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Três horas. Quatro cafés. Mais cinco minutos. O que fazemos quando esperamos? Nunca nos limitamos a esperar. A espera não passa de uma pausa no tempo, de uma demora que nos provoca uma certa ansiedade, de uma reticência que nos faz ultrapassar os limites das nossas reflexões. Para quem o faz. Naquela noite já quase madrugada havia quem esperasse, havia quem se demorasse. Não ia decerto ser um encontro agradável, embora fosse inevitável. Para Gonçalves, a espera traduzia-se em fumar um cigarro. Gastaria tempo? Quem sabe. O certo é que esperava, e fumava. O certo é que media no seu pensamento as palavras adequadas para que o encontro fosse decisivo. Entre um cruzar de perna e um suspiro, Gonçalves ensimesmava-se na sua espera e nas suas reflexões. A sala era grande, recheada de velhas estantes castanhas. Já teria uma certa idade, cheirava a isso. Uma porta ligava a um corredor vazio e frio, onde nunca passava ninguém. Atrás da secretária de Gonçalves estava uma janela que permanecia fechada todo o dia e só era aberta à noite. “É para não perder o mofo”, respondia Gonçalves, que tentava cuidadosamente proteger a sabedoria que, para ele, aquela sala arquivava. Naquela noite, a janela proporcionava à espera de Gonçalves uma melodia (harmoniosa talvez), que compilava em si todos os ruídos e palpitações da vida nocturna, tão rotineira quanto a diurna. Gonçalves não gostava de olhar pela janela e encarar a noite de frente, preferia virar-se de costas e traçar no seu íntimo a noite perfeita. Furor. Furor era o que Gonçalves sentia nessas efémeras ocasiões. Esse furor deixava-o ileso a males mundanos, a banalidades, alimentava a paciência. Paciência que se estava já esgotando, lembrou-se Gonçalves, ao ver três e quarenta e cinco no mostrador do relógio. Finalmente batiam à porta. - Entra. - Desculpa, Gonçalves. Sabes como é… estas coisas do dia dos namorados. As mulheres levam esta história muito a sério e não as podemos desiludir… - Epá, ainda agora aqui chegaste e já não te posso ouvir. Senta-te e ouve bem, não vou repetir nem se poderá nunca este assunto repetir. Entendidos? – disse Gonçalves austeramente. - Diz lá então. – assentiu Pires. “ Ponta Delgada, 14 de Fevereiro de 1998” Caros inspectores: Eu já sei que estão a “proteger” Esmeralda. Não tenho forma de a contactar, nem a posso ver nem lhe posso sequer sentir o cheiro. Vocês acham bem? Descansem, ainda não é hoje que vos castigo, até porque os castigos mais tardios são os mais espinhosos. Mas desta vez vocês não são o alvo. O que espero sinceramente de asnos como vocês é que se sentem numa cadeirinha e enviem esta carta a Esmeralda. Eu vou saber que lha enviaram. Ela irá responder-me. Esmeralda: Não afastes os teus lindos olhos da realidade. Não vale a pena esconderes a tua alma dentro de ti. Tu és inconfundível. Chamar-te-ia até única, embora te estejas a tornar tão vulgar. Lembras-te do que te disse a primeira vez que ficámos íntimos?

Ogre

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Conto de Cláudia Barroso

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Três horas. Quatro cafés. Mais cinco minutos. O que fazemos quando esperamos? Nunca nos limitamos a esperar. A espera não passa de uma pausa no tempo, de uma demora que nos provoca uma certa ansiedade, de uma reticência que nos faz ultrapassar os limites das nossas reflexões. Para quem o faz. Naquela noite já quase madrugada havia quem esperasse, havia quem se demorasse. Não ia decerto ser um encontro agradável, embora fosse inevitável. Para Gonçalves, a espera traduzia-se em fumar um cigarro. Gastaria tempo? Quem sabe. O certo é que esperava, e fumava. O certo é que media no seu pensamento as palavras adequadas para que o encontro fosse decisivo. Entre um cruzar de perna e um suspiro, Gonçalves ensimesmava-se na sua espera e nas suas reflexões. A sala era grande, recheada de velhas estantes castanhas. Já teria uma certa idade, cheirava a isso. Uma porta ligava a um corredor vazio e frio, onde nunca passava ninguém. Atrás da secretária de Gonçalves estava uma janela que permanecia fechada todo o dia e só era aberta à noite. “É para não perder o mofo”, respondia Gonçalves, que tentava cuidadosamente proteger a sabedoria que, para ele, aquela sala arquivava. Naquela noite, a janela proporcionava à espera de Gonçalves uma melodia (harmoniosa talvez), que compilava em si todos os ruídos e palpitações da vida nocturna, tão rotineira quanto a diurna. Gonçalves não gostava de olhar pela janela e encarar a noite de frente, preferia virar-se de costas e traçar no seu íntimo a noite perfeita. Furor. Furor era o que Gonçalves sentia nessas efémeras ocasiões. Esse furor deixava-o ileso a males mundanos, a banalidades, alimentava a paciência. Paciência que se estava já esgotando, lembrou-se Gonçalves, ao ver três e quarenta e cinco no mostrador do relógio. Finalmente batiam à porta.

- Entra. - Desculpa, Gonçalves. Sabes como é… estas coisas do dia dos namorados.

As mulheres levam esta história muito a sério e não as podemos desiludir… - Epá, ainda agora aqui chegaste e já não te posso ouvir. Senta-te e ouve

bem, não vou repetir nem se poderá nunca este assunto repetir. Entendidos? – disse Gonçalves austeramente.

- Diz lá então. – assentiu Pires.

“ Ponta Delgada, 14 de Fevereiro de 1998”

Caros inspectores:

Eu já sei que estão a “proteger” Esmeralda. Não tenho forma de a contactar,

nem a posso ver nem lhe posso sequer sentir o cheiro. Vocês acham bem? Descansem, ainda não é hoje que vos castigo, até porque os castigos mais tardios são os mais espinhosos. Mas desta vez vocês não são o alvo. O que espero sinceramente de asnos como vocês é que se sentem numa cadeirinha e enviem esta carta a Esmeralda. Eu vou saber que lha enviaram. Ela irá responder-me.

Esmeralda: Não afastes os teus lindos olhos da realidade. Não vale a pena esconderes a

tua alma dentro de ti. Tu és inconfundível. Chamar-te-ia até única, embora te estejas a tornar tão vulgar. Lembras-te do que te disse a primeira vez que ficámos íntimos?

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Antes de te confessar que te amava, disse-te que conseguia sentir a tua presença a mais de um quilómetro de distância, graças à tua distinção. Riste-te na altura, soltaste uma gargalhada tão genuína que me encorajou a revelar-te e a oferecer-te todo o meu amor. Agora, se eu te dissesse isso tu punhas mais dois gorilas à tua porta. Mas para infelicidade de nós dois o verdadeiro amor não se perde como se perdem convicções. O amor verdadeiro, que tantos proclamam mas que tão poucos sabem o que é, esse amor, esse amor… esse amor está nos nossos corações. Esse amor faz-nos cometer loucuras, faz-nos delirar. Mas ainda hoje consigo sentir a tua presença em qualquer lugar que já tenha sido o nosso “cantinho dos segredos”. Foste tu que inventaste o “cantinho dos segredos”, lembras-te? Mas já há algum tempo que não experimento um pedaço dessa tua doce alma, há muito que não me rendo ao mais puro dos meus vícios. Sinto-me perdido, Esmeralda. Entregaste-me a tua inocência, juraste-me amor, ainda me amas. Mas isso não chega. Os sacrifícios vêm de mão dada com o mar de rosas que faz do amor um sentimento tão peculiar. Mas hoje não te peço sacrifícios. Nunca tos pedi. Quem ama não sacrifica, sacrifica-se. Hoje é o dia que encoraja os pequenos amantes a conseguirem atingir o verdadeiro amor. Amar é sofrer e recordar é viver. Hoje amo. Hoje, por causa desse amor que tu quiseste matar, sofro. Sofro de não te ter aqui. Sofro de já te ter tido. Só sei que sofro. Hoje vivo. Hoje vivo porque recordo os nossos dias, as nossas euforias, os nossos beijos, os nossos segredos. Nunca fui disto, tu sabes. Mas às vezes torna-se tarde demais e só aí entendemos que as pequenas coisas são tão importantes! Tão importantes, Esmeralda. A única coisa que eu queria era ver-te, olhar-te nesses olhos que se querem afastar dos meus mas não conseguem, tocar-te nos cabelos, fazer-te tremer. Queria amar-te uma vez mais, talvez numa ponte, nem que estivéssemos rodeados de polícias. Queria ver-te, queria sentir que ainda me amas. Porque às vezes saber não basta. O que eu te peço neste dia, o que eu te imploro que me concedas como último instante de uma vida que até poderia tornar-se feliz, é que me concedas o que te peço. Garanto-te que depois desse momento nunca mais ouvirás falar de mim, garanto-te que a partir desse momento deixarei que me esqueças. Garanto que consumirei a minha vida logo a seguir a esse instante tão doce e assim voarei satisfeito até ao céu. Amo-te, Esmeralda. Amo-te de um amor impossível, de um amor que eu não consigo imaginar viver.

José”

Pires agarrou no papel e disse: - Este maníaco pode atacar. Tomaremos precauções. Trata de destruir a

carta. Que ela nunca chegue às mãos de Esmeralda. Ela é tão apaixonada por ele que pode perfeitamente fugir com este psicopata. Mesmo vigiando-a, o melhor é não arriscar.

Gonçalves concordou: - Fica descansado. Cinco e trinta e cinco. Gonçalves relê a carta. Não a consegue rasgar. Essa

carta contém lágrimas, emoções, coisas dessas muito especiais. Algo assim não pode ser destruído. Seis e vinte e nove. Gonçalves dá uma última olhadela e pensa

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que quem escreveu algo assim é doente e pode atacar a pessoa que assegura amar. Sete e cinco. Gonçalves ainda não sabe o que fazer com a carta.

** Ao sentir a luz do sol inflamando-lhe a cara, Gonçalves acordou. Ensonado,

tratou de fechar a janela e correu a persiana até ao fundo. Acendeu o candeeiro, sentou-se e fixou-se na carta por alguns momentos. Tinha que resolver alguma coisa, até porque incertezas só resultavam em decisões mal tomadas. Viu as horas, nove e meia. Voltou a pegar na carta e admitiu que não sabia o que fazer. Talvez precisasse de um café, de um pequeno-almoço e de fumar um cigarro. Saiu. Como sempre fazia, fechou a porta à chave e pô-la no bolso da sua camisa. Distraidamente, Gonçalves caminhava apressado.

- Nem o vi chegar, Inspector Gonçalves. – disse, sorrindo, a secretária Melina. - Bom dia, Melina. Alguma novidade? – perguntou o inspector. Melina passou nas suas mãos várias cartas. Gonçalves estremeceu. Haveria

outra carta para Esmeralda? - Não. Para si não há nada. Precisa de mais alguma coisa? – perguntou a

secretária. Gonçalves disse que não e saiu. O dia não dava ânimo ao inspector. Por vezes o sol aparecia, tímido, mas

logo as nuvens tratavam de o afastar para longe. Gonçalves apreciou a vastidão do céu e interrogou-se: quantas pessoas teriam contemplado o céu, hoje? Ninguém, talvez as pessoas nem soubessem examinar o seu próprio tecto. Suspirou e entrou no café do costume. Pediu o costume e sentou-se no sítio do costume. Gonçalves gostava de rotinas e gostava ainda mais de as cumprir. Lembrou-se da carta e da sua própria responsabilidade. Tinha sido aconselhado a apagá-la, apenas aconselhado. Porque de ninguém Gonçalves cumpria ordens. Dez e dezassete. Gonçalves ainda não talhou destino à carta. A empregada de balcão aproxima-se, traz o galão e o pastel de nata de sempre. Com os gestos de sempre. Gonçalves sorriu.

- Mais alguma coisa, senhor? – perguntou ela, calculando a resposta usual do cliente.

- Sim. – respondeu Gonçalves. - Sim? Diga diga… - estranhou a empregada. - Diga-me, para si, qual destas duas soluções é a melhor: destruir algo ou

deixar esse algo cair em esquecimento profundo? – perguntou Gonçalves, já arrependido de ter colocado à empregada tal questão.

- Deixar esse algo ser esquecido. – respondeu assertivamente a empregada. - E porquê? - Porque tudo o que é verdadeiramente importante nunca é esquecido e

podemos ainda recuperá-lo quando tivermos urgentemente de o fazer. Quando já está destruído, não há nada a fazer. – disse a empregada.

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- E porque é que só recuperamos esse algo quando precisamos urgentemente de nos lembrar dele? - perguntou o inspector.

- Porque temos medo de o recuperar antes. – respondeu a empregada. - Já não preciso de mais nada, pode ir, obrigado. - Com licença. Onze em ponto. Gonçalves decide o que fazer com a carta. Sentia-se um

pouco cansado, resolveu ir a casa, tomar um banho, ver um filme. Subitamente, o seu telemóvel tocou.

- Estou? - Bom dia, Gonçalves. Já trataste daquilo? – quis saber Pires. - Já. – mentiu Gonçalves. – Se calhar hoje vou chegar um pouco mais tarde. - Tudo bem, até logo. Onze e quarenta e nove. Ao abrir a porta de casa, Gonçalves reparou que aos

seus pés estava um envelope branco. Ansioso, abriu-o e leu:

“L., 15 de Fevereiro de 1998

Caro Inspector Gonçalves: A minha Esmeralda não leu a carta, pois não? Sempre tive algo dentro de mim a dizer-me que você é uma pessoa de bom senso. É por isso que sei que guarda religiosamente a carta consigo. Saí da ilha, agora nunca me apanharão mesmo. Mas um dia vou apanhar-vos. Especialmente a si, Gonçalves. Se nos próximos dias não tiver nenhuma novidade de Esmeralda, significa que ela não leu a carta. A culpa será sua e será julgado como tal. Não ignore, Inspector Gonçalves, não ignore.

“Ogre”

Gonçalves deixou-se cair. Ao lado da assinatura de José estava uma mancha de sangue. Da sua curta carreira, era a primeira vez que sentia medo. Gonçalves sentia muito medo. Rapidamente se levantou, trancou a porta e todas as janelas de sua casa. Mergulhou na escuridão, como para não se ver, como para não se ouvir e chorou. Gonçalves chorou muito. Tinha medo. Gonçalves sofreu, por demorados momentos, o pior que uma pessoa pode sentir: pena de si própria. Lembrou-se das suas brincadeiras de infância, do baloiço, do lego, dos seus irmãos. Que estariam os seus irmãos a fazer naquela hora? Lembrou-se do Carnaval, da fatiota do Homem Aranha, lembrou-se das tartes da sua mãe. Deu-se conta de que era ainda o mesmo menino, que precisava de protecção, que não conseguia enfrentar o mundo sozinho. Gonçalves sentiu-se miserável. Não era apenas a carta. Era toda a sua vida. Estava tudo errado! Ele não tinha estofo para o que fazia. Queria trabalhar por gosto, como o seu pai fazia. Queria ser feliz, modestamente. Não queria assumir

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poder nem liderar. Apenas queria o colo da sua avó, as tardes quentes de Agosto. Gonçalves estava disposto a desistir de tudo. Até da vida. Entre choros e gritos silenciosos, o inspector adormeceu. Dormiu durante algumas horas, ainda que continuasse sofrendo, envolvido em distâncias e saudades.

Quando acordou eram dezoito e cinquenta e quatro. Já não ia trabalhar. Recompôs-se e destrancou as janelas, abrindo-as, deixando o crepúsculo entrar para o reconfortar. Ligou a Melina avisando que ia ficar em casa, o Pires que não esperasse por ele. De seguida tratou de cozinhar alguma coisa para comer. Sentia-se agora mais animado, mais calmo, sereno talvez.

Gonçalves assumia a forma da sua própria consciência. Não pedia conselhos, não tinha, aparentemente quaisquer dúvidas. Apenas repetia: isto é só mais um caso, só mais uma vítima, só mais um sacana que uma vez mais vou pôr atrás das grades. Quantas mais vezes ele repetia, mais vezes ouvia um “mas…” que logo tentava disfarçar. Apesar de teimoso, Gonçalves tinha uma característica própria: fazia sempre o que estava correcto. Algo lhe dizia que assim estava a agir correctamente.

***

Ainda não eram nove horas quando Gonçalves entrou na esquadra. Melina entregou-lhe o seu correio. Nenhuma carta de José. “Será um bom sinal?”, interrogou-se o inspector. Novos casos chegavam às mãos de Gonçalves, desesperando por uma solução.

- Inspector, - disse Melina – o Inspector Pires deseja falar consigo. Está à sua espera no seu escritório.

- Obrigado, Melina. Vou já para lá. – respondeu Gonçalves. O escritório de Pires era bem diferente do de Gonçalves. Tinha duas grandes

janelas atrás de um sofá branco. Todos os dias as suas persianas eram corridas até cima, deixando a luz do sol entrar em todos os buraquinhos da sala. Em cada canto estava pelo menos uma planta muito alta e muito verde. Essas plantas revigoravam o ambiente do inspector Pires, que, entretido nas suas papeladas, nunca se esquecia de sintonizar o seu rádio na Antena 2.

- Entra, Gonçalves – disse o inspector Pires logo que ouviu bater à porta. - Precisas de falar comigo, é? – perguntou Gonçalves. - Senta-te. – pediu Pires, levantando-se, mirando o horizonte pela sua janela.

– O caso da Esmeralda e do José foi arquivado. Não se sabe nada dele, ela está em segurança. Não vejo qualquer razão para continuarmos a investigar.

- Só podes estar a brincar… ele é um maníaco! Um psicopata aí à solta! Temos de o encontrar! – exclamou Gonçalves.

- Este caso, caro colega, está encerrado. Sou eu o responsável por ele, sou eu que decido o que fazer-lhe. – afirmou o inspector. – Não vale a pena protestares mais. Agora, há ainda outro assunto que precisamos discutir. Ontem à noite uma menina de quatro anos desapareceu. Os pais não estavam em casa e a baby-sitter não deu conta de nada. Eu vou falar com os pais e tu com a ama.

- Deixa-me falar com ela… - disse, pensativo, Gonçalves. - Então mas tu não ouviste o que te acabei de dizer? Vais falar com ela, sim. - Com a Esmeralda. – esclareceu Gonçalves. - Mau! Isto está encerrado, não há mais volta. – recusou Pires.

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- Mas o que custa falar mais uma vez com ela? Nada! – insistiu Gonçalves. - Como queiras, pronto. – cedeu Pires. Gonçalves saíra num ápice. Queria muito falar com Esmeralda e mostrar-lhe a

carta que José escrevera. Talvez fosse a última oportunidade de o apanhar e, aí sim, poderia dar o caso como encerrado. Esta última tentativa, porém, era arriscada, daí não contar nada ao Pires. Assim, se alguma coisa corresse mal, a culpa seria só sua e escusaria de andar a comprometer a vida dos outros.

O seu plano era mostrar a primeira carta a Esmeralda, ela não hesitaria em ir ter com ele. O amor faz com que cometamos loucuras, faz com que ajamos sem pensar racionalmente. Esmeralda ainda o amava, notara-se das últimas vezes em que a interrogaram. Daria tudo por tudo para o encontrar e Gonçalves iria segui-la. Era perigoso, muito arriscado, mas o inspector sabia-o. No entanto, não tinha nada a perder. Não deixaria que o caso fosse arquivado sem estar solucionado.

Chegado ao prédio onde vivia Esmeralda, Gonçalves avistou um polícia. Mostrou-lhe a sua identificação e subiu. Estava um pouco nervoso, segurando um papel nas suas mãos húmidas. Bateu à porta e ao fim de um pouco Esmeralda abriu.

- Por aqui, inspector? Alguma novidade? – perguntou a vítima, ansiosa. - Desculpe aparecer assim sem avisar, mas de facto, há uma novidade… -

confirmou o inspector. – O José enviou-nos uma carta, mas está dirigida a si. Leia. Trémula, Esmeralda pegara na carta. Os seus olhos arregalavam-se à medida

que avançava nas palavras que José lhe escrevera. Estava bastante perturbada e o seu coração era audível a metros de distância. Por fim, disse:

- Ele não me esqueceu, inspector. Esta fuga não foi sinónimo de distância entre mim e ele.

- Esmeralda, convém não esquecer-se do mal que este homem lhe fez. – racionalizou Gonçalves. – Para além de lhe bater frequentemente, mantinha-a fechada em casa, sem poder falar com alguém. O que passou foi horrível, você tem de o esquecer.

- Foi ele quem escolhi para meu marido. Os votos de um casamento são demasiado sagrados para se quebrarem por discussões estúpidas. Ele tem defeitos, todos nós temos. – dito isto, Esmeralda começou a chorar.

Gonçalves tentava acalmá-la, dizendo por fim: - Esmeralda, acha que através desta carta consegue dizer-nos onde José se

encontra? - Se eu soubesse, inspector, já lá estava. Ele mandou a carta para vocês

porque sabe que eu troquei de morada. Não tem forma de me contactar. Além disso, essa carta não traz nenhum sinal que eu consiga descodificar. Só me posso lamentar, só isso. – respondeu a moça.

Gonçalves pensava “Sinal… realmente a carta não continha nenhum sinal nem nenhuma pista.” Mas José enviara-lhe uma outra carta, só a si. Tentaria essa. Puxou um outro envelope do bolso e disse:

- Ao fim de nos ter enviado essa carta, José enviou-me um bilhete só a mim. Sabe, Esmeralda, não era suposto você ler a primeira carta. Eu tinha ordens superiores para destrui-la, mas guardei-a. Não interessa agora o porquê, mas só lhe peço que não conte a ninguém o que leu e o que vai ler.

Esmeralda assentiu e leu o bilhete.

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- Inspector – disse, - aqui na data está um L., e na assinatura está Ogre. Sabe o que isto significa?

- L. talvez seja de “longe” e “ogre” talvez seja um nome bem adequado que José arranjou para se auto-caracterizar. – respondeu, ironicamente, Gonçalves.

Esmeralda ignorou o comentário do inspector e disse: - Pois para mim, L. é Letónia e Ogre é uma cidade. Foi onde eu e José

passámos a lua-de-mel. Ele tem lá uns primos e optámos por um sítio mais barato. É aqui que ele está, inspector, em Ogre, Letónia! – Esmeralda não conseguia conter a felicidade que a invadia, mas logo se arrependeu de ter divulgado aquela informação, pois agora José corria risco de ser apanhado.

Gonçalves estava estupefacto. Mas ao fim de um pouco pensou… e se ela o estivesse a enganar? Se tivesse descoberto o verdadeiro local onde José se encontrava e, calculando que ia ser seguida, estava tentando despistar o inspector? Resolveu então arranjar uma desculpa bem convincente, uma razão pela qual não podia ir capturar José, mas que não impedisse Esmeralda de ir. Acabou por dizer:

- Lituânia, hã? Tinha esperanças que o seu marido se encontrasse em território insular ou continental, mas em Portugal. Assim sendo não há nada que possamos fazer. – Gonçalves simulava uma cara frustrada.

- E porquê, inspector? – perguntou Esmeralda, desconfiada. - Porque só temos ordem para o prender em território nacional. É uma pena,

realmente. Mas acredite que, se ele voltar, não se safa! – disse o inspector, exaltado.

- Só lhe digo mais uma coisa, Esmeralda, pense bem antes de ir atrás desse canalha. Não se esqueça do que já sofreu. Pelo sim, pelo não, a Esmeralda vai continuar sob vigilância, para que não caia na tentação de cometer alguma loucura – acrescentou Gonçalves.

- Adeus, inspector. – disse Esmeralda, abrindo a porta da rua. - Passe bem, Esmeralda. Tome cuidado.

*** Mal sai u do prédio, Gonçalves deu ordem aos seguranças para que

deixassem de vigiar Esmeralda. Ele mesmo iria segui-la. Pediu-lhes sigilo absoluto e, confiante, instalou-se no seu carro comendo devagar um pacote de batatas fritas e dando ruidosos golos num grande copo de café. Palpitava que a vítima ia sair a qualquer instante. Quando saísse, ele ia segui-la até ao aeroporto. De seguida, embarcaria no avião, mas em primeira classe, para ela não o ver. Em Ogre, continuaria a perseguição por via terrestre. Logo que ela se encontrasse com José, apanhá-lo-ia, com a ajuda da polícia letã.

De facto, Esmeralda não tardou a abandonar o prédio, olhando em todas as direcções. Não via sinais de seguranças e decidiu avançar. O seu sexto sentido dizia-lhe que ia ser seguida, mas ela fazia tudo por José. Tudo. Entrou no seu carro e seguiu calmamente. Não transportava malas ou qualquer outra bagagem.

A uma distância de três carros, Gonçalves seguia-a. Tinha tudo sob controlo. Jamais deixaria um traste voltar a gozar com a sua cara como José fizera.

Vinte e três horas e dezoito minutos: o próximo avião para Ogre partia às vinte e três horas e trinta minutos. Segundo Gonçalves, a parte mais chata seria esconder-se de Esmeralda, dado que teria de fazer o check-in e o aeroporto não era

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propriamente um espaço onde houvesse bons esconderijos. Como calculava, Esmeralda seguia em segunda classe. Ele iria então em primeira. Com a ajuda de um jornal, conseguia simultaneamente ver todos os passos de Esmeralda e manter-se escondido desta. Vinte e três e trinta. Chamada para o próximo voo para Ogre. Esmeralda estava com pressa, tanta que, logo que ouviu a voz de fundo, dirigiu-se a correr para a fila, receando perder a sua grande oportunidade. Gonçalves, calculando esta atitude, deixou-se ficar para último e seguiu assim, sossegado e confortável em primeira classe.

***

- Senhor, deseja alguma bebida? Temos whisky, vinho, champanhe… - a hospedeira de bordo sorria.

- Uma água, por favor. – respondeu Gonçalves, que dormitava, sossegado. “Este José já me está a custar um balúrdio.” O inspector estava cheio de

sono, andava com insónias, com a cabeça feita «num oito». Voltara a tombar a cabeça de novo. O inspector «passava pelas brasas».

Viagem longa. Seis e dez em Portugal, quatro horas certas em Riga. Os passageiros apertavam os cintos, preparando-se para a aterragem.

O sol estava bastante reservado, as nuvens apoderavam-se do céu, indiciando uma grande chuvada. As luzes da cidade já estavam, porém, desligadas, o que dificultava a visão de Gonçalves, que nunca tinha visitado a Letónia antes. Não podia deixar de se focalizar em Esmeralda. Não tinha tempo de trocar euros por lats ou de apreciar a linda paisagem da cidade.

Uma carrinha vermelha esperava junto ao aeroporto. Foi onde Esmeralda entrou e seguiu, rumo a Ogre. Gonçalves chamou um táxi e pediu ao taxista que seguisse a carrinha. Mostrou a sua identificação e explicou ao senhor que era uma perseguição policial. O taxista mostrou-se desinteressado e, falando um inglês meio conturbado, respondeu a Gonçalves:

- You have to pay. Don’t matter if you are police. O homem ficou bastante contente quando o inspector lhe disse que ia pagar

em euros. Atento, o taxista seguia a carrinha vermelha a uma distância razoável. Cinco horas e dez minutos em Ogre. Sem mais nada para pensar, Gonçalves

vislumbrava o lindo rio que também se chamava Ogre. O taxista balbuciava histórias da cidade, entretido. Gonçalves transpirava serenidade. Estava tudo a correr tão bem. Imaginava a cara de Pires, quando chegasse a Lisboa com José algemado. Receberia um aumento? Não sabia. O que lhe interessava realmente era apanhar o cretino. Os louros que viessem depois. E haviam de vir, pois.

- The van stopped there. – disse o taxista. - Leave me here, thank you. – respondeu Gonçalves, deixando cem euros na

mão do taxista. À frente de Esmeralda estava uma velha e pequena casa. No quintal,

andavam porcos e galinhas à solta, correndo. Um cão muito grande estava amarrado a um pinheiro. Logo deu sinal da presença de uma estranha. Quem tinha ido buscar Esmeralda fora uma mulher gorda, mal vestida e com cara de poucos amigos. Quando a rapariga saiu, a mulher seguiu o seu caminho, deixando um grande rasto de pó atrás. A casa parecia inabitada e a Gonçalves, causava-lhe

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arrepios. Este estava a menos de vinte metros de Esmeralda, escondido atrás de um casebre.

A porta da casa abriu-se. Uma pequena fisga foi o suficiente para Esmeralda entrar. Logo a porta se fechou. Gonçalves estava muito nervoso, como se alguma coisa fosse correr mal, mas não desistiu. Preparando a arma, o inspector correu e, com um fôlego, mandou a porta abaixo.

A única divisão da casa suportava um retrato deprimente. Uma lareira estava a um canto e dela apenas saía fumo. A outro canto estava um fogão ferrugento, com um sofá ao lado. Nesse sofá, José e Esmeralda estavam sentados, sem se tocarem. Esmeralda não ficou surpreendida ao ver Gonçalves, já desconfiava. Esta atitude, perceptível por José, deixou-o ainda mais louco.

- Minha grande filha da mãe! Tu armaste-me uma cilada? Vieste com um polícia atrás? – gritava ele, espavorido.

- Estás maluco? Claro que não! Eu nunca te faria isso! Tu conheces-me… eu abdiquei de tudo por ti! – berrava Esmeralda, atirando-se para os braços de José.

Gonçalves estava imóvel, tal qual uma criança que joga ao macaquinho do chinês. Branco, suado e tremendo, erguia a arma, murmurando:

- Os dois quietos! Esmeralda estava ainda mais possuída que José. Deu um beijo ao seu

namorado e prometeu-lhe que ia tratar daquilo. Descalçou-se e, pegando num dos seus sapatos vermelhos da Loubotin, atirou-se a Gonçalves. O salto afiado e fininho trespassava a traqueia do inspector. Gonçalves viu passar à frente dos seus olhos toda a sua vida, a sua infância, a sua família e, tristemente, lembrava-se agora de que naquele dia a sua mãe completava cinquenta e um anos.

Vezes e vezes sem conta Esmeralda repetia o mesmo processo. Tirava e voltava a enfiar o salto no pescoço de Gonçalves, tingindo a sua roupa, braços e mãos da mesma cor do sapato fatal. Só parou quando sentiu três tiros trespassarem-lhe as costas. A vítima e o inspector estavam assim enrolados num grande lago de sangue. Os dois arrependidos, os dois pálidos, mortos. Diante deles, José segurava uma pistola.

Uma criança espreitava à porta. - Anda, Viki, ajuda-me a enterrá-los – sussurrou-lhe José, pegando com nojo

no corpo de Esmeralda. Sete e sete. Finalmente, o sol brilhava plenamente, intocável, no alto céu.