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Oficina 13 – A área de figuras malcomportadas José Luiz Pastore Mello (Colégio Santa Cruz) [email protected] IME/USP, 16 de outubro de 2015. Introdução A ideia de calcular a área de uma figura plana por meio da comparação com uma unidade de área parece ser suficientemente clara e isenta de grandes armadilhas, porém, um olhar mais cuidadoso sobre ela pode revelar algumas surpresas ao longo da história da matemática. A primeira parte destas notas se concentrará na investigação da área de polígonos dando especial atenção a duas dessas surpresas, a saber: a dos segmentos incomensuráveis, e a da equidecomposição de polígonos. Na segunda parte abrese a discussão para o cálculo da área de figuras planas quaisquer e, nesse caso, o foco central será colocado em propostas de atividades didáticas que permitam o cálculo da área de figuras não poligonais, que chamaremos de figuras malcomportadas, no ambiente das aulas de matemática da escola básica. Segmentos incomensuráveis e a área de polígonos Em geral, convencionase tomar como unidade de medida de área um quadrado cujo lado mede uma unidade de comprimento (u). Assim, qualquer quadrado cujo lado meça 1 u terá, por definição, área igual a 1 u². Em particular, se a unidade for dada no Sistema Internacional de Unidades, u será o metro, ou algum dos seus múltiplos (decâmetro, hectômetro, quilômetro) ou submúltiplos (decímetro, centímetro, milímetro). Admitese nestas notas daqui para frente, e sem perda de generalidade, que nossa unidade de comprimento u será o centímetro (cm). Nesse caso, nossa unidade de área será 1 cm², que corresponde a um quadrado de lado 1 cm. Nesse caso, a área de um polígono P será um número que deverá exprimir quantas vezes o polígono P contém a unidade de área que, no nosso caso, corresponde à 1 cm². Podemos exibir uma infinidade de exemplos para os quais nossa convenção está muito bem resolvida. Veja um deles (retângulo de 4 cm por 6 cm): Nossa convenção parece comportarse muito bem no caso em que P é um retângulo com lados de medidas inteiras, mas o que temos a dizer se as medidas não

Oficina 13 – A área de figuras malcomportadas Introdução A ideia

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         Oficina  13  –  A  área  de  figuras  malcomportadas            José  Luiz  Pastore  Mello  (Colégio  Santa  Cruz)              [email protected]              IME/USP,  16  de  outubro  de  2015.    

 Introdução    

A   ideia  de   calcular   a   área  de  uma   figura  plana  por  meio  da   comparação   com  uma  unidade  de  área  parece  ser  suficientemente  clara  e  isenta  de  grandes  armadilhas,  porém,  um  olhar  mais  cuidadoso  sobre  ela  pode  revelar  algumas  surpresas  ao  longo  da  história  da  matemática.  A  primeira  parte  destas  notas  se  concentrará  na  investigação  da  área  de  polígonos  dando  especial  atenção  a  duas  dessas  surpresas,  a  saber:  a  dos  segmentos  incomensuráveis,  e  a  da  equidecomposição  de  polígonos.    

Na  segunda  parte  abre-­‐se  a  discussão  para  o  cálculo  da  área  de  figuras  planas  quaisquer   e,   nesse   caso,   o   foco   central   será   colocado   em   propostas   de   atividades  didáticas  que  permitam  o  cálculo  da  área  de  figuras  não  poligonais,  que  chamaremos  de  figuras  malcomportadas,  no  ambiente  das  aulas  de  matemática  da  escola  básica.      Segmentos  incomensuráveis  e  a  área  de  polígonos  

 Em   geral,   convenciona-­‐se   tomar   como   unidade   de   medida   de   área   um  

quadrado   cujo   lado   mede   uma   unidade   de   comprimento   (u).   Assim,   qualquer  quadrado  cujo  lado  meça  1  u  terá,  por  definição,  área  igual  a  1  u².  Em  particular,  se  a  unidade  for  dada  no  Sistema  Internacional  de  Unidades,  u  será  o  metro,  ou  algum  dos  seus   múltiplos   (decâmetro,   hectômetro,   quilômetro)   ou   submúltiplos   (decímetro,  centímetro,   milímetro).   Admite-­‐se   nestas   notas   daqui   para   frente,   e   sem   perda   de  generalidade,   que   nossa   unidade   de   comprimento   u   será   o   centímetro   (cm).   Nesse  caso,  nossa  unidade  de  área  será  1  cm²,  que  corresponde  a  um  quadrado  de  lado  1  cm.  Nesse   caso,   a   área  de  um  polígono  P   será  um  número  que  deverá   exprimir   quantas  vezes  o  polígono  P  contém  a  unidade  de  área  que,  no  nosso  caso,  corresponde  à  1  cm².  Podemos  exibir  uma  infinidade  de  exemplos  para  os  quais  nossa  convenção  está  muito  bem  resolvida.  Veja  um  deles  (retângulo  de  4  cm  por  6  cm):                  

Nossa   convenção   parece   comportar-­‐se   muito   bem   no   caso   em   que   P   é   um  retângulo  com  lados  de  medidas  inteiras,  mas  o  que  temos  a  dizer  se  as  medidas  não  

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forem   inteiras?   Nesse   caso,   basta   subdividir   a   unidade   de   área   conforme   a  conveniência.  Veja  um  exemplo.  

           

Para  medir  a  área  do  retângulo  de  2,7  cm  por  6,4  cm,  subdividimos  a  unidade  de  área  em  100  partes  e   teremos  um  novo  quadrado,  de   lado  0,1   cm,  que  cabe  um  número   inteiro   de   vezes   (64x27=1728)   no   retângulo.   Uma   vez   que   100   das   novas  unidades   recompõem   a   unidade   padrão   de   1   cm²,   a   área   do   retângulo   será  1728÷100=17,28  cm².  Não  seria  muito  diferente  disso  se  quiséssemos  calcular  a  área  de  um  retângulo  de  2,74  cm  por  6,49  cm.  Nesse  caso  teríamos  que  dividir  1  cm²  em  10000  quadrados,  cada  um  com  0,01  cm  de   lado.  O  retângulo  teria  274x649=177826  da  nova  unidade  de  área,  o  que  corresponde  a  177826÷10000=17,7826  cm².  

Agora,   nossos   problemas   estão   bem   encaminhados   quando   os   lados   do  retângulo  são  números  não  inteiros  com  representação  decimal  finita,  mas  há  ainda  o  que  se  pensar  no  caso  em  que  as  medidas  de  dois  ou  quatro   lados  do  retângulo  são  dízimas   periódicas   como,   por   exemplo,   em   um   retângulo   de   2   cm   por   3,333...cm.  Nesse   caso,   o   primeiro   passo   consiste   em   encontrar   a   fração   geratriz   da   dízima  

⎟⎠⎞

⎜⎝⎛ =

310...333,3 .   Em   seguida,   escrevemos   a   outra   medida   do   retângulo   como  

36 .   O  

próximo  passo   consiste   em  dividir   a   unidade  padrão   em  9   quadrados   idênticos   que,  

nesse  caso,  terão  lados  de  medida  31  cm.  

 A   nova   unidade   cabe   6x10=60   vezes   no   retângulo.   Como   são   necessárias   9  

dessas   unidades   para   recompor   a   unidade   padrão   de   1   cm²,   segue   que   a   área   do  

retângulo  será  (60÷9)  cm²,  ou  seja,  320 cm².  

                                                                                       

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De  forma  geral,  se  os  lados  do  retângulo  são  frações  ba  e  

bc ,  então  a  unidade  

padrão  de  área  deverá  ser  dividida  em  b²  quadrados   idênticos  para  que  seja  possível  fazer  o  calculo  da  área  do  retângulo,  e  esse  procedimento  é  geral  e  finaliza  a  discussão  do   caso   em   que   as   medidas   do   retângulo   são   números   racionais   quaisquer   já   que  sempre   podemos   escrever   duas   frações   quaisquer   em   frações   de   mesmo  denominador.  

Ocorre,   ainda,   que   nem   sempre   o   comprimento   e   a   largura   de   um   retângulo  são   números   racionais,   como   se   pode   observar   no   exemplo   do   retângulo   ABCD  indicado  abaixo.  

                                            Pelo  teorema  de  Pitágoras,  AB²=1²+1²,  o  que  implica  dizer  que  AB  é  o  número  que,   quando   elevado   ao   quadrado,   resulta   em   2.   Por   conveniência,   chamamos   esse  

número   de   2 .   Calcular   a   área   do   retângulo   ABCD   resume-­‐se,   portanto,   em  determinar   quantas   vezes   a   unidade   padrão   de   1   cm²   cabe   em   um   retângulo   de  

comprimento   2   cm   e   largura   1   cm.   Ocorre   que   2   não   possui   representação  decimal   finita,   nem   representação   decimal   infinita   e   periódica.   A   tabela   a   seguir  mostra  o  erro  que  cometeríamos  ao  usar  algumas  aproximações  decimais  finitas  para  

2 ,  indicadas  na  coluna  de  x.    

   

Usando   a   aproximação   racional   de   1,41   para   2 ,   o   cálculo   da   área   do  retângulo  ABCD  exigiria  subdividir  a  unidade  de  área  em  10000  quadrados  idênticos  de  lado   0,01   cm   e,   nesse   caso,   141x100=14100   deles   preencheriam   o   retângulo   ABCD.  Para  recompor  a  unidade  padrão  (1  cm²)  dividiríamos  14100  por  10000,  encontrando  a  

área  de  1,41  cm².  Ocorre,  porém,  que  esse  cálculo  não  é  exato  porque   2  não  é  igual  a  1,41.  A   incômoda  situação  sinalizada  por  esse  exemplo  também  causou  estranheza  aos   matemáticos   pitagóricos   que,   ao   suspeitarem   da   incomensurabilidade   entre  

Observando  a  tabela  concluímos  que  a  aproximação  

de    com  duas  casas  decimais  é  1,41.  

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segmentos  de  medidas  1  e   2 ,  entraram  em  profunda  crise,  como  relata  Platão  em  seus  Diálogos.  Dizemos  que  dois  segmentos  possuem  medidas  comensuráveis  quando  é  possível  encontrar  uma  subdivisão  da  unidade  de  medida  de  comprimento  que  caiba  números  inteiros  de  vezes  em  cada  um  dos  dois  segmentos.  No  caso  de  segmentos  de  

medida  1  e   2 ,   tal   tarefa  é   impossível  e,  portanto,  dizemos  que  são  segmentos  não  comensuráveis,  ou  incomensuráveis.  

A   questão   dos   segmentos   incomensuráveis,   que   parece   ser   um   problema   do  campo  da  geometria  métrica,  é  em  essência  um  problema  que  assenta-­‐se  na  idéia  de  

número   real   [1].   Dizer   que   o   segmento   de   medida   2   é   incomensurável   com   um  

segmento  de  medida  1  é  equivalente  a  dizer  que   2  é  um  número  irracional,  ou  seja,  um  número  cuja  representação  decimal  não  é  finita,  nem  infinita  periódica.  

Alguns   historiadores   da   matemática   [2]   apontam   que   a   descoberta   de  segmentos  incomensuráveis,  na  Grécia  antiga,  foi  responsável  por  uma  crise  na  escola  pitagórica1   e,   ao   que   se   sabe,   o   matemático   grego   Eudoxo   (século   IV   a.C.)   foi   o  primeiro  a  lidar  de  forma  precisa  com  as  grandezas  incomensuráveis  [4].  

A   teoria   das   proporções   de   Eudoxo,   quando   transcrita   para   uma   linguagem  moderna,   resume-­‐se  em  conceber  que  para   conhecer  um  número   irracional   x,  basta  conhecermos  os  números  racionais  menores  do  que  x  (suas  aproximações  por  falta)  e  os  números  irracionais  maiores  do  que  x  (suas  aproximações  por  excesso).  O  resultado  de   Eudoxo   está   exposto   no   livro   V   dos   Elementos   de   Euclides   [5],   e   seus  desdobramentos   modernos   culminam   com   a   fundamentação   dos   números   reais   de  Dedekind  no  século  XIX.  

No  ponto  em  que  estamos  agora  nestas  notas,  os  lados  de  um  retângulo  podem  ser   incomensuráveis   com   o   lado   do   quadrado   da   nossa   unidade   de   área.   Um   outro  problema,  que  passaremos  a  investigar  agora,  diz  respeito  à  forma  do  polígono  P,  que  deixará   de   ser   um   simples   retângulo.   Agora   estamos   interessados   em   encontrar   um  argumento   consistente   que   garanta   ser   possível   medir   a   área   de   polígonos   não  retangulares  por  meio  de  uma  unidade  de  medida  de  área  que  nasceu  da  padronização  de  um  quadrado.  A  figura  a  seguir  mostra  não  ser  de  imediata  aceitação  o  fato  de  que  sempre  será  possível  expressar  a  área  de  um  polígono  por  meio  de  uma  comparação  com  um  quadrado.  

                                                                             

                                                                                                                         1  Para  um  contraponto  à  essa  interpretação,  ver  a  referência  [3].  

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A  área  de  um  polígono  qualquer  e  a  “forma”  da  unidade  de  área    

Para  investigar  a  questão  da  “forma”  do  polígono  como  sendo  um  obstáculo  ao  uso  da  nossa  unidade  padrão  de  área,  discutiremos  um  importante  resultado  sobre  a  decomposição  de  polígonos.  

Dizemos  que  dois  polígonos  são  equidecomponíveis  se  é  possível  decompor  um  deles   em   um   número   finito   de   partes   e,   por   meio   de   um   rearranjo   dessas   partes,  compor  outro  polígono.  Por  exemplo,  um  paralelogramo  é  equidecomponível  com  um  retângulo,  como  mostra  a  figura.  

           É   evidente   que   polígonos   equidecomponíveis   têm   mesma   área,   porém,   a  

recíproca   dessa   afirmação   não   é   tão   evidente   assim.   Se   verdadeira,   ou   seja,   se  polígonos   de   mesma   área   são   equidecomponíveis   entre   si,   esse   será   um   resultado  muito   interessante  para  progredirmos  no  problema  que  estamos   investigando,  como  veremos  mais  adiante.  

A   recíproca  mencionada  é   verdadeira,   tendo   sido  demonstrada  no   século  XIX  por   três   matemáticos   de   forma   independente.   Tal   resultado   é   conhecido   como  teorema  de  Wallace-­‐Bolyai-­‐Gerwien2,   e  diz   que:  dois  polígonos   com  áreas   iguais   são  sempre  equidecomponíveis.       Faremos,  a  seguir,  uma  justificativa  (em  cinco  etapas)  da  validade  do  teorema  mencionado.   Se   por   um   lado   a   justificativa   abra  mão   de   um   certo   formalismo,   por  outro   nos   parece   acessível   ao   trabalho   com   estudantes   da   escola   básica.   Uma  demonstração  detalhada  desse  teorema  pode  ser  encontrada  em  [6].  Vamos  em  frente  com  a  justificativa.    

1) Um  triângulo  e  um  retângulo  de  mesma  área  são  equidecomponíveis.      

         

                                                                                                                         2  Willian  Wallace   (escocês)   em   1807,   Farkas   Bolyai   (húngaro)   em   1832,   e   Paul   Gerwien   (alemão)   em  1833  [6].    

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Seja  a  área  do  triângulo  ABC  igual  a  do  retângulo  CBDF.  Sendo  H  e  E  pontos  médios  de   AB   e   AC ,   segue   que   os   triângulos   AGH   e   AGE,   quando   convenientemente  rotacionados  por  H  e  E,  formarão  o  retângulo  CBDF.  

Portanto,  com  uma  reorganização  das  três  “peças”  que  compõem  o  triângulo  ABC  podemos   formar   o   retângulo   CBDF,   o   que   mostra   que   os   dois   polígonos   são  equidecomponíveis.      

2) Um  retângulo  e  um  quadrado  de  mesma  área  são  equidecomponíveis.    

                                       

Seja   a   área   do   quadrado   AEFG   igual   a   do   retângulo   ABCD.   Sobrepondo   os   dois  polígonos,  provaremos  inicialmente  que  as  retas  r,  s  e  t  são  paralelas.  Se  as  dimensões  

de  ABCD  são  a  e  b  (a>b),  segue  que  o  quadrado  AEFG  terá  lado   ab .  Sendo  α,  β  e  θ  as  

medidas  dos  ângulos  agudos   AGB ,   ADE  e   ICF ,  mostraremos  que  suas   tangentes  são  iguais  e,  portanto,  que  as  retas  são  paralelas.  

                                                                 

( ) ( )aab

abaaba.bab

abababtg

aabtg

aab

abbtg

2 =−

+−=

−=θ

==α

 

  Sabemos  que  os   triângulos  EBH  e   JGD   são   semelhantes.  Como  o  quadrilátero  EBGJ   é   um   paralelogramo,   então   os   triângulos   EBH   e   JGD   são   “mais   do   que  semelhantes”,  são  congruentes  (semelhantes  de  razão  1).  Analogamente,  sabendo  que  o   triângulo   EFJ   é   semelhante   ao   triângulo   HCD,   e   que   o   quadrilátero   FCDJ   é   um  paralelogramo,  segue  que  os  triângulos  EFJ  e  HCD  são  congruentes.     Acompanhando  a   figura  que   ilustra  a  demonstração  você   identificará  as  cinco  peças   que,   quando   organizadas   de   certa   forma,   preenchem   o   quadrado   AEFG,   e  organizadas   de   outra   forma   preenchem   o   retângulo   ABCD,   o   que   mostra   que   os  polígonos  são  equidecomponíveis3.    

                                                                                                                         3  Vale  observar  ainda  que  a  demonstração  foi  feita  para  o  caso  em  que  o  lado  do  retângulo  é  menor  do  que  duas  vezes  o  lado  do  quadrado  de  mesma  área.  Para  o  caso  em  que  o  lado  do  retângulo  é  maior  do  que   duas   vezes   o   lado   do   quadrado,   cortamos   sucessivamente   o   retângulo   em   retângulos   menores  congruentes  e  “empilhamos”  estes,  de  modo  a  formar  um  novo  retângulo.  Isso  faz  com  que  a  situação  recaia  no  primeiro  caso  analisado.  

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3) Dois   quadrados   justapostos   e   um   quadrado   de   mesma   área   são  equidecomponíveis.  

                                                                                       Na  figura4,  a  área  do  polígono  ABGFED  (composto  pelos  quadrados  ABCD,  de  lado  

b,  e  ECGF,  de  lado  a)  é  igual  a  do  quadrado  BEHI,  como  veremos  a  seguir.                      

 

 

Traçamos  a  reta  u  por  E  e  B  e,  em  seguida,  as  retas  r  e  s,  perpendiculares  à  u  por  B  e  E.  Marcamos   H   na   intersecção   de   s   com   o   lado   do   quadrado   ECGF,   e   traçamos   a   reta   t  perpendicular   à   s   por   H.   Denotamos   por   I   a   intersecção   de   r   e   t.   Uma   investigação   angular  (como  se  vê  na  figura)  permite  concluir  que  EBIH  é  um  retângulo.  Ocorre  que  os  triângulos  HEF  e  BEC   são   congruentes   (note  que   seus  ângulos   são   iguais   e   EF=EC).  Os   triângulos  HEF  e  BEC  também  são  congruentes  (note  que  BI=EH,  porque  são  lados  opostos  de  um  retângulo).  Segue,  portanto,  que  EBIH  é  um  quadrado.  Explorando  a   figura  em  detalhes,  pode-­‐se  concluir  ainda  que   os   triângulos   LED   e   MHG   são   congruentes,   assim   como   também   são   congruentes   os  triângulos  LAB  e  MJI.  Segue,  portanto,  que  dois  quadrados  são  equidecomponíveis  com  outro  quadrado.  

4) Um  polígono  qualquer  e  um  quadrado  de  mesma  área  são  equidecomponíveis.                                                                  

                                                                                                                                                                                           4  Por  meio  de  manipulação  dessa  figura  também  é  possível  demonstrar  o  teorema  de  Pitágoras.    

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Um  polígono  qualquer  (representado  na  figura  por  ABCDEF)  pode  ser  dividido  em   triângulos   a   partir   de   um   dos   seus   vértices.   Cada   triângulo   é   equidecomponível  com   um   retângulo   (demonstração   da   etapa   1).   Cada   retângulo   é   equidecomponível  com   um   quadrado   (demonstração   da   etapa   2).   Cada   dois   quadrados   são  equidecomponíveis  com  outro  quadrado  (demonstração  da  etapa  3).  Segue,  portanto,  que   um   polígono   qualquer   é   equidecomponível   com   o   quadrado.   Veja   a   seguir   um  exemplo  da  equidecomposição  entre  um  pentágono  e  um  quadrados.    

                                                                                       

5) Dois  polígonos  quaisquer  de  mesma  área  são  equidecomponíveis.    

                                       Se   temos   dois   polígonos   quaisquer   de  mesma   área,   podemos   equidecompor  

um  deles  com  um  quadrado,  e  o  outro  com  outro  quadrado  (note  que  os  quadrados  têm   mesma   área).   Sobrepondo   as   marcações   dos   dois   quadrados   obtidos   nas  equidecomposições,   encontraremos   um   quadrado   com   os   “peças”   que,   quando  reorganizadas  de  forma  conveniente  irão  recompor  cada  um  dos  polígonos5.       Da  nossa  análise  conclui-­‐se  que  o  impasse  da  “forma”  da  unidade  deixou  de  ser  um  problema.  Diante  de  um  polígono  não   retangular,   basta  equidecompô-­‐lo  em  um  quadrado   (e   isso  sempre  será  possível),  e  a  “forma”  da  nossa  unidade  de  medida  de  área  será  suficientemente  boa  para  indicar  a  medida  da  sua  área.  

  Vale   observar   ainda   que   toda   a   discussão   aqui   apresentada   pode   ser  utilizada  em  oficinas  de  fabricação  de  tangram  com  estudantes  da  escola  básica.  

                                                                                                                         5  A  mesma  questão   investigada  no  plano,  com  os  polígonos,  poderia  ser  estendida  ao  espaço,  com  os  poliedros.  Dois   poliedros   dizem-­‐se   equidecomponíveis   se   um  deles   pode   ser   equidecomposto   em  um  número   finito   de   partes   de   tal   forma   que     estas   partes   podem   ser   rearranjadas   para   formar   o   outro  poliedro.   É   claro   que   dois   poliedros   equidecomponíveis   são   equivalentes,   isto   é,   têm   volumes   iguais,  porém,   surpreendentemente   a   recíproca   não   é   verdadeira,   o   que   significa   dizer   que   nem   todos   os  poliedros  com  volumes  iguais  são  equidecomponíveis.  Esse  fato  foi  demonstrado  pela  primeira  vez  por  Max  Dehn  em  1900,  tendo  sido  o  primeiro  da  lista  dos  23  problemas  de  Hilbert  a  ser  resolvido.  

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 A  área  de  figuras  “malcomportadas”  no  contexto  da  escola  básica    

Exploramos  a  algumas  ideias  relacionadas  ao  cálculo  da  área  de  polígonos  mas,  o  que  teríamos  a  dizer  sobre  figuras  curvilíneas?  (as  tais  figuras  “malcomportadas”).  A  análise   desse   tipo   de   figura   pode   ser   encaminhada   por   meio   da   passagem   dos  polígonos   ao   limite,   porém,   essa   é   uma   discussão   que   escapa   do   universo   de  possibilidades   de   abordagem   na   escola   básica.   Por   outro   lado,   podemos   explorar   a  área   de   figuras   malcomportadas   na   escola   básica   por   meio   de   algumas   atividades  práticas,  como  veremos  mais  adiante.  Antes  dessa  nova  discussão,  contarei  uma  breve  historieta  que  talvez  soe  familiar  a  muitos  dos  leitores  destas  notas.  

Certa  ocasião  eu  estava  em  uma  roda  de  amigos,  todos  na  faixa  de  40  a  50  anos  de  idade,  e  resolvi  perguntar  o  que  cada  um  se  lembrava  dos  tempos  de  escola  sobre  o  cálculo   da   área   de   figuras   planas.   A   amostra   de   pessoas   ali   presentes   não   deve   ser  tomada   como   relevante   para   conclusões   estatísticas   mas,   ainda   assim,   vale   a   pena  comentar  os  resultados,  que  são  bem  interessantes.  

Todos   os   presentes   sabiam   calcular   a   área   de   retângulos   e   quadrados,   sem  problemas.   Cerca   de   2/3   das   pessoas   cantarolaram   “base   vezes   altura   dividido   por  dois”,   como   se   fosse   um   mantra,   porém,   poucos   foram   aqueles   que   conseguiram  identificar   um   par   base/altura   em   um   triângulo   obtusângulo   que   desenhei   em   um  guardanapo   de   papel.   A   situação   piorou   quando   perguntei   sobre   paralelogramos,  losangos  e  trapézios,  com  menos  de  1/3  das  pessoas  citando  algum  tipo  de  caminho  convincente   para   o   cálculo   da   área   dessas   figuras.   A   “pseudo-­‐pesquisa”   se   encerrou  com  a  pergunta:  -­‐  E  alguém  seria  capaz  de  sugerir  alguma  estratégia  para  o  cálculo  da  área  desta  figura?  E  desenhei  uma  bem  estranha  no  guardanapo.          

 Havia   engenheiros   no   grupo,   e   foram   eles   os   únicos   que   resolveram   se  

pronunciar.  Todos  citaram  o  cálculo  integral,  matéria  estudada  nos  primeiros  anos  dos  cursos  de  ciências  exatas,  e  que,  dentre  outras  aplicações  práticas,  permite  o  cálculo  de   áreas   quando   conhecemos   razoavelmente   bem   as   equações   associadas   à   curva  fechada  em  questão.  A  esse  pequeno  grupo,   fiz  ainda  uma  pergunta:   -­‐  E  qual  seria  a  equação  associada  à  essa  figura  para  que  possamos  aplicar  ferramentas  de  integração  no   processo   para   obtenção   da   sua   área?   Fez-­‐se   o   silêncio,   e   dali   não   conseguimos  avançar  muito  na  discussão.  

Se  por  um  lado  o  assunto  perdeu  interesse  devido  à  dificuldade  que  o  problema  passou   a   apresentar,   por   outro   todos   ficaram   curiosos   em   saber   se   existe   alguma  estratégia   matemática   para   o   cálculo   de   figuras   “malcomportadas”   como   aquela  desenhada  no  guardanapo.  

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Há   sim   formas   de   calcular   a   área   de   figuras   “malcomportadas”,   e   elas   são  acessíveis   a   todos,   sem   necessidade   do   cálculo   diferencial   e   integral.   Usei   a   palavra  “formas”,   no   plural,   porque   há   mais   de   uma   maneira   de   propor   saídas   para   esse  problema.  Comecemos  por  um  método  simples  que  permite  estimar  a  área  da  figura.  Para   esse  método,   teremos   que   desenhar   a   figura   sobre   uma  malha   quadriculada   e  contar  os  quadrados  da  malha  que  estão   totalmente  dentro  da   figura.   É   claro  que  a  soma  desses  quadrados  ainda  não  representa  a  área  da  figura  porque,  em  seu  interior,  ainda  existem  “pedaços  de  quadrados”  da  malha  que  não  foram  contados.  O  desafio  agora  passa  a   ser  o  de  estimar  a  área  desses   “pedaços”  e,  para   isso,  proponho  uma  estratégia   relativamente  simples,  ainda  que  ela  não  seja  absolutamente  precisa,  mas  funciona  muito  bem  em  atividades  com  crianças  bem  pequenas.  

Comece  contando  os  quadrados  que  estão  no  contorno  da  figura,  e  que  ainda  não   foram   contados   como   quadrados   inteiros   no   seu   interior.   Se   você   pensar   um  pouco   sobre   esses   quadrados   que   foram   contados   perceberá   que,   parte   deles,  contribuiu  para  a  área  total  da  figura  com  cerca  de  “menos  do  que  a  metade”  de  um  quadrado  da  malha,  e  parte  deles  contribuiu  com  cerca  de  “mais  do  que  a  metade”  de  um  quadrado,  como  ilustra  a  figura  a  seguir:  

 Admitindo   que,   em   média,   temos   metade   dos   quadrados   marcados   no  

contorno  da  figura  em  uma  das  duas  situações,  e  metade  na  outra,  podemos  estimar  a  área   total   da   figura   como   sendo   a   soma   dos   quadrados   da   malha   que   estejam  totalmente  no  interior  da  figura  com  “metade”  do  total  de  quadrados  do  contorno  da  malha  que  ainda  não   foram  contados   como  quadrados   inteiros  dentro  da   figura.  No  caso  da  figura  proposta,  estimaríamos  sua  área  por  meio  da  conta  37+(42:2),  ou  seja,  em  58  quadrados  da  malha.  Se  cada  quadrado  da  malha  tem  área  1  cm²,  então  a  área  aproximada  da  figura  será  de  58  cm².  

Alguns  puristas  talvez  estejam  se  perguntado:  -­‐  Isso  é  matemática?  Isso  é  matemática  sim,  afinal,  temos  um  modelo,  e  compreendemos  que  processo  tem  implícito  um  erro.  Também  seria  de   interesse  da  matemática   investigar  quais   são  as  condições   de   contorno   da   figura   que   implicariam   em   um   erro   maior   ou   menor   no  cálculo.   Em   atenção   aos   puristas,   que   não   devem   ter   gostado  muito   desse  método,  vamos  à  discussão  de  outro  método.  

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Na  mesma  malha  quadriculada  que  você  desenhou  a  figura  “malcomportada”,  desenhe  agora  um  retângulo  cujo  interior  esteja  totalmente  contido  em  quadrados  da  malha.  Por  exemplo,  pode  ser  um  retângulo  de  10  quadrados  (no  comprimento)  por  4  quadrados   (na   largura),  cuja  área  será   igual  a  40  quadrados  da  malha.  Agora  recorte  em  papel   cartão  um  molde  desse   retângulo  e  um  molde  da   figura   “malcomportada”  cuja  área  estamos  tentando  calcular.  Recorrendo  à  uma  balança  de  precisão  razoável,  pese  cada  um  desses  moldes  e  estabeleça  uma  proporcionalidade  direta  entre  a  massa  obtida   (em   gramas)   e   a   área   da   figura   (na   unidade   “quadrados   da   malha”).   Por  exemplo,   se  a  balança  acusar  que  a  massa  do   retângulo  é  de  8,4  gramas,   segue  que  cada  quadrado  da  malha  (em  papel  cartão)  corresponde  a  “(8,4  ÷  40)  gramas”,  ou  seja,  0,21  g.  Agora,  considerando  que  a  balança  tenha  acusado  massa  de  10,5  gramas  para  a  figura   “malcomportada”,   então   sua   área   poderá   ser   obtida   por   meio   da   conta  11,6÷0,21,  ou  seja,  aproximadamente  55  quadrados  da  malha.  Note  que,  nesse  caso,  a  estimativa  anteriormente  feita  pelo  método  de  contar  quadrado  na  malha  não  foi  tão  ruim,  tendo  cometido  um  erro  de  cerca  de  5%  em  relação  ao  cálculo  da  área  feito  por  meio  da  balança,  que  costuma  ser  mais  preciso  se  os  recortes  das  figuras  forem  feitos  de  forma  cuidadosa,  e  se  a  balança  for  de  boa  precisão.  O  método  de  uso  de  balanças  para   medir   áreas   é   bem   conhecido   desde   a   antiguidade.   Em   particular,   no   período  renascentista  Galileu  usou  esse  método  para  estimar  a  área  de  uma  figura  gerada  por  uma  ciclóide.    

Por  fim,  vale  a  pena  comentar  que  os  matemáticos  costumam  ter  nas  mãos  um  arsenal  diversificado  e  sofisticado  para  o  cálculo  da  área  de  figuras  “malcomportadas”.  As  armas  usadas  vão  desde  ferramentas  estatísticas,  como  o  método  Monte  Carlo  [7],  passando   pelo   teorema   de   Pick   [8],   até   o   cálculo   diferencial   e   integral.   No   caso   do  cálculo  diferencial   e   integral,  um   importante   resultado,   conhecido  como   teorema  de  Green,  é  o  fundamento  teórico  utilizado  na  concepção  de  um  fascinante  instrumento  denominado   planímetro   [9].   Planímetros   permitem   o   cálculo   da   área   de   uma   figura  plana   simplesmente   fazendo   com   que   o   instrumento   percorra   mecanicamente   o  contorno   delimitado   pela   figura.   Planímetros   são   utilizados   por   topógrafos,  cartógrafos,   engenheiros   e   arquitetos   para   o   cálculo   da   área   de   figuras   irregulares  desenhadas  sobre  mapas  e  plantas.    

       Planímetro  digital                                                                      Planímetro  linear                                        Planímetro  Polar    _______________________________________________________________________  

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Bibliografia    [1]  NIVEN,  I.  Números:  Racionais  e  Irracionais.  Rio  de  Janeiro:  SBM,  1990.  [2]  AABOE,  A.  Episódios  da  história  antiga  da  matemática.  Rio  de  Janeiro:  SBM,  2002.  [3]  GONÇALVES,  C.  H.  B.,  POSSANI,  C.  Revisitando  a  descoberta  dos   incomensuráveis  na  Grécia  Antiga.  Matemática  Universitária,  no.  47,  SBM,  2009.  [4]  LIMA,  E.  L.  Medida  e  Forma  em  Geometria.  Rio  de  Janeiro:  SBM,  1991.  [5]  EUCLIDES  (tradução:  Irineu  Bicudo).  Os  Elementos,  São  Paulo:  Editora  Unesp,  2009  [6]   BOLTIANSKI,   V.   G.   Figuras   Equivalentes   e   Equidecompostas.   São   Paulo:   Atual  Editora,  1996.  [7]   Método   Monte   Carlo   (recursos   educacionais   multimídia   para   a   matemática   do  ensino  médio/Unicamp).  (http://m3.ime.unicamp.br/recursos/1371)  

[8]  JUNIOR,  F.  S.  da  S.,  MICENA,  F.  P.  Sugestões  para  aplicação  do  Teorema  de  Pick  na  Educação  Básica,  2014.  (http://www2.fc.unesp.br/revistacqd/v3n1/v3n1_art5.pdf  )  [9]  COLLI,  E.  Planímetro  linear.  (http://www.ime.usp.br/~matemateca/textos/planimetro)