaram a poder transitar para a fórmula decompanhia de autor. Não é exactamente o caso do Aterballeto, quedirige desde 1997, mas está lá perto: o método de trabalho deBigonzetti é suficientemente consciente dos bailarinos com quem tra-balha para que as suas criações o reflictam. Dito de outra maneira, éuma certa esquizofrenia das metodologias de trabalho que me confun-de nos propósitos e maneiras de os realizar das companhias de repor-tório. Bigonzetti coreografa para o Aterballeto com a consciência daespecificidade da qualidade de movimento dos bailarinos da sua com-panhia, que conhece bem, e acha entretanto normal coreografar parauma série de outras companhias de reportório, com os tempos curtís-simos de que dispõem os criadores nessas condições. Bigonzetti nãoé o único, claro que não. E também não é o único a não alcançarresultados tão interessantes como seria de desejar.O Ballet Gulbenkian deixou de existir, mas o circuito internacional dascompanhias de reportório ainda não. Por isso, e porque só nos resta-va uma companhia de dança que pudesse apresentar reportório con-temporâneo internacional, a Companhia Nacional de Bailado acaboude incluir Bigonzetti no programa de Primavera (Teatro Camões,Março e Abril 2007), programando a peça Passo Continuo num pro-grama partilhado com Olga Roriz, Gagik Ismailian e... WilliamForsythe!A segunda instância esquizofrénica é o critério de organização dosprogramas constituídos por várias peças, os espectáculos que obri-gam a juntar num mesmo programa seres de planetas tão distintos.

Digo-o com a consciência de quem nunca encontrou verdadeiramen-te uma solução eficaz para exprimir a distância abissal que há entrecertos criadores. Mesmo independentemente do facto de aqueles quehabitam os “planetas criativos menos solares” poderem ser possuido-res de técnicas e maneiras de fazer muito para lá de competentes eaté mesmo invejáveis (e também copiáveis). Não é uma questão deordem de grandeza de estrelato: é que há criadores que são capazesde instaurar novos modos de ver, cujas criações exigem revoluções.Como tal exigem um novo vocabulário para falar sobre a nova técnicaque tanto exige de novo nos bailarinos que a interpretam e que tantomais é capaz de trazer ao público que a descobre. E como todas ascoisas fundadoras, este novo “modo de ver” altera o universo de refe-rências de quem olha. E este é o caso de William Forsythe e não é ode Mauro Bigonzetti.Também é verdade que, apesar de ser preferível, o mundo não seresume aos Forsythes. Por isso, o Festival de Almada programou, nasua edição 2007, o Aterballeto, e Mauro Bigonzetti regressa a palcosnacionais na que poderá ser a versão mais interessante. Veremos umprograma de noite inteira (a tradução mais portuguesa do full-lengthballet; o primeiro que fez foi Sonho de uma noite de Verão, em 2000),baseado no Romeu e Julieta de Shakespeare, com música deProkofiev e cenários e figurinos de Fabrizio Plessi, estreado no TeatroValli, em Reggio Emilia Danza, em Maio de 2006.Bigonzetti exprimiu mais ou menos o mesmo sobre o processo criati-vo de Romeu e Julieta que sobre Sonho...: que só pôde começar acoreografar quando encontrou os bailarinos com os traços de carácterexactos para as personagens e que lhe interessou muito mais astemáticas abordadas em Romeu e Julieta do que contar a história.Como esta já é conhecida de todos, felizmente, à partida, o públicofica livre para apreciar o modo como é contada esta versão. E espe-ramos que seja este o objectivo do Festival de Almada ao incluir esteespectáculo na sua programação..

TEXTO CRISTINA PERES JORNALISTA

MAURO BIGONZETTI: SHAKESPEARE A PEDIDO

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COM APENAS DOIS ACTORES SE CONSTRÓI UMA TRAMA. CLARO QUE SÃO ACTORES CUJA VERSATILIDADEEXPRESSIVA POSSIBILITA UM ESPECTÁCULO A DUAS LÍNGUAS, EM QUE REI, BOBO, FILHAS E OUTROS

INTERLOCUTORES ALTERNAM ENTRE SI, ASSINALADOS AO SOM SIBILINO DA COBRA. SÃO ANTON SKRZYPICIELE MIGUEL BORGES NA ADAPTAÇÃO – O TEXTO FEITO “CARNE PICADA” – QUE JOÃO GARCIA MIGUEL FEZ A PARTIR

DE KING LEAR, DE SHAKESPEARE.

A CONDIÇÃO HUMANA SOB AS VESTES DE UM CLOWN

A coerência da releitura feita por João Garcia Miguel do clássico KingLear, de William Shakespeare, está na crítica ferrenha (fornecida pelopróprio autor e aqui potencializada) à valorizada figura do Rei. Seriaum bobo o rei? Seria coerente sempre, mesmo na sua incoerência?Enlouqueceu o rei? Em inglês arcaico e em alemão, Burger significacidadão. Em Burger King Lear, trata-se efectivamente de ir ao encon-tro do cidadão, do homem, do pai, que também é rei.Deparamos com um trono, erguido por um amontoado de cadeiras, notopo do qual está sentado o rei, Anton Skrzypiciel, e ao lado o seu “fielescudeiro”, suas filhas, o bobo e outras personagens, na figura deMiguel Borges. As cadeiras de metal, actuais e frias, são o cenáriomóvel e incrivelmente polivalente: são trono, ponte, caminho, morro,arma e defesa, divisão de territórios, entre outras soluções pensadaspor Ana Luena. Os figurinos, também de Luena, são opostos na cor,com losangos como os da roupa do arlequim da comédia dell’arte: obranco contornado de preto, o preto contornado de branco, o que nosdá a indicação da íntima relação das personagens, nas relações entrerei e filha, rei e súbditos, ou na identificação que acaba em troca depapéis, bobo e rei. Além das cadeiras, existe uma coluna pintada, dematerial leve e também móvel, que faz vez de esconderijo ou de umaterceira pessoa. E essa transformação contínua ajuda-nos a embarcarno estado de loucura e angústia crescente experimentado pelo reiLear, já velho, que se vê sob a necessidade da partilha do reino entresuas três filhas, sendo que a mais honesta e virtuosa acaba por nãoreceber nada de um pai, também rei, que não suporta a sua falta delisonjeio e a sua verdade ácida.Os actores estão maquilhados como clowns e seus figurinos beiramos de bufões, principalmente o rei, que carrega uma barriga falsa. Obufão (aqui também lembrado na figura do bobo da corte) traz-nos acrítica perversa, sem volteio, e o clown remete-nos ao ridículo sincero– arquétipos da comicidade que têm o poder de reconhecer o extraor-dinário e o simples, trazer à tona os podres da sociedade e arremes-sá-los à altura do nosso nariz, despindo a hipocrisia e revelando-a risí-vel. Nesta encenação, a arma do humor intensifica o humano e assuas verdades, tal qual o próprio autor que privilegia os seus conflitosexistenciais do homem.Os actores possuem um domínio físico criativo, capaz de nos oferecer

a multiplicidade de personagens na figura polivalente de MiguelBorges, mas também nas gradações do rei de Anton Skrzypiciel, rígi-do e flexível, criança e bobo, irado e louco. As intervenções musicaise sonoras acentuavam a mudança de personagens, de forma subtil esem excesso algum. A rescrita do texto, num contexto de recriaçõescontemporâneas dos clássicos, faz-se numa encenação ritmada, quemantém vivos e pertinentemente incómodos os questionamentos ori-ginais, humanos e por isso reais e actuais..

TEXTO CAELI GOBBATO ACTRIZ

QUANDO ALMADA TEVE UM OFF

Como qualquer festival de relevo, também Almada teve, em tempos,um Off. Mas ao contrário de Edimburgo ou Avignon, cujas secçõesintegrariam a programação oficial, o Off-Almada não vingou. Falamosdo Festival X, dirigido por João Garcia Miguel, que realizou em 1995a primeira de seis edições e trouxe a Almada – ao agora míticoEspaço Ginjal, ao fim do pontão de Cacilhas – nomes como AngelaKonrad, Alain Béhar e Geneviéve Sorin. Para o director, havia “umacarência de iniciativas que promovessem o encontro e a troca deexperiências, e uma grande dose de ignorância em relação ao traba-lho que cada um estava a fazer” (Netparque, 26/11/2000).O X foi a montra para artistas emergentes: em 1996 Miguel Pereiramostrou lá Sou um gajo decadente; em 1997 Lúcia Sigalho estreou apeça que daria nome à sua companhia, Sensurround. No X de 1998nasceu o Útero, o colectivo dirigido por Miguel Moreira, com Mil 999 eo Pénis Voador. E no X de 2000 João Galante estreou o seu primeirosolo, S. Freud, o terceiro ouvido. O festival teve vários formatos, um deles em co-produção com aVisões Úteis. A partir de 2000 passou a bienal, alternando com mani-festações alargadas no tempo, as OrgaX. A saída do Ginjal, em 2001,sob promessa de obras, acabou consumada no costumeiro silêncioinstitucional. Actualmente, João Garcia Miguel tem residência artísticano Espaço do Tempo e na Casa d’Os Dias da Água, mantendo aindaem Lisboa o Espaço do Urso e dos Anjos. A “minoria feliz” deixou deintervir em Almada.

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LEAR NA TRITURADORA

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Inspirado em personagens que gravitam no nosso quotidiano, LivingCosta Brava é um espectáculo de humor que, muito embora se sirvade tiques e rotinas para fazer o retrato polaroid, não resvala para osclichés habituais a puxar a gargalhada fácil. Três rapazes, uma rapa-riga e um cão, encafuados num espaço exíguo, tentam sobreviver aoseu dia a dia feito de absurdos e de situações que poderiam ser vivi-das por qualquer um de nós ou por alguém que até conhecemos bem.Baseado num trabalho, sobretudo gestual, que recupera a tradição doclown – um clown moderno e contemporâneo que há muito abando-nou o nariz de batata vermelho e as roupas folclóricas – esta comédiapode considerar-se uma paródia de costumes em que os protagonis-tas facilmente se identificam com pessoas que nos rodeiam. Vizinhos,amigos, parentes ou conhecidos, gente cujas obsessões e exageros,apesar de primários, nos são familiares.Eis o anti-herói. Com os seus sonhos, com a sua necessidade deganhar a vida, com o seu riso ou choro, com a sua vontade de rein-ventar o mundo. Eis a história de um animador musical que quersobreviver como artista de rua e que gostava de dormir tranquilo, deum inventor simplório que confunde velocidade com toucinho e queempenha toda a sua energia no arranjo de uma caldeira, de um faná-tico do tuning que reparte a vida entre música tecno, a sua moto e umadesconcertante vontade de rir, de uma maníaco-depressiva que habi-ta no sótão por prescrição médica e de Snoopy, o cão malévolo e idio-ta que nunca obedece à voz da dona.Quatro imbecis e um cão partilham este microcosmos, sítio à parte domundo real, em que tudo pode acontecer. E acontece. Começando nacapacidade de improviso dos actores, que ainda assim contracenamem harmonia, e acabando nos efeitos especiais em palco, verdadeirose inusitados happenings em que as mãos são o mais complexo dosrecursos técnicos.Originário de Girona, na Catalunha, o Cascai Teatre existe desde1999, tendo na bagagem vários espectáculos em que a linguagem

gestual é a grande protagonista. Marcel Tomàs, director e fundador dacompanhia, assume o risco e dá novos usos a uma expressividadeque se poderia dizer em desuso. Pondo em cena espectáculos emque o humor absurdo e o surrealismo andam de mãos dadas com otrabalho de clown, o Cascai Teatre soube “modernizar” e trazer paraos dias de hoje um género teatral que muitos consideram datado, ouem vias de extinção.Iniciado em projectos como O Homem Incompleto, de 2001, ouCascai, de 2002 – espectáculo cómico baseado em filmes mudos edesenhos animados, cujo sucesso ditou nome à companhia – o toquedistintivo desta trupe de resistentes parece ter vencido, e convencido,públicos em toda a Espanha. O humor, sempre o humor, trabalhadode forma inteligente, e o gesto, no auge da sua grandiloquência.Living Costa Brava é o quinto trabalho desta companhia que, em2004, com Le Paradis – espectáculo poético de humor gestual e más-cara – deu um passo decisivo em direcção ao crescimento.Literalmente. De um só actor para quatro actores em cena. Que maisirá acontecer-lhes?.

TEXTO PATRÍCIA BRITO JORNALISTA

LATINA AMÉRICA

TRÁFICO FESTIVAL DE ALMADA

O TEATRO ESPANHOL E DA AMÉRICA LATINA INVADE ALMADA: EM CASTELHANO E EM CATALÃO. DE BUENOSAIRES, RAFAEL SPREGELBURD E A COMPANHIA EL PATRÓN VASQUES TRAZEM LA ESTUPIDEZ, ESPECTÁCULO

TRÁGICO-CÓMICO QUE SE INSPIRA NOS ROAD-MOVIES E NO POLICIAL. DE BARCELONA, O HUMOR DOS CASCAITEATRE ESTÁ PRESENTE EM LIVING COSTA BRAVA, ESPECTÁCULO PARA QUATRO ACTORES E UM CÃO MALÉVO-LO. A COMPLETAR A PRESENÇA LATINA, UM CONTADOR DE HISTÓRIAS, NICOLÁS BUENAVENTURA VIDAL, NARRALOS CUENTOS DEL ESPÍRITU, NUMA SESSÃO INTIMISTA CUJO SEGREDO É RESISTIR À TENTAÇÃO DE REPRESENTAR.

UMA COSTA BRAVA IMPROVISADA

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Criativo e inesgotável dramaturgo, actor, encenador e tradutor, RafaelSpregelburd (Buenos Aires, 1970) destaca-se entre as tendências doteatro argentino surgidas nos anos 90, como alternativa ao modelorealista predominante. A sua maquinaria cénica assenta no actor, quenão é, segundo ele, um “simples ardina” de ideias alheias, mas anteso elemento mais capacitado para desenvolver uma linguagem cénica,já que “somente [ele] conhece em profundidade o que é especifica-mente inerente ao momento da representação”.A poética de Spregelburd alterna o realismo das situações com umaquestionadora transgressão caricatural. Dos seus textos mais conhe-cidos podem citar-se Cucha de Almas (1992), Dos personas diferen-tes dicen hace buen tiempo (1994-1998), Raspando la Cruz (1997),Canciones Alegres de Niños de la Pátria (1998) e Un MomentoArgentino (2000, estreada no Royal Court House, em Londres). Em 1994, Spregelburd fundou, com a actriz Andrea Garrote, a compa-nhia de teatro El Patrón Vázquez, cujas produções, apresentadas emfestivais nacionais e estrangeiros, lhe têm valido numerosos prémios.Recusando as grandes histórias, Spregelburd produz um teatro desituações banais e individuais. A valorização que delas faz parte dacriação de personagens desdramatizadas, seres instáveis que seencontram, quase sem vontade própria, frente a encruzilhadas que

parecem reduzi-los à mais absoluta passividade. Spregelburd recupe-ra a dimensão lúdica do teatro, a sua vocação de entretenimento,numa lógica do devir cénico, limitando-se, pois, a reproduzir o seu pró-prio discurso, sem recorrer a referentes externos que o confirmem.Isto não significa, no entanto, que os textos se alheiem do contextosociopolítico. De modo oblíquo, a crítica inscreve-se na sua poética,especialmente por via do humor, da paródia e da ridicularização dosdiscursos institucionais, dos comportamentos estereotipados e dospapéis sociais.Inspirando-se no quadro Os Sete Pecados Mortais, do pintor holandêsHieronymus Bosch, Spregelburd cria uma heptalogia onde reinventauma hierarquia pessoal e contemporânea de novos pecados. AEstupidez é a quarta obra desta série – começada em 2000, a convi-te do Deutsches Schauspielhaus, de Hamburgo –, tendo sido escrita

em 2003 e estreada em Berlim, na Schaubühne, numa leitura dirigidapelo autor.Correspondendo ao pecado da avareza, a acção decorre num hotelem Las Vegas, lugar emblemático da paixão pelo jogo e pelo lucrofácil, tema que a peça desdobra em várias acções simultâneas: umgrupo de pessoas tenta ganhar à roleta, usando um método baseadona terrível equação matemática exposta no Livro do Apocalipse; doiscriminosos devem vender um quadro roubado antes de saírem dohotel; a máfia siciliana cria uma nova estrela pop; e uns polícias, demota, vivem uma intensa história de traições.Tudo isto se cruza num dinamismo surpreendente. O espaço cénico –representação convencional duma casa, a que se acede pelo pátio dohotel – assume uma dimensão simbólico-alegórica que multiplica osfocos de acção, em consonância com a fragmentação das sequên-cias. Todos os conflitos se organizam em torno do dinheiro, símbolomáximo da ambição materialista. O motor semântico da peça é opecado da avareza, tornado virtude por obra e graça da sociedade deconsumo.Ninguém é poupado nesta corrosiva caricatura – dos discursos cientí-ficos, artísticos e mediáticos, aos laços familiares e sociais –, que vêna expansão dos media e na multiplicação dos seus códigos e possi-

bilidades expressivas a impossibilidade de uma comunicação autêntica.Esta Estupidez apresenta uma dimensão auto-referencial – que reme-te para as convenções teatrais, bem como para a obra do próprioencenador –, onde se incluem géneros canónicos da literatura, docinema e da televisão, como o policial, o melodrama, o drama familiare o road-movie. Esta lúcida e perspicaz versão da estupidez, e dassuas vicissitudes trágico-cómicas, sustenta-se numa excepcional eintensa experiência teatral, multiplicadora das suas potencialidadesdramáticas e das leituras do espectador..

TEXTO HALIMA TAHAN E SILVINA DÍAZ CRÍTICAS

Texto publicado em colaboração com a Teatro Al Sur – RevistaLatinoAmericana (Argentina).

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A PROPÓSITO DE “ANATHEMA”A companhia belga tg Stan tem sido presença regular em Portugaldesde 1997, em workshops ou espectáculos, um dos quais, Berenice,criado e apresentado na Casa dos Dias da Água, em 2005. Agora,regressam, pela terceira vez, ao Festival de Almada, depois de, em1997, interpretarem Um Inimigo do Povo, de Ibsen, e, em 2003, EstáTudo Calmo, de Thomas Bernhard. Trazem uma criação de 2005, queeste incluída na programação da temporada passada da Culturgest,mas a doença súbita da actriz Jolente De Keersmaeker adiou paraeste Verão a encenação do primeiro texto teatral do romancista JoséLuís Peixoto e que, em ano de estreia, se apresentou no Théâtre dela Bastille, em Paris, integrado no Festival d’Automne.Foi por intermédio do actor Tiago Rodrigues, com o qual a tg Stan tra-balha regularmente, que Jolente De Keersmaeker descobriu José LuísPeixoto. “Li o seu primeiro romance [Nenhum Olhar] e adorei. Temuma linguagem que mergulha fundo na raiz das coisas. A sua escritaaponta para a recorrência dos motivos, desenterra feridas, históriasdolorosas, escondidas ou dissimuladas”.O primeiro contacto aconteceu em Setembro de 2004, em Lisboa.Keersmaeker, irmã da coreógrafa Anne Teresa, propôs a Peixotoescrever um texto que ela e Tiago Rodrigues pudessem interpretar.[Na altura, Peixoto já recebera o Prémio Saramago e tinha apenaspublicado dois livros (Nenhum Olhar e Morreste-me, escrito antesdaquele) e algumas recolhas de poesia. O teatro estava ainda longemas teve sequela: Peixoto já escreveu, para o Teatro Meridional, ÀManhã (2006), e, para Marco Martins, Quando o Inverno Chegar(2007), ambas produção Teatro São Luiz].“Foi a primeira vez que ele abordou a escrita dramática – dizKeersmaeker – e não queria adaptar um dos seus textos, mas dar-nosalgo novo. Encontrámo-nos várias vezes depois disso durante o pro-cesso de escrita. Não era algo de habitual para ele, mas isso não otornou menos exigente”.Não foi nas memórias de infância que o autor se inspirou, como éhabitual, mas na Tchetchénia. A questão central da peça é o terroris-mo visto por dentro. Até onde se pode ir para defender um ideal?Quando a causa é justa, quais os meios que podem ser usados paraa servir? Como responder à violência que nos atinge? A situação dopovo tchetcheno entregue, depois de 1994, às mãos do exército russo

e abandonado pela comunidade internacional, levanta uma série deinterrogações. Mas uma resposta violenta, quando se manifesta atra-vés de actos terroristas como a tomada de reféns na escola deBeslan, em Setembro de 2004, é também algo de desconcertante.“Atenção que este espectáculo não é um documentário sobre aTchetchénia, mas sobre uma questão mais geral, a da violência e doterrorismo”, diz a actriz. Um tema quente, difícil, que motivando a com-panhia a investir cada vez mais em processos de escrita de autorescontemporâneos..

TEXTO HUGUES LE TANNEUR CRÍTICO

Texto gentilmente cedido pelo Théâtre de la Bastille.

TRÁFICO FESTIVAL DE ALMADA

UM JOGO SEM PATHOS

Anathema sustenta-se num diálogo entre um homem e umamulher, uma troca que desde o início se transforma num monó-logo onde cada um fala, expondo-se, da impossibilidade deamar, apesar do desejo, a guerra. Um jogo que exclui todo opathos, onde os corpos se aproximam, mas não se tocam,como num estranho bailado protagonizado por cegos. Podemosficar desconcertados por o texto ser escrito de um modo tãodessacralizado. Podemos mesmo achar demasiado a presença,no chão, junto de um monte de roupas, de uma Kalashnikov ede um cinto de explosivos (que explodirá, como um petardohúmido). Pequenas hesitações dão origem a uma violência irre-mediavelmente contida, [sendo os monólogos] duas passagens[que] evocam o tempo – “Estou tão cansada” repete a actriznuma longa litania – deixando-o escapar num trabalho de des-construção-construção.

MARIE-JOSÉ SIRACH, L’HUMANITÉ, 21 NOVEMBRO 2005

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LAGARCE E VIEIRA MENDESEM DISCURSO DIRECTO

Quando os Artistas Unidos o convidaram a estrear-se na encenaçãocom História de Amor (Últimos Capítulos), de Jean-Luc Lagarce (J-LL), José Maria Vieira Mendes não compreendeu porquê. Explica:“interessam-me outros autores, como o [Harold] Pinter e o Jon Fosse.O Lagarce tinha uma escrita muito mais poética e abstracta que aminha”. Aceite o desafio começou a leitura “enquanto dramaturgo. Oprimeiro que fiz foi cortar diálogos. O texto não se quer deixar perce-ber, tem muitas armadilhas”. Envolveu-se e percebeu que a escrita deJ-LL é “mais intensa e mais reduzida” e ao invés de ser um jogo tea-tral, como poderia ser interpretado, “é sobre a escrita”. Coisa que,assume, é o que mais lhe interessa. “Muito mais do que questionar oteatro”. Diz ainda que “nas peças contemporâneas os autores procu-ram um meio para se encaixarem nas artes do espectáculo” e ele nãoquer ver “cinema em palco”.Para Vieira Mendes a peça é um prolongamento do seu mais recentetema: as relações entre pais e filhos, não no sentido estricto de filia-ção, mas ligado a uma noção ampla que, em sociedade, toma diver-sas formas. “Fi-lo em A minha mulher, está em O Avarento e vai atéOnde Vamos Morar [a estrear, respectivamente, pelo Teatro NacionalD. Maria II (Setembro), o Teatro Praga (Julho) e os Artistas Unidos(Janeiro 2008)]”. E o olhar “antropológico, social e pessoal” é, aomomento, o que mais lhe interessa. A recente biografia do autor francês desaparecido em 1995, assinadapor Jean-Pierre Thibaudat, (Le Roman de Jean-Luc Lagarce, LesSolitaires Intempestifs), contextualiza o processo de escrita da peça,estreada em 1991 numa encenação do próprio autor e já numa segun-da versão. O original remonta a 1983, ano de quase todos os inícios,e certamente da mais íntima e intensa relação entre Lagarce (OPrimeiro Homem), François Berreur (O Segundo Homem) e MireilleHerbstmeyer (A Mulher), a quem a peça é dedicada. Esta era uma peça especial porque o jogo de espelhos que estabele-cia com a vida deste trio confundia todos. “A peça não era sobre nós”,esclarece Mireille. Mas Berreur diz que de todas “é a mais difícil de

encenar”, e disse-o a Vieira Mendes que usou “a distância” para ence-nar o texto que o próprio autor classificou de “erro colossal” quandocomeçaram os ensaios. “Difícil, terrivelmente difícil”, escreveu no seudiário. Mas foi “o maior – e mais desproporcionado – sucesso crítico”que conheceu, escreveria depois. Explica o biógrafo: “para o públicoque tinha vindo oito anos antes [assistir à primeira versão] havia ecosevidentes. Os actores que estavam em cena preparavam-se pararepresentar uma nova peça com os diálogos da antiga. Os espectado-res ficaram perturbados”.Remetendo, nitidamente, para Jules e Jim, o filme de Truffaut, tam-bém sobre um ambíguo trio, a peça esteve para ser um filme. E umlivro. Acabou em peça, “minimalista”, diz Mireille ou A Mulher que a ter-mina dizendo que, no início, “era outra história”. Eles nunca viveramjuntos, eles nunca se tocaram (mas J-LL, abertamente homossexual,vivia fascinado por François), mas ele esteve, de facto, doente desida, que acabaria por vitimá-lo. Quando estreou a primeira versão,chamada Repérages, J-LL tinha ainda ainda adoecido, o que o man-tinha a uma distância conveniente das personagens e das interpreta-ções. Depois, em 1991, era já outra a realidade. Thibaudaut descreveas semelhanças entre um mundo e o outro: “Isso vê-se. Os dois sãoescritores, os dois escrevem, e dizem que estão a escrever, Históriasde Amor, os outros dois lêem aquilo que se escreve, dizem que ofazem, representam, representando, comentando. Nunca Jean-Lucesteve tão perto do espelhamento do teatro e da escrita”. “Esta é uma peça sobre o processo de escrita”, diz o encenador, queacabou por encontrar um texto que o deixou “protegido” e que por falarde emoções “recusa o realismo falso imposto pelo cinema”..A 12 e 13 o Instituto Franco-Português recebe encontros sobre

a obra de Jean-Luc Lagarce, com a presença de Jean-Pierre

Han, crítico, e François Berreur, encenador.

TEXTO TIAGO BARTOLOMEU COSTA

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TRÁFICO FESTIVAL DE ALMADA

OS ESPAÇOS ÍNTIMOS DA CIRCOLANDONO MOMENTO EM QUE O FESTIVAL DE ALMADA ACOLHE CAVATERRA, SEGUNDO ESPECTÁCULO DO CICLO DASMINAS, ANDRÉ BRAGA E CLÁUDIA FIGUEIREDO DESENHAM O PERCURSO DESTA CRIAÇÃO E ENSAIAM OLHARES

DIAGONAIS SOBRE O PERCURSO DA CIRCOLANDO.

Como foi o processo de pesquisa de Cavaterra?Visitámos primeiro minas esquecidas (Borralha, Argozelo, Vale dasGatas, Panasqueira, Lousal, Aljustrel, São Domingos). Depois reco-lhemos textos e imagens, procurando a descrição objectiva do traba-lho mineiro. Coleccionámos, ainda, fragmentos de vários autores quefalam da solidão, da noite, do escuro, do elogio da luz; da vertigem edo desequilíbrio; da terra, da pedra, do minério; da intimidade com aterra e de aparições vagas. O trabalho de corpo partiu duma ideia dedeformação. Numa abordagem nada realista, quisemos inventar alte-rações físicas para homens que passam uma vida a cavar, a carregar,a subir e descer escadas, aliando-as à dança, à manipulação deobjectos (ferramentas, carrelas, pedras, minérios e terra) e de formas(as marionetas ou a corda vertical). Na pesquisa musical cruzámosgéneros e repertórios, chegando a uma banda sonora que passa porArvo Pärt, John Zorn, Kevin Volans, Foday Musa Suso, Rob Burger,Emil Tabakov, e pelos cantos populares portugueses recolhidos porGiacometti.

O que procuravam e o que encontraram no processo de criação?Atraiu-nos no universo das minas as suas cores, a desolação das pai-sagens, a ruína, o silêncio, a suspensão do tempo, a sensação inten-sa de fim... Associamos-lhe traços que foram os nossos motores depesquisa: as sensações/emoções extremadas ali vividas (escuridão,solidão, exaustão, fragilidade), os homens com muito de bichos daterra. Sem procurar, encontrámos o acidente, a tragédia, a morte, asobrevivência e a entreajuda. A par desta negrura, buscávamos tam-bém as crenças e os sonhos que a contrariassem. Nesse sentido,apesar de Charanga, o primeiro espectáculo do Ciclo das Minas, terestreado primeiro, ambos foram pensados em conjunto. Para chegar-mos ao elogio da luz, do vento, da viagem de Charanga era impres-cindível enchermo-nos deste mundo negro, opressivo e fechado.Já com Quarto Interior, por exemplo, que é posterior, demo-nos contade que usávamos muitas das coisas do Ciclo das Minas. Voltávamosa estar no reino dos espaços mínimos e interiores que desejam aimensidão, dos espaços de solidão onde estamos com as nossasmemórias e devaneios. Num, inventamos o sonho, seguindo o cami-nho do desejo do que está ausente nas profundezas da terra; noutro,

aceitamos o convite de Bachelard e fomos procurar sonhos de ninho.Em ambos, viemos parar às paisagens dos nossos sonhos de infân-cia.

Desde Caixa Insólita até Quarto Interior, do primeiro ao últimoespectáculo, o que se transformou na linguagem artística daCircolando?Mais que em transformações, pensamos em consolidações. O cruza-mento de áreas artísticas, a linguagem visual, gestual e próxima dapoesia, as histórias sem palavras e com múltiplas leituras possíveis, arecriação permanente dos espectáculos, a itinerância nacional e inter-nacional estão na Circolando desde a sua origem e com vontade depermanecer. Olhando para trás, sentimos que o que talvez distingamais profundamente os projectos seja a opção rua ou sala. Queremosmantermo-nos em ambos os contextos e, ainda naquela terra de nin-guém que são os espaços não convencionais. Será mesmo este o ter-reno do próximo projecto, Casa-Abrigo.

A Circolando é frequentemente designada por novo circo,enquanto criação multidisciplinar. Revêem-se nessa designa-ção?Começamos por nos situar próximos do novo circo, mas, com otempo, o domínio das técnicas circenses foi perdendo relevância.Passamos, então, a preferir falar nas formas híbridas do teatro dança-do e do teatro de imagens. Queremos manter o que nos atraiu nonovo circo – a vocação transdisciplinar, a linguagem visual e senso-rial, a utopia do público total – e atenuar a sua essência: o domínioabsoluto de técnicas específicas. Não queremos criar falsas expecta-tivas no público e tememos que o rótulo “novo circo” anuncie proezasque depois não integram os espectáculos. Não identificamos princí-pios nem regras no diálogo interdisciplinar. Escolhemos uma matériade trabalho, um tema, um universo, e depois é um constante vaivémentre o corpo, o texto, o objecto, a música... estando sempre a variaros pontos de partida..

ENTREVISTA PEDRO MANUEL

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O JOVEM DRAMATURGO E ENCENADOR NORUEGUÊS FINNIUNKER APRESENTA IFIGENEIA NA 24 EDIÇÃO DO FESTIVAL

INTERNACIONAL DE TEATRO DE ALMADA. PARTINDO DA TRAGÉDIA IFIGÉNIA EM ÁULIS, DE EURÍPIDES, IUNKERREGRESSA AO NÓ GÓRDIO DE UM DOS MAIS NEFASTOS

EPISÓDIOS DO CICLO TROIANO PARA REPENSAR AIMPORTÂNCIA DO MITO NA IDENTIDADE CULTURAL EUROPEIA

O mito de Ifigénia, ao contrário dos que primeiro surgem em Homeroou em Hesíodo, só foi largamente explorado pelos tragediógrafos,especialmente por Eurípides, que lhe dedicou Ifigénia entre os Taurose Ifigénia em Áulis. Partindo da Ifigénia em Áulis, assim o fez tambémFinn Iunker (n. Arendal, 1969), em Ifigeneia, onde dirige o grupo VerkProduction, uma das mais entusiasmantes jovens companhias do tea-tro norueguês.O autor, mais representado fora do que no seu país, recebeu em 2004o prémio de melhor autor dramático norueguês, e, em 2006, o PrémioIbsen. Em Portugal Finn Iunker estreou-se, em 1999, com OAtendedor de Chamadas, numa encenação de António Simão apre-sentada na Culturgest; depois, em 2004, no CCB, viu-se a peça infan-til Peça Alter Nativa, também dirigida por Simão, numa produção doTeatro de Inverno; sendo, por fim, um dos autores trabalhados naConferência de Imprensa e Outras Aldrabices, criação de Jorge SilvaMelo (Teatro Nacional D. Maria II, 2005).Ifigeneia data de 1996, mas a primeira encenação só aconteceu em2003, pela companhia flamenga SkaGeN, a par de Dealing withHelena, também desse ano. O autor propõe uma crítica à insanidadee irracionalidade da guerra, lidando “com pessoas aparentemente cal-mas e afáveis que, num momento de crise, são expostas na suasuperficialidade e cobardia”, explica Therese Bjørneboe, num textosobre a cena norueguesa, publicado no sítio dos Artistas Unidos.Mediante a reconstituição dos acontecimentos em Áulis, um grupo depalhaços ridiculariza, numa atmosfera evidentemente satírica, osgrandes heróis da literatura, questionando episódios que estiveram na

fundação da cultura europeia: rapto de mulheres, assassínio de crian-ças e negócios indecorosos. A conclusão é perturbante: pouco ou nada há a fazer, dependendo aguerra da motivação que lhe outorgamos. Isso mesmo apontou JonRefsdal Moe, na crítica que publicou no jornal Morgenbladtet, aquan-do da estreia flamenga: “Muito estará em jogo quando um norueguêspoliticamente incorrecto decide entrar no património mundial drama-túrgico com uma questão: o que acontece quando se perde o motivode uma guerra? Rapidamente chegamos a uma terrível conclusão:provavelmente não interessa. A guerra segue a sua lógica própriaindependentemente do motivo que lhe quisermos dar”. Ifigeneia é apenas uma das leituras que Finn Iunker fez das tragédiasgregas, estabelecendo, ainda segundo Bjørneboe, um “diálogo comdiferentes modelos dramáticos, com dramaturgos clássicos e as cor-respondentes visões do mundo”. A investigadora esclarece que “aescolha do material é bastante fora do comum para um dramaturgonorueguês. As tragédias gregas são apresentadas na Noruega comuma frequência irregular, para não dizer rara. Juntando a isso a enor-me influência de Ibsen na escrita, e olhando para o teatro norueguêscomo um todo, não é possível falar de uma continuidade de uma‘negociação com os gregos’, nem sequer de um diálogo. Este “territó-rio amplamente negligenciado” é um aspecto que surpreendeBjørneboe, “dado o volume restrito de peças que são produzidas naNoruega”.Apesar do tempo que mediou entre a escrita da peça e a sua apresen-tação na Noruega, fazendo diminuir a sua actualidade política,Ifigeneia – continua a especialista – “segue a história tal como é, masIunker faz alguns pequenos e significativos acrescentos. Por exemplo,quando Agamémnon faz alusão ao topos moderno da ‘escrita para osilêncio’, como um crítico alemão notou. Enquanto que, em Eurípides,a intenção de Agamémnon de escrever uma carta é tida como o seudesejo de evitar que a sua mulher e a sua filha Ifigénia cheguem aÁulis. Que falha, dado que a carta não alcança o seu objectivo. Maspodemos dizer que a ironia das adaptações de Iunker tem origem naambiguidade do próprio texto de Eurípides. Aí, as personagens mas-culinas são representadas de uma forma a que se tem chamado o tra-balho mais demolidor com os heróis gregos até ao Troilus and

TRAGÉDIAS CLÁSSICAS REVISITADAS

TRÁFICO FESTIVAL DE ALMADA

IFIGÉNIA EM ÁULIS: PRECEITOS E PRETEXTOS

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Cressida, de Shakespeare. Tal como no tratamento das personagens,Iunker joga com a linguagem, numa aproximação aos filmes america-nos. Contrapondo deste modo ao laconismo moderno ao euripidiano,Iunker parece querer amplificar a queixa de Agamémnon: Oh deuses,que confusão!”.

TEXTO LUÍS RODRIGUES E TIAGO BARTOLOMEU COSTA

Com as Bacantes e o Alcméon em Corinto, Ifigénia em Áulis integra-va uma trilogia levada postumamente à cena na Primavera de 405 a.C., pelo filho de Eurípides, nas Grandes Dionísias de Atenas. Apesardas incongruências e anacronismos estilísticos, o texto é muito belo.É verdade que, a meu ver, os coros pouco se relacionam com a acção;que o apelo de Clitemnestra peca por formal; ou que Aquiles se reve-la moralista. Momentos há, porém, que adquirem contornos de gran-de mestria: a hesitação de Agamémnon entre os deveres políticos eos apelos do amor paterno; a confusão com que recebe as saudaçõesda filha, que ele próprio está a ludibriar; o embaraço de Clitemnestrae de Aquiles perante o capcioso pretexto do casamento.

A tragédia inicia-se com Agamémnon rememorando os antecedentesda Guerra de Tróia e o castigo de Ártemis, por ele haver morto umcervo sagrado e alardear ser o melhor caçador. A punição recaírasobre toda a frota aqueia que, a caminho de Tróia, parara de repente,

pois a deusa detivera os ventos. A fim de vencer esta barreira e apla-car a ira da deusa, o adivinho Calcas revela que Ifigénia, filha maisvelha de Agamémnon, deveria ser sacrificada. Este recusa mas, porpressão de Menelau e Ulisses, acaba por ceder e pede aClitemnestra, sua mulher, para mandar vir a filha de Micenas, sob opretexto de a casar com Aquiles. Depois de chegar a Áulis,Clitemnestra encontra-se com Aquiles e ambos descobrem que nãovirão a ser genro e sogra.Apercebendo-se do engodo, Aquiles promete ajudar Ifigénia, a pedidode Clitemnestra. Mãe e filha confrontam Agamémnon com o seu estra-tagema e tentam em vão impedir a morte da jovem, pois ambição e aconveniência política ultrapassaram o amor paterno. Todavia, em súbi-ta reviravolta – assinalada por Aristóteles como “paradigma de carác-ter incoerente” (Poética, 1454a) – Ifigénia decide sacrificar-se volunta-riamente, transpondo a barreira social que impedia as mulheresgregas de escolher, e fazendo jus à etimologia do seu nome de mulherde “raça forte”. Na verdade, Ifigénia não foi imolada. Na parte final dotexto, um mensageiro relata a Clitemnestra que Ártemis, no derradei-ro momento, se apiedou da jovem, substituindo-a por uma corça, elevou-a para a Táurida, na Crimeia, onde a tornou sua sacerdotisa.Permanecesse ou não em Micenas, teria Ifigénia evitado o preceito dosacrifício e, assim, a Guerra de Tróia? Provavelmente não. Em Áulis,os gregos tiveram muitos motivos para voltar. Nada os demoveu,tamanha era a vontade e ambição de pilhar e devastar a cidade deTróia. O rapto de Helena e o sacrifício de Ifigénia mais não foram doque simples pretextos políticos. Seja como for, resta-nos Sophia deMello Breyner Andersen: “Ifigénia levada em sacrifício,/ Entre os agu-dos gritos dos que a choram,/ Serenamente caminha com a luz,/ E oseu rosto voltado para o vento,/ Como vitória na proa de um navio,/Intacto destrói todo o desastre” (Coral II, 1950)..

TEXTO LUÍS RODRIGUES

DA ORIGEM DO MITO

MORTE ÀS PORTAS DA CIDADE

O actor e encenador Diogo Dória está de regresso ao Festivalde Almada, dirigindo Sete contra Tebas (467 a.C.), de Ésqui-lo. O espectáculo, que se apresentará na Culturgest, utilizaráa versão portuguesa de Manuel Resende, terá cenografia deElsa Bruxelas e figurinos de Paulo Mosqueteiros.Nesta tragédia paira ainda a sombra do desditoso Édipo, que,desterrado por um destino irónico e cruel que o levou a mataro pai e a desposar a mãe, não encontra amparo nos filhosPolinices e Etéocles. Maldi-los, então, três vezes: que jamaisviveriam em paz, que cada um deles mataria o outro e quecombateriam pela herança que lhes legava (a cidade deTebas).Diogo Dória propõe-se tornar nossa contemporânea umapeça que parece ter sido remetida para a leitura silenciosa,onde só se pode apreciar a “poesia do texto” (nos últimosanos, não se assistiu em Portugal a qualquer produção destaguerra fratricida, que é essencialmente um delicado e pun-gente estudo do ódio e dor humanos, sobre os quais triunfa aimplacável vontade dos deuses).

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NO CEREJAL, 18 ANOS DEPOISNunca se deve voltar a um lugar onde se foi feliz, mas eles foram feli-zes em 1989, no cerejal de Tchékhov, e são felizes agora – no mesmosítio, com as mesmas pessoas, 18 anos depois. Eles são dois actores(Emília Silvestre e Jorge Pinto, o núcleo duro do Ensemble –Sociedade de Actores) e um encenador, Rogério de Carvalho, enenhum outro trabalho diz tanto acerca do que eles são e do quefazem aqui como este O Cerejal, que se estreou há dias no Porto,incluído no programa do 30º FITEI – Festival Internacional de Teatrode Expressão Ibérica, e que chega agora a Almada.É disso que Jorge Pinto quer falar à OBSCENA: do que não mudou, enão do que mudou, nestes últimos 18 anos (Tchékhov também o gran-de dramaturgo disso, das coisas que mudam para que tudo fique namesma). “Há maneiras de regressar. Uma maneira é ‘Ah, vamos jun-tar as pessoas que estiveram na tropa’. Outra é juntar pessoas queseguiram um percurso comum, que não se limitaram a estar nomesmo sítio à mesma hora. O nosso primeiro Tchékhov, O Jardim dasCerejeiras, é uma memória num percurso que continua a ter muito aver com o que éramos nessa altura. Quando fizemos essa peça, esta-va a acabar aquele modelo das companhias fixas, sujeitas a umadirecção artística externa, e as coisas começavam a passar pela ini-ciativa dos actores. E o Rogério foi muito importante na formaçãodesse novo actor para os anos 90”.Os Ensemble continuam aí – como toda a geração de actores queveio a seguir. Rogério de Carvalho também. Fizeram coisas diferentesjuntos (dois Koltès) e coisas parecidas separados (Rogério deCarvalho “fez mais cerejais, mais tios vânias” com outros actores, osEnsemble fizeram um Tio Vânia com outro encenador, NunoCarinhas), e por isso regressar ao início, ao sítio onde tudo começou,tem um significado particular. “A ideia foi do Rogério. Convidámo-lopara vir fazer um espectáculo ao Ensemble e um dia ele ligou a dizerque já sabia o que íamos fazer juntos: queria refazer O Cerejal con-nosco. Aceitámos na hora. Um trabalho a partir de um autor genialcomo Tchékhov exige muito dos actores – e essa disponibilidade, essaentrega, foi muito do que aprendemos com o Rogério nesses idos de89. Temos uma memória muito querida desse O Jardim dasCerejeiras”, diz Emília Silvestre. Muita coisa ficou na mesma, mastambém houve muita coisa a mudar: “O nosso primeiro Tchékhov eramuito romântico, muito nostálgico – o que tinha a ver com a maneirade fazer Tchékhov nessa altura. Continua a haver nostalgia emTchékhov, mas a maneira de a fazer é que não pode ser nostálgica”,

explica Jorge Pinto. “Tchékhov esteve sempre muito ligado a umacerta indolência, a uma certa forma de deixar passar o tempo. O quefizemos desta vez com o Rogério foi procurar o que está ali em con-fronto”, acrescenta Emília Silvestre. Houve mesmo muita coisa amudar desde 1989, mas houve ainda mais coisas a mudar, paranunca mais ficarem na mesma, desde 1904, ano em que Tchékhovescreveu O Cerejal: “A nossa vantagem sobre Tchékhov é que nóssabemos o que se passou com aquelas personagens depois.Tchékhov viu o capitalista a substituir o nobre e nós sabemos queesse capitalista faliu e foi engolido por uma revolução. Mas a vanta-gem de Tchékhov é que ele não diz se ficamos a perder ou a ganhar,limita-se a observar um mundo em vias de extinção, a dizer que há ummundo russo a desaparecer. Nós também assistimos ao desapareci-

mento de muita coisa nestes últimos 50 anos em que Portugal viveuum século. Habituei-me a ver essa ideia de progresso associada adestruir jardins para construir avenidas. Muitos não percebemos queo nosso mundo também estava a desaparecer”, continua Jorge Pinto. Este segundo O Cerejal é sobre isso mas é sobretudo sobre as pes-soas que ficam ali enquanto tudo desaparece. “Pessoas normais, por-que não há heróis ali; só pessoas pequenas, que não conseguem, quevão acabar por ficar ali. O Rogério usou muito esta imagem: aquelafamília é um conjunto de náufragos à deriva”, esclarece EmíliaSilvestre. Fazer O Cerejal mais uma vez também podia ser assim: visi-tar uma casa de família e a família já não estar lá. Não foi: eles conti-nuam a sentir-se em casa..

TEXTO INÊS NADAIS JORNALISTA

TRÁFICO FESTIVAL DE ALMADA

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TRÁFICO FESTIVAL DE ALMADA

RABIH ABOU-KHALILCOMUNHÃO DE BENS

A tentação de pensar em exotismo, com todas as suas consequên-cias, principalmente as más, é grande, sem dúvida, quando se obser-va o elenco do concerto programado, no âmbito do Festival deAlmada, para o Teatro de São Luiz, nas noites de 5 e 6 de Julho (apre-senta-se também no Porto, no Teatro Nacional São João, dias 13 e14). Em palco, The Rabih Abou-Khalil Band, Ricardo Ribeiro e TâniaOleiro interpretam canções com música do compositor e intérpretelibanês Rabih Abou-Khalil e letras de Jacinto Lucas Pires inspiradasem Silva Tavares e no mundo protagonizado por Alfredo Marceneiro.A tentação de pensar exotismo – escreveu-se – é grande mas, nestecaso, radica em um preconceito, pois aqui não existe nenhum cruza-mento entre a Europa e o Médio Oriente nem qualquer tentação demisturar fado e música árabe. Existe, sim, um corpo de canções que,como muitas vezes antes, parte de referências reconhecíveis queAbou-Khalil transforma em obra nova.A guerra civil no Líbano, a Alemanha e o ano de 1978 são o aconteci-mento, o local e a data. As circunstâncias que permitiram a RabihAbou-Khalil ser quem é: “um compositor e intérprete musicalmentepoliglota e verdadeiramente multicultural” – como escreveu o críticoJoão Lisboa por ocasião da apresentação do músico no TNSJ em2004.Voltemos à Alemanha e a 1978 para reparar que, nesse tempo, trocarBeirute por Munique não era propriamente sair do terceiro mundo eentrar no admirável mundo novo. A capital libanesa era então, antesda guerra civil a tornar sinónimo de conflito constante entre as forçasdo mal, uma cidade cosmopolita e moderna, onde um jovem estudan-te de oud encontrava com facilidade discos de Thelonious Monk ou deFrank Zappa, lado a lado com as obras de Oum Kalthoum e MohamedAbdel Wahab. Por isso, não terá sido com certeza um grande choquepara Rabih Abou-Khalil trocar o alaúde árabe pela flauta transversal eas melodias tradicionais pela composição clássica ocidental.Passado o tempo de aprendizagem, sem aparente confronto de civili-zações ou sequer conflito interior a obstar ao desenvolvimento da cria-tividade, o compositor parte da linguagem tradicional da música árabe,cruza esse vocabulário com outros géneros, linguagens, tradições eexperiências, criando um universo musical, bastas vezes único, queprogride por mais de 30 álbuns e em uma música onde se cria – como

escreveu João Lisboa – “uma elasticidade formal das composiçõesque oferece aos solistas o terreno favorável para confrontar pontos devista e ideias no decurso da improvisação, contrastar e partilhar iden-tidades musicais e inventar uma nova geografia musical que, não pro-curando os efeitos de ‘exotismo’ fácil, propõe algo de consideravel-

mente distinto das categorias convencionais”.O desalinhamento de Rabih Abou-Khalil já o levou a colaborar com (ede certo modo a alimentar-se de) músicos tão distintos entre si comosão Argentina Santos, Camané, Glenn Moore, Charlie Mariano,Balanescu Quartet, Jakob Wertheim, Michael Riessler, ou a WorldMusic Orchestra, antes ainda do encontro marcado com Lucas Pires,Ricardo Ribeiro e Tânia Oleiro – que, visto deste ângulo e na perspec-tiva do trabalho do compositor libanês, parece ser encarado maiscomo uma comunhão de bens do que como uma dessas desgraçadascolaborações “inter-civilizacionais”.Por isso não parecem estranhas – antes eventual antevisão do espí-rito do concerto – as palavras recolhidas por João Lisboa (DuasColunas, Setembro 2004) quando Abou-Khalil se apresentou noTNSJ: “A expressão do fado sempre me pareceu muito próxima daexpressão na música árabe. Não estou, evidentemente, a falar de umponto de vista estritamente musical, isso é outra questão. (...) Ouçoum fado e, mesmo sem compreender o idioma, consigo acreditar nocantor. (...) Como o vejo, é uma forma de expressão. E é isso que meparece ser traduzível para a minha música”..

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UM CANCIONEIRO POR CUMPRIRO Festival de Almada repõe a curiosíssima leitura das Canções Herói-cas, de Fernando Lopes Graça, que fizeram Duarte Guimarães, LuísMiguel Cintra, Luísa Cruz e Mário Redondo, acompanhados ao pianopor João Paulo Santos, no Salão Nobre do Teatro Nacional de SãoCarlos, em 30 de Outubro de 2006 (evento integrado no ciclo Ao Fiodos Anos e das Horas, comemorativo do centenário do nascimento docompositor).As Canções Heróicas de Lopes Graça levaram-me à conversa com omaestro José Luís Borges Coelho, director do mítico Coral de Letrasdo Porto, amigo de Lopes Graça e músico que estreou à frente doCoro da Faculdade portuense inúmeras obras do mestre. BorgesCoelho fala com entusiasmo da génese destas obras, em 1945, cujaideia surgiu como uma revelação ao compositor enquanto passavaférias na Casa do Pinhal, propriedade do poeta João José Cochofel,no Senhor da Serra, perto da Figueira da Foz. Eram “marchas, dan-ças e canções” que seriam “próprias para grupos vocais ou instrumen-tais populares”, afirma. Destinavam-se a uma “apropriação pelo povo,como se do povo emanassem”, eram obras para serem “libertadas”,poderiam ser arranjadas, alteradas, adulteradas. Graça encoraja odestinatário, o povo, a usar como suas estas músicas e a fazer delaso que quiser.O compositor, no prefácio, cita-nos a Grécia, Roma, os alvores doCristianismo, Lutero, a Revolução Francesa e todas as grandes mar-chas da humanidade que foram sempre acompanhadas de músicasque marcaram os momentos da História. A primeira parte das Canções Heróicas data de 1946, numa edição daSeara Nova, a segunda parte da colecção data de 1960, “pelos cin-quenta anos da república”, esta última numa edição de autor, cujosdireitos revertiam para a escola oficina nº 1 de Lisboa e o Asilo S. Joãodo Porto. Ambas as edições foram apreendidas pela PIDE, como nosrecorda Borges Coelho, embora, felizmente, muitos exemplares esca-passem ao crivo da polícia política, chegando, assim, aos destinatários.Toda a produção das Canções Heróicas é fortemente condicionadapela luta política e social. Lopes Graça, comunista assumido, faz des-tas canções uma forma de “despertar o povo”, uma afirmação de liber-dade. Será por isso um conjunto menos perfeito, ou musicalmenteinferior? Borges Coelho nega veementemente: “as Canções Heróicassão o mais puro Graça, uma linha melódica perfeita, que o composi-tor por vezes reprime ou interrompe em composições mais eruditas. Oacompanhamento de piano, por exemplo, é requintado e elaborado,

demonstrando uma enorme qualidade musical. O Graça está lá decorpo e alma, e nesse sentido não são populares, o que não querdizer que não tenham sido instrumento de luta; cantavam-se na prisãoantes do 25 de Abril, os grupos corais mais empenhados politicamen-te pegaram nas Canções e levaram-nas a todo o país.”Fernando Lopes Graça considerava a obra trabalho de equipa, e aspi-rava a que outros compositores também dessem o seu contributo,coisa que nunca aconteceu. O próprio Graça dizia: “este trabalho deequipa é muito difícil de alcançar entre nós, povo de líricos introverti-dos e de retorcidos sentimentalistas”. O trabalho de equipa aconteceumas com grandes poetas de então, como Joaquim Namorado, JoséGomes Ferreira, Silva Santos, Mário Dionísio, Carlos de Oliveira, JoséGomes Ferreira e o próprio Cochofel.As Canções Heróicas não entraram no cancioneiro popular, que se foiesbatendo, e foi mesmo perdendo o sentido, numa sociedade cadavez mais uniformizada, cada vez mais longínqua da ruralidade doPortugal provinciano, salazarista e tacanho que Graça conheceu erecusou. Não seria também este Portugal triste e com medo de existirde hoje que Graça sonhava nas suas canções “Acordai” e “Jornada”,

ou na lírica “Mãe Pobre”, cantada na Grécia foi como se de um anóni-mo tema popular se tratasse. Fica o sonho do grande músico que foiLopes Graça, delírio onírico feito sem perder o Homem de vista, agorareencarnado nas palavras, notas e silêncios deste singular agrupa-mento..

TEXTO HENRIQUE SILVEIRA CRÍTICO

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DESDE 22 DE JUNHO – DATA DA DIVULGAÇÃO PÚBLICA DA PROGRAMAÇÃO DA 24ª EDIÇÃO DO FESTIVAL INTERNACIONAL DETEATRO DE ALMADA – E ATÉ 2 DE SETEMBRO, A CASA DA CERCA / CENTRO DE ARTE CONTEMPORÂNEA ACOLHE A EXPOSIÇÃO

“ASPECTOS DE UMA RETROSPECTIVA. OBRA GRÁFICA 1953-2007”, DE ANTÓNIO COSTA PINHEIRO. O AUTOR DO CARTAZ DO FESTIVAL DESTE ANO NASCEU EM MOURA, EM 1932, SENDO SOBEJAMENTE CONHECIDO PELAS SÉRIES DEDICADAS AOS REIS

DE PORTUGAL (1964/66) OU A FERNANDO PESSOA (1974/81). DESTA MOSTRA, QUE A OBSCENA ANTECIPA EM EXCLUSIVO, CONSTAM 60 TRABALHOS, ENTRE GRAVURAS, SERIGRAFIAS, POSTERS E CARTAZES, ABRANGENDO UM PERÍODO

QUE VAI DE 1953 AOS NOSSOS DIAS.

TRÁFICO FESTIVAL DE ALMADA

OOLLHHAARREESS CCÉÉNNIICCOOSS DDEE CCOOSSTTAA PPIINNHHEEIIRROO

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Paisagem, 1965Gravura (Água-forte e ponta seca)

54 x 36 cm

Do calendário editado por Bruckmann Verlag, Munique

Sem Título, 1958Gravura (Água-forte e ponta seca)

53,5 x 38 cm

Colombe de la Paix, 1968Serigrafia

62 x 87 cmFernando Pessoa Não-Ele-Mesmo, 1974

Serigrafia92 x 72 cm

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PONTO CRÍTICO Eugénia Vasques

1. Corria o ano de 2000 e eu, com a arrogân-cia compreensível de quem acaba de sairvitoriosa de mais um repto da vida, acredita-va ainda que a “crítica de teatro” era umaactividade de salvação. Num texto que inaugurava um locus, inveja-do, de colunista na página do teatro doExpresso (“Lugar Cativo”), e que intitulei,pomposamente, “E a Crítica de Teatro?”, bra-dava eu, entusiasmada, contra o fim da críti-ca com função social e propunha-me, nemmais nem menos, lutando contra o estadodas coisas, proceder a uma caracterizaçãoglobal do exercício, mais ou menos jornalísti-co, da crítica que, a partir de 1995, teria pas-sado “a prescindir, quase toda, da análise einvestigação dos problemas que atravessam– e até configuram – o actual campo teatral”.E, não contente com a promessa de diagnós-tico, anunciava uma profilaxia: “Pois bem. Éjustamente para criar um caminho paraleloao da análise estetizante, falsamente neutraou descomprometida, [para criar alternativa]ao do rol de informações sobre espectáculos[eu queria era referir-me ao tipo de crítica“descritiva” que me é particularmente irritan-te, ainda que corrente em culturas como aanglo-saxónica], ao da crónica anódina ou‘irreverente’, que surge este ‘Lugar Cativo’”. E terminava, cheia de fé missionária: “Aquise procurará, com a regularidade que o aces-so a fontes ou a agentes permitir, discutircriaturas e criadores, programações e pro-gramadores, documentos, números, espec-táculos e instituições. / Procuraremos ampliaras categorias identificadas, em estudosrecentes, sobre as vozes críticas no seu “diá-logo” com a criação (…), ainda quando emcontracorrente ou ao invés de interessesestabelecidos. Vamos, enfim, procurar outra‘crítica de teatro’.”

2. Vamos, enfim, procurar outra “crítica deteatro”. Claro que não descobri “outra críticade teatro”, que não mudei coisa nenhuma eque, até certo ponto, desisti de algumas con-vicções e de alguns exercícios de “braço deferro” contra bonzos velhos e bonzos novos. Todavia, houve, neste afastamento da críticajornalística, um ganho surpreendente. E esteganho traduziu-se, inesperadamente, numaconquista, interior, de liberdade. Liberdadede locus (ou de status) – assim como uma

espécie de Nirvana para onde vão (repressoo limbo do nosso imaginário colectivo) todosos críticos, vivos, que escreveram o suficien-te para dar algumas dores de cabeça a gre-gos e a troianos (assim como o Carlos Porto,agora, também ele nesse Nirvana, decorridos50 anos de zurzimentos e abraços solidários)–, liberdade de voz, liberdade de acção, liber-dade de pertença. E liberdade de escolha ede silêncio.

3. Tal como deixava perceber nalgumas des-

sas crónicas do “Lugar Cativo”, havia doispontos de vista que recorrentemente utilizavapara ler os acontecimentos teatrais: o enqua-dramento e o debate de política cultural ou areflexão estética e histórica que esses acon-tecimentos ou intervenientes me suscitavam.Sem manifestos nem desígnios programáti-cos é nesse terreno que me coloco a mim e aeste novo espaço de crónica da revistaOBSCENA. Aliás, nada de original nestadeterminação: Hans-Thies Lehmann, o“papa” do “teatro post-dramático” do final dosanos 1990 (que os jovens e menos jovensartistas de teatro “descobrem”, nestemomento, entre nós), é meu parceiro maisantigo nesta batalha.Diz ele, no seu muito citado PostdramatishesTheater de 1999, mais ou menos isto: nãosão os temas que veiculam, no teatro, asquestões políticas; é na percepção, nos

modos como acedemos à arte, que as ques-tões políticas se colocam. Daí que o autoralemão defenda, muito geracionalmente, quea política do e no teatro radica numa políticada percepção! Onde e como colocar, então, o crítico de tea-tro neste tempo de arte totalmente mediada emassificada?

4. Fazendo raccord, parcial embora, comKalina Stefanova no seu texto sobre a críticateatral (“Pode a Crítica Teatral Ser ‘Pós-

Dramática’”), patente no número 1 destarevista, também eu acredito que, se se con-seguir escrever crítica sobre as formas doteatro actual com uma atitude de frontalhonestidade e num tipo de prosa sem pedan-tismo (o que não é sinónimo de ligeireza) –almeje essa prosa, ou não, o cume extraordi-nário de “arte” –, poderá, quem sabe, a vozdos críticos ser, continuar a ser, indispensá-vel para o Teatro. Porque essa voz de mediação continua a sera testemunha incómoda onde, a um tempo,se fixa um momento irrepetível de fruição (docrítico) e se garante, ainda que dolorosamen-te, a procura do ponto crítico que faz avançaro engenho (do/a artista)..

FEITAS AS CONTAS

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DIAS DO JUÍZO / ESPECTÁCULOS

De Janeiro até fim de Maio o Auditório de Serralves, programado porCristina Grande (dança e performance) e Pedro Rocha (música), apre-sentou um conjunto de espectáculos que, à margem da exposiçãoAnos 80: uma topologia, quis voltar a olhar para alguns nomes funda-mentais dessa década. A grande mais valia desta programação espe-cial, que nunca quis ser genérica mas apenas indicativa, foi ter propor-cionado, tanto aos criadores como ao público, um espaço de reflexãomais alargado do que aquele que resulta da apresentação de umespectáculo. Porque as peças pediam um outro trabalho de contex-tualização, que deveria afastar qualquer onda revisionista, pratica-mente todos os espectáculos faziam parte de um programa maisvasto onde era dado a conhecer o seu autor, o seu universo e, em par-ticular, o modo como determinada peça marcou o caminho que viria apercorrer anos mais tarde. Este programa – e esta ideia de programa-ção – inteligente e raro, meticulosamente desenhado pelos dois pro-gramadores, soube combinar os vários anos 80, de Nova Iorque aFrança, da Alemanha a Londres, dando a conhecer numa paleta muitobreve, mas essencial, esse tempo vital para as várias rupturas deentão, e seguintes.Não descurando a relevância, entre outros, do total de cinco concer-tos, de nomes como o do trio nova-iorquino Borbetomagus (15 deMarço), o inglês Mark Stewart (14 de Abril), ou os alemães FM Einheit& Caspar Brötzmann (21 de Abril), no que respeita ao campo das artesperformativas houve a oportunidade de assistir a remontagens, algu-mas exclusivas. Foi o caso de Blauvelt Mountain (A Fiction), de Bill T.Jones e Arnie Zane (2 de Maio), ou o resultado de processos de pes-quisa feito pela francesa Compagnie Louma/Alain Michard (28 deAbril) que em Retransmissions, trabalhado em residência emSerralves, exploraram o legado do coreógrafo Dominique Bagouet.Houve ainda oportunidade para ver essa extraordinária conferência-performance do alemão Raimund Hogue, justamente intituladaLecture Performance (12 de Janeiro) e, no cruzamento transdiscipli-nar tão caro a um discurso de ruptura que tomava contornos trágicose afirmativos nessa altura, à instalação multimédia/manifesto políticoItsofomo, de David Wojnarowicz e Ben Neill (28 de Abril a 6 de Maio).A fechar o ciclo, Il tempo degli Assassini (22 de Maio), peça de juven-tude (e iniciática, como foram as de Jones/Zane e Hogue) do encena-dor italiano Pippo Delbono.Criada em 1986, a peça usa como título o famoso ensaio de HenryMiller sobre o poeta Arthur Rimbaud, pungente retrato publicado em1962, em plena guerra do Vietname e, por isso mesmo, menos sobreo poeta francês e mais sobre toda uma concepção de artista e de artede resistência, de audácia e de revolta. Porque, tal como escreveu oautor norte-americano no prefácio da obra, “à medida que a voz dopoeta é sufocada, a história perde o seu significado e a promessaescatológica irrompe sobre a consciência humana como numa nova eaterradora aurora”.O que é extraordinário nesta peça para dois actores e uma crença éperceber-se como Pippo Delbono foi, de facto, uma lufada de ar fres-co na paisagem cultural italiana. E que o seu lugar hoje, como seriade esperar mas ainda assim com um misto de lamento e evidência, foi

ocupado por nomes como os da encenadora siciliana Emma Dante (anecessitar ser revista urgentemente em Portugal, já que data de 2004a sua única apresentação, com mPalermu e La Scimia, no âmbito doPo.N.T.I’04/XIII Festival Union des Théâtres de l’Europe) ou FaustoParavidino (de quem os Artistas Unidos apresentaram o fundamentalDois Irmãos, 2004, para além de terem publicado outras duas peçasno nº 11 da sua revista).Esta peça de Delbono não é sobre coisa nenhuma, mas é sobre “nósquando éramos tão novos”, como não poderia deixar de ser numapeça de juventude. Cabe tudo neste longo plano-sequência agridoce:o boneco que não se encontra, as cartas à mãe, as tropelias e as desi-lusões, o peito aberto, feroz e militante que enfrenta a autoridade, asexualidade ou a consciência de que tudo se desmoronará, contra-

riando o poeta – que, provavelmente consciente disso abandonoucedo a poesia e foi traficar armas para África.Sendo evidente que a frescura (discursiva e física) de Delbono e PepeRobledo, o actor argentino que o segue desde então, não é a mesmade 1986, joga-se aqui, através do texto e sua elocução, num planoalgo instável, mas nem por isso saudosista ou nostálgico (o que é derelevo, considerando o percurso em direcção à irrisão demagógicaque Delbono fez): a reinvenção de um passado (ou de uma aura depassado) que projecta um futuro, tanto desconhecido como experi-mentado, que dá a este espectáculo atemporal uma caução trágica,tal como Henry Miller previu..

TEXTO TIAGO BARTOLOMEU COSTA

ÉRAMOS TÃO NOVOS

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DO DESEJO DA DANÇA AO LIMITE DO MOVIMENTO

O Festival da Fábrica teve origem na necessidade de preencher umespaço em aberto na cidade do Porto. Como referem os seus directo-res, Alberto Magno e Guilherme Garrido, o festival surgiu, em 1999,como uma tentativa de responder à fragilidade da programação dedança na cidade, e também pela vontade de trazer ao Porto criadorescom um trabalho alternativo que não tinham expressão em Portugal.Outro propósito era ainda confrontar os coreógrafos locais com novaspropostas, estimulando desta forma a reflexão e o debate.Ao longo destes nove anos a realidade do festival transmutou-se, per-dendo o carácter pedagógico das primeiras edições, fruto da expan-são no tecido artístico da cidade que, entretanto, se verificou.Contudo, esta edição do Festival da Fábrica deparou-se novamentecom uma cidade descaracterizada na criação-recepção de dança(limitada apenas à programação de Serralves e do Balleteatro). Nestesentido, o festival, que este ano deu ênfase ao conceito de performan-ce através de trabalhos assumidamente de pesquisa, de linguagensde movimento e composição coreográfica, foi vivido como uma lufada

de ar fresco. Aspecto que ficou claro na grande afluência de público,demonstrando, uma vez mais, que o há para a dança na cidade doPorto; assim como na representatividade na programação de criado-res que desenvolvem o seu trabalho no Norte e que, neste momento,se deparam com dificuldades para apresentar as suas obras. MárioAfonso abriu o festival com dois trabalhos que se complementam:Framework e Fame. Explorar o signo e o código quotidiano através douso de uma referência geracional (caso da letra da música Fame, dasérie televisiva homónima) e de signos universais previsíveis (a bor-boleta em lugar do coração) foi a proposta deste criador. Dois traba-lhos essencialmente performativos em que o propósito do objectoartístico passa essencialmente pela explanação ao público da meto-dologia de criação adoptada.

“Sabes mamã, se não fosse a Pina Bausch nós não existíamos” diz adada altura a coreógrafa Sónia Gomez a sua mãe (Rosa Vicente),após um dueto em que cada uma tenta dar o seu melhor a imitar TinaTurner. My Madre y Yo é um espectáculo despretensioso, surpreen-dentemente honesto, lúdico e que questiona os limites da exposiçãodo criador. Um trabalho que toca as fronteiras do Clownesco, peladilatação da ingenuidade, espontaneidade e ridículo que há em cadaum de nós. Mãe e filha são em palco personagens de si mesmas e,na verdade, não há muita diferença entre elas. Ambas são, na suaessência, profundamente humanas.Em Samba do Crioulo Doido, o brasileiro Luíz de Abreu assumiu umatomada de posição política evidente ao sublinhar a dimensão culturalde gestos específicos que encarnam valores ideológicos paradoxais.O samba, na sua vertente musical e dançada, é aqui questionadocomo formação de uma consciência nacional, ao ser um modo deexpressão de grupos sociais, um instrumento de integração/exclusãosocial e um mecanismo de formação de uma memória colectiva. Ocoreógrafo busca uma definição para o corpo social e performativo donegro brasileiro, num olhar etno-antropológico e de intervenção social. Joclécio Azevedo prosseguiu, em Inventário, a sua pesquisa sobre adepuração do movimento numa ausência absoluta de registo emocio-nal, construindo uma espécie de cerimónia cénica com a sua ritualida-de específica, em que se invertem mecanismos tradicionais de com-posição coreográfica. Mais do que com emoções ou sensações, oespectador foi confrontado com figuras no espaço, ritmos e ambientesde uma forte intenção narrativa.Ausência, de Vera Santos, foi seguramente o trabalho mais poéticodesta edição. Partindo de um universo afectivo pessoal, a coreógrafae intérprete criou no espectador uma respiração sensorial assente emespaços metafóricos: as casas habitadas e por habitar. Vera Santospropôs com este solo uma viagem pelo corpo dançado, feito de ima-gens, sensações, instantes efémeros e experiências íntimas que acoreógrafa desejou partilhar com o público, colocando assimAusência em um importante lugar que vai rareando na criação coreo-gráfica recente: convidar o espectador a criar com a cena um imagi-nário próprio. Roberto Ramos, em Continuum, apresentou uma pro-posta exaustiva sobre as possibilidades de composição do corpo nummesmo padrão geométrico, em que cada gesto acontece apenas doestímulo necessário para existir. Os três intérpretes (CatalinaCappeletti, Gustavo Ramos e Roberto Ramos) contaminam continua-mente os seus gestos numa associação imediata entre movimento eimagem, determinando desta forma um mapa inscrito no espaço céni-co por correlações tão precisas que nenhuma modificação pode invia-bilizá-la. O aspecto interessante deste trabalho é a investigação docorpo em movimento como um signo por si próprio, contendo em sitodas as explicações em relação ao que enuncia..

TEXTO CLÁUDIA MARISA OLIVEIRA INVESTIGADORA

Festival da Fábrica 2007. Produção: Fábrica de Movimentos. Porto,Teatro Helena Sá e Costa & Espaço Maus Hábitos, entre 10 a 19 de

Maio de 2007

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DIAS DO JUÍZO / ESPECTÁCULOS

Em 1813, apenas com 21 anos, Gioachino Rossini (1792-1868) com-põe L’Italiana in Algeri, ópera cómica, com libreto de Angelo Anelli.Rossini já não é um novato: A Italiana foi a sua 11ª ópera, composta –segundo o músico – em apenas 18 dias! No Teatro Nacional de S.Carlos viu-se, em Maio passado, uma produção do Festival de Aix-en-Provence, encenada pelo actor e encenador italiano Tony Servillo. Asco-produções com Aix têm sido um problema: apesar de largo, o palcodeste festival, no antigo palácio dos arcebispos de Aix, é pouco pro-fundo e as entradas de actores/cantores fazem-se lateralmente ouatravés do chão do teatro.No S. Carlos, o palco tem uma boca de cena estreita, mas é mais pro-fundo do que o de Aix. Uma encenação que aí se desenrola no planobidimensional terá de ser profundamente revista para funcionar emLisboa. É um erro cortar apenas na largura e concentrar todo o planocénico no centro. Foi o que aconteceu, reduzindo-se as três torres ori-ginais para uma, colocada à boca de cena, o que inutilizou a profun-didade do palco lisboeta.Perderam-se também os simbolismos dos espaços das personagensprincipais: Mustafà, o Bei argelino (baixo), personagem primária, fartoda mulher Elvira (soprano) e das amantes do seu serralho, o escravoitaliano Lindoro (tenor), que chora a sua amada, a italiana Isabella(mezzo), que desembarca inesperadamente nas costas argelinas,acompanhada do dandy Taddeo (barítono), seu admirador importuno.A estas juntam-se os criados do Bei, Haly e Zulma, e os coros mascu-linos de escravos italianos e eunucos mouros. Uma única torre serviu,então, de palácio do Bei, de serralho e do barco, usado na fuga dositalianos, que se despedem dum Mustafà, tão farto da conquista frus-trada da italiana que até volta para a sua mulher.Esta mudança de palcos levou a uma pobreza de marcações cénicase a um estatismo verdadeiramente confrangedores. Sobreviveramalguns momentos mais marcantes – como o rondò de Isabella (Pensaalla Patria) ou o triângulo formado pelo Bei, Lindoro e Taddeo em tornode Isabella, excelente na sua carga teatral – numa encenação trunca-da e imóvel, com cantores especados a esbracejar para o públicoenquanto cantavam solos, cenas de conjunto e recitativos.Os figurinos resultaram de forma muito cómica. O coro masculino doS. Carlos, agora um pouco recuperado dos anos terríveis em queJoão Paulo Santos esteve à sua frente, apresentou-se em tronco nu.Imagine-se os risos abafados de toda a plateia e um bruaá imenso mala luz pousou nas barrigas amplas dos pobres cantores que, mesmocantando pobremente, não mereciam este castigo.O primeiro elenco desta produção contou com o mezzo Kate Aldrichem Isabella. Esteve magnífica: subtil na interpretação, densa nos gra-ves e com agudos muito bem timbrados, foi um modelo de solidez ede composição do verdadeiro motor da ópera, face a personagensmasculinos fracos e sem personalidade. O Mustafà de LorenzoRegazzo foi também muito bom em termos teatrais (a vocalidademuito ligeira e rossiniana deste baixo italiano, a que apenas faltam

agudos, foi quase perfeita). O tenor John Osborne comportou-secomo um bárbaro, sem subtileza, sem distinções dinâmicas, sem pos-tura em palco: abria a goelas para produzir sempre demasiado som.O Taddeo de Paolo Rumetz foi equilibrado e divertido. Lara Martinsem Elvira mostrou-se capaz embora demasiado estrídula nos agudos.Paula Morna Dória em Zulma foi mais consistente. Cantando commusicalidade e prazer esteve Filippo Morace no papel de Haly.Donato Renzetti à frente da Sinfónica Portuguesa esteve atento aoscantores mas a orquestra foi pouco idiomática, desafinada nos violi-nos, demasiado pesada e pouco ágil. Dias mais tarde, no segundoelenco, esteve francamente melhor, mas na estreia é obrigatório quejá esteja ao melhor nível..

TEXTO HENRIQUE SILVEIRA

A Italiana em Argel / Dramma giocoso em dois actos, de GioachinoRossini. Direcção musical de Donato Renzetti; encenação de ToniServillo; remontagem de uma produção do Festival Internacionald’Art Lyrique d’Aix-en-Provence. Estreou-se em Lisboa, no Teatro

Nacional de São Carlos, a 2 de Maio de 2007

UMA ITALIANA ESTÁTICANO SÃO CARLOS

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Serei alguma vez feliz? Onde está a minhaalma? Mas sobretudo, quem é que vai pagara minha cerveja? Estas são algumas dasquestões que nos podem ser atiradas à cabe-ça durante o percurso de Fleurs & Questions,retrospectiva do trabalho da dupla Fischli &Weiss no Musée d’Art Moderne de la Ville deParis.Muito para além de filosofia de supermercadoou de objectos que preenchem as gavetas deuma casa, trata-se de recolocar todas essaspequenas coisas que devemos possuir numavida (martelos, candeeiros, pneus, isqueiros,sapatos, ou uma escultura de alcatrão danossa altura) numa pós-modernidade críticado nosso imaginário, ou noutro local devida-mente merecido. Ou seja, num museu, emcima de um pedestal, com uma etiqueta porbaixo, e para que se pague pela imitaçãotudo o que um coleccionador nunca conse-guiria imaginar por si. Ou seja, pura arte. Eassim, tratar uma fotografia de uma paisa-gem de férias românticas com o devido valorque o cliché merece – uma obra-prima vindado percurso de uma qualquer vida.E para isso, tudo é importante. Um candeeiroé um candeeiro, e por isso deve ser homena-geado como tal, banal, universal e utilíssimocomo ele é, como sempre imaginamos queum candeeiro seja. Ou na reprodução rudi-

mentar e imaginária dos grandes momentosda humanidade em mini-esculturas, umapanela a ferver marcando o “acontecimentoimportante para a descoberta da máquina avapor”, perto do “último dinossauro”, figuraridiculamente minúscula com ar de quemsabe que vai morrer, ou “Sr. e Sra. Einsteinpouco tempo depois da concepção de seufilho, o génio Albert”, assim como “Dr.Hoffman no seu primeiro trip de LSD”, tãomarcante como um “pão”, um “tijolo”, asideias opostas de “possível” e “impossível”,“interior” e “exterior”, ou ainda algumas “pipo-cas”. E por que a pequenez do Homem é asua grandeza, todo o nosso medo de existirencontra-se espetado na cara do doenteestendido na cadeira do dentista, ou nareprodução simbólica da “visão popular domedo” – um avião tragicamente caindo nooceano, sem salvação física.Os objectos, portanto, ao mesmo nível queas ideias e que a criação do artista, libertosde uma prateleira ou de uma tomada eléctri-ca, na oportunidade de serem e reagirem unscontra os outros, vivendo mas autodestruín-do-se para além da função que cada umcomporta. Numa cadeia improvável, louca,burlesca, ou sem qualquer espécie de senti-do ou objectivo, deixa-se tudo correr, the waythings go, sempre sobre a mesma linha,

aquela que define a própria arte – o risco. Orisco de tudo correr bem ou de tudo se des-truir, melhor, de se conseguir ver entre umacoisa e a outra. Como uma garrafa e umacenoura unidas no ar por utensílios de cozi-nha e um pedaço de cordel, elevados à eter-nidade da sua condição e da sua forma dearte em fotografia, talvez momentos antes dodesmembramento desse corpo, antes de sesuicidarem como explosões em cadeia. Entrea sua utilidade e o seu desperdício, entre oseu valor e o seu absurdo, entre a sua estu-pidez e sua genialidade.E se uma garrafa dentro de um frigorífico éuma nave espacial para o destino congeladoda sua comida, um conjunto de salsichasserão manequins num desfile de moda dasúltimas tendências culinárias, ou ainda doiscarros depois de um acidente rodoviário,rodeados de peões que não são mais quebeatas. É ver o humano no pimento que é ummarido e no chouriço que é a mulher, ou dei-xar os sapatos fumarem para mostrar quetambém são gente. Mostrar um atelier inteiroem uso e criar uma intimidade ao visitanteque pagou para tê-la, e perceber que dasprateleiras de madeira aos sapatos ou fitaadesiva, tudo é falso e feitinho à medida,exposição de uma exposição, em toda a suaverdade e corrupção. São os opostos quedominam o percurso da instalação, o “visível”e o “invisível”, o “verdadeiro” e o “falso”, comoum rato gigante e um urso em discussãosobre a arte, ou uma rádio de marquise empleno caminho, emitindo êxitos dos anos 90no off.E do que nos é proposto, incluiremos as nos-sas dúvidas ao lado das acima mencionadas.Uma estratégia para a melancolia, uma inteli-gência artificial, a figuração de um tempo ànossa disposição, ou simplesmente “umatarde tranquila”? Tanto se sai mentalmenteem pânico como numa lentidão pacata, per-turbados nos sentidos ou sentidamente per-turbados (com que sentido?). Entre uma e aoutra estará um gatinho à saída bebendoleite de um prato – e o que seria do gato semo prato?.

TEXTO FRANCISCO VALENTE CONSULTOR

A exposição esteve patente entre 22 de Fevereiro

e 13 de Maio no Palais de Tokyo/ Musée d’Art

Moderne de la Ville de Paris

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/ EXPOSIÇÕES

ISTO NÃO É UMA PIPA

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DIAS DO JUÍZO / LIVROS

Como nos é dito na introdução desteConcerto das Artes, saído recentemente naCampo das Letras, a edição surge para col-matar uma falta no âmbito dos estudos “inter-artes” em Portugal, situados para além docampo mais restrito da LiteraturaComparada, em que também se inserem. Ainiciativa e organização da antologia emquestão são prolongamento das actividadesde investigação que têm sido prosseguidaspelo Centro de Estudos Comparatistas, daFaculdade de Letras da Universidade deLisboa.Os trabalhos aqui reunidos, entre inéditos eensaios traduzidos, alguns já publicadosanteriormente em diferentes contextos masconsiderados e apresentados pelos organiza-dores como “incontornáveis para os estudio-sos ou curiosos da área”, são agora apresen-tados de forma integrada, num só volumeque se abre a um domínio da crítica e daensaística ainda pouco explorado entre nós.Se é verdade que, também no meio universi-tário das Artes e Humanidades, há uma novaabertura à reflexão sobre a transdisciplinari-dade, com respostas, nos últimos anos, denovos programas desenhados a partir desse

entendimento de transposição de fronteirasentre áreas do saber tradicionalmente cir-cunscritas, as novas perspectivas e visões domundo em que vivemos não só nos levarão areconhecer que essas novas práticasganham sentido como também carecem desuportes teóricos que as possam enquadrare consolidar como novos campos de investi-gação. Para além do contexto académico emque esta obra se insere, ela interessará tam-bém a um público mais vasto, afecto a mani-festações nos vários campos artísticos e auma reflexão adjacente, teórica e interpretati-va, muito particularmente à comunidade decriadores que, cada vez mais, nas suas prá-ticas, interpela e recorre a linguagens dife-rentes mas próximas numa correlação quebusca, na diversidade, o sentido do acto cria-tivo.Depois de um preâmbulo teórico, incluindotextos que interpelam as significações e con-tornos do conceito de arte, segue-se umasegunda parte em que os temas e vozes con-vocados para esta interacção acompanham,como é afirmado na introdução, o maior des-taque que tem sido dado, ao nível dos estu-dos já publicados, à literatura e artes visuais,

concretamente a pintura. E aqui a literaturasurge enquadrada, enquanto poética, ao ladodas outras artes, numa dimensão estéticaúnica, participando de uma mesma qualida-de, o que permite a Gérard Genette, no pri-meiro artigo desta antologia, defender e abrircaminho ao “exercício quase ilegal” de um“literário” desembarcar sem aviso prévio nocampo de especialistas de determinadas prá-ticas artísticas ou habitualmente atribuídasaos filósofos, defendendo que através delapoderemos saber mais de Arte em geral.No que respeita às áreas abordadas, paraalém das mencionadas, estão também con-templados o diálogo da literatura com a músi-ca, o teatro e o cinema sem que outros cam-pos, como a escultura, dança e fotografia,apesar de menos trabalhados neste estudo,que necessariamente se confronta com limi-tações materiais, deixem de ser considera-dos partes do mesmo todo. Entre as artesperformativas, o artigo de Maria JoãoBrilhante sobre Teatro e Literatura destaca areflexão de Osório Mateus, desenvolvidaentre nós de forma inovadora, entre a impor-tância de ver e a matéria verbal de que secompõe esta arte do palco e releva ainda a sua

TEMAS E VOZES DA LITERATURA E OUTRAS ARTESEM “CONCERTO” DE ESTREIA

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evolução, ao longo dos anos firmada na forteligação dos dois sentidos, “o que se atribui aotexto” e “o que o espectáculo transmite”.O presente volume pressupõe ainda uma arti-culação destas múltiplas linguagens comuma perspectiva diacrónica, tendo em aten-ção as manifestações artísticas das váriasépocas, desde aquelas que são aqui consi-deradas como mais “negligenciadas pelosestudos comparatistas”, como é o caso dasépocas medieval e clássica, até à contempo-raneidade, numa perspectiva que, atraves-sando os séculos, desperta novas interroga-ções face ao tempo, para além das suaslimitações entre passado e presente – pondoem evidência não só inter-relações numplano semântico mas também fenómenos detransposição intersemiótica.No que respeita aos estudos medievais, otexto de Teresa Amado refere o interessehoje renovado pela imagem e destaca,enquanto diferente de todos os géneros depintura praticados noutros suportes, a “estra-nheza irredutível” das pinturas de váriasdimensões que cobrem as páginas de muitosmanuscritos e cujo estudo deverá ser condu-zido como fazendo parte de um todo queabrange a/s letra/s e a imagem. Nesse cami-nho, de procura de novos conteúdos, porventura mais híbridos, dever-se-á ultrapas-sar, segundo a investigadora, a relutância naaproximação de certas áreas do saber, con-cretamente entre a história da arte e os estu-dos literários e filológicos. Neste fio condutorde épocas, o século XIX assume-se, atravésdo texto de Bernard Vouilloux, eixo funda-mental, pelo legado da modernidade “baude-lairiana”. Entre o século XX e a contempora-neidade sobressai, a par de manifestações emovimentos de vanguarda das primeirasdécadas, um olhar sobre a arte portuguesacontemporânea que se dá a conhecer pelaobra da pintora Paula Rego em diálogo comum dos expoentes da literatura portuguesa.O estudo comparativo que Kelly Basílio, acoordenadora deste volume, faz de um con-junto de quadros de Paula Rego, expostos noCentro de Arte Moderna Azeredo Perdigãoem 1999, a par do romance O Crime doPadre Amaro de Eça de Queirós, que a pinto-ra toma como referência, projecta e denota,numa abordagem de aprofundamento simbó-lico, um mundo movido por desejos e paixões.Mas o cinema, que nesta antologia se assu-

me como um “farol dos tempos contemporâ-neos”, “realizando esse sonho de fusão dasartes que outrora tinha ambicionado a ópera”,também ele se apresenta como um póloagregador, de forma a equilibrar aqui o cen-tralismo da literatura que, como é dito na

apresentação da obra, reflecte os interessese temas de especialização dos próprios orga-nizadores.Da imagem literária e visual passamos para aimagem em tempo real, para o “espectáculopor excelência do século XX”, em que asimagens cinematográficas se fundem e rein-ventam com a música, a pintura e a arquitec-tura, sejam “arquitecturas” abstractas e efé-meras, feitas de luz e sombra, concebidaspor cineastas puristas como Bresson ouDryer, sejam “arquitecturas” urbanas em rea-lizações que, desde os irmãos Lumière, ele-gem a cidade em toda a sua complexidadecomo protagonista central de “um cinema porvir”; desde um cinema construído com cená-rios em tamanho natural, “palácios de cine-ma” em que coabitavam estilos e imaginários(onde se inclui The Phantom of the Operacom a gigantesca Ópera de Paris reconstruí-da em escala real), ao cinema hiper-estiliza-do que, como é o caso de Eric Rohmer, emPerceval le Gallois (adaptação de um textodo século XII), recusa qualquer ilusão natura-lista buscando formas na iconografia e nasiluminuras medievais.Partindo do mundo natural, as várias artesentroncam as suas raízes no domínio da fic-ção, num “como se” denominador comum atodas elas. Como nos diz George Steiner,cujos estudos comparatistas interartes tam-

bém caberiam, como referência, neste volu-me, todas elas nos trazem interpretação queé “compreensão em acção”, simultaneamen-te analítica e crítica, tornando o sentido sen-sível, pondo em evidência a inteligência cria-dora, no que respeita ao processo intelectual.Apesar de algum constrangimento estruturalque advém do carácter englobante do projec-to há, por parte dos organizadores, umentendimento da importância e alcance dosvários questionamentos que vão sendolevantados no domínio das inter-artes. Nestesentido, para além das relações semânticasou intersemióticas entre diferentes domíniosartísticos e épocas, surge como fundamentalo próprio processo de busca que resultadesse olhar cruzado e deslocalizado relativa-mente às nomenclaturas mais tradicionais,com novos ângulos de abertura, desbravan-do uma hermenêutica em processo, seja peloartista, por exemplo pelo actor ao interpretarum clássico, seja pelo trabalho da crítica emgeral, que põe em acção as matérias comque se confronta, repensando a arte comoapreensão activa, incorporação e referência.Essa busca, acto e experiência do acto decriação no seu sentido pleno, que Genette, apartir da sua formação literária, lança comodesafio no início deste livro (muito para alémdas matérias que são convocadas), torna-se,ela própria, uma manifestação tão subtilquanto concreta da inquietação que alimentao projecto enquanto “conhecimento estético”,como o designa Schaeffer.No momento em que está a decorrer naGulbenkian o importante fórum cultural OEstado do Mundo, questionando os novoscaminhos do pensamento e respostas face“ao que é ser humano”, há um espaço que seabre também aqui para aprender a “experiên-cia do sentido” resultante do enigma da cria-ção, tal como, seguindo ainda o pensamentode Steiner, “se nos depara no poema, na pin-tura, na afirmação musical”, sugerida estaúltima como estando “mais próxima das nas-centes do ser” que engendram as formasvitais.Ouçamos então o que estas Artes nos ofere-cem a ler, em promissor concerto de estreia(Campo das Letras, €21)..

TEXTO ROSÁRIO SANTANA PAIXÃO

Docente Universitária (F.C.S.H. - U.N.L.)

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DIAS DO JUÍZO / LIVROS

Não é um diário, nem uma autobiografia,muito menos uma ficção. São notas, aponta-mentos, uma deriva, coisas que foi vendo,ouvindo, crónicas dos passeios pela cidade,coisas de livrarias, cafés, jardins, cinemas,teatros, coisas de praças e calçadas, de jor-nais. Coisas tão marcantes, desde as bolas-de-Berlim da pastelaria do senhor Aires aospratos de caril do Canas, em Campo deOurique, às tertúlias do Saldanha, no antigocafé Monte Branco, com a Luiza Neto Jorgeaté, mais recentemente, aos filetes de peixe-galo oferecidos aos dramaturgos Jon Fosse,David Harrower ou Judith Hertzenberg, norestaurante Primavera, no Bairro Alto, pertoda que foi a casa dos Artistas Unidos. Desdeo êxtase perante O Vale Era Verde, de JohnFord, ou Play Time, de Jacques Tati, à como-ção perante Strehler, Pasolini, Brecht, Renoirou Hitchcock, aquilo que a memória não dei-xou morrer. E também Fiama, Ruy Belo ouCarlos de Oliveira. Um montão de gente, deideias e de obras. Jorge Silva Melo (n. 1948) chama ao seu livroSéculo Passado um “calendário privadosazonal”. É um registo para que se lembremde que houve um princípio e há uma conti-nuação. Que houve bons e maus, deus e odiabo, como deve ser. JSM é um respigador,no sentido em que Agnès Varda quis mostrarno seu filme Respigadores e a Respigadora,os recolectores daquilo que cai, que é deixa-do para trás. O que se conquista com asmãos e os olhos para se lhe dar serventia.

JSM dá serventia aos acontecimentos, fixa-os, envolve-os e projecta-os num universoseu, irremediavelmente cinematográfico eliterário. Ou seja, fá-los viver no texto.Arruma-os, constrói-lhes uma memória futu-ra.É uma espécie de anti-Robert Walser, oescritor que tentou desesperadamente desa-parecer do mapa, que lutou até ao fim peloapagamento de si mesmo, caminhando,caminhando para o vazio, para a neve, parao escuro de João César Monteiro, cineastamuito caro a JSM. Ao ler este conjunto de textos saídos em jor-nais e revistas, folhas de sala, mostras, catá-logos, a maior parte no extinto Mil Folhas doPúblico, fica-se com a feliz sensação de queJSM andou estes anos todos na apanha dafruta, nas vindimas, neste caso, à caça de fil-mes, de teatros, de livros, de pessoas, dequadros, de músicas, andou na apanha daliteratura. Fala de si o essencial para se per-ceber quem é, mas fala sobretudo dosoutros, do que deles fica. Da vida real, naacepção que Simone Weil dá à vida, “mais detrês quartos, composta de imaginação e deficção”, frase que surge em epígrafe. Todos os textos deste livro de mais de 500páginas são cenários literários, a linguagemé literária, as questões que coloca, as dúvi-das e as explosões de raiva são literárias. Etudo aquilo aconteceu. Tem o mérito de darao leitor a impressão de que podia ter sidotudo inventado – e nós gostaríamos namesma –, de que nada disto se passou, queaqueles filmes não existiram, nem as pes-soas, nem os teatros, nem a Almirante Reis,o Prevért, a Sophia, o Bresson, a Glicínia, oBergman, o Rex, o Chaplin, a Isabel deCastro, o Antonioni, o café Monte-Carlo, oMário Dionísio, a Cornucópia, o AntónioSena, os Artistas Unidos. Mas existiram, exis-tem. Não é mentira. As fotos a preto e bran-co não mentem. E as do Augusto Brázio e doJorge Gonçalves são também imensamenteliterárias. O livro de JSM é circular. O passa-do e o presente pertencem ao mesmo bolo.Um livro iniciático e de maturidade. A suaescrita, sendo ao mesmo tempo confessio-nal, poética, ideológica, ensaística e memo-rialista, não altera o registo muito pessoal eenvolvente do autor, ágil, escorreito, entre ojornalístico e o ficcional, o que para o leitor éum bónus. Lê-se de uma assentada. Vai do

deslumbramento à desilusão, da utopia àrevolta, da liberdade à denúncia da cegueirapartidária do pós-25 de Abril. Nele volta-se sempre ao início, ao dia em queo autor comprava cromos na papelariaBeautex, da Rodrigo da Fonseca, em que liaa Ilha do Tesouro na cama, convalescente,enquanto o sol primaveril chegava com o“cheiro a sabão azul e branco, barrelas ebanhos ao domingo de manhã”, ao dia emque foi suspenso do colégio dos Maristas,por ter feito uma redacção sobre PatriceLumumba, quando ele foi assassinado ou aodia em que, com 19 anos, esteve preso emCaxias, por manifestar-se pelo Ho Chi Min,por não ter “ligeireza nas pernas” para fugir àpolícia. Era o JSM, míope, pouco atleta, car-regando o seu Barthes pelo Campo Grandeabaixo. Entre Letras e as cercanias doJardim das Amoreiras, o seu espaço vital, demiúdo, de crescimento e de agora, a “suacasa de sempre”.Degraus, muitos degraus, uma soma de ges-tos e de vozes, muita gente dentro, muitacomoção, algumas mortes e também cente-nários. Muita literatura e muitas fitas, muitosactores, actrizes, poetas, pintores, um armá-rio com um grande espelho dentro.Magnífico. Um livro a quente, muito próximode nós, um tratado dos dias passados, podedizer-se assim, num século tão próximo e játão antigo. Encontramos aqui também umlivro corajosamente político, bastando paraisso ler o texto “Eu vi nascer o 25 deNovembro muito antes”, datado de 1999. Alise conta, citando a Morte de Danton, deBüchner, como em Portugal a “cegueira dou-trinária mata a vida das ideias” e como essalógica já havia começado na esquerda, em1968, na Alameda da Universidade, quandoum dirigente estudantil, hoje um conhecidopolítico do PS, meteu no bolso, à socapa,uma moção, em nome dos “altos interessesestratégicos”. Era a golpaça, um gesto quepara JSM marcou o “início do fim de umaluminosa inquietação”.Como escreve o Rossellini, “as coisas esta-vam ali, para quê manipulá-las?”. JSM nãofez mais do que pôr neste livro o que ali esta-va (Cotovia, 2007, €30)..TEXTO JAIME ROCHA POETA E DRAMATURGO

O RESPIGADOR DE MEMÓRIAS

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Levantam-se múltiplos problemas quando areflexão é sobre as limitações inerentes àcriação e divulgação de propostas performa-tivas: a sua essência rejeita a documentaçãoe, como tal, impede um acesso posterior, dia-crónico e histórico à maior parte das propos-tas cujo lastro objectual é inexistente. Nestesentido, a organização de uma bienal de per-

formance (e não é demais lembrar a amplitu-de de que o termo se reveste na língua ingle-sa, que diferencia a performance art dasdemais formas de espectáculo, a que chamaindistintamente performances) serve umduplo propósito: por um lado, concede desta-que mediatizado a um conjunto de interven-ções artísticas de âmbito alargado (ocorriamem diversos locais da mesma cidade e emmodelos tão antagónicos como as grandio-sas apresentações de Marina Abramovic

durante uma semana no foyer doGuggenheim Museum ou uma série de apon-tamentos radiofónicos de uma hora inventa-dos por treze artistas plásticos). Por outrolado, abre caminho – por ser uma bienal con-cebida pela principal historiadora da perfor-mance art, RoseLee Goldberg – para serepensar a problemática da documentaçãoem artes cénicas e de que forma a memóriae o trabalho crítico (não apenas “dos críti-cos”) exercem aqui funções incontornáveis.Não é portanto de espantar que, seguindo-seà edição inaugural da bienal Performa, emfinais de 2005, sob direcção de Goldberg,surja com naturalidade a organização de umlivro. A historiadora e curadora dirige igual-mente esta publicação, intitulada Performa |New Visual Art Performance, que retratacada um dos momentos que invadiram acidade de Nova Iorque entre 3 e 21 deNovembro de 2005. Estão lá as instalações,os espectáculos de dança, os concertos, osfilmes musicais, as conferências-demonstra-ção, as transmissões de rádio, as reconstitui-ções históricas. Por ordem de estreia na bie-nal, documenta-se de forma vária o trabalhode perto de uma centena de artistas.Desde logo, é curioso verificar como a distan-ciação crítica é absolutamente rejeitadanesta hipótese de documentação: aproxi-mando-se do modelo de antologia, a publica-ção reúne fotografias dos espectáculos (nas320 páginas há cerca de 300 fotos a cores),descrições, stills dos filmes, entrevistas comos artistas, notas de trabalho, esboços eguiões, partituras manuscritas, folhas desala, textos da comissão de curadores apre-sentando os projectos e a sua consecução,convites, até as amostras de sedas para con-feccionar o vestido que Meryl Streep vestiriaem The Music of Regret, o filme musical deLaurie Simmons no qual a actriz contracena-va com bonecos animados. Ou seja, o livrointegra tudo o que esteve em torno da fabri-cação de um festival destas dimensões, numprojecto editorial que Goldberg diz ser “opanorama definitivo da performance contem-porânea: catálogo, guia cultural, diário deartistas e ferramenta de referência” (a verten-te “guia cultural” explica-se pelo facto de olivro incluir uma ficha de cada uma das insti-tuições parceiras que acolheram os projec-tos, com um mapa e a história do espaço).Mas, como dizia, são os próprios artistas, ou

os comissários que lhes encomendaram asobras, os chamados a reflectir sobre o suces-so e importância dos projectos. A presençado público e a visão da crítica especializadanão são prioritários nesta antologia “porvezes directa, por vezes oblíqua”, escreveGoldberg, assumida enquanto prolongamen-to de uma experiência de carácter artístico e,dessa forma, assimilando as idiossincrasiasdaquilo que poderia ser um “diário colectivode artistas”. Porém, é a própria presença dopúblico aquilo que Hal Foster, no prefácio,enuncia como sintoma da especificidade dabienal: “Embora consciente da existência deum mercado da arte, Performa não se lhesubmete, e por isso consegue misturar artis-tas relativamente emergentes com os consa-grados. Também não está demasiado depen-dente das instituições, embora não tenhafobia delas, e por isso atrai públicos diversosa vários espaços, mais ou menos familiares,que são ocupados de formas inesperadas.Pelo caminho, Performa não apenas reacti-vou um lugar para a performance art comotambém recriou uma comunidade em torno

disso”. Portanto, a reanimação de um públicoé um dado fundamental para aquilatar a per-tinência de tamanha empresa; já a recepçãocrítica, que permitiria afinal “ler” o alcancedesta bienal, não participa na documentaçãooficial. Mas não será isso já um programa?(Performa / Distributed Art Publishers, 2007,€29,90)..

TEXTO MÓNICA GUERREIRO

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ENSAIO

BOLONHAUM CONTRIBUTO PARA PENSAR A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA PÓS-BOLONHA

Desde há alguns anos que o ensino superior vem sofrendo, naEuropa, um processo de reorganização que visa o reconhecimentomútuo de cursos e graus, facilitando-se, assim, a mobilidade de estu-dantes, de professores e de profissionais no espaço da UniãoEuropeia (UE).Este processo foi desencadeado pela Declaração da Bolonha – assi-nada a 19 de Junho de 1999 – e tem sido acompanhado e aprofunda-do nos subsequentes conselhos europeus de ministros do EnsinoSuperior (Praga, 2001; Berlim, 2003; Bergen, 2005), numa tentativade harmonizar os sistemas universitários dos diversos países, nomea-damente quanto ao número e duração dos respectivos ciclos (defini-ram-se três, que se estendem por um período não superior a oitoanos: Licenciatura – três a quatro anos; Mestrado – um a dois anos;Doutoramento - 3 anos); à definição clara do perfil e habilitações pro-fissionais exigíveis no primeiro ciclo, baseadas no tempo investidopelo estudante em cada matéria (aferição através do sistema europeude transferência e acumulação de créditos, ECTS, que facilita o reco-nhecimento do percurso já efectuado noutra instituição de ensino); equanto à implementação de um diploma oficial bilingue, que fornece-

rá a cada graduado uma descrição detalhada do curso e respectivoplano de estudos.Parte deste projecto já se encontra implementado – há muito que éuma realidade a mobilidade de estudantes e de professores, atravésdo Programa Sócrates e da Acção Erasmus –, embora alguns descon-fiem que todo o esforço tem como alvo principal a redução do investi-mento no ensino superior (problema efectivo naqueles países ondesomente o primeiro ciclo é financiado por fundos públicos e onde asuniversidades estão sob a pressão para reduzir para três cursos dequatro e, às vezes, de cinco anos).Pessoalmente, penso que este processo cria uma oportunidade pararever e actualizar os curricula dos cursos, que de outra maneira difi-cilmente seriam alterados, devido ao peso da rotina; e, num campocomo o da dança, proporciona uma ocasião única para a implementa-ção de novos cursos, enformados segundo uma perspectiva efectiva-mente contemporânea.Ora, interessa-me antes de mais perceber se este esforço de harmo-nização favorecerá igualmente a diversidade. Em minha opinião, adiversidade é o principal incentivo à mobilidade. Que outra razão,

A TRANSFORMAÇÃO DO ENSINO SUPERIOR EUROPEU, PROVOCADO PELO PROCESSO DE BOLONHA, SÓ AGORACOMEÇAA REVELAR AS SUAS POTENCIALIDADES. GIL MENDO, REPUTADO ESPECIALISTA NA ÁREA DA DANÇA, REPEN-SA AQUI AS IMPLICAÇÕES DESTA MUDANÇA PROFUNDA NO ENSINO ARTÍSTICO, CONSIDERANDO-A UMA OPORTU-NIDADE ÚNICA PARA APROXIMAR A ESCOLAS DE UM TECIDO CRIATIVO, TAMBÉM ELE, EM MUTAÇÃO CONSTANTE.

TEXTO GIL MENDO

DR

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ENSAIO

senão a enriquecedora experiência da diferença, terá um estudantepara decidir frequentar uma instituição estrangeira? A diversidadeencontra-se também no âmago das artes contemporâneas e é, simul-taneamente, causa e consequência da transdisciplinaridade. O cruza-mento das diversas disciplinas gera objectos artísticos inclassificáveissegundo os cânones tradicionais, mas que não apontam necessaria-mente para a instituição de novas áreas. Se pensarmos em exemplosde disciplinas artísticas recentes – como a fotografia, o cinema, ovídeo, a multimédia e as artes digitais –, reconheceremos que seencontram interligadas pelo modo como os criadores se apropriamdos avanços tecnológicos. Para aceitar que a criatividade que umartista desenvolve numa dada área possa ser também aplicada nou-tra, julgo mais relevante, pois, que o sistema facilite a mobilidadeentre cursos e disciplinas, de modo a que quem invista numa perspec-tiva transdisciplinar possa ir tão longe quanto deseja. Igual princípio seaplica a diferentes abordagens e organizações curriculares de umamesma disciplina. No caso do ensino superior da dança, e conside-rando que uma Escola Superior de Dança se integra num instituto,numa faculdade ou num campus universitário, onde se leccionemmuitas outras licenciaturas, é expectável que os seus curricula mani-festem abordagens diversas, conforme se incluam em faculdades deArtes Performativas, de Artes Visuais ou de Motricidade Humana. Eesta multiplicidade não é necessariamente nociva. Perspectivas diver-gentes permitirão que, no início do primeiro ciclo, os estudantes optempela formação que mais lhes convier, possibilitando-lhes, ainda, umacorrecção de escolhas ao longo do seu percurso académico sem quedesaproveitem o tempo e o esforço já investidos. Naturalmente, estaabertura só se concretizará mediante a definição de um sistema apro-priado de créditos ou, em caso de mobilidade, se se puder substituiruma matéria do curso original por outra, leccionada pela escola dedestino, que melhor sirva as finalidades do estudante. A mobilidade,note-se, não envolve obrigatoriamente viagens de longa distância.Implica, isso sim, a possibilidade de avançar, sem ficar preso às esco-lhas ou possibilidades passadas.A minha experiência como professor de uma escola superior de dançapermite-me supor que a mobilidade e a diversidade serão mais efica-zes no segundo ciclo (Mestrado) que no primeiro (Licenciatura).Devido ao tempo que um estudante passa na escola no primeiro cicloe à quantidade de trabalho de grupo exigida, não penso que seja rea-lista, embora não deva ser de todo impossível, que complete noutraescola secções inacabadas da licenciatura (ser-lhe-á obviamentemais fácil fazer aí os ciclos seguintes). Os cursos devem, todavia, seridealizados para permitir que o aluno adquira uma autonomia progres-sivamente mais ampla, incentivando a definição de objectivos nodecurso do plano de estudos.Sublinharia, então, algumas das aptidões que, a meu ver, deveriamser desenvolvidas no primeiro ciclo: criatividade, improvisação, bases

técnicas sólidas, trabalho em grupo, integração – em sentido lato – dadança na cultura, conceptualização, análise e fruição da dança, meca-nismos de produção, concretização de um projecto concreto.Acrescentaria que, numa escola superior de dança, este ciclo sedeveria concentrar na prática e na experiência artísticas contemporâ-neas. Acrescentaria, também, que este seria o momento para a esco-la promover um relacionamento próximo com o meio, mais ainda comos artistas e os profissionais, que maior impacto e aceitação encon-tram entre os alunos. Por fim, incluiria cadeiras pedagógicas nos seuscurricula, acrescentando-lhes também um trabalho de campo dealcance pedagógico. Acrescento esta vertente didáctica por duasrazões fundamentais: alargamento da perspectiva social do futuroartista que, testando a comunicabilidade e adequação das ideias econceitos por si imaginados, solidifica a sua posterior integração nacomunidade; acautelamento de uma prática e pesquisa artísticas for-tes para aqueles que, mais tarde, optem pelo ensino.Nem sempre é fácil manter a renovação permanente do quadro doensino artístico universitário. Sê-lo-á mais, certamente, em paísesmenos burocráticos, como a Holanda, o Reino Unido, ou os paísesescandinavos. De onde eu venho, devo dizer, é bastante difícil. A roti-na é assassina e os procedimentos de uma instrução universitária exi-gem muita rotina… Necessitamos, então, de um contacto regular comos artistas que já se profissionalizaram, embora nem sempre hajaverba para pagar estas colaborações pontuais. Não obstante, atrever-me-ia a sugerir que o ensino superior de dança se organizasse àsemelhança das práticas seguidas na formação em exercício, isto é,que a maioria da aprendizagem se fizesse através de uma sucessãode workshops, onde se trabalhasse a técnica, a improvisação e acomposição/coreografia, e não, como hoje acontece, pela frequência,semana após semana, das diversas disciplinas. É impossível conce-ber uma escola superior de dança que se dedique à dança e à perfor-mance contemporâneas mas que funcione à velha maneira de umacompanhia de reportório. Àqueles que estejam a considerar a hipóte-se de fundar uma escola superior deste género, aconselharia quereduzissem o corpo docente permanente, optando por convidar, cadaano, o maior número de professores externos, mantendo assim umarelação permanente com o meio, ao mesmo tempo que evoluem comas suas transformações.O segundo ciclo, pelo contrário, deve ser mais flexível, embora natu-ralmente mais exigente em termos académicos e artísticos; é neste,também, que se pode antecipar uma aplicação mais maleável dosprincípios da mobilidade, da diversidade e da mais efectiva autonomiado estudante. Um Mestrado pode organizar-se em colaboração comuma outra escola ou universidade, mas também com o próprio meioartístico (espera-se, aliás, que o processo da Bolonha estenda a todosos países europeus a possibilidade de creditar a experiência artísticaprofissional para aceder directamente a um Mestrado, hipótese que

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resolveria muitas situações bicudas). Igualmente devem ser aceitesneste novo espaço universitário os Mestrados e os Doutoramentos emartes, cujo objecto seja o processo da criação e, a tese, o espectácu-lo propriamente dito. Uma nota final para confessar que, embora tenhatentado ser optimista, me sinto bastante insatisfeito – senão mesmofrustrado – com o fosso que, em muitos países, entendo existir entreo ensino superior de dança e o campo profissional da performancecontemporânea. Há certamente razões para esse divórcio, algumasdas quais já enunciei: a rotina, a burocracia, as faculdades que, esmo-recidas, prosseguem como se o tempo tivesse parado e, também, ospreconceitos de ambos os lados. Alguns dos actuais projectos de edu-cação profissionalizante mais estimulantes e bem-sucedidos optarampor se desenvolver à margem do ensino universitário ou, por outrolado, não encontraram o devido acolhimento nesse mesmo sistema.Espero que a actual reorganização do ensino superior europeu permi-ta vencer algumas destas distâncias, pois os artistas e profissionais dadança, como qualquer outra pessoa hoje em dia, podem ver-se naposição de necessitar, mais cedo ou mais tarde, de um reconhecimen-to académico, de um grau, para aceder a lugares para que têm espe-cial vocação (ou arriscam-se a vê-los preenchidos por quem possua

menos preparação, mas qualificação superior).Não deixa de ser verdade que muito do trabalho e da pesquisa leva-dos a cabo pelas companhias não será nunca substituído pelo laboracadémico. É importante que se reconheça esta evidência para quenos possamos concentrar no que deve ser contemplado por uma for-mação superior, bem como as matérias que, parcialmente abordadas,devam ser objecto de parcerias a estabelecer entre as instituiçõesacadémicas, as companhias e os artistas que trabalham individual-mente. Esta colaboração permitirá ultrapassar a rigidez da educaçãouniversitária, que se espera não resumida a ciclos, graus e institui-ções, mas centrada apenas na arte, nos artistas e no seu crescimen-to, na sua necessidade de aprofundar a pesquisa e de partilhar resul-tados. Pois só se pode estudar o que efectivamente acontece e, sema proliferação de objectos artísticos, todo o discurso académico se tor-naria irrelevante..Versão portuguesa de Miguel-Pedro Quadrio de uma conferência que Gil Mendo

proferiu no dia 5 de Março de 2005 no âmbito do congresso “Inventory: Dance

and Performance”, organizado pelo Tanzquartier Wien e comissariado por

Martina Hochmuth e Georg Schöllhammer.

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