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Odisseu e o abismo Roger Bastide as religiões de origem africana e as relações raciais no Brasil.pdf

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  • iiFICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP Ttulo em ingls: Odysseus and the Abyss: Roger Bastide, the African religions, and race relations in Brazil. Palavras-chave em ingls (keywords) : rea de Concentrao: Pensamento Social Brasileiro Titulao: Doutorado em Sociologia Banca examinadora: Data da defesa: 12 de dezembro de 2006. Programa de Ps-Graduao: Sociologia Sociology - Brazil Intellectuals - History Race relations Afro-Brazilian cults Prof Dr Elide Rugai Bastos (orientadora) Prof. Dr. Renato Pinto Ortiz Prof. Dr. Glaucia Villas Bas Prof. Dr. Roberto Mauro Cortez Motta Prof. Dr. Fernando Antonio Loureno Nucci, Priscila N883o Odisseu e o abismo : / Roger Bastide, as religies de origem africana e as relaes raciais no Brasil / Priscila Nucci. - Campinas, SP : [s. n.], 2006. Orientador: Elide Rugai Bastos. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. 1. Bastide, Roger, 1898-1974 Crtica e interpretao. 2. Sociologia - Brasil. 3. Intelectuais Histria. 4. Relaes raciais. 5. Cultos afro-brasileiros. I. Bastos, Elide Rugai. I. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. III.Ttulo.
  • iii Resumo Neste trabalho analisaram-se as formas como o socilogo francs Roger Bastide (1898-1974) articulou os termos raa/ religio em sua obra e, a partir disso, elaborou reflexes peculiares sobre o preconceito e as relaes raciais no Brasil. Para isso, a anlise centrou-se em recortes especficos de sua obra, nos quais se pde perseguir a formulao que deu aos debates da aculturao/ interpenetrao cultural, das religies de origem africana no pas, e das relaes raciais. O candombl de rito nag apresentou-se, em seus textos, como caso sui generis de integrao e parece se constituir em chave para o entendimento das razes pelas quais o autor elaborou determinado tipo de imagem e anlises acerca da populao afro-descendente em dado contexto. Outras chaves seriam: a polmica em torno das reportagens da Paris Match e de O Cruzeiro, referentes a rituais secretos do candombl e os usos possveis que o autor fez do surrealismo e da histria nas narrativas de O candombl da Bahia e em As religies africanas no Brasil. Todas estas frentes auxiliam a matizar e redimensionar as funes e intenes de alguns dos principais textos de Roger Bastide, para o tempo em que foram escritos.
  • iv Abstract In this thesis we analysed how the French sociologist Roger Bastide (1898-1974) articulated the terms race/religion in this thought, and how, from this uses he elaborated a very peculiar reflections about prejudice and race relations in Brazil. Our analysis focused in specifics aspects of Bastides texts, in which we can search his formulation to the debate of acculturation, cultural interpenetration, afro-brazilian religions and race relations. The candombl from the nag rite is showed in his texts as a sui generis case of integration and seems to be the key for understanding the reasons through which the author elaborated a certain kind of image and analysis about the afro-descendent population in this context. The others keys are: the polemic around the reportages published in Paris Match and O Cruzeiro about the secret rituals of the candombl and the possible uses that the author did for the surrealism and the history in O Candombl da Bahia and As Religies Africanas no Brasil. All those directions contributes to a complex analysis and suggests new functions and intentions for some of most importants texts of Roger Bastide, considering the time in which the were written. Keywords: Sociology Brazil, Intellectuals History, Race relations, Afro-Brazilian cults.
  • v Rsum Dans cette thse sa analys les formes pour lesquelles le sociologue franais Roger Bastide (1898-1974) a articul les termes race/religion dans son uvre et comment il a construit une pense singulier sur le prjug et les relations raciales au Brsil. Lanalyse a privilgi quelques aspects spcifiques de sa pense, dans lesquelles on a pu suivre la formulation partir des dbats sur lacculturation et linterpntration culturelle, des religions dorigine africaine au pays, et des relations raciales. Le candombl de rite nag sa prsent, dans ces textes, comme un cas sui generis dintgration et semble se construire comme une cl qui permettre lentendement des raisons de lauteur dans llaboration dun dtermin type dimage et des analyses sur la population des descendants africains, dans ce contexte. Des autres cls seraient : la polmique autour des reportages au Paris Match et au O Cruzeiro, rfrents aux rituels secrts du candombl et des possibles usages qui lauteur a fait du surralisme et de lhistoire dans les narratives dans Le Candombl de Bahia et Les religions africaines au Brsil. Ces questions nous aident faire une analyse que prendre en compte la complexit et mettre aussi dans nouvelles dimensions les fonctions et intentions de quelques des principaux textes de Roger Bastide, lpoque de son criture. Mots-cl: Roger Bastide, Sociologie, histoire intellectuelle, relations raciales, religions afro-brsiliennes.
  • vii Para meus pais, Eliane e Luis.
  • ix Agradecimentos Expresso, primeiramente, meu reconhecimento e admirao Profa. Dra. Elide Rugai Bastos pela orientao inspirada e delicada durante o doutorado em Sociologia no Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Unicamp. Agradeo igualmente ao Prof. Dr. Fernando Antonio Loureno a amizade e o apoio fundamentais dados durante as fases de elaborao do projeto de pesquisa e durante o doutorado. Agradeo as sugestes e crticas, e a possibilidade de interlocues importantes propiciadas pelos membros da banca de qualificao: Prof. Dr. Omar Ribeiro Thomaz e Profa. Dra. Mariza Corra, e aos membros da comisso julgadora de minha tese. Expresso meus agradecimentos a todas as pessoas que, de alguma forma, estiveram presentes e me ajudaram ao longo deste trabalho: aos meus pais, Luis e Eliane, aos meus irmos, Angela e Rafael, pelo carinho e apoio constantes, assim como ao Pepo; em especial, agradeo Angela, pelas indicaes dos textos referentes ao surrealismo; aos amigos: Sheila Matsuoka Cal, Jnatas Rossetto e D. Germnia agradeo a ajuda fundamental durante a pesquisa em Salvador; Endrica Geraldo, Jefferson Cano, Renata Senna Garrafoni, Simone Meucci e Mrio Augusto Medeiros da Silva agradeo a amizade, as leituras e sugestes feitas s verses do texto da tese; agradeo, igualmente, Eliana Rovere, Magda de Mariolani, Flvio Ferro, Raquel Stoiani, Cristiano Pedreira, Arlindo Sales, Thereza Sales e Cntia Vieira da Silva, que foram presenas marcantes ao longo deste perodo, assim como Mariana Ide Sales, que de longe no deixou de oferecer a rara amizade e a possibilidade de outras vises sobre a vida, alm da ajuda com as leituras do texto da tese e com as tradues.
  • xAgradeo, tambm, as possibilidades de dilogo propiciadas no XI e XII Congressos da Sociedade Brasileira de Sociologia e nos encontros do CEB, realizados nos ltimos anos, alm das interlocues com os Professores Doutores Glaucia Villas Bas, Andr Pereira Botelho, Maria Lcia de Santana Braga, Alexandro Dantas Trindade, Fernando de Tacca e Carlos Gileno e aos colegas de ps-graduao Tatiana Martins, Iara Rolim, Cintya Costa Rodrigues e Jos Benevides Queiroz. Agradeo, especialmente, Simone Meucci, Joo Francisco Simes e Mariana Chaguri pela amizade, coragem, apoio e profissionalismo mostrados durante a organizao do Seminrio Gilberto Freyre e durante nossa convivncia no Centro de Estudos Brasileiros - IFCH/Unicamp. Agradeo, tambm a Fernando Silva, pela ajuda providencial. Agradeo o importante trabalho de : Bete, Gil e Christina, funcionrias das secretarias do IFCH; dos funcionrios das bibliotecas da USP e do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas, do Instituto de Estudos da Linguagem, da Faculdade de Educao, da Biblioteca Central da UNICAMP; dos funcionrios do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e da Fundao Pierre Verger, em Salvador. Deixo aqui meus agradecimentos especiais direo e aos funcionrios e amigos do Arquivo Edgar Leuenroth IFCH - Unicamp, Mrio Martins de Lima, Ema Franzoni e aos que sempre me auxiliaram com seu trabalho, desde as pesquisas da graduao. Agradeo a rara competncia e diligncia, demonstradas em seu trabalho, e o respeito e reconhecimento que sempre tiveram quanto aos pesquisadores e suas pesquisas. Por fim, gostaria de agradecer o financiamento da pesquisa por parte do CNPq, durante o perodo de abril a outubro de 2002, e o apoio financeiro da FAPESP, concedido de novembro de 2002 a novembro de 2005, os quais foram essenciais para a realizao desta tese.
  • xi Pero en esto la sociologa no es para nada muy diferente de la filosofia: debemos comprender incluso los textos famosos como um campo de fuerzas; debemos descubrir, por debajo de la superficie de doctrinas aparentemente coincidentes, las fuerzas que se enfrentam mutuamente, y que luego son reunidas em formas ms o menos sistematizadas o en formulaciones definitivas. (Porm a sociologia no muito diferente da filosofia: devemos compreender inclusive os textos famosos como um campo de foras; devemos descobrir, sob a superfcie de doutrinas aparentemente coincidentes, as foras que se enfrentam mutuamente, e que ento so reunidas em formas mais ou menos sistematizadas ou em formulaes definitivas.) (Theodor Adorno. Introduccin a la Sociologia (1968). Barcelona, Gedisa, 2000, p.20). On mavait defini jadis: celui qui tourne autour de tous les gouffres, pour sentir la sduction de leurs vertiges, mais qui sattache bien au mt du navire ; il veut couter les Sirnes, mas pas se noyer. (J havia me definido: aquele que gira em torno de todos os abismos, para sentir a seduo de suas vertigens, mas que se amarra bem ao mastro do navio; deseja-se ouvir as sereias, mas no se afogar.) (Roger Bastide. Rflexions sur une agitacion). Toda a cincia uma reconstruo da realidade. Substitui-se a imagem confusa do mundo, dada pelos sentidos ou pela experincia ntima, por uma imagem total, fruto do trabalho intelectual. A sociologia no uma exceo regra. Ela um sistema de relaes lgicas. (Roger Bastide. A propsito da poesia como mtodo sociolgico).
  • xiii Sumrio Introduo 1 Captulo 1 Um mapeamento: o autor e algumas das vises de sua obra 9 Captulo 2 Encruzilhadas e espelhos: as interlocues obrigatrias de Bastide com Arthur Ramos e Gilberto Freyre 49 Captulo 3 Inflexo no percurso: alguns debates em torno das relaes raciais e do preconceito em So Paulo 105 Captulo 4 Vertigem e abismo: pobreza ocultada, rituais expostos e uma evidncia interessante 169 Captulo 5 Histria, astcia 237 Consideraes finais 271 Referncias bibliogrficas e acervos consultados 283
  • 1Introduo Inicialmente, o objetivo desta tese era pensar as relaes entre a produo acerca das religies africanas e a produo acerca do preconceito no Brasil, mobilizada, principalmente atravs da obra de Bastide, Arthur Ramos, Donald Pierson, dison Carneiro e Pierre Verger. Com o decorrer da pesquisa, que sempre implica em dilogos, sugestes, rearranjos, crises e, por vezes, insights importantes que nos colocam na pista de possveis interpretaes sobre nossos problemas, deparei-me com algumas opes. Uma delas era continuar com o objetivo inicialmente proposto, o que me permitiria apresentar uma viso panormica do processo de elaborao dos estudos sobre o preconceito, mas conseqentemente diluir a figura intelectual de Bastide entre muitas interlocues, que se multiplicavam com o avano das leituras e trabalho nos arquivos. Estas interlocues, embora importantes, poderiam tirar o foco de um autor e de uma obra que foram essenciais para a elaborao do projeto de pesquisa apresentado na seleo do programa de ps-graduao em Cincias Sociais, ao final do ano de 2001. Outra opo era centrar o foco em Bastide e em sua obra, e realizar uma anlise interna de seus textos, atravs de temas especficos, nos quais eu poderia ainda mobilizar interlocues essenciais no corpus de sua obra, sem, no entanto, perder de vista o problema da constituio do tema do preconceito racial. A opo foi por uma mudana de direo, de ajuste no foco: no pensei mais na constituio do tema no campo, mas passei a perseguir o tema na obra de Roger Bastide, mostrando algumas das muitas sutilezas e especificidades presentes em seu pensamento acerca da chave religio/ raa. As minhas questes, portanto, referem-se a algumas das formas de constituio do tema do preconceito contra a populao de origem africana na obra de Bastide, e por que este tema se mostrou de uma determinada maneira. A partir desta mudana, que deslocou meu olhar e a anlise para algo alm do que Bastide poderia ter incorporado ou modificado nos dilogos com as
  • 2vertentes intelectuais brasileiras, pude entrar em contato mais profundo com as sutilezas de seu pensamento. Passei, portanto, de uma fase da pesquisa em que os textos de Bastide tinham uma funo de remeter a vrios dilogos e autores, os quais eu percorri durante certo tempo para uma fase em que me detive sobre questes especficas de sua obra. Mudando o contexto, pode-se sugerir que inverti a luneta ao meu modo, - como o prprio autor disse uma vez, ao explicar que via certos problemas atravs do caso das civilizaes africanas, invertendo o foco da civilizao brasileira, presente em Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre. Ambos os caminhos tinham como ponto de partida a obra de Bastide, mas o que se modificou foi a conscincia quanto ao objeto e s suas peculiaridades. Bastide possui uma obra complexa, longa e variada em temas, interlocues e abordagens. No foi difcil me perder durante um tempo relativamente longo em questes e desvios traioeiros, em caminhos de pesquisa que apesar de terem um ponto de partida em seus textos me distanciaram da questo do preconceito. A opo que se me apresentou foi a vigilncia, foi olhar mais para seus textos e bem menos para o de seus interlocutores. Isso tornou necessrios certos cortes e opes. Por outro lado, mantive e mobilizei algumas interlocues que talvez possam ser consideradas inusitadas. Elas se justificam pelo prprio movimento do trabalho de pesquisa, que ao se centrar em questes como a assimilao, a aculturao e a mestiagem deu uma nova face ao que eu percebia como o debate acerca do preconceito num determinado contexto intelectual. Neste sentido, meu olhar se aprofundou em certas dobras empoeiradas da histria, nas quais reencontrei uma importante contribuio de Emilio Willems ao problema do preconceito racial e das relaes raciais. Ele um dos autores fundamentais da poca, no s porque ajudou na formao de outras geraes de intelectuais, mas tambm porque tratou de temas como a presena de imigrantes no pas e das relaes entre brancos e negros, em contribuies que so contrapontos importantes para a poca.
  • 3A integrao, a assimilao e a aculturao so alguns dos temas que atravessam a obra de Bastide. Apesar de variveis, conforme o local de enunciao, eles apontam para ligaes profundas entre as preocupaes governamentais brasileiras, intelectuais e populares quanto identidade e formao tnica ou racial da nao. Mas apontam, tambm, para conceitos comuns s vertentes de estudos do preconceito e das religies afro-brasileiras. A obra do socilogo francs permite o acesso, para o entendimento de uma parcela do processo de constituio do tema do preconceito e das relaes raciais e das imagens sobre os negros, no pas. Algumas das fontes selecionadas durante a pesquisa, que em geral recebem ateno marginal nas anlises, so os artigos de revistas e jornais. Neles encontrei alguns dos principais insights da pesquisa, algumas das chaves possveis para propor hipteses acerca do relacionamento do autor com os temas da religio e da raa, e para indicar a possibilidade de outras vises sobre as interpretaes de Bastide. Em certo sentido, eles me permitiram um contraponto de bastidores aos textos principais de Bastide, e ao mesmo tempo, uma contextualizao de poca, que pode nuanar e, espero, contrabalanar, em parte, alguns dos limites de uma anlise interna dos textos. Textos, conceitos, idias, contextos, modos de negociao intelectual so, ao fim, os materiais de anlise desta tese. Uma ltima palavra sobre algo caro a mim: a histria. Caro, pois a minha formao em histria, e porque ao longo do trabalho de pesquisa pude perceber, mais detalhadamente, algumas das peculiaridades das relaes de Bastide com este tema, atravs da sua amizade e do contato com historiadores franceses, como Lucien Febvre (o que mereceria uma outra pesquisa), seja atravs das dimenses que a narrativa histrica toma em seu texto, ou do modo como o autor a utiliza como instrumento. Se as relaes do autor com a narrativa histrica nem sempre foram isentas de problemas, o que eu tentarei mostrar ao longo de um dos captulos, a forma que essa mobilizao toma essencial para entendermos certos desdobramentos da obra de Bastide sobre a religio e o preconceito.
  • 4Este foi meu itinerrio, ou pelo menos, o que eu consegui transformar em narrativa mais ou menos racionalizada, embora saiba dos limites que cercam tais tentativas. Sabe-se que a justificao dos autores nunca isenta de uma vontade de organizar, de dar racionalidade para um quadro do qual eles nunca podero ter conscincia ou domnio completos.1 Os processos da escolha de um tema, de pesquisa e escrita so atravessados por uma srie de imponderveis que fazem parte do trabalho intelectual e da prpria vida: interlocues, leituras, relaes, influncias, debates, dvidas, questionamentos, insights e, talvez o mais importante, nosso presente. Um dos motivos que me levou a escrever este trabalho foi o encantamento com a forma e os movimentos que os debates entre os intelectuais podiam tomar no passado, o que se mostra de forma peculiar nos textos de Bastide. Outro motivo estava ligado ao contraste que percebi entre as concepes contemporneas acerca do candombl e de seus adeptos e as apresentadas nos trabalhos de Bastide. Apesar de o autor reproduzir em seus textos alguns termos da poca como sangue negro,2 que lido como termo preconceituoso nos dias atuais , suas formulaes oferecem ao cenrio intelectual uma contribuio muito valiosa, no que diz respeito criao de outras vises e identidades para a populao negra. Quis mostrar, enfim, este ato de poder inscrito no texto do autor, e outros, que no decorrer da pesquisa evidenciaram faces diversas do seu trabalho intelectual. Agora, apresento o desenho da tese. No captulo 1 fao algumas consideraes sobre Roger Bastide e as especificidades de sua produo intelectual, e apresento uma parte importante da crtica a sua obra, na busca de um mapeamento do objeto. As diversas vises sobre sua produo mostram algumas das mobilizaes possveis de suas anlises, no que diz respeito aos temas do preconceito e das religies, e alguns problemas relacionados. 1 Dominick LaCapra. Rethinking Intellectual history and reading texts In: Rethinking Intellectual History. New York, Cambridge Press, 1989. 2 Roger Bastide. A poesia afro-brasileira (1943). Estudos afro-brasileiros. So Paulo, Perspectiva, 1983, p. 42, 100.
  • 5No captulo 2 analiso o debate de Roger Bastide com os representantes de tradies intelectuais antagnicas no cenrio brasileiro das dcadas de 1930 e 1940, Gilberto Freyre e Arthur Ramos, e a emergncia de novas imagens sobre o negro e suas prticas religiosas. Por meio da mobilizao dos conceitos comuns aos autores mostro a especificidade da formulao da reflexo de Bastide, e o jogo intelectual em torno do tema negro brasileiro". 3 No Captulo 3 ocorre uma mudana importante de foco, que visa outra faceta do processo de elaborao das temticas do preconceito e das relaes raciais no pas. A obra de Bastide apresenta-se, novamente, como acesso a interlocues e inflexes essenciais no cenrio intelectual brasileiro, vistas atravs dos debates presentes em So Paulo, na Universidade de So Paulo (USP) e na Escola Livre de Sociologia e Poltica (ELSP). A USP foi o local onde Bastide exerceu sua atuao docente universitria, onde outros professores estrangeiros elaboram suas reflexes sobre os temas locais e nacionais, e onde o processo de institucionalizao das Cincias Sociais se apresentou de forma bastante visvel.4 Os desenvolvimentos da temtica do negro brasileiro nesse cenrio tomam tons peculiares. A pesquisa da UNESCO expressa um movimento de transformao nas Cincias Sociais brasileiras, no qual se acentua uma especializao maior da Antropologia e da Sociologia, e no qual se mostra a redefinio de imagens sobre a populao afro-descendente. Tal passagem marca um momento importante da constituio das Cincias Sociais no Brasil,5 e apresenta-se de forma peculiar na 3 Segundo Maria Lcia de Santana Braga Bastide, ao tratar do pensamento de Gurvitch, mostra suas afinidades e seu interesse em fazer uma sociologia que primasse pela pesquisa das convergncias entre os vrios pensadores e no pela disputa entre as escolas de pensamento rivais. Maria Lcia de Santana Braga. Entre o esquecimento e a consagrao: o estilo Roger Bastide nas Cincias Sociais. Braslia, Tese Sociologia UnB, 2002, p. 80. 4 Srgio Miceli (org.). Histria das Cincias Sociais no Brasil. Vol. I. So Paulo, Ed. Vrtice, 1989; ____. Histria das Cincias Sociais no Brasil. Vol. II. So Paulo, IDESP/ FAPESP, 1995; ____(org.) O que ler na Cincia Social Brasileira (1970-1995). Vol. I Antropologia. So Paulo, Ed. Sumar, ANPOCS, CAPES, 1999; ____ (org.). O que ler na Cincia Social Brasileira (19701995). Vol. II Sociologia. So Paulo, Ed. Sumar, ANPOCS, CAPES, 1999; Glaucia Villas Bas. A vocao das cincias sociais (1945/1964): um estudo da sua produo em livro. So Paulo: Tese de doutoramento- USP, 1992. 5 Ver Marcos Chor Maio. A Histria do Projeto UNESCO: estudos raciais e Cincias Sociais no Brasil. Rio de Janeiro, Tese de Doutorado - IUPERJ, 1997, p. 3; Roger Bastide. Les relations raciales au Brsil. In: Bulletin International des Sciences Sociales. Vol. IX, no. 4, 1957, p. 525-543.
  • 6obra do autor. Isso marca uma inflexo na obra de Bastide, mas no exclui as reflexes advindas do contato com os autores nordestinos. As relaes raciais, em sua forma mais harmnica, so localizadas nos terreiros de candombl da Bahia e Nordeste, o que aponta para um uso da religio como acesso privilegiado para a interpretao da sociedade brasileira. No Captulo 4 outro foco se apresenta para complementar o exerccio metodolgico dos projetores convergentes.6 Atravs da anlise de textos e fotografias elaborados entre as dcadas de 1930-60, pelos intelectuais estrangeiros Roger Bastide, Ruth Landes, Pierre Verger e Henri-Georges Clouzot apresento algumas reflexes sobre os modos e formas utilizados para analisar e definir imagens e conhecimentos acerca dos candombls baianos e da populao afro-descendente. A conformao dessa rede de significados e imagens variadas indica elementos importantes para o entendimento da recepo e circulao das leituras e imagens sobre os candombls e a populao afro-descendente. Roger Bastide teve uma atuao constante na imprensa brasileira, e se manifestou publicamente contra a exposio dos segredos rituais da iniciao do candombl. Ao contrrio de outros momentos de sua produo, Bastide explicita uma possibilidade negada h dcadas por intelectuais de renome, o conflito entre raas e culturas no interior da formao social brasileira. A atuao deste e de outros intelectuais na imprensa mostra a fluidez da conformao das reflexes acerca das relaes raciais, e a mobilizao de um tema-chave, as religies de origem africana. Alis, de um tema potencialmente perigoso,7 que nem sempre esteve isento das polmicas mais acirradas. 6 Para apreender a riqueza social em toda a sua farta complexidade, precisamos recorrer aos mais variados mtodos, mesmo ao mtodo potico, caso seja necessrio. aquilo que j denominei ... princpio dos projetores convergentes que iluminam o objeto estudado, como num teatro a danarina aprisionada nos mltiplos fachos luminosos que jorram de todos os cantos da sala. Roger Bastide. Roger Bastide: Sociologia, (Org. da coletnea: Maria I. P. de Queiroz). So Paulo, tica, 1983, p. 84. 7 Como as investidas da Universal do Reino de Deus contra as religies de origem africana no deixam de mostrar. A porcentagem de fiis do candombl no Brasil pode chegar a 0.3% da populao brasileira, ndice que demonstra a desproporo que os preconceitos e atitudes discriminatrias contra essa minoria tomam. Ver Srgio Amaral Silva. No ritmo dos tambores In: Valor econmico, 22.04.2005. Sobre as condies atuais do candombl no Brasil e os atritos e perseguies a que a religio est sujeita ver: Reginaldo Prandi. Segredos Guardados. So Paulo,
  • 7No captulo 5, que fecha a tese, reflito acerca de alguns usos que o autor faz da histria em sua obra, no que diz respeito ao tema dos estudos sobre o preconceito e as relaes raciais no Brasil. Para isso, tomo o texto de As religies africanas no Brasil (1971 [1960]), e, inusitadamente,8 o de O Candombl da Bahia (2001[1958]), nos quais se apresentam vrios tempos e relaes sociais especficos, os quais indicam como o pensamento de Bastide organizou e recriou de uma determinada forma as relaes raciais brasileiras e a sua histria. Os candombls tomam, assim, um lugar essencial na sua reflexo acerca das relaes raciais, ao serem dimensionados como elementos inusitados e poderosos no processo de mudana social. O que, a propsito, anunciado no incio de As religies africanas no Brasil, quando o autor prope que as superestruturas trazidas pelos escravos africanos (re)criam as infra-estruturas no Brasil. Essa uma das muitas inverses presentes em sua obra, as quais tm como um dos efeitos, tentarem explodir e recriar a viso das relaes entre homens e mulheres em determinadas sociedades e tempos. Inverses que anunciam, talvez, uma pincelada sutil de surrealismo, mas que tem suas implicaes fortes nos usos da histria. Nas consideraes finais retomo as pistas e reflexes feitas ao longo dos outros captulos para refletir a propsito da questo da elaborao do tema do preconceito na obra de Bastide. Cia. das Letras, 2005. Ver tambm: Vagner Gonalves da Silva (Org.). Intolerncia religiosa. Impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro. So Paulo, EDUSP, 2006. 8 Isso, porque este um livro no qual o autor afirma que estudaria o candombl como realidade autnoma, sem referncia histria ou ao transplante de culturas de uma para outra parte do mundo. Roger Bastide. O candombl da Bahia: rito nag. So Paulo, Cia. das Letras, 2001, p. 24. Apesar disso, podem-se notar algumas intruses da histria em seu texto, o que pretendo explicitar mais adiante, no captulo 5.
  • 9Captulo 1 Um mapeamento: o autor e algumas das vises de sua obra No texto introdutrio do livro Roger Bastide ou le Rjouissement de labme, Philippe Laburthe-Tolra cita um trecho de texto indito do socilogo Roger Bastide (1898-1974) acerca dos eventos de 1968. Nele, o autor francs indica sua atrao pelos temas perigosos como abismos e, ao mesmo tempo, o compromisso com a racionalidade, ponto de apoio necessrio para evitar um mergulho fatal, atitude aparentada com a do Odisseu de Homero ao se deparar com as sereias: J havia me definido: aquele que gira em torno de todos os abismos, para sentir a seduo de suas vertigens, mas que se amarra bem ao mastro do navio; deseja-se ouvir as sereias, mas no se afogar.1 Ao longo de sua longa trajetria intelectual Roger Bastide demonstrou esse gosto pela vertigem, pelos abismos, ao se envolver com temas variados, apresentados, principalmente, durante a sua vivncia no Brasil.2 Transe, 1 On mavait defini jadis: celui qui tourne autour de tous les gouffres, pour sentir la sduction de leurs vertiges, mais qui sattache bien au mt du navire ; il veut couter les Sirnes, mas pas se noyer. Roger Bastide. Rflexions sur une agitacion (texto indito) apud Philippe Laburthe-Tolra, Le Rjouissement de LAbme In: Philippe Laburthe-Tolra (dir.). Roger Bastide ou Le Rjouissement de LAbme : chos du colloque Cerisy-la-Salle du 7 au 14 septembre 1992. Paris, dtions LHarmattan, 1994, p. 7. [trad. minha] 2 Ver Franoise Morin. Les indits et la correspondance de Roger Bastide In: Philippe Laburthe-Tolra (dir.). Roger Bastide ou Le Rjouissement de LAbme, p. 25. Segundo a autora, a atrao pela vertigem de certos temas no estaria isenta dos limites da razo, ou at do medo da perda da razo: Para Bastide, a seduo dos abismos seria antes de tudo o estudo do transe, do sonho e do misticismo politesta. Em 1965, numa entrevista concedida ao jornal Combat, ele confidenciou a Jacques Delpeyrou: Em minha busca apaixonada de experincias msticas eu sempre tive medo de me tornar louco. Sua paixo pelo misticismo que preside elaborao de sua primeira obra em 1931 sobre Les problemes de la vie mystique faz com que ele pressinta que para estabelecer as leis da vida mstica somente o mtodo comparativo permitiria a ele multiplicar as experimentaes nos meios os mais diversos, nos pases os mais longnquos. Ns sabemos que esta pesquisa comparativa o trouxe at a Bahia, onde a seduo dos abismos, o apelo dos deuses fizeram dele um filho de Xang... Mas por medo de se afogar, Bastide resistir ao canto das Sereias, agarrar-se- ao mastro da razo e no prosseguir com esta iniciao. [trad. minha]. (Pour Bastide, la
  • 10candombl nag, candombls de caboclo, macumba, messianismo, poesia, arte, literatura, relaes raciais, movimentos negros, e outros temas atravessam seus escritos. Sua obra busca esse encontro com elementos, por vezes considerados irracionais, como a religio, a magia, a poesia, a arte, e constri propostas metodolgicas e formas de narrativa adaptadas a esse encontro. A produo de Bastide, acerca do Brasil e seus temas, apresenta uma narrativa peculiar, diversa de escritos posteriores, em que se apresenta uma narrativa mais tcnica, mais racional e em que desaparecem parte de seus traos poticos.3 A diferena do modo de narrativa flagrante, quando o objeto no se refere aos temas brasileiros. O prprio autor reconhece essa diversidade de abordagens, dependentes dos objetos em causa. 4 Entretanto, se o trecho citado anuncia a atrao e o cuidado pelo perigo da vertigem por certos assuntos, no evidencia as descontinuidades e fraturas desse processo. Embora nem todos estes tpicos sejam tratados nesta tese, acredito que a sua obra acerca das religies de origem africana e as relaes raciais, mostra uma srie de temas internos imbricados: a elaborao de reas especficas de estudos, de vrias temticas intelectuais, as relaes de poder entre ele e seus pares, a realidade do pas e de seus grupos humanos se infiltrando nos textos, marcando-os. Bastide primou pela produo de um corpus de textos que evidencia a riqueza e diversidade de seu pensamento. Se os textos publicados em jornais mostram o recurso a uma forma de narrativa mais superficial, a reflexes mais ligeiras sobre temas cotidianos, igualmente mostram reflexes acerca de sduction des gouffres, ctait avant tout ltude de la transe, du rve, et du mysticisme polythiste. En 1965, dans un entretien accord au journal Combat, il confiait Jacques Delpeyrou : Dans ma qute passionne des expriences mystiques jai toujours eu peur de devenir fou. Sa passion pour le mysticisme qui prsida l'laboration de son premier ouvrage en 1931 sur Les problmes de Ia vie mystique lui faisait pressentir que pour tablir les lois de la vie mystique seule la mthode comparative lui permettrait de multiplier les coups de sonde dans les milieux les plus divers, dans les pays les plus loigns. Nous savons que cette qute comparative l'amena jusqu' Bahia o la sduction des gouffres, I'appel des dieux feront de lui un fils de Shango ... Mais par crainte sans doute de se noyer, Bastide rsistera au chant des Sirnes, s'accrochera au mt de la raison et ne poursuivra pas cette initiation...). Idem. 3 Ver, por exemplo, Roger Bastide. Antropologia Aplicada. So Paulo, Editora Perspectiva, 1979 [1 edio francesa: 1971]. 4 Roger Bastide. Introduo. Estudos afro-brasileiros. So Paulo, Editora Perspectiva, 1983, p. X-XII.
  • 11temticas mais definidas e constantes em sua obra, vista como um todo. Ao lado disso, os textos dos livros e artigos de revistas cientficas auxiliam na montagem de um quadro em que os temas das relaes entre brancos e negros, da cultura negra, das religies de origem africana, da magia e da democracia racial aparecem em contextos diversos, atravs de reflexes que possuem um estilo diferenciado.5 O pensamento de Bastide apresenta-se de forma fragmentria e inacabada em muitos dos textos selecionados, sempre buscando novas possibilidades de expressar as vrias dimenses do real, as vrias vozes envolvidas no jogo entre os grupos sociais que analisa. O ponto de vista do pesquisador confunde-se com o dos objetos, dos sujeitos sobre os quais reflete, alterna vozes, oscila entre extremos, entre contrastes, ao mesmo tempo em que busca no detalhe do outro lado da luneta 6 as consonncias. Decifrar o pensamento e a narrativa de Bastide sobre os temas relacionados populao negra brasileira uma tarefa quase sem fim. A multiplicidade de temticas e de seus inter-relacionamentos razoavelmente extensa. Definir os limites de uma pesquisa como esta difcil, pois os materiais se multiplicam a cada passo num arquivo diferente. As obras de Bastide podem nos remeter a variados contextos intelectuais, a vrios debates e embates acadmicos e a uma longa lista de relaes entre temas vizinhos. Se isso tambm acontece com outros autores, no corpus da obra de Bastide esse procedimento complicado pela grande quantidade de materiais e pela recursividade presente nos textos. Um fato complica este cenrio: Bastide um autor central no pensamento social brasileiro, cuja obra condensa outros debates e dilogos com autores importantes para diversas pocas, que explicitam elementos sobre a constituio 5 Para uma anlise do estilo bastideano ver: Maria Lcia de Santana Braga. Entre o esquecimento e a consagrao: o estilo Roger Bastide nas Cincias Sociais. Braslia, Tese - Sociologia, 2002. 6 Gilberto Freyre estudou bem em Casa Grande & Senzala esses diversos fenmenos, mas estudou-os do ponto de vista da civilizao brasileira, e no do ponto de vista, que aqui nos preocupa, das civilizaes africanas. Precisamos, pois, retomar a questo, examinando-a, se se nos permite a expresso, pela outra extremidade da luneta. Roger Bastide. As religies africanas no Brasil: contribuio a uma sociologia das interpenetraes de civilizaes, vol. I. So Paulo, Livraria Pioneira Editora; EDUSP, 1971 [1960], p. 103.
  • 12intelectual do tema do preconceito e das relaes raciais no Brasil, mesmo que de maneiras descontnuas e fragmentadas. No quadro de autores que estudaram as religies afro-brasileiras, Bastide se sobressai pela abordagem, pela sntese sui generis de uma longa produo contempornea, pelas concluses, pela relao especfica com o objeto e com o grupo intelectual interessado no caso do negro brasileiro ou de suas manifestaes religiosas.7 Isso se constituir em fraqueza e fora de sua obra, em alguns momentos objeto de crticas enfticas quanto a sua metodologia, em outros, objeto nico de resgate da histria das Cincias Sociais brasileiras. Vindo da Frana para o Brasil em 1938, para ser o substituto de Claude Lvy-Strauss na cadeira de Sociologia da USP, Bastide veio com a inteno de estudar o transe nas religies de origem africana.8 Seu repertrio para tratar 7 Manterei a nomenclatura de poca usada pelos autores, como preto, negro, branco, mulato e relaes raciais. Estes termos so circunscritos e marcados historicamente por seus usos, e sero utilizados com ressalvas. Neste sentido, marca-se a diferena deles com termos mais recentes, como afro-descendente. Os primeiros termos representam imagens e valores diferenciados, conforme o tempo, mas indicam tambm uma naturalizao da cor que se estende at os dias de hoje. A esse respeito ver: Yvonne Maggie. A iluso do concreto: anlise do sistema de classificao racial no Brasil. Rio de Janeiro, Tese Cincias Sociais - UFRJ, 1991; Florestan Fernandes. A integrao do negro na sociedade de classes, vol I. So Paulo, Dominus; Ed. da Universidade de So Paulo, 1965, p. XIV. Sobre os debates em torno dos usos do termo raa, ver, entre outros: Yvonne Maggie e Claudia Barcellos Rezende (org.). Raa como retrica: a construo da diferena. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 2001; Clia M. M. Azevedo. Cota racial e Estado: abolio do racismo ou direitos de raa?. Cadernos de Pesquisa, v. 34, n. 121, p. 213-239, jan./abr. 2004; Antonio Srgio A. Guimares. Classes, Raas e Democracia. So Paulo, FUSP/Editora 34, 2002; ____. Racismo e anti-racismo no Brasil. So Paulo, Editora 34, 1999. 8 ...Assim, esboou-se em meu esprito (e a leitura de Mauss s fortaleceu meu projeto) a idia de conduzir paralelamente pesquisa que eu fazia sobre a sociologia do sonho, uma outra pesquisa que levaria a esta sobre a sociologia do transe. Minha partida para o Brasil, onde eu pretendia estudar as crises afro-americanas de possesso, no tiveram outra finalidade. [trad. minha]. (...Ainsi sbauchait em mon esprit (et la lecture de Mauss ne pouvait que fortifier mon projet) lide de conduire, paralllement lenqute que je menais sur la sociologie du rve, une autre enqute qui porterait celle-ci sur la sociologie de la transe. Mon dpart pour le Brsil, o je comptais tudier les crises de possession afro-amricaines, navait pas dautre finalit. Roger Bastide. Le Rve, la Transe et la Folie. Paris, Flammarion, 1972, p. 55. Uma outra verso encontrada em um artigo de Claude Ravelet, no qual citado um trecho de carta de Bastide sua famlia, datada de 11 de junho de 1938, quando o socilogo j se encontrava no Brasil: O tipo de interesse que tenho pelas pesquisas sociolgicas: no tanto conhecer as estruturas sociais quanto penetrar no mago da alma humana. Ora, esse mago s se revela em perodos de crise como os acarretados pelo contacto brutal de duas religies situadas em nveis diferentes. Foi o que me atraiu aqui. A idia de estudar os negros e a alma africana em contacto com a civilizao portuguesa. Claude Ravelet. Roger Bastide e o Brasil. In: Roberto Motta (org.). Roger Bastide Hoje: raa, religio, saudade e literatura. Recife, Bagao, 2005, p. 180-181. Deve-se perceber que esses interesses de Bastide por temas como o sonho, o transe e as religies de origem africana eram compartilhados por outros intelectuais franceses e que a
  • 13temas como a mstica, a religio e a magia, e a alteridade inclua autores como Durkheim, Lvy-Bruhl, Halbwachs, Mauss, Gurvitch, Marx, quadro este enriquecido ao longo do tempo pela leitura dos especialistas brasileiros, como Arthur Ramos, Gilberto Freyre, Manoel Querino, dison Carneiro, e pelo conhecimento da produo estrangeira de Melville J. Herskovits, Donald Pierson, Ruth Landes, Marcel Griaule e outros. 9 Bastide um, dentre os muitos intelectuais da poca, que trabalhou com o tema do negro. Antes dele, Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Gilberto Freyre, Oliveira Vianna, Euclides da Cunha, e uma longa linhagem da intelectualidade brasileira j se preocupavam com a participao do grupo populacional de ex-escravos de origem africana na construo de uma nao e na identidade de um povo. A questo da identidade nacional permeia a obra de Bastide atravs de seus debates com tais autores, mas em muitos casos, o tratamento que o socilogo d ao tema o diferencia e o separa da produo especfica sobre as religies de origem africana. Ele se afasta de fases das obras de Arthur Ramos e Nina Rodrigues, por exemplo, ao no seguir uma abordagem mdico-psiquitrica que visava indicar a desigualdade inata do negro brasileiro, no caso de Nina, ou a desigualdade de nvel psicolgico ou cultural, no caso de Ramos. Mas no deixa de incorporar elementos destas anlises, como o foco preferencial na religio nag e na pureza religiosa do candombl baiano.10 Assim, embora discorde de etnografia e o surrealismo desenvolviam-se em estreita proximidade nas dcadas de 1920 e 1930 nesse pas. Para uma anlise de tais relaes ver: James Clifford, Sobre o surrealismo etnogrfico e Poder e dilogo na etnografia: a iniciao de Marcel Griaule In: ____. A experincia etnogrfica. Antropologia e Literatura no sculo XX. Rio de Janeiro, Ed. da UFRJ, 2002, p. 132-226. 9 Maria Isaura Pereira de Queiroz, Introduo - Nostalgia do Outro e do Alhures: a obra sociolgica de Roger Bastide In: Roger Bastide: Sociologia. (Org. da coletnea: Maria I. P. Queiroz). S.Paulo, tica, 1983, p. 8-9, 12-13; Roberto Motta. L'Expansion et la Rinvention des Religions Afro-Brsiliennes: Renchantement et Dcomposition. Archives de Sciences sociales des Religions, Paris, n. 117, p. 113-125, 2002. Para um detalhamento da trajetria intelectual de Bastide na Frana e no Brasil ver: Maria Lcia de Santana Braga. Roger Bastide: morte e ressurreio de um paradigma. In: Roberto Motta (org.). Roger Bastide Hoje: raa, religio, saudade e literatura, p. 49-110. 10 Segundo Beatriz Gis Dantas Os estudos sobre as chamadas religies afro-brasileiras, particularmente sobre o Candombl, tm privilegiado como campo de anlise os contedos culturais e as especificidades desses contedos, quando no a procura de suas origens. Isso tem remetido constantemente frica, e essa busca incessante de africanismos, iniciada no sculo passado com Nina Rodrigues, tem tomado feies diversas, desde o cotejo mecnico e simples de traos culturais cuja semelhana com congneres africanos apresentada como prova de
  • 14pressupostos de Ramos, h um interesse compartilhado pela psicanlise, e leituras comuns aos dois autores. H uma aproximao da obra de Bastide com a interpretao de Gilberto Freyre do Brasil como pas mestio, de relaes raciais harmoniosas. Entretanto, em outros momentos, Bastide inverte algumas das concluses do socilogo brasileiro sobre o papel do negro na histria brasileira, e indica a especificidade de parcelas desse grupo, como o baiano, que vivia num enclave religioso dentro da sociedade maior. Pureza e mestiagem culturais so traos recorrentes em seus textos, assim como uma tentativa de sintetizar as concluses de autores das mais diversas filiaes nas suas prprias interpretaes do Brasil. Se a abordagem de Bastide parte de sua vivncia intelectual francesa e da sntese de autores brasileiros, h tambm uma valorizao da religio afro-brasileira, vista como religio com metafsica, com rituais complexos, detentora de controle social, organizadora do novo mundo dos escravos africanos e de seus descendentes no Brasil.11 Ele quer demonstrar que o pensamento africano um pensamento culto.12 Seus trabalhos de campo representam uma virada na abordagem da religiosidade negra no Brasil, embora sejam relativamente escassos: ...Apesar de ter chegado ao Brasil em 1938, somente no incio de 1944 Bastide realizou sua primeira viagem, de durao de um ms, pelo Nordeste, passando rapidamente por Salvador, Recife e Joo Pessoa. Mesmo tendo ficado um curto perodo em Salvador, Bastide teve contato suficiente com o universo do candombl. Ele viu uma confirmao de og na casa de Cotinha e uma sada de ia em um terreiro de nao angola, e sobrevivncias at os estudos que tentam mostrar a persistncia dos traos culturais como parte de um sistema religioso africano alternativo e funcional, ou ainda como expresso de um verdadeiro pensamento africano. Dessa busca da frica emerge a valorizao da pureza dos candombls. Paralelamente, a tradio nag (crenas e prticas rituais atravs das quais se pretende estabelecer vinculao de certos candombls s tradies religiosas de grupos africanos procedentes do Daom e da Nigria) elevada s culminncias de africanidade e apresentada como modelo de culto de resistncia no qual a manuteno da tradio da frica e dos valores africanos permitiria uma forma alternativa de ser. Beatriz Gis Dantas. Vov Nag e Papai Branco. Rio de Janeiro, Graal, 1988, p. 19-20. 11 Roger Bastide. Imagens do Nordeste Mstico em branco e preto. Rio de Janeiro, O Cruzeiro, 1945, p. 88, 90, 134; ____. As Religies Africanas no Brasil. Vol. I e II., p. 82, 308, 414; ____. O Candombl da Bahia: rito nag. (Nova edio revista e ampliada).So Paulo, Cia. das Letras, 2001. 12 Roger Bastide. O Candombl da Bahia, p. 24.
  • 15esteve na casa do pai-de-santo Joozinho da Gomia. (...) Contrrio impresso causada pelas suas inmeras publicaes sobre a temtica das religies afro-brasileiras e sua insero na sociedade brasileira, sugerindo um perodo extenso de pesquisa de campo, foram poucas as vezes que Bastide retornou Bahia depois dessa primeira viagem: deram-se somente em janeiro/ fevereiro de 1949 e em agosto de 1951, enquanto ainda estava ligado Universidade de So Paulo. Aps o seu retorno Frana, ele voltou outras duas vezes ao Brasil, aproveitando a sua estada para visitar tambm os amigos na Bahia: em setembro de 1962 e em agosto de 1973, poucos meses antes de sua morte, no dia 10 de abril de 1974.13 H nas anlises do candombl nag efetuadas por Bastide valorizaes relativas, como a descrio potica dos rituais pblicos,14 o afastamento do transe 13 Angela Lhning. Introduo. In: Pierre Verger. Verger-Bastide: dimenses de uma amizade. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2002, p. 9-10. Entretanto, o prprio Bastide diria que sua tese se fundamenta numa longa observao etnogrfica de vrios anos. Roger Bastide. As Religies Africanas no Brasil, vol. I., p. 42. Pode se configurar aqui uma diferena entre as concepes de pesquisa do presente e do passado, as quais implicam em diferentes metodologias, possibilidades de financiamento e formas de atuao intelectual. Roberto Motta chama a ateno para algumas destas questes. Motta acentua que Bastide foi um sistematizador das obras de seus predecessores brasileiros acerca das religies de origem africana, e o carter secundrio das pesquisas de campo em sua trajetria intelectual. Entretanto, aponta para as caractersticas que as pesquisas de campo tomavam na poca.: ... Bastide, embora executando essa tarefa com uma originalidade em nada diminuda por seu ecletismo terico, foi, acima de tudo, um compilador e organizador. Seus trabalhos sobre as religies afro-brasileiras so essencialmente baseados em dados secundrios, isto , nos trabalhos de seus predecessores, sobretudo brasileiros. Mas no podemos tambm subestimar o que recebeu de Pierre Verger, que, sendo, nesta matria, il gran maestro di color che sanno... Bastide no chegava a ser o que se chama de um pesquisador de campo. Ele admite, em O Candombl da Bahia, um total de nove meses de enqute personnelle, de investigao pessoal, no Brasil cinco dos quais na Bahia , dispersos, esses nove meses, dentro de um perodo de sete anos... Ainda por cima, tudo leva a crer que, na linguagem de Bastide, enqute personnelle tivesse, em primeiro lugar, o sentido de contactos com outros estudiosos, residentes nos lugares que visitava. No precisamos ter preconceitos. Franz Boas, muitas vezes considerado como prottipo do field worker no teria dedicado muito mais tempo do que Bastide ao trabalho de campo, enquanto outros, conhecidos por suas muitas viagens e pelo que sobre elas escreveram, no teriam ido muito alm dos gestos e das palavras. Roberto Motta. Memria, Rito Nag e Terreiros Bantos: Roger Bastide e alguns de seus predecessores no estudo do candombl. In: Roberto Motta (org.). Roger Bastide Hoje: raa, religio, saudade e literatura, p. 317-318. Outra verso do artigo encontra-se em Roberto Motta. Lapport brsilien dans loeuvre de Roger Bastide sur le Candombl de Bahia. In: Philippe Laburthe-Tolra (dir.). Roger Bastide ou Le Rjouissement de LAbme, p. 169-178. 14 Em dois artigos de 1946, Bastide defende a poesia como mtodo a ser utilizado pela sociologia, idia que ecoa at seus ltimos trabalhos. Entre as idias presentes nos textos, h a indicao da necessidade da leitura de romances para o trabalho sociolgico, em especial os que nos prope mtodos de trabalho, habituam-nos a certas maneiras em geral por ns pouco utilizadas para pensar o social; o uso da intuio potica, atravs da qual o socilogo se colocaria dentro da experincia social, vivendo-a como seus agentes, no totalmente, ... mas nos aproximando deles pelo menos por um esforo de simpatia, por uma espcie de naturalidade instintiva. Trata-se de uma transfuso da alma... preciso, ... transcender nossa personalidade para aderir alma que est ligada ao fato a ser estudado. Segundo Bastide, a expresso potica seria mais apropriada que qualquer outra forma para forar o leitor a viver na experincia comunitria, juntando assim
  • 16de conotaes sexuais,15 e o seu afastamento de manifestaes psicopatolgicas. As descries e imagens elaboradas pelo autor, embora permeadas por uma narrativa literria, so feitas no terreno da sociologia acadmica, local de legitimao cientfica. O autor mostra sua originalidade, tambm, ao tratar das questes presentes na obra de Freyre, como a da africanizao do branco e da desafricanizao do negro, a partir da perspectiva das civilizaes africanas, a outra extremidade da luneta.16 A anlise de tais processos tomar dimenses novas no cenrio das Cincias Sociais do Brasil, a partir do estudo das religies afro-brasileiras, que ser visto atravs de conceitos e teorias que tomam tons prprios na anlise do socilogo francs. A conexo estabelecida com os candombls, os informantes privilegiados a que teve acesso17 do o tom de uma obra diferenciada no conjunto brasileiro. Seus contatos com mes e pais-de-santo, com fiis, sua participao em alguns rituais e a ligao afetiva profunda com o candombl nag imprimem uma reverncia e respeito pelo objeto de pesquisa que j lhe valeram crticas da compreenso lgica, que alcana a sua inteligncia, um sentimento direto, uma compreenso mais ntima, e isto porque no h sociedade sem representaes coletivas, sem um certo paideuma, uma certa configurao espiritual e no sei no s como me aproximar disso, como tambm express-la sem recorrer a alguma coisa que se parece com a poesia. Roger Bastide. A propsito da poesia como mtodo sociolgico In: Dirio de S. Paulo, 8 e 22/02/1946. Republicados em Roger Bastide. Roger Bastide: Sociologia. (Org.: Maria I. P. Queiroz). So Paulo, tica, 1983, p. 82-6. 15 Este afastamento do transe quanto s conotaes sexuais (que realizada atravs da descrio, por parte do autor, do controle ou da nfase na inexistncia da sexualidade), ou, como diria Peter Fry, esse erotismo dirigido (Peter Fry, Gallus Africanus est, ou, como Roger Bastide se tornou africano no Brasil In: Olga de Moraes von Simson (org.), Revisitando a terra de contrastes: a atualidade da obra de Roger Bastide. So Paulo, FFLCH/CERU, 1986, p. 31-32), tpica na obra de Bastide e funciona como contraposio s descries de vrios escritores e estudiosos brasileiros. Estes enfatizariam a sensualidade das mulheres negras e mulatas durante o transe, por exemplo (ver as citaes de descries, feitas por diversos autores, sobre o candombl, em Arthur Ramos. O Negro Brasileiro, etnografia religiosa e psicanlise. Recife, Fundao Joaquim Nabuco/Ed. Massangana, 1988. [2. Ed. 1940], p. 150-7). De certa forma, pode-se dizer que Bastide tambm inventa outras imagens sobre o candombl, ao enfatizar o controle ou a inexistncia da sexualidade. Ver, por exemplo, Roger Bastide. O Candombl da Bahia, p. 188-189. 16 Roger Bastide. As religies africanas no Brasil, vol. I, p. 103. Cf. Ricardo Benzaquen de Arajo. Guerra e Paz: Casa-Grande & Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro, Ed. 34, 1994; Elide Rugai Bastos. As criaturas de Prometeu: Gilberto Freyre e a formao da sociedade brasileira. So Paulo, Global, 2006. 17 Reginaldo Prandi. Os Candombls de So Paulo: a velha magia na metrpole nova. So Paulo, Hucitec/ EDUSP, 1991, p.16; Angela Lhning. Introduo. In: Pierre Verger. Verger-Bastide: dimenses de uma amizade, p. 9-10, 17-9.
  • 17antropologia e da sociologia da religio no Brasil. Branco, estrangeiro, protestante, ele percorreu a experincia intelectual de identificao e mergulho no objeto de pesquisa. Mas esta experincia do africanus sum (sou africano) de Bastide, e da entrada no universo dos candombls e de babalas e ialorixs impossvel de ser repetida, nos mesmos termos ditados por aquele tempo, pelos antroplogos e socilogos atuais18 gerou anlises e imagens que fazem eco at hoje na crtica das Cincias Sociais e na perpetuao de algumas imagens do candombl e de outras vertentes religiosas de origem africana. Todos estes elementos e a configurao da produo intelectual de Bastide, elaborada na Frana e no Brasil, e pontuada por temas e teorias diversos, torna difcil uma viso de conjunto de seu pensamento. Qualquer recorte do objeto sempre ser uma escolha que excluir muitos temas, dilogos e argumentos. A isso, somam-se outros problemas: limitado o acesso parte de seus escritos menos conhecidos, em geral, publicados na imprensa diria de So Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, os quais mostram as mais variadas temticas o negro, religies, democracia, a II Guerra Mundial, literatura, poesia, arte, folclore, sociologia, etc. assim como as formas seminais de algumas de suas principais reflexes acerca do tema do negro brasileiro. Bastide e outros autores so citados em alguns trabalhos recentes sobre as religies de origem africana no Brasil, mas recebem em vrias anlises um tratamento duplo: so considerados pioneiros na rea, mas so, em geral, criticados por certas limitaes e, em parte das vezes, perdem algo de sua historicidade. Como todo trabalho intelectual, as obras mais recentes assim como as obras dos autores os quais comentam respondem a necessidades 18 Sobre a pesquisa participante ver: James Clifford. Sobre a autoridade etnogrfica. In: ____. A experincia etnogrfica: antropologia e literatura no sculo XX. 2. edio. Rio de Janeiro, Ed. UFRJ, 2002, p. 17-62; Vagner Gonalves da Silva. Na encruzilhada, com os antroplogos. In: http://www.iser.org.br/publique/media/RS24-2_artigo_vagner_da_silva.pdf (captado em 12.07.2006); ____. O antroplogo e sua magia: trabalho de campo e texto etnogrfico nas pesquisas antropolgicas sobre religies afro-brasileiras. So Paulo, Edusp, 2000.
  • 18contemporneas, e embora representem muitas vezes avanos analticos importantes, nem sempre estabelecem dilogos sem problemas com o passado.19 Os textos de Bastide responderam s necessidades e questionamentos de determinados perodos, e cristalizam facetas de embates intelectuais, polticos e sociais mais amplos.20 Neste sentido, no so somente textos sobre religio ou cultura, mas apontam para a elaborao de discusses mais complexas sobre o preconceito, relevantes para a poca. Bastide um dos autores que recriam as imagens e saberes sobre os negros brasileiros, deslocando-os da categoria de cultura ou de raa inferior para a de criadores de uma cultura superior e parte essencial da sociedade brasileira. Esse processo de deslocamento tem um carter especial nestas obras sobre a religiosidade de origem africana, que merece uma anlise mais atenta. Redefinir os cultos negros como afro-brasileiros ou os negros como descendentes de africanos, como fizeram alguns de seus textos sobre religio, toma no somente a forma da busca de traos de uma origem cultural, mas tambm a da valorizao sui generis desta origem. A afirmao do africanus sum (sou africano), 21 o fato de Bastide participar em alguns momentos de rituais do 19 Parte desta bibliografia ser comentada adiante, nesta introduo. 20 Paralelamente, cada poca constri mentalmente a sua representao do passado histrico... Com os materiais de que dispe e por isso, um elemento de progresso pode insinuar-se no trabalho da histria. Mais fatos, mais diversos e mais bem controlados: no se pode negligenciar o lucro Mas nem s os materiais contam. H tambm os dons, que variam, as qualidades de esprito e os mtodos intelectuais; h, sobretudo, a curiosidade e os centros de interesse, to rpidos na transformao e que projetam a ateno dos homens de uma poca sobre determinados aspectos do passado, deixados muito tempo na sombra, e que amanh, as trevas, de novo, recobriro. Lucien Febvre. O Problema da Descrena no sculo XVI: a Religio de Rabelais. Lisboa, Editorial Incio, 1972, p. 12. 21 Roger Bastide. As Religies Africanas no Brasil. Vol. I, p. 43-4: ...Somente no Brasil, por motivos que examinaremos, h uma dissociao entre a cultura e a raa. Encontram-se, no candombl, espanholas filhas-de-santo, membros franceses e suos, com ttulos diversos da hierarquia sacerdotal (no falo, naturalmente, de estrangeiros que tm ttulos honorficos sem iniciao prvia); basta aceitar de corao a lei africana; a partir desse momento, no obstante ser-se branco, a pessoa tomada pelas participaes msticas, pelos tabus, pela permeabilidade vingana mgica. o que faz com que se possa ser negro no Brasil sem ser africano e, reciprocamente, ao mesmo tempo, branco e africano. Posso, por conseguinte, dizer no incio desta tese, africanus sum [sou africano], na medida em que fui aceito por uma dessas seitas religiosas, considerado por ela como um irmo na f, com os mesmos deveres e os mesmos privilgios que os outros do mesmo grau. A experincia que daremos ser uma experincia vivida. Esta colocao de Bastide d-se no contexto de um debate com Guerreiro Ramos, o qual indicava a necessidade de se partir da experincia da negritude (niger sum [sou negro]) para analisar as
  • 19candombl e a sua escolha por objetos de estudo como o preconceito contra os negros em So Paulo, ou as religies de origem africana no Brasil, o tornam parte de uma tendncia intelectual preocupada com o preconceito, o racismo22 e o etnocentrismo, mas tambm com as possibilidades de apresentar outras identidades para os negros. A retomada dos textos do autor tambm oferece pistas importantes de como os debates intelectuais que tm como temas os preconceitos e racismos escolheram os negros como objetos preferenciais e sobre os seus mtodos de embate cientfico e poltico. Note-se que numa poca de em que se apresentavam manifestaes preconceituosas e discriminatrias contra judeus, japoneses, alemes e afro-brasileiros, a maior parte dos intelectuais presentes no Brasil escolheu uma determinada forma de expresso do preconceito e uma parte da populao para estudar, em detrimento de outros contingentes populacionais. Depara-se, portanto, com perodos distintos de redefinies que marcam a constituio de vrios debates sobre os negros, que se estendem da dcada de 1930 at 1960. Nesse perodo presenciam-se mudanas sociais e polticas profundas, tanto no Brasil como no exterior: o longo governo de Vargas, a II Guerra Mundial e o Holocausto, e o perodo de industrializao e de modernizao no pas, os quais indicam entonaes e direes distintas do discurso intelectual no Brasil. Os problemas da raa e da identidade nacional tomam caractersticas prprias na dcada de 1930: Gilberto Freyre surge com a tese da democracia relaes raciais brasileiras e criticava a vertente estrangeira em nossas Cincias Sociais. Para maiores detalhes ver: Roger Bastide, Carta Aberta a Guerreiro Ramos In: Anhembi, So Paulo, vol. 12, no. 36, nov. de 1953, p. 521-8; Alberto Guerreiro Ramos. Introduo Crtica Sociologia Brasileira. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 1995. Segundo Mariza Corra essa idia estaria presente em outros autores brasileiros, como Nina Rodrigues, mas tomando outra forma. Nina Rodrigues afirmaria que todas as classes estariam aptas a se tornarem negras na Bahia. Ver Mariza Corra. As iluses da liberdade: a Escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. 2. Edio revista. Bragana Paulista, Ed. da Universidade So Francisco, 2001, p.p. 135-6. 22 Para uma anlise dos conceitos de preconceito de cor, raa, classe e racismo ver: Antonio Srgio Alfredo Guimares. Preconceito de cor e racismo no Brasil. Revista de Antropologia. vol. 47 no.1. So Paulo, 2004. (Acessado em 24.08.2006 no endereo: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-7012004000100001&lng=en&nrm=iso). Segundo o autor, existiriam problemas no uso de noes, como a de racismo, a qual teria se tornado imprecisa e ampla demais, pois sob o rtulo de racismo, so tratados objetos to distintos quanto os sistemas de classificao racial, o preconceito racial ou de cor, as formas de carisma (para usar o conceito de Elias), que podem ser observadas em diversas instituies e comunidades, a discriminao racial nos mais distintos mercados, e as desigualdades raciais e sua reproduo. Idem.
  • 20social e tnica, Oliveira Vianna tem seu livro Raa e Assimilao reeditado, ao mesmo tempo em que Arthur Ramos publica as obras de Nina Rodrigues e suas prprias contribuies. As vrias imagens de negros que surgem nestas obras tentam responder as questes da suposta inferioridade da populao brasileira, da mestiagem, da identidade nacional e sugerem solues variadas. A dcada de 1940 apresenta-se como perodo da definio das Cincias Sociais brasileiras. Entre outros, os intelectuais da Universidade de So Paulo e da Escola Livre de Sociologia e Poltica demarcam os limites de suas disciplinas, estabelecem as metodologias cientficas de pesquisa e ensino e excluem da rea em formao das Cincias Sociais outros intelectuais e mtodos.23 O tema da raa aparece freqentemente nesta produo, agora atravs dos estudos de assimilao e aculturao ou da crtica ao racismo. Donald Pierson, cuja obra sobre os negros da Bahia fora publicada inicialmente nos Estados Unidos24 e Emilio Willems,25 considerado por alguns como um dos pioneiros da sociologia cientfica no Brasil, representam tal entonao atravs de revistas, jornais e de sua atuao docente. Arthur Ramos publica uma srie de trabalhos de sistematizao. Paralelamente, o contexto da II Guerra Mundial recoloca o problema da discusso racial, do preconceito ou do racismo. A dcada de 1950, por sua vez, presencia um perodo de mudanas importantes, como a modernizao, a urbanizao e a industrializao, com a conseqente proletarizao de vrios segmentos da sociedade brasileira. A discusso desenvolvimentista surge com fora. A pesquisa da UNESCO-Anhembi sobre a situao racial brasileira abre uma vertente que no mais se fechar. 23 Ver Srgio Miceli (org.). Histria das Cincias Sociais no Brasil. Vol. I e II; Priscila Nucci. Os intelectuais diante do racismo antinipnico no Brasil: textos e silncios. Campinas, IFCH-UNICAMP/ Dissertao de Mestrado, 2000. 24 Donald Pierson. Negroes in Brazil. A study of race contact at Bahia. Southern Illinois University Press, 1967 [1942]. Publicado no Brasil como ____. Brancos e Pretos na Bahia (estudo de contato racial). 2. Edio. So Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1971 [1. ed. bras.1945]. 25 Emlio Willems tratar, principalmente, do tema da aculturao alem e japonesa no Brasil. Ver Emlio Willems. A Aculturao dos Alemes no Brasil: estudo antropolgico dos imigrantes alemes e seus descendentes no Brasil. So Paulo/Braslia, Cia. Ed. Nacional/INL, 1980 [1946]; ____. Assimilao e Populaes Marginais no Brasil: estudo sociolgico dos imigrantes germnicos e seus descendentes. So Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1940; ____. Aspectos da Aculturao dos Japoneses no Estado de So Paulo. So Paulo, FFCL-USP/ Boletim LXXXII - Antropologia no 3, 1948.
  • 21Florestan Fernandes, os intelectuais da USP e do ISEB26 surgem como os intrpretes da sociedade brasileira do momento.27 Bastide participa do processo de formao das Cincias Sociais brasileiras, ao dialogar com diversas tendncias sociolgicas e antropolgicas. A partir de sua vinda ao Brasil, desenvolveu uma srie de pesquisas sobre a populao de origem africana no pas, at 1954, ano em que retornou Frana, e participou do inqurito sobre as relaes raciais em So Paulo, patrocinado pela UNESCO e publicado em 1955. Durante o perodo de permanncia no pas, tomou contato com as obras sobre as religies afro-brasileiras e pesquisou o candombl e a macumba em diversas localidades.28 Neste longo perodo sobressaem a sua atuao como professor da cadeira de Sociologia na USP, a sua produo acadmica, vista em livros e peridicos cientficos brasileiros e estrangeiros, e sua presena constante nos peridicos brasileiros, como os jornais paulistanos e cariocas, atravs de artigos sobre uma gama variada de temas arte, poesia, literatura, religio, sociologia, poltica, guerra, etc. O seu contato com vrios temas, obras, tendncias e com os intelectuais no Brasil visvel nos seus textos.29 O recorte espacial da tese incluiu os locais de pesquisa, produo e circulao da maior parte destas obras: So Paulo, Bahia e Rio de Janeiro. O recorte cronolgico, por sua vez foi dos anos de 1930 at 1960, perodo heterogneo e de vrias transformaes importantes no cenrio intelectual e social no Brasil e no mundo. O marco inicial justifica-se por uma srie de 26 Sobre o ISEB - Instituto Superior de Estudos Brasileiros - ver: Renato Ortiz. Cultura brasileira e identidade nacional. 5 ed., So Paulo, Brasiliense, 1994; Alberto Guerreiro Ramos. Mito e verdade da revoluo brasileira. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1963; Caio Navarro de Toledo. ISEB: fbrica de ideologias. 2 ed., So Paulo, tica, 1982; ___. Teoria e ideologia na perspectiva do ISEB. In: Reginaldo Moraes; Ricardo Antunes e Vera B. Ferrante (org.). Inteligncia brasileira. So Paulo, Brasiliense, 1986, p. 224-56; ___. Intelectuais do ISEB, esquerda e marxismo. In: Joo Quartim de Moraes (org.). Histria do marxismo no Brasil. Teorias. Interpretaes, v.III. Campinas, Unicamp, 1998, p. 245-274. 27 Para uma anlise do contexto intelectual e cultural paulistano ver: Maria Arminda do Nascimento Arruda. Metrpole e Cultura, So Paulo no meio do sculo XX. Bauru, EDUSC, 2001. 28 Lsias Nogueira Negro. Roger Bastide: do Candombl Umbanda In: Olga de Moraes von Simson (org.), Revisitando a terra de contrastes: a atualidade da obra de Roger Bastide, p. 50. 29 Maria Isaura Pereira de Queiroz. Introduo - Nostalgia do Outro e do Alhures: a obra sociolgica de Roger Bastide In: Roger Bastide. Roger Bastide: Sociologia, p.13, 18; Claude Ravelet (org.). Bibliographie de Roger Bastide. Bastidiana, 3:7-110, 1993.
  • 22elementos relacionados, como o momento da vinda dos intelectuais estrangeiros para a USP e para a ELSP, pela produo ou reedio e circulao de textos sobre o tema das religies afro-brasileiras e que positivam a presena negra ou africana no Brasil. Ao mesmo tempo, a dcada de 1930 representa um momento de reavivamento de racismos no mundo e no Brasil, seja atravs das discusses parlamentares, seja atravs da difuso de livros como Raa e Assimilao de Oliveira Vianna ou de setores racistas do governo Getlio Vargas, que tomar matizes e desenvolvimentos diferenciados nas dcadas de 1940 e 1950. A escolha tambm leva em conta a maior concentrao de textos e artigos de Bastide em tal perodo. O marco final de 1960 representa um momento em que se avizinham mudanas estruturais nos estudos sobre o negro brasileiro e acerca do preconceito, com a ascenso dos estudos da Escola de So Paulo e de outras vertentes intelectuais. Ocorre uma mudana substancial nas preocupaes e mtodos das novas abordagens sobre a temtica do negro brasileiro, com uma nfase na categoria de classe, por parte de intelectuais como Florestan Fernandes e Luiz Aguiar da Costa Pinto, por exemplo. Ao mesmo tempo, Roger Bastide escreve suas obras de maior envergadura sobre as religies afro-brasileiras na dcada de 1960 na Frana, retomando temas e dilogos intelectuais presentes nas dcadas de 1930 a 1950, no Brasil. 30 Considero a leitura cruzada dos textos de Roger Bastide sobre preconceito, relaes raciais e religies afro-brasileiras como central. Entre outros motivos, esta centralidade devida sua importncia no cenrio intelectual da poca, e pela tentativa de modificar as imagens da populao de origem africana para o resto da sociedade, seja atravs da percepo das manifestaes preconceituosas, seja pela sua anlise sui generis acerca do candombl, no que destoa de seus pares. Tal leitura recupera os objetivos e mtodos de Bastide e explicita o fato do autor ser um foco atravs do qual se recuperam os debates com seus contemporneos acerca do negro brasileiro e do preconceito no Brasil, por participar de momentos distintos da institucionalizao das Cincias Sociais 30 Ver Fernanda Peixoto. Dilogos brasileiros: uma anlise da obra de Roger Bastide. So Paulo, Ed. da Universidade de So Paulo, 2000, p. 93-156.
  • 23brasileiras e por fazer de sua obra uma discusso recorrente com vrios tempos e temas. Em Bastide, esse processo intelectual representa uma forma de sistematizao recursiva, uma forma de guardar em seus textos camadas de significaes e de debates que se reatualizam a cada vez que se colocam.31 Diante da crtica A listagem de autores que citam Bastide bastante extensa, e inclui vertentes muito diferenciadas. 32 Pode-se dizer que h uma gama variada de contribuies sobre o autor e sua obra, nas reas de pensamento social, antropologia e sociologia da religio, o que mostra a pluralidade de temas existente na obra do socilogo francs, e um interesse, que sempre esteve presente no cenrio das Cincias Sociais. O que varia com o tempo, a insero e a leitura da obra do autor. Se at a dcada de 1950 Bastide era um grande referencial para a Sociologia brasileira, nas dcadas seguintes ser um contraponto central, principalmente para a Antropologia, embora a Sociologia nunca tenha perdido de vista o autor, e a importncia de sua produo relacionada ao tema das relaes raciais. H um interesse pelo estudo de sua obra, mais 31 Um exemplo dessa recursividade dado por Fernanda Peixoto: ... possvel dizer que Gilberto Freyre, sobretudo a sua obra dos anos 30, est presente explcita e implicitamente durante toda a primeira parte do estudo de Roger Bastide sobre as religies africanas no Brasil. Bastide constri a sua explicao no primeiro volume por meio de um dilogo cerrado com Casa grande & senzala (1933) e Sobrados e mucambos (1936), e no geral, endossa trinta anos depois o amplo painel da sociedade brasileira pintado pelo socilogo pernambucano. Idem, p. 136. 32 Entre os autores que comentaram a produo de Bastide pode-se citar Maria Isaura Pereira de Queiroz, Charles Beylier, Claude Ravelet, Henri Desroche, Franoise Morin, Roberto Motta, Fernanda Aras Peixoto, Maria Lcia S. Braga, Astrid Reuter, Yvonne Maggie Alves Velho, Renato Ortiz, Peter Fry, Marco Aurlio Luz, Paula Montero, Mariza Corra, Beatriz Gis Dantas, Patrcia Birman, Liana Trindade, Gisele Binon-Cossard, Marcio Goldman, Lsias Nogueira Negro, Reginaldo Prandi, Vagner Gonalves da Silva e Maria Jos de Campos, entre outros. Ver, tambm: Roberto Motta (org.). Roger Bastide Hoje: raa, religio, saudade e literatura. Recife, Bagao, 2005; Lilia M. Schwarcz. Questo racial e etnicidade In: Srgio Miceli (org.), O que ler na Cincia Social Brasileira (19701995). Vol. I Antropologia. So Paulo, Ed. Sumar, ANPOCS, CAPES, 1999, p. 265-325; Paula Montero, Religies e dilemas da sociedade brasileira In: MICELI, Srgio (org.), O que ler na Cincia Social Brasileira (19701995). Vol. I Antropologia. So Paulo, Ed. Sumar, ANPOCS, CAPES, 1999, p.327-367.
  • 24recentemente, tanto na Frana como no Brasil, mas algo que se sobressai no conjunto de comentadores a crtica a uma parte de sua produo, a referente s religies de origem africana, a qual mobiliza um grande conjunto de autores. Segundo Maria Lcia de Santana Braga a obra de Bastide poderia ser vista atravs de algumas fases de maior ou menor visibilidade no Brasil. A fase de esquecimento ou menor visibilidade estaria localizada entre os anos posteriores sua sada do pas (1954) e a redescoberta do autor por um grupo intelectual franco-brasileiro interessado em recuperar e analisar sua obra, na dcada de 1990.33 Acredito que, se Bastide se torna uma figura mais ou menos marginalizada aps a sua sada do pas, essa marginalizao no implica em esquecimento de sua obra. Os estudos elaborados por antroplogos e socilogos preocupados em estudar manifestaes religiosas como os candombls e a umbanda nunca deixaram de ter parte da obra de Bastide como contraponto obrigatrio s suas anlises, assim como alguns estudos preocupados com o tema das relaes raciais. Essa resistncia ao silncio representada por esses estudos ps-1970 sintomtica, mesmo que por vezes represente uma manuteno de dilogos com partes desconexas da obra do autor. Bastide e os estudiosos das religies de origem africana no Brasil, 34 Arthur Ramos, dison Carneiro, Ruth Landes, Donald Pierson so citados nessas obras. A produo que se desenvolveu desde a dcada de 1970 variada e apresenta diferenas substanciais quanto aos mtodos, objetos e abordagens. Alguns dos autores inscritos no campo da antropologia e da sociologia da religio rompem com os paradigmas de pesquisa anteriores e estabelecem outros temas 33 Maria Lcia de Santana Braga. Entre o esquecimento e a consagrao: o estilo Roger Bastide nas Cincias Sociais, p. 179-204. 34 Estes autores foram denominados, muitas vezes, com o termo africanistas. Entretanto, o termo exige algumas ressalvas, e no ser utilizado. Deve-se notar que o termo referia-se, originalmente, aos estudiosos que faziam pesquisas na frica, sendo apropriado como denominao por alguns intelectuais brasileiros. James Clifford nota que, no contexto francs, as primeiras trs dcadas do sculo, a frica negra estava se tornando o centro das atenes, separada do Maghreb oriental. Por volta de 1931, quando o Journal de la Socit des Africanistes foi fundado, tornara-se possvel falar de um campo chamado africanismo (modelado a partir de uma disciplina mais antiga e sinttica, o orientalismo). A moda da art ngre e da msica negra contribuiu para a formao de um objeto cultural, uma civilisation sobre a qual declaraes sintticas podiam ser feitas. James Clifford, Poder e dilogo na etnografia: a iniciao de Marcel Griaule. In: ____. A experincia etnogrfica. Antropologia e Literatura no sculo XX. Rio de Janeiro, Ed. da UFRJ, 2002, p. 179-226.
  • 25preferenciais, como a umbanda e a macumba, ao invs do candombl;35 em alguns casos escolhem como tema o conflito, invertendo o antigo modelo das 35 As denominaes religiosas afro-brasileiras so bastante variadas regionalmente (candombl nag, ketu, jeje, angola, de caboclo, xang, tambor-de-mina, batuque, macumba, umbanda, espiritismo de umbanda, etc.) e receberam anlises diversas desde o trabalho de 1900, de Nina Rodrigues. Esquematicamente, pode-se localizar um interesse macio no estudo do chamado candombl nag, iorub ou ketu, localizado em Salvador, entre 1900-1960. Nessas dcadas se desenvolvem os trabalhos de Roger Bastide, Arthur Ramos, dison Carneiro, Ruth Landes e outros autores. Outras formas de religiosidade afro-brasileira, como o candombl banto (ou angola), a macumba e a umbanda recebem ateno marginal nesses trabalhos, sendo consideradas, em certos casos, como formas corrompidas do candombl nag, eleito como exemplar da continuidade da tradio iorub, oriunda da frica (Nigria e Benin). A dcada de 1970 marca a ascenso de novas anlises das Cincias Sociais acerca das religies de origem ou influncia africana, com uma nfase nas formas marginalizadas pelos estudos anteriores, como a macumba e a umbanda, o que ser visto adiante. A seguir, indico de forma esquemtica para os leitores menos familiarizados com essa terminologia, os significados de alguns termos que se repetem ao longo da tese. Candombl nag: religio que cultua divindades chamadas de orixs, que seriam incorporados pelos iniciados em transe. A tais entidades seriam atribudas vestes rituais, danas e cantos especficos, os quais seriam visveis em cerimnias pblicas e privadas. Por meio da leitura de um jogo divinatrio (jogo de bzios, que consiste na combinao das formas de cada de 16 bzios), a sacerdotisa ou o sacerdote (me ou pai-de-santo) indica os orixs que regem a vida de determinada pessoa e as obrigaes rituais que devem ser obedecidas. H uma hierarquia interna nos candombls, e funes especializadas para cada um de seus membros, que dependem de fatores diversos, como a capacidade de entrar em transe mstico, da senioridade na casa de culto, dos conhecimentos adquiridos, etc. No entrarei na definio das diferenas entre as naes de candombl, como a jeje-nag e angola, pois isso extrapola os objetivos dessa tese. Entretanto, deve-se notar que o termo nao, nesse contexto, expressa uma modalidade de rito em que, apesar dos sincretismos, perdas e adoes que se deram no Brasil, e mesmo na frica, de onde procediam os negros, um tronco lingstico e elementos culturais de alguma etnia vieram a prevalecer (Reginaldo Prandi. Os candombls de So Paulo, p. 16). Umbanda: religio resultante do sincretismo de elementos de cultos afro-brasileiros, indgenas, catlicos e espritas. As correntes de umbanda variam conforme sua aproximao maior ou menor com o espiritismo kardecista e com o candombl. um culto de possesso, no qual os praticantes (mdiuns) podem entrar em transe e incorporar uma srie de entidades (orixs, caboclos (espritos de ndios), preto-velhos (espritos de escravos), baianos, ciganos, pomba-giras, exus, etc.) que vem para aconselhar e ajudar os fiis a resolverem seus problemas. Existem sete linhas chefiadas por orixs e subdivididas em falanges. As cerimnias so realizadas semanalmente, em terreiros ou outros locais, e as incorporaes seguem uma estrita codificao corporal, gestual e verbal, muitas vezes realada por roupas caractersticas, objetos, comidas, bebidas, tabaco, etc. Sua presena [das entidades] na terra no tem por finalidade, como no Candombl, oferecer-se aos homens como objeto de culto, mas trabalhar a seu favor, ajudar a resolver seus males e, cumprindo essa misso, elevar-se espiritualmente at chegar a um grau em que j no precisem incorporar . (Fernando G. Brumana e Elda G. Martinez. Marginlia Sagrada. Campinas, Ed. da Unicamp, 1991, p. 62-3). Para uma reflexo mais detida sobre o assunto ver, tambm: Roberto Motta. Roger Bastide e as hesitaes da modernidade. In: Roberto Motta (org.). Roger Bastide Hoje: raa, religio, saudade e literatura, p. 147-176; ____. La Gestion Sociologique du Religieux: la formation de la thologie afro-bresilienne. In: MOST,Journal on Multicultural Societies, Paris, v. 1, n. 2, 1999; ____. Ethnicit, Nationalit et Syncrtisme dans les Religions Populaires Brsiliennes. Social Compass, Londres, v. 41, n. 1, p. 67-78, 1994; ____. Catimbs, Xangs e Umbandas na Regio do Recife. In: Roberto Motta (org.) Os Afro-Brasileiros. (Anais do III Congresso Afro-Brasileiro).Recife, Massangana, 1985, p. 109-123.
  • 26relaes harmoniosas da religio negra, ou mostram atravs de suas pesquisas as novas funes tomadas pelo candombl ou a umbanda em nossa sociedade.36 Segundo Paula Montero, a literatura acerca das religies de origem africana ainda seria marcada por um debate recorrente acerca do sincretismo: A acepo bastidiana de sincretismo, embora tenha sido sistematicamente criticada em trabalhos recentes, estabeleceu um esquema interpretativo das religies afras que ainda no foi inteiramente superado. Pode-se perceber que grande parte da literatura sobre as religies afro-brasileiras est at Macumba: Atualmente referida como Quimbanda, segundo Lsias N. Negro (Entre a cruz e a encruzilhada. So Paulo, Edusp, 1996, p. 29), tambm chamada de umbanda de linha negra. Segundo Brumana e Martnez (1991) o termo macumba tem vrios significados: o de sistema religioso: o culto umbandista em geral; mais amplamente, o conjunto das religies de possesso; de forma intermediria, somente a Umbanda e o Candombl... De qualquer modo, bastante freqente que os umbandistas falem entre eles de seu culto como macumba, embora tambm possa ser usado por muitos deles justamente como o que eles no fazem: como sinnimo de feitiaria, de trabalhos de esquerda, de quimbanda, o extremo maligno que a Umbanda em sua pretenso de legitimao social pretende segregar de si. (Fernando G. Brumana e Elda G. Martinez. Marginlia Sagrada. Campinas, Ed. da Unicamp, 1991, p. 345-6). um culto em que se sincretizam elementos africanos, indgenas, espritas e catlicos. O seu culto caracteriza-se pela utilizao de prticas mgicas cujo objetivo prejudicar outras pessoas, atravs da manipulao de entidades consideradas como espritos inferiores (exus, pomba-giras, etc.). (Grande Enciclopdia Larousse Cultural. Nova Cultural, 1998, verbete quimbanda, vol. 20, p. 4872). Ver tambm: Roger Bastide. A macumba paulista (1946). In: ____. Estudos afro-brasileiros. So Paulo, Perspectiva, 1983, p. 193-247. 36 Entretanto, deve-se notar que as concepes de Bastide acerca da umbanda modificam-se ao final de sua vida. Isso foi evidenciado por Renato Ortiz em A morte branca do feiticeiro negro (1999 [1978]) que a publicao de sua tese de doutorado, orientada por Roger Bastide na cole des Hautes tudes en Sciences Sociales, e defendida em 1975. Ortiz escreve: ...divergimos da anlise feita por Roger Bastide em seu livro As religies africanas no Brasil, onde ele considera a Umbanda como uma religio negra, resultante da integrao do homem de cor na sociedade brasileira. necessrio porm assinalar que o pensamento de Roger Bastide havia consideravelmente evoludo nestes ltimos anos. J em 1972 ele insiste sobre o carter nacional da Umbanda, comparando-a a outras experincias religiosas que tentaram, sua maneira, formar um catolicismo brasileiro... Entretanto, depois de sua ltima viagem ao Brasil, seu julgamento torna-se mais claro; opondo Umbanda, macumba e candombl, ele dir: o candombl e a macumba so considerados e se consideram como religies africanas. J o espiritismo de Umbanda se considera uma religio nacional do Brasil. A grande maioria dos chefes das tendas so mulatos ou brancos de classe mdia, tendo portanto uma cultura branca e uma mentalidade mais luso-brasileira do que afro-brasileira. Eles leram desde os textos esotricos de Annie Besant, espritas de Allan Kardec, at os livros de antroplogos e africanistas. Isto vai lhes permitir passar de um sincretismo espontneo a um sincretismo refletido, e tentar uma sntese coerente das diversas religies que se afrontam no Brasil. O carter de sntese e de brasilidade da Umbanda desta forma confirmado e reforado. Renato Ortiz. A morte branca do feiticeiro negro: Umbanda e sociedade brasileira. So Paulo, Brasiliense, 1999, p. 17. Os textos de Bastide, aos quais o autor faz meno so: Roger Bastide. LUmbanda en revision. In: Archives des Sciences Sociales des Religions, no. 49, 1975 (h uma verso publicada em Recueil d'tudes offertes J. Lambert (coll), Cujas, 1974, p. 45-52); ____. La rencontre des dieux et des esprits indiens. In: Archives de Sciences Sociales des Religions, n 38, 1974, p. 19-28. (reeditado em Afro-Asia, Bahia, n 12, 1976, p. 31-45).
  • 27hoje presa a um debate que chamado a sopesar os vcios e as virtudes do sincretismo. Censurou-se nas anlises de Bastide, de inspirao durkheimiana, sua incompreenso de cultos mais abrasileirados, como a umbanda, que foram tratados como degradao da pureza africana ... A valorizao positiva dos africanismos no Brasil deixara pouca margem para os intrpretes da cultura brasileira: do ponto de vista poltico, a nfase africanista ensejava pensar a cultura africana, e os terreiros, como forma de resistncia cujo instrumento ltimo seria o isolamento e enquistamento do negro; do ponto de vista sociolgico, se a industrializao e a urbanizao representavam a excluso social das camadas negras, a adaptao aos valores da modernizao representaria uma renncia cultural sem retorno. Procurando superar o ardil sobre o qual se construa essa dupla equao (arcasmo: resistncia/ enquistamento:: modernizao:degradao/ integrao), os estudos sobre a umbanda foram buscar em Weber o antdoto contra Durkheim. 37 A obra do socilogo francs recebeu uma ateno diferenciada nas obras de Maria Isaura Pereira de Queiroz, Fernanda Peixoto, Maria Lcia de Santana Braga e outros autores,38 sendo analisada atravs de questes que visavam alcanar anlises mais detalhadas e profundas das suas contribuies e da sua atuao. Alm destes trabalhos mais especficos, nota-se a existncia de uma presena constante de reflexes sobre Bastide na produo acerca das religies afro-brasileiras. Embora o autor seja citado em muitas obras pela sua participao no projeto da UNESCO, o que sobressai nas dcadas de 1970-90 uma nfase em sua produo sobre as religies africanas. A antropologia e a sociologia da religio mantm um dilogo vivo com a obra do autor francs, atravs de questes 37 Paula Montero. Religies e dilemas da sociedade brasileira, p.345-6. 38 Para outras contribuies ver: revista Bastidiana (cahiers d tudes Bastidiennes) - 1993 -2005; Charles Beylier. L oeuvre brsilienne de Roger Bastide. Paris, cole des Hautes tudes en Sciences Sociales de Paris, 2 Tomes / Thse de Doctorat de 3e Cycle, 1977 ; Roberto Motta (org.). Roger Bastide Hoje: raa, religio, saudade e literatura. Recife, Bagao, 2005; Philippe Laburthe-Tolra (dir.). Roger Bastide ou Le Rjouissement de LAbme: chos du colloque Cerisy-la-Salle du 7 au 14 septembre 1992. Paris, dtions LHarmattan, 1994; Claude Ravelet. (direction). tudes sur Roger Bastide de l acculturation la psychiatrie sociale. Paris, L Harmattan, 1996; ____. Phnomnologie du sacr: essai sur l Anthropologie interculturelle de Roger Bastide. Thse de 3e Cycle. Paris, (mimeo), 1978. Um mapeamento da importncia do Centre dtudes Bastidiennes e da Revista Bastidiana realizado por Maria Lcia de Santana Braga. Ver: Maria Lcia de Santana Braga. Entre o esquecimento e a consagrao: o estilo Roger Bastide nas Cincias Sociais. Braslia, Tese - Sociologia, 2002; ____. Roger Bastide: morte e ressurreio de um paradigma. In: Roberto Motta (org.). Roger Bastide Hoje: raa, religio, saudade e literatura, p. 80-88.
  • 28essenciais para se compreender algumas das vises e classificaes sobre sua obra.39 Yvonne Maggie Alves Velho, em seu livro pioneiro Guerra de Orix comenta que se sentiu impressionada pela continuidade de certos temas na rea de estudo das religies afro-brasileiras, assim como dos problemas e interpretaes. Relaciona estas continuidades s determinaes ideolgicas, o que a levaria a fazer uma crtica da ideologia subjacente s afirmaes dos autores... para tentar colocar novas perguntas que levassem a respostas novas 40. Segundo Fernanda Peixoto, esse estudo de caso indicaria o rompimento com os estudos anteriores, na medida em que eles evitariam uma anlise apurada do sincretismo, optando pela busca da origem dos traos culturais.41 Yvonne Maggie faz parte de uma vertente de estudos sobre as religies de origem africana no Brasil, a qual tambm inclui Peter Fry e Patricia Birman, que rompe com a nfase na pureza nag, e influencia o desenvolvimento de estudos posteriores, que aprofundam algumas de suas reflexes, como os de Beatriz Gis Dantas.42 Uma das crticas de Yvonne Maggie incide no fato das chamadas religies afro-brasileiras serem vistas como fenmeno de sincretismo religioso, seja de 39 Para outros comentrios feitos a parte desta produo intelectual ver: Fernanda Peixoto. Dilogos Brasileiros, p. 124-127; Maria Lcia de Santana Braga. Candombl et modernit. Roger Bastide: points et contrepoints. Bastidiana, no. 45-46, janvier-Juin 2004, p. 223-241. 40 Yvonne Maggie Alves Velho. Guerra de Orix: um estudo de ritual e conflito. 2a ed. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1977 [1975], p. 11. 41 Fernanda Peixoto. Dilogos Brasileiros, p. 124. 42 Beatriz Gis Dantas. Vov Nag e Papai Branco, p. 21-2. Para outros trabalhos relevantes sobre a umbanda e a macumba ver: Cndido Procpio Ferreira de Camargo. Kardecismo e umbanda: uma interpretao sociolgica. So Paulo, Livraria Pioneira Editora, 1961; Marco Aurlio Luz e Georges Lapassade. O segredo da macumba. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1972; Renato Ortiz. A morte branca do feiticeiro negro. Petrpolis, Vozes, 1978; Paula Montero. Da