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HVMANITAS - Vol. L (1998) A ALCUNHA: CONFIGURAÇÃO LINGUISTICA DE UM CONTINUUM AFECTIVO (OBSERVAÇÃO DE UMA MICRO-SOCIEDADE DE TIPO CLÂNICO)* MARIA FILOMENA A. SARAIVA DE CARVALHO P. BRITO Técnica Superior da Faculdade de Letras de Coimbra I. Comunidade e fundamentação ideológica «Eles vêm de um meio onde os valores andam invertidos. A rua, principalmente nas grandes cidades, por ser escola prática dos vícios, imprime-lhes no espírito o natural desprezo pela virtude. Os bons, para eles, são os maus. Se há um perverso, é o melhor de todos. É obra muito difícil colocar as coisas no seu lugar». PAI AMÉRICO 1 (sem indicação de lugar), legenda de foto da Ρ página de O Gaiato, Ano LXVIII, 1237, de 10 de Agosto de 1991. Mais do que o espaço colectivo onde se entrecruzam passos e percursos anónimos, a rua é o espaço agonístico de forças que se digladiam. Escola subliminar e obscura do vício, oferece, à luta individual pela sobrevivência, os "O presente artigo baseia-se no capítulo (destinado a trabalho curricular de maior envergadura, onde eram estudadas várias — e diversificadas — micro-sociedades, rurais ou não- -rurais) dedicado ao exercício e prática da alcunha na Obra da Rua fundada pelo Padre Américo. 1 Desde logo, Padre passou a ser substituído muitas vezes por Pai — o que, sendo exactamente a mesma coisa, tem para nós um carácter mais vincadamente afectivo. Cf. o testemunho do MANUEL "COCO", já avô, in O Gaiato, Ano XLVI, 1197, de 27 de Janeiro de 1990, p. 3: «Recordo, com muita saudade, os primeiros anos que passei [...] na Casa do Gaiato de Miranda do Corvo. Tenho tantos anos de Casa quantos a Obra da Rua de existência; e apenas mais três de vida,

observação de uma micro-sociedade de tipo clânico

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HVMANITAS - Vol. L (1998)

A ALCUNHA: CONFIGURAÇÃO LINGUISTICA DE UM CONTINUUM AFECTIVO

(OBSERVAÇÃO DE UMA MICRO-SOCIEDADE DE TIPO CLÂNICO)*

MARIA FILOMENA A. SARAIVA DE CARVALHO P. BRITO Técnica Superior da Faculdade de Letras de Coimbra

I. Comunidade e fundamentação ideológica

«Eles vêm de um meio onde os valores andam invertidos. A rua, principalmente nas grandes cidades, por ser escola prática dos vícios, imprime-lhes no espírito o natural desprezo pela virtude. Os bons, para eles, são os maus. Se há um perverso, é o melhor de todos. É obra muito difícil colocar as coisas no seu lugar».

PAI AMÉRICO1 (sem indicação de lugar), legenda de foto da Ρ página de O Gaiato, Ano LXVIII, N° 1237, de 10 de Agosto de 1991.

Mais do que o espaço colectivo onde se entrecruzam passos e percursos anónimos, a rua é o espaço agonístico de forças que se digladiam. Escola subliminar e obscura do vício, oferece, à luta individual pela sobrevivência, os

"O presente artigo baseia-se no capítulo (destinado a trabalho curricular de maior envergadura, onde eram estudadas várias — e diversificadas — micro-sociedades, rurais ou não--rurais) dedicado ao exercício e prática da alcunha na Obra da Rua fundada pelo Padre Américo.

1 Desde logo, Padre passou a ser substituído muitas vezes por Pai — o que, sendo exactamente a mesma coisa, tem para nós um carácter mais vincadamente afectivo. Cf. o testemunho do MANUEL "COCO", já avô, in O Gaiato, Ano XLVI, N° 1197, de 27 de Janeiro de 1990, p. 3: «Recordo, com muita saudade, os primeiros anos que passei [...] na Casa do Gaiato de Miranda do Corvo. Tenho tantos anos de Casa quantos a Obra da Rua de existência; e apenas mais três de vida,

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estranhos parâmetros dos códigos de honra marginais, que negam a liberdade.

A rua é um mal.

Ε foi para «colocar as coisas no seu lugar», ou seja, para tirar os garotos

da rua e dos «lugares clássicos da piolhice»2, e lhes oferecer o sabor bom e

alegre de ter um lar — casa sua, onde os esperam a cama, com lençóis limpos

(«eh pá, que coisa tão boa!»), e a mesa, com a refeição («eh pá, temos conduto! »3)

— onde podem viver em família, crescer e realizar-se... por tudo isto é que

nasceu a Casa do Gaiato.

A rua - que lhes incutira um espírito de fratria com o seu "código de

honra" próprio4 que não admite hesitações, uma ideologia rude, mas de

fortíssimos laços de endogenia, cuja transgressão se paga com (in)justo castigo...

—, a rua é um mal. Para o combater, é necessário dar aos jovens outros valores

que substituam e compensem largamente o abandono daqueles, dourados sempre

por uma liberdade sem leis. Ε precisa uma "contra-ideologia" (se assim lhe

quisermos chamar), que é o caminho da rectidão de princípios — o que nem por

isso é menos duro, em exigência e fidelidade.

Ora tendo sido a rua de Coimbra o meio perversor tantas vezes percorrido

por um certo Sacerdote - tão singular, quer na vocação, tardiamente despertada,

quer na lucidez da sua pedagogia, então como hoje dificilmente compreendida...

— que a primeira Casa abriu aqui perto, em Miranda do Corvo, no dia 7 de

Janeiro de 1940. Três anos mais tarde, foi a vez da Casa do Gaiato de Paço de

Sousa; e a 4 de Janeiro de 1948 a do Tojal, Loures. Em fins de Setembro de

1957, é a Casa de Setúbal, que serve uma zona a tantos títulos carenciada. Em

Beire, Paredes, abriu também uma outra Casa, com «uma população de vinte e

pois entrei nela meses após a fundação [...] Quando a mãe Sara me dava banho com sabonete, eu ia pelas escadas acima [...]: "Pá... Meco, Pá... Meco, cheira a cabeça, sabor (se faz favor)". Daí surgiu um dos mais belos nomes: Pai Américo!» (o sublinhado é meu). Ε tratada por "Mãe" ou por "Senhora", dependendo da idade e/ou circunstâncias, a Mãe assumida de todos os rapazes. Cf. infra, nota 50.

2 PADRE AMÉRICO, Obra da Rua De como eu amparo o ardina. Coimbra (Casa do Castelo), 1942, p. 37-38: «Os lugares clássicos da piolhice, que em todas as terras têm seus nomes e na de Coimbra se chamam Bairro-das-Latas, Quinta-do-Poço, Arco-Pintado, Pátio-dos-Lázaros, Lojão, Casa-do-lnferno — são zonas tenebrosas, conhecidas somente de fachada, que lá dentro ninguém vai, a não ser a polícia! Eu também lá vou, por outras razões».

3 IDEM, ibid., respectivamente p. 23 e p. 24. 4 Engana-se quem supuser que no submundo não existam verdadeiros "códigos de honra".

Há-os; simplesmente, possuem outras características — a primeira das quais é serem à margem da Lei. Usam de um rigor apaixonado e inapelável, levadas que são ao extremo tensões emocionais opostas, tais como honra e vergonha, amor e ódio.

A ALCUNHA: CONFIGURAÇÃO LINGUÍSTICA 837

cinco rapazes, normalmente com certas dificuldades na aprendizagem escolar»5

—junto da qual se levantou o Calvário, destinado a doentes incuráveis ou em

fase terminal.

Em Lisboa, Porto, Coimbra e Lamego há Lares do Gaiato, para os que

estudam e/ou trabalham nessas cidades. Durante o Verão, vários turnos animam

as Colónias de mar de Azurara, Praia de Mira e S. Julião da Ericeira. Ocupadas

pelo Estado no tempo da independência, e com as instalações e edifícios acusando

o atravessar de situações de guerra, a Casa do Gaiato reorganiza-se agora em

Angola (Malanje e Benguela) e em Moçambique (Maputo).

Ε voltando de novo a Coimbra: pelo Natal de 1994 abria, associada à

Ordem Terceira, a Casa Abrigo Padre Américo, perto da zona da Baixa.

Assim é a Obra da Rua e os seus Padres: atentos à contemporaneidade,

qualquer que seja a época, o problema humano e/ou moral, as dificuldades a

vencer. Prontos a socorrer e a alimentar; pacientes a educar, a mostrar que o

Céu existe e a reencontrar esperanças aniquiladas; a curar feridas — do corpo

ou da alma, pessoais ou sociais6.

Sempre a mesma devoção inicial — e já lá vão quase seis décadas!

A constituição ideológica da Casa do Gaiato assenta em três princípios

basilares:

1 - Ama é o caos I a Família, o cosmos

«A massa é boa; o fermento da rua é que a derranca»7.

«[...] cama e talher individuais, espaço, abundância, carinho.

Géneros de primeira, bem cozinhados e bem servidos, em variedade e

suficiência. Assistir e corrigir à mesa, nos passeios, no banho, nas

camaratas, na igreja [...] Para desordem e fome, basta-lhes o tugúrio»8.

5 PADRE BAPTISTA, in O Gaiato, Ano XXXIX Ν? 1000, de 10 de Julho de 1982, p. IV. é Não é possível abordar em pormenor uma Obra como esta, sem que a expressão linguística

se molde ao conteúdo e traia o investigador, que acaba por deixar transparecer marcas de afectividade. No entanto, nem por isso é derrogada a cientifícidade do projecto de pesquisa levado a cabo.

7 PADRE AMÉRICO, Pão dos Pobres, Vol. II. In O Gaiato, Ano XLVIII, N° 1235, de 13 de Julho de 1991, p. 3.

8 IDEM, ibid, in O Gaiato, Ano XLVII, N° 1225, de 23 de Fevereiro de 1991, p. 3. O sublinhado é meu.

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«[...] são rapazes a mudar a pena, onde há muito que podar, a

modinho, não vá a gente fazer sangue»9.

2 - «Não há rapazes maus»

2.1. - Antes do mau fermento da rua

«[...] não há rapazes maus. Há dias, dei um pau de chocolate a

um catraio da rua; horas depois encontro-o, faço-lhe meiguices e pergunto

se gostou; tinha o chocolate na algibeira como eu lho dera. -É para a

minha mãe! Não há rapazes maus»í0.

2.2. A reaprendizagem de valores, na sua sociedade nova

a) da ternura

«Ontem, à hora da oração da tarde, vinha o irmão do "Laranja"

com uma embalagem de margarina nas mãos. Como estes garotos che­

gam do mundo dos restos, no geral, pensei que tinha guardado as so­

bras do pequeno-almoço. Enganei-me. Ao aproximar-se correu ao meu

encontro e retirou a tampa. Eram quatro grilos cercados de pétalas de

rosas, guardados como um pequenino tesouro.

[...] Desta vez, os grilos foram a chave para a abertura do seu

coração»".

b) da alegria de dar (-se)

«Nasci em Miragaia (Porto) e vim para cá com o meu irmão

porque a minha mãe não nos podia sustentar [...] Na Casa do Gaiato

como muito bem. E. aqui, sou como os outros [...]

Quando for grande é que vou dar coisas à minha mãe! Também

dou aos meus amigos... Quero ser camionista»12.

c) da auto-estima com projecção no futuro

9 IDEM, ibid, Vol. I. In O Gaiato, Ano XLVI, N° 1181,de 17de Junho de 1989,p.4. 10 IDEM, ibid., Vol. II, p. 117. In O Gaiato, Ano XLIX N° 1254, de 4 de Abril de 1992, p. 3. "PADRE MANUEL ANTÓNIO, "Vistas de dentro", in O Gaiato, Ano XLVIII, N° 1232,

de 1 deJunhodel991,p. 3. 12 CARLITOS "RUÇO", "Retalhos de vida", in O Gaiato, Ano XLVIII, N° 1244, de 16 de

Novembro de 1991, p. 2. O sublinhado é meu.

AALCUNHA: CONFIGURAÇÃO LINGUÍSTICA 839

É o que se adivinha no «aqui sou como os outros» do Carlitos Ruço. Ser

como os outros exprime o desejo pessoal, íntimo, da integração cósmica do

indivíduo, e a sua natural recusa da marginalidade. Por outro lado, este aqui é

sentido tanto em termos de sociedade endógena (isto é, igual aos outros Gaiatos),

como ainda se projecta, através do sou com valor modalizante de futuro, para a

sociedade exógena (capaz de se vir a situar, num quadro de igualdade de

oportunidades, no grande mundo exterior). Ε nessa medida também que surgem

os planos: o que eu quero ser. Ε os projectos são muitos e variados: camionista,

engenheiro, professor, piloto da TAP... sem faltar sequer um futuro Presidente

da República! — o que lhe valeu imediata atribuição de alcunha13! Sonhos

apenas, mas que se inscrevem nesse mesmo desejo de vir a ser um contributo

social válido. Foi o que quis dizer o Careca (a quem à chegada foi preciso dar

um bom banho e rapar o cabelo), ao afirmar «Quero ser um homem de res­

peito»14—ninguém acrescentou mais nada: fora ele a enunciar o plano máximo.

3 - Um completo sistema educativo

3.1. O contexto ambiental

3.1.1. De como viver em amor

«O que importa é [...] levar no próprio coração, como se fossem

nossas, as penas que desejamos aliviar»15.

«O garoto das ruas é um camaleão. Em casa, desobedece; a pe­

dir, é choramingas; com os outros, é refilão; nas ruas, é malcriado; às

perguntas, é mentiroso. Muda de cor e de estilo conforme os lugares e as

circunstâncias.

Porém, se ele percebe e sente que alguém no mundo o ama, quer

amar também, e é fiel»16.

13 Cf. adiante, III. Corpus. 14 PADRE MANUEL CRISTÓVÃO, "Encontros em Lisboa", in O Gaiato, Ano XLVIil,

N° 1245, de 30 de Novembro de 1991, p. 1. 15 PADRE AMÉRICO, Pão dos Pobres, Vol. II. In O Gaiato, Ano XLV1II, N° 1213, de 2 de

Novembro de 1991, p. 3. "IDEM. Obra da Rua, p. 23. O sublinhado é meu.

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3.1.2.0 contacto com a natureza (para dissipar a poluição

da rua)

«Temos de ter à nossa disposição os grandes e poderosos auxi­

liares do nosso sistema de educar [...]: o campo, as aves, as flores —

uma quinta»17.

«É a vida do campo [...] almas pequeninas em cata de borboletas

e de pirilampos - ai! tanta coisa linda que a gente aqui vê/»18.

3.2. As directrizes

3.2.1. O desabrochar do Homem — corpo e alma

«Se primeiro não se dá de comer a quem tem fome, não acredi­

tam nas nossas palavras e até deturpam as nossas intenções. O Evan­

gelho entra pelo estômago. A ordem das Obras de Misericórdia começa

pelo dar de comer a quem tem fome»19.

3.2.2. A pequena democracia doméstica, onde se educa

a) na liberdade responsável

«Desejamos dar à Casa do Gaiato a feição de casa deles, para

eles, governada por eles. Ε uma concepção de assistência inteiramente

nova e altamente revolucionária, que foge à rotinice clássica dos agentes

de vigilância, nas congéneres obras sociais. O miúdo assim à vontade,

no seu grande elemento, mostra-se e revela-se tal qual é»20.

«Como é possível prender e disciplinar vadios dentro de casas

abertas? Dando-lhes mui simplesmente justiça e verdade, mais nada»21.

17 IDEM (sem indicação de lugar), legenda de foto da 1i página de O Gaiato, Ano XLV1II, N° 1237, de 10 de Agosto de 1991.

,s IDEM, Obra da Rua, p. 22. 15 IDEM, Pão dos Pobres, Vol. I. In O Gaiato, Ano XLVI, N° 1186, de 9 de Setembro de

1989, p. 3. 20 IDEM Obra da Rua, p. 54-55. É este o espírito (e a letra) do lema que segue, emjeito de

sub-título, em cada número de O Gaiato: «Obra de rapazes, para rapazes, pelos rapazes». 21 IDEM, Pão dos Pobres, Vol. II. In O Gaiato, Ano XLIX, N° 1269, de 31 de Outubro de

A ALCUNHA: CONFIGURAÇÃO LINGUÍSTICA 841

b) na rectidão e na justiça

«A gente não pode nem deve abandonar os chamados rapazes

maus; antes, através dos seus defeitos, temos de conhecer e levantar as

suas qualidades [...].

A noite, à hora de marcar obrigações e dar avisos, eu coloco

sempre diante deles uma palavra grata à sua heróica fidelidade; e, desta

sorte, levam-se pelo brio onde nunca chegaram pelo medo»22.

Ε ainda nesta mesma coerência de pensamento que se desenvolve o recto

espírito de uma chefia responsável:

«[...] o "Veneno", rapaz refilão e turbulento, sobejamente co­

nhecido e temido do rapazio da Alta. Está, contudo, muitíssimo mo­

dificado para melhor e há-de vir a ser nomeado vigilante das Colónias

de Férias, a seu tempo»23.

«"Bê", chefe da casa 4 [...] é um líder nato, de consciência pu­

ra. Impõe-se aos rapazes com a mesma facilidade com que um pianista

domina o seu instrumento! [...]

A história [deste rapaz] [...] arrebatava-me. "Bê" dormiu com

um irmão e o pai bêbado, durante quatro anos, num carro velho nas ruas

de Lisboa»24.

1992, p. 4. Mas a Casa do Gaiato não se constitui panaceia para toda a rebeldia adolescente, as más inclinações, dramas ou taras congénitas de um passado que acompanha o mundo interior de cada rapaz. Tal como em qualquer outra família, pode acontecer que um dos filhos fuja de casa, em busca de aventura. Não são muitos, estes; e menos ainda os que não regressam. Normalmente voltam, frustrados pelo confronto com uma realidade que, agora, sabem re-avaliar criticamente; e. se tal não acontece, por fraqueza ou vergonha, é a Família que o vai buscar e o acolhe em alegria: «-0 Nuno fugiu! [...] Numa das minhas voltas a Lisboa, fui sobretudo por ele [...] Estava a correr alguns riscos... Ε se ele não quisesse voltar?... Era já noite. Subi num rufo as escadas do prédio, ansioso [...] O nosso reencontro foi breve e mudo [...] adivinhei que demorara tempo demais. Disse--Ihe da Casa do Gaiato como a sua verdadeira casa. Ele consentiu e regressou, livremente. Respeito total». — PADRE JOÃO, "Tribuna de Coimbra", in O Gaiato, Ano L, N°l 296, de 13 de Novembro de 1993, p. 2.

22 PADRE AMÉRICO, Pão dos Pobres, Vol. II. In O Gaiato, Ano L, N° 1280, de 3 de Abril de 1993, p. 4.

23 Cf a nota anterior. 24 PADRE ACÍLIO, "Setúbal", in O Gaiato, Ano XLIX, N° 1266, de 19 de Setembro de

1992, p. 1 e3.

842 MARIA FILOMENA BRITO

Do mesmo modo é cada um chamado à responsabilidade, sempre que

erra: o delito é ponderado, discutidas razões e atenuantes, ouvidos réus e

queixosos. São, como dizia o Padre Américo, «os nossos formidáveis tribunais»:

«Andamos em maré de tribunais [...] Quase todos os dias surge

matéria para julgamento.

No fim do jantar, com a malta toda de estômago bem aconchega­

do e a sala cheiinha de gente, o chefe-maioral pede licença para mandar

calar e chama os réus ao centro: Os que se "jogaram", hoje, às tangeras...

Os que fugiram do trabalho. Os que partiram isto ou aquilo. Os que não

foram à Escola ou fugiram dela [...]

-Quempartiu esta tina?! [da lavandaria].

[...] -Como foi isto?! - indaga o "Juiz".

O relato vai certinho. Os faltosos culpam-se e defendem-se, de

tal forma que toda a gente vê como as coisas se passaram [...]

O chefe está no seu posto. Analisa o custo do objecto partido,

utilizando uma linguagem acessível [...] Aplica castigo igual: -Vão os

dois ajudar a lavar a louça, um dia na copa.

Eu vejo tudo. Os cento e cinquenta, atentos e comungantes. O

chefe que eles elegeram. A formação da consciência de cada um. O dia

de amanhã, que irão construir»25.

' c) na abertura do coração

«Não é um estranho que se apresenta; é um filho que chega à

casa paterna [...] O garoto é medido com os olhos, fuzilado com per­

guntas, apertado de todos os lados, por todos, e, finalmente, carreado

em triunfo, até à sala de jantar. Não há melhor sala no mundo, para

receber garotos assim, do que a de jantar.

A sopa vai servir-se [...]

Às vezes, não é o garoto das ruas de Coimbra, mas sim o peque­

no vadio das feiras, que se apresenta [...]

Não há, à primeira vista, aquela afectividade escaldante que

costuma haver, quando chega o catraio de Coimbra; mas é de pouca

dura o tempo das cerimónias.

'' IDEM, "ibid.", in O Gaiato, Ano XLVI, N° 1192, de 18 de Novembro de 1992, p. 1 e 3.

A ALCUNHA: CONFIGURAÇÃO LINGUÍSTICA 843

Daí a nada entendem-se; são irmãos»26.

«"Encostap'ra lá!"—diziam os nossos gaiatos mais velhos, em

África (que viviam numa quinta depois do Estado ter ocupado a Casa do

Gaiato), sempre que, à hora do almoço, chegava mais um gaiatinho

daqueles que viviam nos lares do Estado.

Sempre aos domingos nos sentávamos à mesa seis e, no fim, ao

darmos graças, éramos de quinze a vinte [...]

A mesa era comprida e o banco encostado à parede. Era preciso

o aperto para dar lugar. "Encosta p'ra lá"—dizia sempre o Primo Velho.

Lugar no banco, na mesa e no peito!»27.

Nasceu a Casa do Gaiato por um imperativo verdadeiramente existencial:

a necessidade urgente de socorrer os mais desprotegidos, em tempo de guerra e

de crise, tendo a fome e a doença como pano de fundo quotidiano:

«O advérbio agora encerra dentro de si a actividade de uma vida

inteira; ele é a expressão e o valor real do tempo. Ontem e amanhã são

palavras mortas. Agora é o momento oportuno de trabalhar.

Nós temos de abrir a Casa do Gaiato agora (este nós és tu mais

eu)»28.

Ε o nós inclusivo29, que compromete cada leitor. Era a hora! Ε este agora

aconteceu um ano após o começo da II Guerra Mundial e repetiu-se muitas

vezes, sempre que se impunha salvar mais alguém dos males tecidos por uma

sociedade que só marginaliza, e não socorre.

26 PADRE AMÉRICO, Obra da Rua, p. 45-47. O sublinhado é meu. 11 PADRE TELMO, "Calvário", in O Gaiato, Ano XLVI, N° 1175, de 25 de Março de

1989, p. 1 e4. 28 PADRE AMÉRICO, Pão dos Pobres, Vol. II. In O Gaiato, Ano XLVIII, N° 1236, de 27

de Julho de 1991, p. 3. 29 Sobre a importância fundamental do conceito / sentimento deste nós inclusivo, tanto do

ponto de vista comunitário como sociolinguístico, veja-se adiante, II. 1. Como referência bibliográfica acerca deste conceito, bem como os de "opinion leader", infra mencionado (cf. p. 13 e nota 41) e "self-esteem", veja-se: JOÃO NUNO PAIXÃO CORRÊA CARDOSO, Sociolinguística rural. A freguesia deAlmalaguês. Coimbra, 1991, V + 236 p. + 128 anexos + 6 mapas (trabalho de síntese, inédito, apresentado em Provas de Aptidão Pedagógica e Capacidade Científica, à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra) — cf. a Parte IV; epassim.

844 MARIA FILOMENA BRITO

«O pequenino que chega, uma vez instalado no que é seu, logo

mostra o que viria a ser, se ficasse no meio onde estava [...]: -o gajo que

dorme com a minha mãe é pedreiro e trata-me mal, mas eu quando for

grande hei-de fura-lo com uma navalha.

A Sociedade gera monstros; estes inocentes são dos que mais

tarde se sentam no banco dos réus [...] todos se apresentam predispostos

à tuberculose e dispostos à prática do mal. De sorte que a Casa do Gaiato

serve dois fins: — livra-o do Sanatório e do Reformatório»30.

Sem orçamento que não fosse o fruto do trabalho dos membros da família

— obviamente escasso —, sentia-se a necessidade de o completar. Ε ao longo do

tempo, em família, se foi descobrindo e ensinando / aprendendo como do trabalho

se pode viver de cabeça erguida e ser-se «um homem de respeito»:

a) com trabalho-vida — trabalho-escola: dos campos, das galinhas e do

gado tratados com igual amor há-de sair o sustento de todos, em frutos, ovos,

leite e carne; de entre os rapazes, sairão cozinheiro e padeiro, prontos a fazer

refeições e também bolos de anos (mesmo se os festejados não sabem se é esse

o dia...); e mais o sapateiro; e o barbeiro, que, quando algum dos irmãos vai

para a tropa, ou tem piolhos (situação especialmente dramática à chegada), sabe

como aplicar-lhes a "máquina zero"... — trabalho-escola da vida.

Um dia, em 1944, nasceu a ideia de fazerem um jornal! Mais trabalho-

-escola: na redacção, feitura e venda do seu quinzenário31 que, actualmente,

tem uma tiragem na média dos 70 000 exemplares;

b) com o produto de Festas—espectáculos-convívio nas principais cidades

do País, em especial durante os meses de Maio e Junho, com o fim de dar a

conhecer melhor a Obra;

30 PADRE AMÉRICO, Obra da Rua, p. 55-56 (O sublinhado é meu). Esta mesma noção de que um ambiente de miséria, material e moral, «gera monstros» e violência — que o mesmo é dizer, uma guerra à escala micro-social —, encontrava-se já em legenda de foto, inserta entre as p. 38 e 39: «Cem por cento dos habitantes destes casarões fétidos tem assinatura nos hospitais, cartão no dispensário, bilhete no Desemprego e, nos cadastros, a marca digital». Cf., também para melhor avaliar do estrato social de onde recolhi alguns dos corpora, a nota 45.

31 A 5 de Março de 1994 completou 50 anos de publicação O Gaiato (ele próprio com a designação carinhosa de o famoso), título que foi sugerido pelo Henrique Pereira da Silva, do Lar do Ex-Pupilo [da Tutoria] de Coimbra (cf. testemunho de Alberto Augusto in O Gaiato, Ano LI, N° 1305, de 19 de Março de 1994, p. 3).

A ALCUNHA: CONFIGURAÇÃO LINGUÍSTICA 845

c) com donativos — ofertas de quem, sendo dessa Sociedade marcada­mente urban(izad)a, se deseja distanciar da indiferença dos demais:

«A migalha que agora me vais dar [...] tem um novo sentido e

um duplo valor que antes não tinha; vais-me dar por mor da guerra! [...]

dar a mão à criancinha que chora, à mãe que se aflige, ao estropiado que

geme, à ocupada de mãos arrochadas na cabeça com medo de dar à luz

Somos assim, tu mais eu, grandes cabos de guerra, soldados de

primeira linha, portadores do ramo de oliveira [.. .]»32.

As palavras de P.e Américo no início da Obra poderiam repetir-se sempre, pois a fome, a degradação moral, a doença, a miséria, sendo manifestações de violência, traduzem a existência da guerra — mas a uma escala micro-social.

Quem assim, em tempo de guerra, levava na primeira linha o ramo de oliveira, a Paz, era apenas

«[...] um padrezinho que fez seus estudos nas mangas benevo­lentes dos Mestres, que troca os casos no latim, que apanhou uma gata a gregoriano; que não tem família, nem bens, nem nome e dorme por esmola do seu Prelado nas palhas do Seminário»33.

Assim se considerava, humildemente, o Padre Américo.

É esta a micro-sociedade tipo que, nascida da sábia planificação de um espírito lutador, me propus abordar: bem ancorada no apelo urgente dos mais pequenos e desfavorecidos, cabendo toda no conceito familiar cristão, e a crescer cada dia com base no trabalho realizado e na auto-construção de cada um dos seus membros.

32 PADRE AMÉRICO, Pão dos Pobres, Vol. II. In O Gaiato, Ano XLVIII, N° 1240, de 21 de Setembro de 1991, p. 3.

33IDEM, ibid., Vol. II, p. 43. In O Gaiato, Ano XLVII, N° 1214, de 22 de Setembro de 1990, p. 3.

846 MARIA FILOMENA BRITO

II. Do exercício e prática da alcunha

1. Nas Casas do Gaiato, como é sabido, quase todos os rapazes têm uma alcunha34, tal como sucede com os indivíduos de qualquer micro-sociedade de inter-relacionamento vincadamente afectivo—pois é esse o pormenor relevante para que, numa entidade grupai, se desenvolva o tríplice panorama:

- existência de "artistas" criadores de alcunhas;

- indivíduos a quem são atribuídas, assentando-lhes "como uma luva", como sói dizer-se;

- e, por essa razão, co-presença de dois sistemas paralelos de denominação

antroponímica, sendo de muito maior vitalidade o sistema centrípeto: i. é, as

alcunhas.

No entanto, a comunidade de que me ocupo no presente artigo individualiza-se, em relação a todas as outras que analisei.

Por um lado, os indivíduos são-no no sentido pleno da palavra: i. é, são

"únicos", o que decorre do facto de se tratar (predominantemente) de uma

comunidade infanto-juvenil, pelo que a prática da alcunha é captada no seu

estado mais "puro", que é o da atribuição individual, precisamente. Aqui não se

34 A alcunha, nome-outro forjado propositadamente para um indivíduo em concreto, inscreve-se num discurso de rigor, uma vez que o retrata fielmente aos olhos do grupo e o individualiza, cumprindo exemplarmente a sua função social. Há quem lhe chame "o baptismo do povo". E, em todo o caso, o melhor "Bilhete de Identidade": porque "do povo", e porque, ao ser criado / outorgado / aprovado endogenamente, confere ao "povo" um PODER que lhe é indispensável como grupo. A alcunha ("brasão", como se diz nos Açores) é, além do mais, um sinal do acolhi­mento no seio do grupo — o que se revela de importância fundamental para a self-esteem e consequente equilíbrio psicológico do indivíduo, por não se sentir rejeitado. Como bibliografia actual e acessível sobre alcunhas, vejam-se os trabalhos dos Professores LUÍS POLANAH, Do uso e significado das alcunhas na freguesia de Castro Laboreiro. Sep. de Minia, 2- série, 1(1). Braga, 1978, p. 77-104; IDEM, "O estudo antropológico das alcunhas", in Revista Lusitana, (Nova Série), ns 7. Lisboa, 1986; e FRANCISCO MARTINS RAMOS, Alcunhas alentejanas. Estudo etnográ­fico. Monsaraz, 1990; além dos de MARIA FILOMENA BRITO, Estereotipia verbal e antroponimia. Alcunhas com base em tiques verbais. Sep. da Revista Portuguesa de Filologia, vol. XIX, 1987,29 p.; IDEM, "(Con)vivências em Coimbra. A alcunha no meio académico tradicional", in Actas do Congresso História da Universidade nos seus 700 anos: Universidade(s). História, memória, perspectivas (Coimbra, 5 a 9 de Março de 1990), Coimbra, 1991, vol. III, 1987, p. 331-144; e IDEM, Antroponimia motivada: harmonias e/ou dissonâncias. Sep. da Revista Portuguesa de Filologia, vol. XXI, 1997, 34 p.

A ALCUNHA: CONFIGURAÇÃO LINGUÍSTICA 847

observa o caso da transmissão aos descendentes, como acontece, por exemplo, nos meios rurais. Por outro lado, a singularidade que registei surge ainda em termos de conteúdo emocional, diferença essa que se situa no assumido conceito abrangente de família clânica.

Aqui, é de espírito de família que se trata e é ele que impede o apare­cimento de denominações ofensivas ou susceptíveis de magoar35 alguém a quem se olha como irmão. Como seria possível um tom fortemente irónico? ... e muito menos corrosivo.

As alcunhas não têm necessariamente de ser corrosivas e cruéis; e neste meio que se pretende seja educacional, há sempre esse cuidado — e nunca, nas muitas designações antroponímicas que aqui proliferam, fica prejudicada a adequação ao indivíduo a que se aplicam. Do mesmo modo e fora raras excepções (que têm mais a ver com circunstâncias e traços caracteriológicos particulares), nunca são consideradas ofensivas ou incómodas pelos seus portadores36; antes encaradas como fazendo parte do seu mundo e da sua auto-imagem. Por esse nome outro são conhecidos37, com ele assinam as pequenas notícias que escrevem no seu jornal38, e chegam a guardá-lo pela vida fora — para renascer nas grandes reuniões festivas39.

Não obedecendo, como lhe é próprio, a quaisquer normas rígidas de

atribuição, muito menos se exógenas, a alcunha pode existir, ou não! O seu

fautor40 — observador atento, artista exímio e um opinion leader 41nato (pelo

35 Cf. o que é dito adiante, na nota 44. 36 Uma excepção é, por exemplo, o caso do Valete: «A malta é que lhe pôs o apelido e o

rapaz vai aos "arames" [...] Tem de limpar a sala, a despensa e o corredor, lavar a loiça, pôr a mesa e servir)» — mas é irritação passageira, talvez mais própria da idade... A manter-se, a alcunha normalmente é assumida, e mais tarde evocada / retomada com saudade (cf. um outro Valete, hoje da Associação dos Antigos Gaiatos do Sul, com sede em Lisboa).

"Mesmo fora da comunidade grupai. Por exemplo, nas cidades onde vão vender O Gaiato. 38 Há mesmo casos de criação de "pseudónimos": o Lupricínio assina a sua colaboração

jornalística como Repórter X (do pseudónimo do notável jornalista Reinaldo Ferreira, nos anos 30; cf. Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Vol. 11, p. 179-180). Quando foi chamado ao serviço militar, surgiu um outro a seguir-lhe as pisadas: é o Cronista X(paxá não haver confusões!). Porém, tudo leva a crer que o pseudónimo de "jornalista" passou, em ambos os casos, ao tratamento habitual — tornou-se alcunha.

3' Reunem-se anualmente (com as respectivas famílias) as várias Associações de Antigos Gaiatos, fazendo crescer o já grande álbum de "retratos de família" da Obra da Rua.

40 São sempre várias pessoas — obviamente — mas o seu perfil pode "desenhar-se" a partir de traços comuns.

4 10 que pode ser dilucidado como sendo aquele a quem a consciência colectiva reconhece

848 MARIA FILOMENA BRITO

menos no que respeita a este pormenor da vida grupai) — pode outorgá-la a todos ou só a alguns indivíduos, e usar de diversos processos de criação/atribui­ção, uma vez que a nomenclatura de designação intra-grupal permite sempre uma considerável gama de denominações.

Deste modo, dentro desta família à escala alargada, eu poderei

encontrar, indiscriminadamente,

1. N.P. - nome próprio (prenome, associado ou não ao apelido)

Ap. - nome próprio (só o apelido)

2. H. - hipocorístico / diminutivo Ale. - alcunha de caracterização individual

Assim, é possível falar-se do Luís, do José Fernando ou do Rui Torres; do Ganhão ou do Fontes; do Meno, do Guido, do Totó ou do Toninho; do Lourinho, do Spock, do Chinês ou do Balão... — que o envolvimento afectivo tem de ser sempre o mesmo. Ε que não há família bem formada que estabeleça distinções, em Amor, entre os seus filhos!

Se é certo que qualquer destas designações-tipo cumpre ambas as funções sociais que dela se esperam—ou seja, a) uma perfeita identificação do indivíduo alcunhado e b) uma correcta localização dentro da tessitura do paradigma grupai —, é no entanto pertinente, em relação às que se incluem no ponto 2, que nos interroguemos sobre qual o critério que permitirá determinar onde acaba aquilo a que se chama diminutivo, ou hipocorístico42 (familiar) / e começa uma alcunha (de uso social).

Não creio que um critério baseado na dimensão da comunidade nos seja, aqui, de qualquer interesse, por se tratar, na prática, de um conceito expandido da família clânica tradicional de vivência católica43. Nesta micro-sociedade,

merecida superioridade (pelo menos no que respeita a esse pormenor da vida grupai)—a ponto de servir como sujeito de referência a padrões comportamentais de todo o grupo. Assim, à outorga fácil e rapidamente se seguirá a ratificação "plenária".

42 Nome carinhoso de uso familiar/restrito mas não necessariamente ligado ao N.P. desse indivíduo.

43 Também, por outro lado, todos sabemos como no seio de uma família se podem produzir e aplicar alcunhas — por vezes bem mazinhas... por vezes mesmo cruéis. Quando tal acontece, é porque se abriu uma linha de fractura nessa zona privilegiada (auto- e hetero-protegida) do nós inclusivo e se passou para a zona franca do nós exclusivo.

A ALCUNHA: CONFIGURAÇÃO LINGUÍSTICA 849

agora revisitada, apercebo-me de que qualquer das espécies antroponomásticas utilizadas—recolhidas por mim, ou não—são de idêntica intensidade afectivo--emocional, designam indivíduos inequivocamente posicionados dentro do círculo do nós inclusivo, que tem como característica ser fortemente protector. Em termos de operacionalidade, N.P., diminutivo, hipocorístico ou alcunha são socialmente utilizados como tipos de denominação antroponímica em tudo equivalentes.

Assim, permito-me adiantar, e com segurança, que todas estas denomi­

nações se inserem naquele continuum cujas posições extremas serão ocupadas,

respectivamente, pelo N.P. (total ou parcialmente utilizado) e, no outro pólo,

pela alcunha de caracterização individual — ficando normalmente indistintas

as situações intermédias.

2. Nem sempre é necessário, porém, proceder à criação e outorga de uma alcunha no seio desta micro-sociedade. Nalguns casos—e percentualmente, na generalidade, nos primeiros tempos da Obra da Rua —, ou a traziam já os rapazes, nome por que eram conhecidos no seu meio de origem:

«E regalei-me de dar fatias de pão ao "Barba Azul" e ao "Veneno" e ao "Malino" e a outros que me vinham pedir boroa fora das horas. Autênticos Gaiatos, com alcunhas da rua e gíria deliciosa, aí vinham eles em súplica confiante:

- Dê-me um bocadinho de pão, que eu agora já sou melhor e trato bem os outros gajos.

- Quem...? - Os outros meninos»44.

— ou traduziam já, por vezes, a marca de um limiar (quase ultrapassado) para a marginalidade:

44 PADRE AMÉRICO, Pão dos Pobres, Vol. I. In O Gaiato, Ano XLVI, N° 1186, de 26 de Agosto de 1989, p. 3. O sublinhado é meu. Mas sempre que se trate de nomes «desqualificados» por ofensivos ou obscenos, os mesmos são «como tais proibidos, mas logo [estes garotos] inventam outros, que são uma autêntica definição». — IDEM, in O Gaiato, Ano I, N° 1, de 5 de Março de 1944, p. 3. A propósito de o N.P. se conceber, ou não, como uma definição, é assunto que tem ocupado bom número de linguistas em ambos os lados do terreno—e que eu própria desejo abordar, em trabalho a publicar futuramente.

850 MARIA FILOMENA BRITO

«Em baixo, o burburinho da garotada. A chusma deles vem ao

meu encontro [...] Querem dar todos ao mesmo tempo, em primeira mão,

as ocorrências do dia: -o Chinês apanhou, por dar caldaças e passar

rasteiras. A gente hoje fomos ao banho e o Rato tomou pirolitos [...] e

pedem-me que chame mais companheiros: -olhe o Barba-Azul. Deixe

vir o Papinha. O Malino tem a Mãe no hospital e passa fome em casa.

São solidários. Chamam pela alcunha que já nesta idade têm, e que fará

mais tarde a glória de cada um, nos Presídios da Nação, se agora não

tiverem amigos»45.

Noutros casos é diferente. Se não trazem alcunha, são eles que criam e

outorgam o novo nome para o novo membro da comunidade. Também aqui o

lema se cumpre: «de rapazes, para rapazes, pelos rapazes».

Ε como não há dúvida de que o ingresso na Casa do Gaiato marca, para

cada um, o início de uma vida inteiramente nova — limpa, feliz — , é normal

haver um grande empenhamento na atribuição do novo nome:

«Outro dia, no fim da ceia, houve uma grande confusão [...] Ora

aconteceu que chegou um rapaz, de novo. Já tem 13 anos [...] Escreve

uma carta: "Deixem-me ir para aí. Eu quero ser um homem. O meu

padrasto não me quer". Ε veio [...]

Bem, mas a confusão surgiu por causa do "apelido que havia de

ser dado ao Carlos Alberto", seu nome de registo. Vem o "Andorinha"46

e diz que deve chamar-se «assim». Vem o "Pica-Pau" e diz que deve ser

«assado». O "Cereja" entra também e mete a sua colherada. O "Cebola"

faz o mesmo. O "Nabo" também entra na confusão. O "Papagaio" chega

45 IDEM, Obra da Rua, p. 27. Nota curiosa a registar: do meu corpus de indivíduos com ficha de detenção (a que atribuí a sigla CD.) constam dois averbamentos da alcunha Barba-Azul (de família?): um, de indivíduo nascido em 1900; outro (filho? parente?), com a data de nascimento de 1928. Seria este último o rapazinho, em favor de quem os amigos pediam o ingresso naquela harmonia cósmica feita de felicidade, alegria e fartura de pão? Uma pesquisa com as características daquela que me propus desdobra-se em múltiplas incertezas, o que também contribui para um certo atractivo! São deste mesmo meio — da rua, suburbana e semi-rural — as alcunhas que compõem os corpora (CG.) e (CD.) — que não contém, na generalidade, alcunhas típicas forjadas no submundo da grande cidade moderna, ou no interior dos meios prisionais. Cf. nota 30.

46 O Andorinha é irmão (mais novo) do Papagaio, referido neste mesmo texto. Este último, a avaliar pela foto, tem uma alcunha de caracterização física (nariz aquilino).

A ALCUNHA: CONFIGURAÇÃO LINGUÍSTICA 851

da escola e mete o bico. Enfim... eu só dizia que devia ser Carlos Alberto.

"Que não"—porque todos têm apelido e quem nasce nesta Casa

tem de ser "baptizado"»47.

Ε o ritual iniciático, marca da admissão e da integração cósmica.

Mas, do mesmo modo que a alcunha tem de nascer da espontânea

iniciativa da comunidade e não por obediência a normas impostas do exterior (e

por isso pode surgir ou não), também a sua outorga não tem momento pré-

-fíxado para ocorrer. Poderá ser à chegada, ou mais tarde - traduzindo alguma

peripécia ou aptidão entretanto revelada. No caso supra citado, por exemplo, o

artigo termina sem se ter chegado a acordo quanto ao apelido a atribuir ao

Carlos Alberto.

III. O corpus

Com a sigla (C.G.), este corpus da Casa do Gaiato foi obtido

fundamentalmente através da consulta do quinzenário O Gaiato, entre os anos

de 1981 e 1991, inclusive48. Como as espécies raramente vinham acompanhadas

de qualquer explicação etiológica — condição indispensável para serem

posteriormente tratadas49 —, procedi, em trabalho de campo, a várias conversas

com os rapazes, e a entrevistas de carácter mais formal, com a Senhora50 do Lar

de Coimbra e com alguns dos Padres da Obra da Rua. Pude assim chegar a uma

melhor compreensão da vida da comunidade, bem como à explicação ou à

confirmação de muitas das alcunhas.

«PADRE MANUELANTONIO, "Vistas de dentro", in O Gaiato, Ano XLII, N° 1089, de 23 de Novembro de 1985.0 sublinhado é meu. Repare-se no "re-nascer" que é para todos esta nova oportunidade de vida.

48 Âmbito cronologicamente alargado, mediante sondagens, desde os inícios do jornal (1944) até Abril de 1998 (inclusive).

49 Do total deste corpus (CG.), por não conterem qualquer abonação explicativa, recusei 279 espécies, algumas das quais pareciam ter bastante interesse...

50 Como é tratada a Mãe assumida de todos aqueles rapazes. Como Mãe, ela é única; mas a) na organização é apoiada pelo Chefe-Maioral (eleito por todos e que andará pelos 14-15 anos, pois «Trabalho de menino é pouco, / mas quem o não aproveita é louco!» e «É de pequenino / que se torce o pepino» e se cria o sentimento da responsabilidade), e b) nos afazeres quotidianos é ajudada por todos os seus filhos: lavar a roupa, limpar a casa, passar a ferro, arrumar, etc. Por sobre tudo e todos, paira a presença tutelar de Pai Américo—em tudo representado, em cada Casa, pelo respectivo Padre da Obra da Rua.

852 MARIA FILOMENA BRITO

Projecção, no meio urbano, das respectivas Casas do Gaiato—situadas normalmente em antigas quintas, em pleno campo51 —, os Lares animam-se de grupos de estudantes52 durante os tempos lectivos; fms-de-semana e férias são, para todos, o regresso à Casa-Mãe. Assim sucede com o Lar de Coimbra, em relação à Casa de Miranda do Corvo53. Comunidade não especificamente ru­ral54 nem totalmente urbana, a micro-sociedade infanto-juvenil (CG.) é constituída por indivíduos de estrato sociocultural (inicialmente) baixo55 e que, por isso, possuem um comum património linguístico-cultural de características suburbanas e/ou semi-rurais.

Por outro lado, porque se integra perfeitamente na respectiva comunidade linguística extra-clânica, cada Casa do Gaiato partilha ao mesmo tempo, com a sociedade envolvente, das potencialidades locais de uma expressividade de cariz afectivo—moderada embora, e consideravelmente, pelas directrizes morais educativas da Casa.

Como recolhi este corpus a partir de um jornal que é pertença de todas as Casas, e que, citando, frequentemente remete o leitor para os anos 40, posso dizer que o elenco total é extremamente variado e amplo, chegando a "desrespeitar" as coordenadas espaço e tempo. Não é fruto do acaso. Consulte--se, a este propósito, o capítulo das Conclusões.

No elenco que apresento figuram (esporadicamente) algumas alcunhas de adultos56. Registo o facto sempre que tal se verifica.

51 Não só porque «o campo, as aves, as flores» são «os grandes e poderosos auxiliares do nosso sistema de educar» (PADRE AMÉRICO, in O Gaiato, Ano XLVIH, N° 1237, de 10 de Agosto de 1991), mas porque todos os rapazes têm, assim, a possibilidade de receber, de imediato, uma boa preparação no que respeita aos diversos trabalhos agrícolas e à criação de animais. Ε esta a primeira aprendizagem profissionalizante — e muitos poderão, por este caminho, construir o seu futuro de cidadãos, numa Europa competitiva.

52 Do Preparatório, Secundário e, eventualmente, do Ensino Superior. 53 Do mesmo modo, Casa e Lar anexo são orientados pelo mesmo Padre da Obra da Rua,

Em Coimbra/Miranda do Corvo, actualmente, o P.e João veio substituir a presença (de muitos anos, já) do P.e Horácio.

54 Até porque se projecta em pleno meio urbano e se encontra aberta a uma ascensão sociocultural dos rapazes (até ao potencial máximo de cada um).

55 Cf. nota anterior. 56 Trata-se, ou de alguns doentes do Calvário (onde se pratica uma vivência de Amor e

inter-ajuda muito próximas das da Casa do Gaiato), ou de colaboradores da Obra da Rua: antigos gaiatos, ou vizinhos, ou auxiliares em trabalhos específicos (de pedreiro, carpintaria, etc).

A ALCUNHA: CONFIGURAÇÃO LINGUÍSTICA 853

— (CG.) CORPUS DE ALCUNHAS —

o Alentejano — Proveniente do Alentejo. o Amarante — Por ter vivido em Amarante. o - de Angola — Veio de lá.

o Arouca — Por ser de Arouca.

o Arvéola — «O apelido está bem posto [...] Muito aéreo e pára pouco». o Balãozinho — «Que tira o nome do irmão mais velho que é o "Balão"». o Barrigana—«Porque sou muito comilão» (do nome de um futebolista da

época), o Batata Nova — Quando entrou para o grupo dos mais pequenos, os

Batatinhas, já existia o Batata — que, consequentemente, viu a sua

alcunha alterada. Ε irmão do Botas.

o Batata Velha—Inicialmente, era só o Batata; a alcunha veio a ser mudada

quando entrou o Batata Nova.

o Bigodes — «Por ter sombras deles, desde muito cedo», o Bolachão — Primeiramente era o Bolacha; quando mais crescido, passou

ao aumentativo: Bolachão5''.

o Bolachinha — Irmão mais novo do Bolacha.

o Bravo — «Do mau génio que tem».

o Bucha—Por ser muito gordo. Mas «nós temos Buchas em todas as Casas», o Cabeça — «Dizem só Cabeça, mas ele bem sabe que eles querem dizer

Cabeça no ar». Anteriormente era o Porto — alcunha toponímica de

origem, que veio a alterar-se quando passou para a Casa do Porto, o Cachopos — «Pela maneira como a princípio se dirigia à malta: "Ó

cachopos!"», o Caminha — Por ser daquela terra, o Careca — Quando entrou para a Casa do Gaiato, além de tomar banho,

teve que se lhe rapar o cabelo, o Carequita — Por sofrer de tinha. Também chamado o Pernas de Alicate.

o Cartaxo — Da sua proveniência, o Catete — É angolano (de Catete?). o Celorico — Da sua proveniência, o Cête — Da terra da sua naturalidade.

57 Faleceu num acidente em 20.3.1993, com 21 anos.

854 MARIA FILOMENA BRITO

o Cinfães—Natural desta localidade. o Cisco — Por ser muito pequeno.

o Coco — «Porque ainda é pequenino». o - Coco — Por ser o mais pequeno da comunidade (3 anos)58: «Daí surgiu

o sobrenome "Coco". Era o "coquinho" da senhora!»—a senhora, como

é dito supra, é quem faz as vezes de Mãe, em cada uma das Casas do Gaiato,

o Coelho—A avaliar pela foto, a alcunha dever-se-á ao fácies (possivelmente

terá, também, "dentes de coelho"), os Colégios — Gémeos que foram para a Casa de Setúbal, trazidos de um

colégio de Lisboa onde foram criados59. A alcunha nasceu porque eles «andavam sempre a falar do colégio»,

o Cronista X — Escrevia também em O Gaiato. Denominação escolhida

para não se confundir com o (mais famoso) Repórter X.

o Dê-Dê — Por andar a pedir, o Desconhecido — Simplificação da alcunha primitiva: o Soldado

Desconhecido.

o Directo — «Passou directamente da rua p'rá oficina», o Elvas — Da sua terra de origem.

os Elvas — Dois irmãos do Alentejo, chegados à Casa do Tojal em 1990. o Entroncamento — Por ser de lá. o Escarumba — Por ser muito moreno.

o Estel — Simplificação, segundo explica o próprio, de o Estringuilinhas.

o Estica — Por ser muito magro, o Estringuilinhas — «Era mesmo lingrinhas»; depois passou a ser chamado

Estel.

o Eusébio — Por ter jeito para o futebol, o Fala Barato — Por falar muito, o Farturinhas—Alcunha (efémera) de o Fominhas.

o Feliciano -— Por andar feliz, «de hercúleo que está», o Ferro o Bico — De uma expressão que usava, o Fígados — Também chamado o Mau Tempo.

58 Do início da Casa do Gaiato, é já avô. Cf. supra, nota 1. 59 A título de confronto, recorde-se que, pela leitura dos números de O Gaiato de 1944-45,

se verifica que na época era vulgar usar-se o eufemismo colégio quando se queria falar de um asilo ou tutoria.

AALCUNHA: CONFIGURAÇÃO LINGUÍSTICA 855

o Figueira — Por ser da Figueira da Foz o Fominhas — «Que virou Farturinhas», mas acabou por manter a alcunha

inicial, o Fozcoa — Da sua terra de origem, o Gandi — «Por birra, não quer comer» (referência às greves da fome de

Gandhi). o Ganhão — É alentejano60. o Girafa — Por ser muito alto. o Gordo — Por ser gordo, o - Gordo — Por ser gordo, o Grão de Bico — Muito possivelmente devido ao tipo de cara. Mudou de

Casa e depois chamaram-lhe o Rabeca.

o Guido — Diminutivo (?) usado como alcunha. o Infante — Um pequenito que veio depois do Príncipe.

o Janota — Tem um aspecto distinto, o Leiria — Por ser daquela cidade. o Linhas — Por ser «o rei dos enfezados». «Doente constitucional [...]

amarelo e transparente», o Lisboa — Da sua naturalidade. o Lito — Diminutivo tomado como alcunha, o Lourinho — Por ser louro, o Macaquinho — Irmão mais novo do Macaco, o - Madalena—Natural da Madalena (Vila Nova de Gaia), o Madeira — «Assim crismado por ser da ilha», o Magala — Era o Quinze, por vir «do 15 de Tomar» (do quartel). Mais

tarde (talvez por se ter perdido a noção do que era o 151. foi preferida esta outra alcunha, que substituiu a anterior,

o Malhado — «Malhado porque tem falhas no cabelo». o - Máquina — Do gosto e habilidade técnica lhe terá vindo a alcunha: «É

agora engenheiro civil, director das Obras Públicas de Pemba

(Moçambique)». o Maradona—Por gostar de futebol (do nome do famoso jogador argentino). o Marinho — Diminutivo usado como alcunha.

60 É apelido de família (ao qual se seguem mais dois). No entanto, é utilizado — tanto na comunidade como no jornal — como alcunha, o que é assinalado por aparecer entre aspas.

856 MARIA FILOMENA BRITO

o Matosinhos — «Que eu trouxe daquela terra».

o - Mau — «[...] vem pior este ano!».

o Mau Tempo — «Por nada, vai às do cabo». Também chamado o Fígados.

o Melgaço — Terra de onde era natural.

o Meno — Diminutivo (?) usado como alcunha.

o Merendas — «O gordo da família». Ε irmão do Cenoura.

o Michael — Penso (a avaliar pela foto) que a alcunha vem de certa

semelhança fisionómica com a personagem Michael Knight, da série

televisiva juvenil O Justiceiro.

o Milagre — Do Maputo. Encontrado incólume entre destroços de

bombardeamentos,

o Moléstia — Por ter apendicite crónica,

o Monarca—Por usar um barrete branco (por causa da tinha) que parecia o

capacete de D. Afonso Henriques,

o Mondego — Ε ele «que trata, com muito carinho, da irrigação, sendo o

responsável pelos canos de água», na agricultura de Paço de Sousa. Estará

a sua ocupação relacionada com a alcunha?61

o Mondim — Por ser de lá.

o Nandinho — Diminutivo tomado como alcunha,

o Nèlito — Diminutivo tomado como alcunha,

o Nhôra — «Nhôra62, aprendeu ele a dizer em casa da senhora que o

recolheu»,

o Nisa — Da sua proveniência,

o Odemira — Da sua proveniência.

o Paizinho — Por ser irmão do Mãezinha63, que veio primeiro para a Casa.

o Pá-Sá-Ti-— «Quando joga à bola, em vez de dizer passa aqui, diz passa a

ti».

61 Mesmo na dúvida, incluo-a; se tivesse a ver com a cidade de Coimbra, seria provavelmente aqui a sua entrada e não em Paço de Sousa. Por outro lado, não esqueçamos o percurso deste rio, a partir da Serra da Estrela...

62 Da minha infância em Aveiro, onde nasci, recordo que, tanto na escola primária como no liceu, a professora era tratada por Minha Senhora (=Nhôra) — o que foi motivo de riso e correcção quando, tendo-se mudado a minha família para Coimbra, ouvi das colegas do Liceu Nacional Infanta D. Maria: "Minha Senhora dizem as criadas!" e comecei logo a (auto-)corrigir-me!...

63 Neste caso, desconhece-se a motivação etiológica, directa, da alcunha, pelo que não consta deste elenco.

A ALCUNHA: CONFIGURAÇÃO LINGUÍSTICA 857

o Papagaio — Tem um nariz aquilino. É irmão do Andorinha, Pica-Pau M e

Rouxinol.

o Pastelão — «Ε o seu apelido por via das pratadas de que se servia sem

apetite, efeito da fome que passara.»,

o Pauliteiro — «De espada em riste, lá ia batendo com o seu pauzinho na

pedrita que mantinha entre os dedos da outra mão (como sempre)». Da

Casa de Beire, destinada em especial a rapazes com problemas,

o Pedroca — Hipocorístico (?) usado como alcunha,

o Pélé — Porque joga bem a bola (do nome do famoso jogador brasileiro),

o Pepe — Hipocorístico usado como alcunha,

o - Pequenito — Chegou à Casa do Gaiato com 6 anos e «mal se entende a

falar»,

o Perigoso — «Temível e temido»,

o Periquito — «Dizia que gostava muito de periquitos, e a malta "baptizou-

-me" com esta alcunha»65,

o Pernas de Alicate — Por subir e descer pelo cabo da pá do forno. Tinha

outra alcunha, mais usada: o Carequita.

o Pinguinhas — «De vez em quando ia à pipa refrescar a língua»,

o Piroteu — Do futebolista Peyroteo, muito famoso naquela época,

o Porto—Por ser daquela cidade. Mas quando mudou para a Casa do Porto,

ficou a ser o Cabeça.

o - do Porto — Da sua proveniência,

o Poveiro — Por ser da Póvoa do Varzim,

o - Poveiro — Por ser da Póvoa do Varzim,

o Pregador — Veio com um irmão. «Se eu os deixar ficar na aldeia, ele

prega um sermão!»,

o Presidente—«Por haver declarado solenemente que desej a ser Presidente

da República!»,

o Pretita — O irmão mais novo dos dois Pretas66.

o Preto — Ε natural da Guiné,

o Preto — É natural de Moçambique.

64 Acabo de ver em O Gaiato, Ano LV, Ns 1411, de 11 de Abril de 1998, a fotografia de um bebé com a legenda «Filha do Alexandre ("Pica-Pau")».

65 Havia em 1944 outro Periquito, um dos primeiros Gaiatos, que escolheu a profissão de barbeiro.

66 Eram três irmãos, dois dos quais tinham por alcunha o Preta: um era o Preta da rouparia, outro o Preta das retretes. Ignoro se eram de raça negra — o que nunca é indicado.

858 MARIA FILOMENA BRITO

o - Preto — Por ser de raça negra. Nascido já em Lisboa.

o Príncipe — Um pequenito que entrou e que era muito bonito.

o Quicas — Diminutivo (?) tomado como alcunha.

o Quicas — Diminutivo? Criança e deficiente profundo do Calvário67.

o Quinze — Por vir «do 15 de Tomar» (do quartel). Alcunharam-no depois

o Magala.

o Rabeca — «Por fazer muito beicinho quando se está a rir». Era o Grão de

Bico.

o Rádio — Porque falava muito.

o Régua — Foi lá que viveu até entrar na Casa do Gaiato, aos 9 anos.

o Repórter X—Inicialmente pseudónimo, começado a usar pelo Lupricínio

ao assinar as suas crónicas em O Gaiato.

o Ricky—Viveu com duas famílias, ambas de língua inglesa, que lhe deram

este diminutivo (usado agora como alcunha),

o Rio Tinto — Da sua proveniência,

o Ri-Ri — «Sorriso nos lábios. Ε o Ri-Ril».

o Risonho — «Aquele sorriso delicioso e permanente que lhe mereceu o

nome que tem»,

o Rua — Era o Rua Direita.

o Rua Direita — Lugar de proveniência. Alcunha depois simplificada (e

"adoçada") em o Rua.

o Ruço — Devido à cor do cabelo. Alcunha que se repete em várias épocas

e Casas do Gaiato,

o Ti Ruço—Pelo mesmo motivo. Alcunha do dono (ou antigo dono) de um

olival em Miranda do Corvo,

o Sancho Pança — Por ser «o mais gordo que nós cá temos»,

o Santarém — Da sua proveniência.

o - Sapateiro — Por ter ido trabalhar para a oficina de sapateiro,

o Sapo — Por ser muito feio.

o Sardoal — Da sua proveniência,

o Sebastião — Porque «Sebastião come tudo».

67 Acusa, depois, recuperação e socialização admiráveis. Tinha inicialmente de ser amarrado, porque roía as próprias mãos. Alguns anos mais, e «o "Quicas" já tocou a sineta e aquece o café para todos. Era, em pequeno, um rapaz sem capacidade nem iniciativa. Hoje, um apaixonado pelo futebol, é o responsável pela cozinha» — in O Gaiato de 27 de Janeiro de 1990. Não há explicação outra que não seja a de um milagre do Amor!

A ALCUNHA: CONFIGURAÇÃO LINGUÍSTICA 859

o Sem Nome—Doente (adulto) do Calvário. Deficiente profundo, a alcunha servia-lhe (ao que parece) do próprio nome—que nem sequer conhecia,

o Senhor Doutor — Por trabalhar nos ficheiros da Casa do Gaiato, o Setúbal — Por ser daquela cidade, o Shéu — Do nome de um futebolista da época, o Soldado Desconhecido — «Quando cá chegou não sabia dizer de onde era

nem o nome dos pais». Depois passou a ser apenas o Desconhecido.

o Spock — Tem as orelhas em bico, como a personagem do mesmo nome

da série juvenil da televisão O Caminho das Estrelas.

o Tapadinho — Por vir de uma barraca da Tapada da Ajuda, o Tàquedinho—«Por dizer aos rapazes que o importunam: "está quedinho"». o Tó — Diminutivo (?) apresentado como alcunha. Vem entre aspas, o Topogígio — Por ter as orelhas destacadas do rosto, como a referida

personagem (um ratito) de um programa da televisão, o - Totó — Diminutivo (?) usado como alcunha68, o Tramagal — Terra de onde veio. o Tractorista—Trabalhava com o tractor e, um dia, danificando-o, mereceu

castigo, o Trovão — «O abandono afectivo [...] a falta do olhar meigo da mãe e da

presença segura do pai geraram nele tal descontrole que as suas explosões lhe mereceram tal epíteto»,

o Vadio — «Só a dormir é que está calado, e nem sempre. Daí o nome de

guerra69». o Valete — «A malta é que lhe pôs o apelido e o rapaz vai aos "arames" [...]

Tem de limpar a sala, a despensa e o corredor, lavar a loiça, pôr a mesa

e servir»70. o Varito — Trata dos porcos na Casa de Beire, o Veneno — «Rapaz refilão e turbulento, sobejamente conhecido e temido

do rapazio da Alta», o Vila Chã — Da sua proveniência, o Vila Real — Onde viveu desde pequeno.

68 Há dois ou três — e distanciados mesmo epocalmente. 69 Embora assim referido, devo fazer notar que "nome de guerra" e "alcunha" não são

conceitos sobreponíveis, pelo menos na sua totalidade. Ocupar-me-ei deste assunto em outro lugar. 70 Há, pelo menos, outro, muito anterior e que hoje pertence a uma das Associações

(regionais) de Antigos Gaiatos.

860 MARIA FILOMENA BRITO

o Viseu — Por ser de Viseu. o Vitinho—Diminutivo tomado como alcunha. Da Casa de Paço de Sousa.

o Vitinho — «Rapaz que trata das nossas ovelhas» — da Casa do Tojal.

Eventual parecença (fisionomia, vestuário, chapéu...) com a personagem da televisão que aconselha os mais pequenos a irem para a cama.

o Vitó — Diminutivo (?) usado como alcunha, o Xai-Xai —Antigo gaiato, natural de Xai-Xai (a antiga cidade de João

Belo), no litoral de Moçambique, a norte de Maputo; actualmente

socorrido pela Conferência Vicentina da Casa de Paço de Sousa na (re)construção de uma habitação condigna,

o Xancaxé—Ou Xancaxeque; por ter cara de chinês (referência ao presidente

chinês Chiang Kai-Shek, de quem os jornais muito falavam naquela época),

o Zé Sem Mais Nada — Alcunha (posterior) do Zé Ninguém. Quando a

outro rapaz foi atribuída esta alcunha, ele declarou que, nesse caso, não queria nenhuma: seria apenas Zé. O resultado foi ter dado a inspiração

para a nova alcunha.

IV. Tratamento do corpus (CG.)

O elenco de antroponomástica motivada a que atribuí esta sigla contém 440 espécies, das quais, como atrás ficou dito, retirei 279 por não ter sido explicitada a sua etiologia/motivação imediata. Mesmo sendo possível um tratamento formal de todo o conjunto (o que, em relação a certos casos, me permito duvidar), seria inviabilizada por completo qualquer tentativa de classifi­cação temática, que se me afigura de particular interesse71.

A este propósito cabe aqui a reflexão de não dever nunca o investigador deixar de separar devidamente aquilo que é o vocabulário utilizado para compor o sintagma-alcunha72 / e a temática eleita pelo seu criador como a mais adequada ao indivíduo a denominar. Além disso, deverá sempre ter-se em conta a estratégia de "name-coining" utilizada73.

" Devido à exiguidade de espaço, e também porque a análise temática se revestia de um interesse muito especial para o conteúdo do presente artigo, tomei a decisão de não abordar aqui o tratamento formal das espécies seleccionadas — que reservarei para uma futura abordagem.

72 (Con)fusão que muitíssimas vezes acontece, mesmo em bons Autores, razão pela qual prescindo de mencionar quaisquer obras acerca deste pormenor.

73 Bibliografia útil sobre este assunto: EIRLYS E. DAVIES, "Creativity and Convention:

A ALCUNHA: CONFIGURAÇÃO LINGUÍSTICA 861

Do que ficou desaproveitado (e que atingiu 63,40 pontos percentuais) há a concluir como são árduas, morosas e um pouco desanimadoras as colheitas de corpora antroponímicos — considerando que escolhi deliberadamente trabalhar em Antroponímia viva — ou seja, trabalhar com alcunhas ainda detectáveis infieri74 — o que dificulta ainda mais a investigação.

Partindo, pois, da observação de uma estratégia de "cunhagem" do nome-outro a atribuir a determinado indivíduo75 como fundamento teórico para uma classificação temática, distingo dois grupos (I. Perspectiva estática e II. Perspectiva dinâmica), segundo o tipo de perspectiva / de estratégia adoptado:

I — Perspectiva estática

1. —Alcunhas classificatórias (localização/relativização no parâmetro espaço)

1.1. Toponímicas

o Alentejano 0 Entroncamento o Amarante 0 Figueira o - de Angola 0 Fozcoa

o Arouca o Ganhão o Caminha 0 Lei rja

o Cartaxo 0 Lisboa

o Catete 0 . Madalena o Celorico 0 Madeira 0 Cete o Matosinhos o Cinfães 0 Melgaço

o Elvas 0 Mondim os Elvas 0 N i s a

some Strategies of Name-coining", in Language & Communication, Vol. 10, Ne 3. London (Pergamon Press), 1990, p. 207-218; e MARIA FILOMENA BRITO, Antroponímia motivada... (cit. na nota 34, especialmente os pontos 3.3. e 4.)

74 Alcunhas ligadas ao seu primeiro portador, são caracterizadas igualmente pela sua grande vitalidade e pelo total conhecimento, por parte da comunidade, das verdadeiras causas e da racionalidade objectiva da sua atribuição. A alcunha viva poderei opor a alcunha morta, que, ao seguir uma linha de transmissão familiar, é perpetuada grupalmente, quer na sua qualidade de alcunha (não-individual), quer fazendo nascer um novo apelido — N.P. já oficializado.

75 Denominação que seja a sua vera effigies e que, ao mesmo tempo, lhe(s) garanta a imprescindível estabilidade etnocêntrica.

862 MARIA FILOMENA BRITO

o Odemira o Santarém

o Porto o Sardoal

o - do Porto o Setúbal

o Poveiro o Tapadinho

o τ Poveiro o Tramagal

o Quinze o Vila Chã

o Régua o Vila Real

o Rio Tinto o Viseu

o Rua o Xai-Xai

o Rua Direita

1.2. Por enquadramento no paradigma grupai

1.2.1. Motivação linguística:

Posicionamento no paradigma antroponímico vigente

o Balãozinho 0 Infante

o Batata Nova 0 Macaquinho

o Batata Velha 0 Paizinho

o Bolachinha o Pretita

1.2.2. Profissões / ocupações / actividades

o Cronista X o Senhor Doutor

o - Máquina o Tractorista

o Mondego o Valete

o Repórter X o Varito

o - Sapateiro o Vitinho

2. —Alcunhas caracterizadoras

2.1. De caracterização física

o Bigodes o Coelho

o Bucha o Escarumba

o Carequita o Estica

o Cisco o Estringuilinhas

o - Coco o Girafa

o Coco o Gordo

A ALCUNHA: CONFIGURAÇÃO LINGUÍSTICA 863

o - Gordo o Preto

o Grão de Bico o Preto

o Janota o - Preto o Linhas o Príncipe o Lourinho o Ruço

o Malhado o Ti Ruço o Merendas o Sancho Pança

o Michael o Sapo

o Moléstia o Spock o Monarca o Topogígio

o Papagaio o Xancaxé

2.2. De caracterização psicológica / caracteriológica / moral

o Barrigana o Perigoso

o Bravo o Pinguinhas o Cabeça o Ri-Ri

o Fígados o Risonho

o - Mau o Sebastião o Mau Tempo o Vadio o Pauliteiro

II — Perspectiva dinâmica 1. —Alcunhas classificatórias (localização grupai segundo o parâmetro

tempo) 1.1. Diminutivo / Hipocorístico usado como alcunha

o Guido o Quicas

o Lito o Quicas o Marinho o Ricky o Meno o Tó

o Nandinho o - Totó o Nèlito o Vitinho o Pedroca o Vitó oPepe

864 MARIA FILOMENA BRITO

1.2. Acompanhando o tempo: mudança / simplificação da alcunha

o Bolachão o Magala

o Desconhecido o Rua o Estel

2.—Alcunhas caracterizadoras

2.1. De caracterização física

o - Pequenito o Rabeca

2.2. Expressões comummente usadas / tiques verbais

o Cachopos o Nhôra

os Colégios o Pá-Sá-Ti

o Dê-Dê o Tàquedinho o Ferro o Bico

2.3. De caracterização psicológica / moral

o Arvéola o Trovão

o Fala Barato o Veneno o Rádio

2.4. Alcunhas provenientes de um "faits divers"

o Careca o Periquito

o Directo o Pernas de Alicate o Eusébio o Piroteu o Farturinhas o Pregador o Fominhas o Presidente o Gandi o Sem Nome o Maradona 0 Shéu

o Milagre o Soldado Desconhecido o Pastelão o Zé Sem Mais Nada o Pélé

A ALCUNHA: CONFIGURAÇÃO LINGUÍSTICA 865

V. Conclusão

Inscrita num discurso de rigor porque exemplarmente retrata, aos olhos do grupo, cada um dos seus membros, toda a alcunha ("abrasão", como se diz nos Açores) é, ainda, no interior da entidade grupai, o melhor "Bilhete de Identidade". Por outro lado, mediante o seu processo de criação, outorga e (colectiva) ratificação, confere ao "povo", na pessoa dos seus privilegiados artis­tas da caricatura verbal, um pleno exercício de PODER76— indispensável para a sua perpetuidade como grupo.

A par do valor, óbvio, de marca iniciática77, as alcunhas da Casa do Gaiato cumprem igualmente as funções que lhe são cometidas — de identidade, de acolhimento do indivíduo na nova sociedade, e a de uma evidente coesão grupai —, o que nem sempre foi / tem sido compreendido com clareza e bem interpretado. Veja-se esta opinião, de pessoa possivelmente culta (com implícita intenção agressiva) e à qual o P.e Américo não deixa de ripostar:

«"[...] permito-me discordar contra as alcunhas que V. mantém às crianças! V. não pode erguê-los "miraculosamente da lama" com o ferrete regressivo, com o apelido grotesco da alcunha, epíteto depreciativo que rebaixa, a maior das vezes o portador. Uma alcunha é um ferrete e V. assim marca com um ferrete os... "gaiatos". Quanto melhor não teria sido "Casa dos Rapazes". Vejo que V. nem é forte em teologia nem em psicologia. É pena".

É pena, sim senhor. Maior pena é, porém, que os fortes em teologia e em psicologia não façam alguma coisinha, para a gente ver e aprender»78.

76 Dar o nome é exercer um PODER CRIADOR igual (momentaneamente que seja) ao do -Fiat! da divindade.

77 Cf. o exemplo transcrito nas págs. 16-17. 78 PADRE AMÉRICO, η O Gaiato, Ano III, N° 56, de 20 de Abril de 1946, p. 1 (o sublinhado

é meu). Não é ocioso, porém, referir que também a designação rapaz pode traduzir um conteúdo bem depreciativo. Ε não me refiro sequer à noção etimológica, mas sim ao conceito que tradicionalmente opõe o rapaz (frívolo, brejeiro, incapaz de assumir com direiteza de carácter as suas responsabilidades, por duras que sejam...) ao Homem—expressão acabada das ditas qualidades e que se torna no perfeito continuador dos valores do clã. A polémica designação gaiato, tida em si mesmo como alcunha e, como tal, aviltante — o que, sabemo-lo já, a alcunha não tem de ser por definição, podendo nela caber um mundo de afectividade — surgia na altura como o vocábulo de eleição: cf. Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Vol. 12, p. 28, s. v. Gaiato: «Rapaz que

866 MARIA FILOMENA BRITO

Ontem como hoje.

Curiosamente, numa dimensão que ultrapassa os limites cronológicos, a

alcunha existe. Desde tempos muito remotos, em documentos muito antigos... existem

alcunhas, que exibem etiologias, características, funções individuais e colectivas extremamente sobreponíveis às de hoje - idênticas, portanto - o que é deveras interessante. Evidentemente, o léxico — contido em dicionários ou glossários dialectológicos — tem forçosamente de acusar o devir temporal e mudar, aprisionado como é pelos parâmetros espaço e tempo.

Porém, ontem como hoje, os processos mentais e sociais da sua prática

mantêm-se; permanecem. Curiosamente idênticos:

- existência de "artistas", na observação e criação de alcunhas (perspec­

tivadas segundo o seu dinamismo ou estatismo eloquentes);

- traços físicos, psíquicos ou relacionais que tipificam o indivíduo (cada

um de nós observável quotidianamente) e podem ser captados;

- atribuição das alcunhas, seguidas da ratificação grupai; - co-presença de dois sistemas paralelos de denominação antroponímica,

continuando as alcunhas a ser alvo de especial "sucesso" e vitalidade.

Idênticos também continuam a ser os tipos / os modos de classificação que lhes podemos atribuir.

Assim, e pelo que fica exposto, os mecanismos de atribuição da alcunha parecem ser fenómenos que, independentemente das variáveis tempo e/ou espaço, se manifestam no comportamento linguístico de uma entidade grupai de uma forma tal, que podem ser conceptualmente considerados como um uni­versal linguístico, a que é cometida uma função social bem precisa — e que o presente trabalho explicita.

passa a vida ociosamente, que gosta de vadiar pelas ruas, de fazer travessuras; garoto». Ora o que fez o P.e Américo foi abrir as portas de uma Casa (entenda-se lar) ao garoto da rua, futuro vadio e marginal, ao gaiato, portanto.