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BRASIL 12 Cidade Nova • Janeiro 2016 • nº 1 MARTINA CAVALCANTI [email protected] Ocupados ma cozinha repleta de bara- tas circulando por paredes, utensílios e alimentos. Essa foi uma das cenas iniciais da ocupação da Escola Estadual Caeta- no de Campos, localizada no centro de São Paulo. Divididos por funções, que incluíram segurança, comunica- ção, limpeza e alimentação, parte dos alunos dedetizou e limpou o local onde a merenda escolar é preparada diariamente. “A gente quer entregar a escola melhor do que recebeu”, resu- me Pedro Fernandes, 17 anos, aluno do 2º ano do ensino médio, enquan- to mostra salas e corredores manti- dos em ordem pelos estudantes. Outra descoberta foi um teatro cuja entrada está concretada. “Tem um piano lá dentro, mas não dá para entrar. A gente quer muito ter acesso a esse espaço”, comenta Lua Marques, da mesma idade. “Quem sabe a ocupação dê mais força para a abertura acontecer”, vislumbra. A Caetano de Campos é uma das 196 escolas que foram ocupadas por alunos contra o plano de reorgani- zação escolar do governo estadual paulista entre novembro e dezem- bro do ano passado. O projeto pre- via o fechamento de 92 escolas e a transferência compulsória de mais de 300 mil estudantes. Além de exigir a suspensão do projeto, as ocupações levantaram questões como a precarização da es- trutura das escolas, a subutilização de espaços, a falta de participação estudantil na gestão escolar e um modelo de ensino ultrapassado. Mais do que sentar em carteiras para ter aulas, eles querem voz ativa para mudar um modelo educacio- nal incompatível com as expectati- vas e necessidades. Saindo das baias Inspirados na “Revolta dos Pin- guins” do Chile, onde 700 escolas foram ocupadas por secundaris- tas em 2011, os alunos brasileiros passaram a decidir em assembleias diárias sobre questões cotidianas e rumos do movimento. “Aqui a gen- te faz o que a democracia não con- JOVENS Os jovens assumem cada vez mais um papel de protagonismo na sociedade. Eles encabeçam manifestações por passe livre no transporte coletivo urbano ou contra o baixo nível da representatividade política do país, nos últimos tempos. Exemplo recente é a ocupação de escolas públicas do ensino médio no Estado de São Paulo U Alunos na Escola Estadual Caetano de Campos, São Paulo Rovena Rosa | Agência Brasil

Ocupados

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Os jovens assumem cada vez mais um papel de protagonismo na sociedade. Nos últimos anos, eles encabeçaram manifestações por passe livre no transporte coletivo urbano e contra o baixo nível da representatividade política do país. Exemplo recente é a ocupação de escolas públicas do ensino médio no Estado de São Paulo

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Brasil

12 Cidade Nova • Janeiro 2016 • nº 1

MARTINA [email protected]

ocupados

ma cozinha repleta de bara-tas circulando por paredes, utensílios e alimentos. Essa foi uma das cenas iniciais da

ocupação da Escola Estadual Caeta-no de Campos, localizada no centro de São Paulo. Divididos por funções, que incluíram segurança, comunica-ção, limpeza e alimentação, parte dos alunos dedetizou e limpou o local onde a merenda escolar é preparada diariamente. “A gente quer entregar a escola melhor do que recebeu”, resu-me Pedro Fernandes, 17 anos, aluno do 2º ano do ensino médio, enquan-to mostra salas e corredores manti-dos em ordem pelos estudantes.

Outra descoberta foi um teatro cuja entrada está concretada. “Tem

um piano lá dentro, mas não dá para entrar. A gente quer muito ter acesso a esse espaço”, comenta Lua Marques, da mesma idade. “Quem sabe a ocupação dê mais força para a abertura acontecer”, vislumbra.

A Caetano de Campos é uma das 196 escolas que foram ocupadas por alunos contra o plano de reorgani-zação escolar do governo estadual paulista entre novembro e dezem-bro do ano passado. O projeto pre-via o fechamento de 92 escolas e a transferência compulsória de mais de 300 mil estudantes.

Além de exigir a suspensão do projeto, as ocupações levantaram questões como a precarização da es-trutura das escolas, a subutilização

de espaços, a falta de participação estudantil na gestão escolar e um modelo de ensino ultrapassado. Mais do que sentar em carteiras para ter aulas, eles querem voz ativa para mudar um modelo educacio-nal incompatível com as expectati-vas e necessidades.

Saindo das baiasInspirados na “Revolta dos Pin-

guins” do Chile, onde 700 escolas foram ocupadas por secundaris-tas em 2011, os alunos brasileiros passaram a decidir em assembleias diárias sobre questões cotidianas e rumos do movimento. “Aqui a gen-te faz o que a democracia não con-

JovenS Os jovens assumem cada vez mais um papel de protagonismo na sociedade. Eles encabeçam manifestações por passe livre no transporte coletivo urbano ou contra o baixo nível da representatividade política do país, nos últimos tempos. Exemplo recente é a ocupação de escolas públicas do ensino médio no Estado de São Paulo

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seguiu fazer. Todo mundo tem voz e decide junto”, compara o aluno Felipe Ary de Souza, 18, cursando o 1º ano do ensino médio.

As ocupações reúnem membros do grêmio estudantil, a galera do fundão e até mesmo os ditos CDFs. São jovens de diversas origens so-ciais, formações culturais e preferên-cias políticas. Mesmo os mais desi-ludidos e alheios ao sistema político têm espaço. Por isso, o movimento se denomina como apartidário e ho-rizontal, ou seja, sem líderes.

O contato direto e mais huma-nizado com essa grande diversidade de colegas deu margem a reflexões sobre a rigidez da estrutura escolar. “O jovem não olha somente para frente. Nós também olhamos para o lado. Sentar enfileirados, como cavalos com viseira, nos impediu de enxergar os nossos próprios colegas. Deve ser por isso que existe tanto bullying”, deduz Felipe.

Para Lua, a ocupação permitiu aproximar alunos que nem sequer se conheciam. “Nos tornamos uma família”, diz.

Tesouros Pouco atraídos pelo modo de

aprendizado atual, um em cada dez estudantes do ensino médio aban-dona as aulas antes de acabar o ano letivo, segundo dados de 2010 di-vulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). É a maior taxa de evasão escolar da América do Sul. De acordo com es-pecialistas ouvidos por Cidade Nova, os principais motivos do abandono são o fracasso escolar e o desinteres-se pelo conteúdo.

Para satisfazer a demanda dos jovens por assuntos nunca tratados em sala de aula, profissionais de di-versas áreas foram às escolas ocupa-das dar aulas e ministrar palestras. Os estudantes tiveram oficinas de

música, estêncil, grafite, capoeira, ioga e fotojornalismo, além de aulas públicas sobre temas atuais como machismo, racismo e crise hídrica.

“Muitas dessas coisas são superim-portantes, mas nunca teríamos na es-cola em dia letivo”, diz Pedro. “O que a gente aprendeu, vamos poder usar no futuro. A oficina de fotojornalis-mo, por exemplo, nos dá uma base mais crítica para olhar a História.”

Durante as ocupações, aumentou também a participação da comuni-dade nas escolas. Muitos curiosos passaram a visitá-las e conversar com os estudantes sobre a situação, além de doar alimentos, produtos de limpeza e de higiene para eles se manterem na escola. Alguns pais, geralmente criticados pela ausên-cia no cotidiano escolar dos filhos, apoiaram a iniciativa e acabaram exercendo diferentes funções para ajudar na ocupação.

“O jovem mostrou que está com vontade de estudar. O Estado e os professores, agora, têm que respon-der à altura, oferecendo educação de qualidade e de interesse”, diz Be-tisaida de Souza, 58. Mãe de Felipe, ela passou na escola num domingo para perguntar ao filho se poderia usar sua experiência como pro-motora de eventos para ajudar na ocupação. “Na minha época, eu fui impedida de estudar porque fiquei órfã. Eu sinto que agora eles estão fazendo algo pela educação, algo que eu não pude fazer.”

Betisaida conta que o filho esta-va desinteressado pela escola, passou um ano afastado, mas se animou após a ocupação trazer a esperança de melhorar a educação.

“Depois de tudo isso, não dá para aceitar que a escola continue a mesma. Se alguém fizer bagunça na aula, eu mesmo vou impedir”, atesta Felipe, carregando um exemplar do Diário de Anne Frank, fruto de uma doação aos ocupantes. “O método

de ensino está ultrapassado, assim como os livros. Isto aqui é um te-souro”, diz sobre o relato escrito por uma menina de 12 anos que denun-cia as atrocidades do antissemitismo durante a Segunda Guerra Mundial.

A movimentação dos alunos re-sultou na queda do secretário de Educação, Herman Voorwald, e na suspensão do plano pelo governa-dor Geraldo Alckmin, que definiu 2016 como um ano de debates com pais, alunos e professores sobre a proposta. “Os estudantes não ima-ginavam que tinham tanto poder”, diz Pedro. Mesmo assim, eles ad-mitem que ganharam apenas uma batalha. A luta por uma educação pública de qualidade continua.

eles querem maisO interesse por temas que não

são tratados em sala de aula tam-bém mexeu com Jéssica, de 16 anos, estudante do 2º ano na E.E. Joa-quim Alvarez Cruz, em Parelheiros, no extremo sul da capital paulista.

Em outubro, através da iniciativa “Quero na Escola”, a aluna pediu pa-lestras sobre feminismo e racismo e foi atendida. “Sobre feminismo, os professores nunca falaram nada. Ra-cismo é até comentado, mas não o suficiente para saber o que causa isso e como se defender”, explica a garota.

Segundo ela, as palestras desper-taram maior interesse pelos assun-tos, que foram tema de rodas de con-versas em outros eventos da esco la. Animada com o resultado, a estu-dante já planeja um novo pedido: uma aula sobre maioridade penal. “O público-alvo desse assunto somos nós, adolescentes. É um tema impor-tante, mas os professores fogem.”

O projeto foi criado por quatro jornalistas para dar conta dos in-teresses cada vez mais diversos da juventude. Através do site www.queronaescola.com.br, alunos da rede c

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pública de todo o país podem ca-dastrar sua escola e pedir aulas que fogem ao currículo obrigatório. As solicitações são atendidas por vo-luntários da sociedade civil.

Segundo os organizadores, as ocupações nas escolas paulistas comprovam que os estudantes têm muitos interesses além do currículo tradicional e reforçam a importân-cia da iniciativa. “Acreditamos que muitas das integrações com a comu-nidade que passaram a ocorrer ape-nas neste momento são uma peça--chave para melhorar a educação do país”, declararam no site do projeto cujo objetivo é aproximar a escola pública da sociedade.

Em três meses, 11 voluntários também deram aulas de artesanato, cerâmica, contação de história, foto-grafia e mágica. No total, 370 estu-dantes participaram das atividades realizadas em São Paulo. Mas a lista de desejos é grande: são mais de 150 pedidos de cem escolas de todo o país esperando por voluntários. Para atendê-los, foi criada uma campa-nha de financiamento coletivo.

Para melhorar o projeto e apro-ximar ainda mais a comunidade da escola, Jéssica sugere que as palestras sejam abertas para não alunos e que os estudantes também façam excur-sões para conhecer coletivos e par-ticipar de eventos externos. “Ia ser legal tirar um dia na semana para fazer uma roda de conversa para os alunos expressarem sua opinião so-bre como melhorar a escola e sobre outros assuntos sem ser das aulas de português e de matemática”, sugere.

atenção, é hora da revisão

A maioria dos alunos, seja de escolas particulares ou do ensino público, critica a distância entre o conteúdo oficial das escolas e as dis-cussões cada vez mais presentes na

sociedade. Mais do que passar no ves-tibular e ter uma profissão garantida, eles querem deixar as instituições de ensino como cidadão críticos.

Jéssica, do colégio público de Pa-relheiros, acredita que os temas e as pessoas que circundam a escola deve-riam ser recebidos de portas abertas. “Tem muito adolescente no bairro que não estuda. Se tivesse atividade aos sábados para a comunidade, eles podiam sentir vontade de estudar”, afirma. Um jovem mais consciente de seus direitos pode melhorar a esco-la e a sociedade, acredita a estudante.

A escola permanece muito indi-ferente às famílias e à vida comu-nitária do entorno, opina o profes-sor Elie Ghanem, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). “Em geral, os corpos de profissionais das escolas ignoram muito do mundo familiar e comu-nitário e se concentram nos saberes que julgam dever ‘transmitir aos alunos’. Essa tradição é que precisa ser invertida por completo”, sugere.

Para Luana, que estuda no parti-cular Etapa, mesmo passar no vesti-bular é uma tarefa difícil. Ela deseja prestar Artes Cênicas, mas como o

MARTINA [email protected]

colégio se concentra nas profissões e disciplinas mais tradicionais, nunca aprendeu nada sobre a carreira pela qual optou.

“Se você quer virar médico ou en-genheiro, ótimo. Se fizer outra esco-lha, é complicado”, opina. A estudan-te defende que temas como política e feminismo deveriam, sim, fazer parte do currículo obrigatório, pois a escola “é um local de formação de seres humanos e não de máquinas”.

Segundo o professor Ghanem, as escolas nunca conseguiram se con-verter em espaços de debate aberto sobre assuntos de interesse comum e, nesse contexto, as ocupações e outras iniciativas dos estudantes surgem como exemplos do exercí-cio da cidadania.

“É preciso interromper a rotina escolar para debater educação, polí-tica, ou temas que estão confinados ao mundo privado, tais como a afe-tividade e o preconceito”, analisa. No entanto, para ele, ainda resta muito a se fazer. “Após as ocupa-ções, o desafio permanecerá o mes-mo de antes: rever profundamente o que costumamos entender por aula, escola e educação.”

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