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Oi Pai, Diálogos imaginários de um filho com o pai que já se foi. Imaginário de um pai encantado.

Oi Pai, - perse.com.br · ... que foi o último instrumento que meu pai tocou na noite que ele faleceu. Hoje, essa gaita continua soprando as melodias que ele toca pra mim

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Oi Pai,

Diálogos imaginários de um filho

com o pai que já se foi.

Imaginário de um pai encantado.

Oi Pai,

Diálogos imaginários de um filho

com o pai que já se foi.

Imaginário de um pai encantado.

Cláudio Carvalhaes

São Paulo

2011

PerSe

“Eu sinto muito ouvir sobre isso. Eu pensava que as coisas

eram mágicas e que isso nunca aconteceria.”

Andy Warhol

“A vida é uma incógnita e isso é a coisa mais justa que tem.”

Waldemar Carvalhaes

Copyright © by Cláudio Carvalhaes

Capa e Projeto Gráfico - PerSe

Editoração Eletrônica - PerSe

Impressão Digital

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Índice para Catálogo Sistemático

1. Historias de vida: Literatura Brasileira 869.93

PerSe – www.perse.com.br

São Paulo, SP – Brasil

Créditos - Fotos

Capa e contracapa:

Fotos de Cláudio Carvalhaes / Max Café em Nova York

Orelha capa:

Foto de Waldemar Carvalhaes - Família Carvalhaes

Orelha contra-capa:

Foto de Ralph Homan, cortesia do Seminário Teológico

Presbiteriano de Louisville

Carvalhaes, Cláudio

Oi pai, diálogos imaginários de um filho com o

pai que já se foi : imaginário de um pai encantado /

Cláudio Carvalhaes. -- São Paulo : PerSe, 2011.

ISBN 978-85-64280-12-0

1. Carvalhaes, Cláudio 2. Carvalhaes, Waldemar,

1925-2005 3. Crônicas brasileiras 4. Espiritualidade

5. Histórias de vida 6. Luto 7. Memórias 8. Pai e

filho 9. Relações familiares I. Título.

11-08507 CDD-869.93

Dedicatória

À minha mãe, Dona Esther, e à minha trindade particular:

minhas irmãs Mércia e Ana Maria e meu irmão Zé/Jimmy.

Essa gente minha que, junto com meu pai, fizeram e formaram

muito do que eu sou, quem eu me tornei, e que viveram

comigo as agruras, os fascínios, a dor e a delícia se sermos

uma família.

Agradecimentos

À Elisabeth Batina da Silva Santos. Ela fez a primeira leitura

do manuscrito e me deu força durante o meu tempo de luto.

Foi ela quem me deu o pingente que hoje carrego no peito,

uma gaita de prata, que foi o último instrumento que meu pai

tocou na noite que ele faleceu. Hoje, essa gaita continua

soprando as melodias que ele toca pra mim... Beth, obrigado!

Ao Ruy Costa e ao Zé Lima, dois amigos que pela graça

divina tornaram-se meus irmãos e hoje são lumiares que

brilham intensamente na minha vida apesar da distância. O

prelúdio e postlúdio foram presentes especiais que me fizeram

chorar.

Pessoas muito queridas leram o manuscrito e me ajudaram

muito com palavras de conforto, precaução e cuidado. A elas,

que sabem quem são, meu carinho e imensa gratidão.

A Dra. Sheila Erlich e William Stanley que me ajudaram a

olhar para lugares que eu não queria e assim me ajudaram a

chegar até aqui.

A minha sobrinha Marta Chiavegatti que fez a diagramação

de todo o texto com um sorriso enorme.

Ao Antonio Hércules da Perse pela paciência em todo o

processo e ao Thiago Rosa, também da Perse, pelo lindo e

cuidadoso trabalho no design da capa e contracapa.

E ao Marcos Oliveira dos Santos (datdtv) meu amigo e irmão.

Sem ele e a Oásis Alimentação, esse livro não estaria nas suas

mãos.

Índice

11 Antes de Começar

13 Prelúdio – Prepare o Seu Coração por Ruy Costa

17 Litania de Boas Vindas

23 Cântico de um Salmo de Despedida: Nota de Falecimento

– Sr. Waldemar Carvalhaes, O Belezura

27 Mystagogia - Liturgia da Vida Celebrada no Meio da Morte e da Morte no meio da Vida. 13 de janeiro de 2005,

8hs00 – Cemitério da Quarta Parada, São Paulo, SP

37 Confissões - Primeiros Pensamentos e Sensações Sobre a Morte de Meu Pai

43 Homilia - “Oi Pai” - Contação de Estória/Conversas

229 Santa Ceia/Eucaristia – Paraclesis e Palavras

de Instituição - A Cor dos Olhos Dele

233 “... fazei isso em memória de mim” –

Dois Textos Para Serem Lidos em Voz Alta: Meu Pai, o Pão;

237 Meu Pai, o Vinho

239 Orações do Povo e Anúncios Gerais

251 Doxologia e Benção Final

255 Poslúdio –Nuvens de Açucar (um bilhete pneumografado)

por Zé Lima

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Antes de Começar

No lançamento de seu livro Murder in Byzantium numa

livraria de Nova York na época chamada Labyrinth Books, a

pensadora e escritora Búlgara-Francesa Julia Kristeva fez uma

distinção entre estórias/ficções do ego e estórias/ficções do

sujeito.1 Ela queria diferenciar a forma como as estórias de

cada um são contadas e usadas em diferentes meios de

comunicação, mas especialmente na literatura.

As estórias/ficções do ego são estórias que as pessoas contam

acerca de suas mais diversas experiências, de alegrias a

catástrofes pessoais, descrevendo os limites do corpo e das

estruturas emocionais-psiquícas dos seus personagens. Essas

estórias, que se encaixariam perfeitmente no que se chama

hoje de reality-show, com imenso potencial de tornar as

pessoas estúpidas e expô-las ao ridículo, tornam público as

mazelas, desastres, incapacidades e sofrimentos pessoais,

deixando o leitor/telespectador com uma sensação de distância

descompromissada. Essas estórias são contadas com o fim de

alimentar tanto o ego dos personagens como o desejo de

consumo do leitor/telespectador entorpecido pelas peripécias

desses atores e que ao final acabam por não relacionar e nem

criar vínculos entre essas experiências/personagens com uma

realidade maior que os circunda, tornam-se assim fins em si

mesmas.

Já as estórias/ficções do sujeito usam as estórias da vida,

também suas alegrias e catástrofes, desastres e mazelas mas

com um suporte, digamos, histórico-filosófico, que vinculam

o leitor com a vida e mundos dos personagens e que, ou criam,

emprestam e/ou ampliam perspectivas e horizontes na vida do

próprio leitor. Com isso, as estórias não ficam simplesmente à

1 Essa distinção aparece em recente entrevista que não tive acesso.

O que descrevo aqui é parte de minhas anotações pessoais da sua fala.

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serviço do ego dos personagens e desconectadas do leitor mas

ao contrário, acabam por servir de relação entre os dois e o

mundo que se vive, trazendo um certo sentido de proximidade,

vínculo e de transformação histórica.

Ao contar minhas estórias com meu pai, e com o que a morte

nos deixa, que a princípio não tinham intenção nenhuma de

serem compartilhadas, meu desejo é contar estórias/ficções do

sujeito, apresentando a vida do meu pai, o seu Waldemar, um

cidadão brasileiro (quase) tão comum como qualquer um de

nós, e as estórias dos meus dias que se sucederam por um ano

após sua morte.

Já se vão alguns anos desde que ele morreu. Hoje leio esse

texto e sinto um misto de estranheza e atualidade. Eu mudei, a

vida me mudou, e a ausência de meu pai tomou e ainda toma

diferentes formas dentro de mim. Hoje, nesse momento que

escrevo, a falta dele me parece como a celebração protestante

da Santa Ceia: a presença de uma ausência. E é a

rememoração constante dele que me dá novos contornos e me

ajuda a seguir.

Assim, espero que essa contação de estórias sirva, quem sabe,

tanto de suporte quanto de uma possível ajuda ou tradução, à

quem vive a violência, o horror, o absurdo, a dor e a

inescapável benção da morte de alguém amado.

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Prelúdio2 – Prepare o Seu Coração

Escute o Geraldo Vandré:

Prepare o seu coração

Pras coisas que eu vou contar

Eu venho lá do sertão

Eu venho lá do sertão

E posso não lhe agradar

Aprendi a dizer não,

Ver a morte sem chorar

E a morte, o destino, tudo,

A morte e o destino, tudo

Estava fora do lugar,

Eu vivo pra concertar3

Prepare o seu coração para as coisas do seu Waldemar, para as

coisas que o Cláudio escreveu, para as coisas que eles vão

falar. Prepare o seu coração antes de entrar nesta liturgia de

pranto e canto. Prepare o seu coração para um banquete de

sete cursos, preparado por um poeta brasileiro condenado por

Deus a ser teólogo, liturgista, pastor de palavras, que fala das

coisas mais complicadas – coisas da vida e da morte – com as

palavras mais simples, sem exibição, sem afetação. Poeta que

capta a singeleza e a eternidade dum momento quando pai e

filho brincam juntos, cantam juntos e juntos fazem

palhaçadas. Poeta, profeta, contador de estórias que faz a

2 Prelúdio: O prelúdio consiste de uma introdução performática,

uma ação, um gesto, uma música, um movimento, ou um ato que tanto

precede como sinaliza os caminhos pelos quais o evento cúltico irá se

encaminhar. 3 Geraldo Vandre, Disparada…

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gente pensar pelo avesso as coisas da vida e da morte do fim

até o começo.

Prepare o seu coração pra ler um texto que lê você. Sim, o

texto do Cláudio lê o que você tem no coração. Nele você se

vê. No seu lamento pelo pai ausente, você também sente

saudades do seu pai. Nas suas discussões de filmes, música,

igreja e teatro, você se vê e na sua saudade você sente

saudade. É como se fosse uma psicanálise pelo avesso; na

psicanálise o paciente fala e o analista escuta; no texto do

Cláudio, ele fala e o leitor lê, mas no fim das contas o leitor se

re-encontra com seus próprios sentimentos. Prepare o seu

coração porque as conversas do Cláudio com o seu Waldemar

não são acidentes aleatórios, são ao contrário temas

escondidos na alma, que eles vão explorando como caçadores

no mato, procurando e encontrando pequenos sinais por onde

a caça passou.

Prepare o seu coração para mergulhar nas mil eternidades

vividas nas vidas deste filho com seu pai. Lembra do Vinicius

de Moraes? “que seja eterno enquanto dure.” Um outro

mestre antigo, o Eclesiastes, disse que “Deus pôs a eternidade

no coração humano.” Por frágil que pareça, por efêmero que

seja, cada momento vivido com intenção permanece para

sempre. Aquele momento jamais acaba. O momento não tem

nada a ver com o calendário, com o relógio…. O momento

fica gravado na memória do universo, como a memória fica

gravada na nossa alma. E aí, a contradição entre o momento e

o calendário nos faz sofrer… Mas a celebração do momento

cancela o calendário e nos permite a magia da eternidade

dentro do tempo. Mil eternidades vividas numa vida. E o

Cláudio, mago liturgista que é, sabe transcender o tempo e nos

transportar de volta ao momento, ao santo, sagrado, bonito e

encantado momento de cada evento.

Prepare o seu coração para as coisas que eu vou chorar. Chore

comigo que a vida vai passar. Chore comigo porque o dia se

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aproxima quando nosso abraço será o último, como foi o

último aquele abraço que teu pai te deu, frágil, gemido,

amoroso e triste… Chore comigo os muitos últimos abraços

que você já recebeu. Os abraços de quem já partiu ou

simplesmente sumiu. Chore comigo, sentado na calçada duma

rua de Nova York, desconsolado. Momento de dor, também

eterno. Porque a cada momento também morremos. E quem

tem coragem de falar da morte com integridade sem paliativos

intelectuais e emocionais? Há rituais de iniciação antigos em

que a pessoa é submetida a uma encenação de seu próprio

funeral. Depois de assediada por um assaltante, por exemplo,

a pessoa é posta num caixão e os outros participantes entoam

rezas e cânticos fúnebres e até mesmo conduzem o ataúde a

uma sepultura com seis pés de fundura e seis de comprimento

na direção de leste a oeste, etc… O propósito de tais rituais é

conduzir a passagem da pessoa pela morte para despertar nela

uma nova consciência da vida. O batismo nas águas praticado

por muitos cristãos tem o mesmo propósito – declarar um

novo começo, com nova consciência. A leitura deste livro, o

encontro com o Pai ausente através das palavras presentes do

filho, será para você um convite ao encontro face-a-face com a

realidade da morte no meio da vida e da vida que se renova

através da morte.

Prepare o seu coração para experimentar o poder das trevas, a

angústia, a solidão.

Prepare seu coração para entrar nesta conversa sobre o Pai

ausente… Alguns teólogos falam da saudade do pai ausente

como saudades de Deus. Alguns psicólogos falam da saudade

de Deus como saudades do pai ausente. O poeta não se perde

neste debate. O poeta simplesmente dá nome à presença desta

ausência. Um outro poeta/profeta que também entendia

muito bem a ausência do Pai disse pros seus amigos, “quem

vê o filho vê o Pai.” Abba, Pai. Oi Pai.

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Prepare o seu coração pra magia das palavras transando nestas

conversas. As palavras do Cláudio e das outras vozes no texto

são palavras ansiosas por encontros… As palavras também

querem companhia. As vezes elas se amam, se beijam e

transam na sua cabeça e desta transação outras palavras são

geradas, as suas palavras.

Prepare seu coração para conversar também com as pessoas

que Cláudio discute com seu pai. Nestas conversas sobre

ausência e presença, dor e alegria, linguagem, arte, liturgia,

Deus, memória, vida e morte, nestas conversas você vai se

encontrar com Heidegger, Freud, Master Eickert, Nietzsche,

Jacques Derrida, Guimarães Rosa. Nestas conversas você vai

ouvir hinos evangélicos, música caipira, música clássica,

poesia paulistana, teologia reformada e até mesmo filosofia

pós-modernista e o movimento desconstrucionista. Tudo isso

e muito mais, nas conversas de um filho morrendo de

saudades de seu pai.

E para acabar de chorar, prepare seu coração pra ouvir a voz

do pai sorrindo para o filho do outro lado do tempo, na voz

pastoral e mansa que dança no pos-lúdio pneumografado por

um outro companheiro de jornada igualmente encantado e

encantador.

Quem en/canta e prepara o nosso coração nesse prelúdio é o

Ruy Costa, um amigo desses raros, especiais, que a vida dá

pra gente. O Ruy é gaúcho da beira da serra – paraiso

escondido no sul do Brasil – e hoje vive, trabalha e brinca de

escrever nos Estados Unidos. Ele é doutor em filosofia pela

Universidade de Boston. Um pensador sábio, e por isso meio

torto, de coração imenso e cheio de palavras de vida.

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Litania4 de Boas Vindas

Era já o começo da madrugada de 12 de janeiro de 2005 em

São Paulo e ainda o final da noite em Nova York, quando eu

recebi um telefonema da Deborah, minha sobrinha, avisando

que meu Pai havia falecido: “Tio o vô morreu.” Chovia e eu

voltava de um restaurante perto de casa com uns amigos

quando meu celular vibrou em meu bolso. Aquela vibração

não era de coisas positivas... Sentia de alguma forma a

chegada de uma visita que nunca queria que chegasse. Algo

muito ruim havia acontecido. Não sei dizer como nem porquê,

mas de alguma forma eu sabia que aquela ligação me diria que

meu Pai havia acabado de morrer. Ali na esquina entre a

Claremont Avenue e a 127 Street em Nova York minha vida

mudou radicalmente. Ao ouvir a notícia sucumbi. Sentei no

chão e minha amiga Mary Jane me segurou. Ali, debaixo

daquela chuva que caia sem muita força meu coração batia

assustado agora num mundo estranho. A causa do

estranhamento do mundo era a morte de meu Pai. No atestado

de óbito pode-se ler: “parada cardìaca respiratória:

ressuscitação cárdio-respiratória de 30 minutos sem sucesso”.

Por mais de quinze anos eu havia me preparado para esse

momento, mas não há preparação possível que possa nos

deixar prontos para essa notícia. Pois quem é que pode estar

preparado para o absurdo? Minha educação religiosa me fazia

olhar o mundo sob um cuidado divino que aos poucos fui

descobrindo que não existia. Pelo menos não do jeito que eu

fui ensinado. Lembro-me que acreditava quase

desesperadamente na providência divina como ausência do

4 Litania: na tradição cristã, a litania consiste de orações,

invocações e súplicas pelo dirigente com respostas alternadas pela

congregação e pode ser usada em várias partes da liturgia. Essa litania aqui

é uma mistura de oração de gratidão, de confissão e de súplica.

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mal. Acreditava na providência como fuga e medo ao seu

contraponto: o absurdo, a falta de proteção, o acaso, o

imponderado que chega sem avisar e pedir licença e entorta a

vida. Essa crença/dúvida me fez trilhar caminhos tortuosos da

fé cristã. Minha tese de mestrado foi sobre Albert Camus,

escritor Argeliano-Francês que viveu uma paixão desesperada

pela vida. Foi essa paixão exacerbada pela vida que fez Camus

lidar com o prazer e o amor, mas também a revolta e o

absurdo. Pois as coisas que não se dão ao sentido humano nem

conseguem carregar algum propósito são absurdas. Ab-surdus

do latim significa barulho intenso que causa surdez;

impossível de ouvir. Assim, a morte de alguém que amamos, a

separação de um casal que se ama ou a doença e morte de uma

criança são anúncios que fazem soar um ruído tão alto, que vai

para tão além da gramática, da ordem, do sentido e da razão

como a conhecemos que acabam por nos ensurdecer.

Assim foi como ouvi aquela noticia: absurdo! Meu pai

morreu? Como assim? Ouvir aquela notícia foi ter meu mundo

destituído de um sentido último que meu Pai parecia dar sem

que eu mesmo percebesse. Ele era uma dessas certezas da vida

que não se movia e assim ajudava a tudo se mover. Sua

presença na minha vida era um desafio luminoso e cotidiano à

falta de significado no meu mundo.

Pois foi para tentar fazer sentido a essa falta enorme que

acabou por acontecer dentro de mim, e “que me aperta o peito

e me faz confessar, e que não tem mais jeito de dissimular, e

que nem é direito ninguém recusar, e que me faz mendigo, me

faz suplicar, o que não tem medida, nem nunca terá, o que

não tem remédio, nem nunca terá, o que não tem receita”5

que escrevi esse livro. Um jeito meu de lidar com a dor da

5 O que será (À flor da terra) de Chico Buarque em seu disco

“Chico Buarque/1976” para o filme Dona Flor e seus dois maridos de

Bruno Barreto.

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perda, da morte e do abandono. Em um ano, escrevi essas

conversas imaginárias com meu Pai na tentativa de dar alguma

forma externa à essa perda,. São memórias breves e

semibreves, pausadas e com tempos diferentes de mim

mesmo e da historia que vivi com meu Pai. Além disso, essas

memórias incluem narrativas das coisas que vivi durante esse

ano durante meu doutorado em teologia e liturgia no Union

Theological Seminary, uma escola associada à universidade

Columbia em Nova York.

Fiz desse ano e dessas conversas uma tentativa de

ressuscitação de mim mesmo. Morri com meu Pai naquele dia,

mas a mim me foi dado a graça da ressuscitação. E assim foi,

e assim é com esse livro, uma estória de tantas mortes e

ressurreições. Escritas em sua grande maioria nos cafés de

Nova York, essas conversas misturam biografia, memória,

estória/história, teologia, confissões, psicanálise e religião, em

meio a medos, tristezas, ausências, vergonhas, alegrias,

esperanças, perdição e lutas.

Nesse processo, não fiz questão de confirmar dados históricos

ou nomes seja de ruas ou de pessoas. Com isso, quis que a

memória dos fatos que vivi evidenciasse, pelo menos para

mim, as distorções e limitações que a apreensão de minha

própria história traz. Tentei não exagerar e ser fiel às histórias

que vivi e ouvi com meu Pai. Contudo, sei que essa fidelidade

só é possível na medida em que eu não consigo ser

completamente fiel ao que vivi e muito menos ao que ouvi. Se

fosse possível explicar assim, diria que a metodologia dessas

conversas tentou seguir uma linha de confluência e diferença

àquela que Washington Olivetto criou ao escrever uma linda

estória sobre o Corinthians.6 Ali, ele contou estórias do time

do seu coração inventando dados ao longo do caminho. Assim

6 Washington Olivetto e Nirlando Beirão, Corinthians: é Preto no

Branco, (DBA: São Paulo), 2002.

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como ele, ao escrever os fatos das histórias/estórias de meu

Pai e minha, resolvi juntar “verdades” e “mentiras” sem saber

exatamente quando estava falando sobre uma ou outra coisa.

Como Olivetto, escrevi esse livro no exílio.

Como eu não me lembrava direito, resolvi não mencionar

muitos lugares, deixando pendente os suportes físicos da

memória, como que pedindo por uma historicidade que

incluísse uma geografia/materialidade mais específica. Outra

decisão que tomei foi não eliminar as coisas que repeti nas

conversas. Elas estão ali para evidenciar minha necessidade de

voltar a elas e retrabalhá-las num outro momento.

Creio que devo confessar também, visto ser esse livro um

livro de confissões, que essas conversas com meu Pai, mais do

que qualquer outra coisa, são monólogos ou conversas minhas

comigo mesmo, diálogos de sujeitos que criam uma intricada

subjetividade onde até Deus e o mundo fazem parte. Assim,

esse livro não trata de conversas reais com o espírito de meu

Pai, pois não tenho como saber como meu Pai responderia a

essas conversas. De outro lado, essas conversas são sim

diálogos com meu pai, mesmo que imaginários, porque

imaginei meu Pai sentado comigo, na maior parte me ouvindo

e em outras situações até conversando. Quase todas as vezes

eu pedia dois cafés, um para ele e outro para mim para

curiosidade e estranheza dos garçons.

Nesse período de um ano, essas confissões respiraram as

ambigüidades das lembranças e dos esquecimentos, da

presença e ausência, de um tempo de luto, dor e cansaço.

Essas conversas carregam meu grito contra o absurdo da

morte de meu Pai e também de outras experiências que eu

vivia ao mesmo tempo. Se conto essas coisas para ele, é para

não deixá-lo ir embora, é para tentar achar um outro jeito de

viver, de dar sentido às coisas que pulsavam dentro e ao redor

de mim em ritmos inesperados e irregulares.

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Sobre meu Pai sei muito menos do que gostaria. Tendo

passado os últimos nove anos de minha vida nos Estados

Unidos, metade em Massachusetts e metade em Nova York,

vivi longe de meu Pai, sempre com medo de perdê-lo e não ter

a chance de vê-lo uma vez mais. Agora que ele se foi, essas

conversas tentam dar formato a esse vazio, esse espaço vazio,

antes mais simbólico que concreto, hoje mais concreto que

simbólico, entre nós. Essas conversas tentam re-viver e re-

imaginar tanto as conversas que não tivemos quanto as

conversas que tivemos e que agora são re-lembradas. Além do

mais, essas conversas falam de medos e desejos, tentativas de

me achar nesse mundo que agora não tem as bordas e

fronteiras que ele me proporcionava.

Numa última nota sobre metodologia (meta-hodos), ou seja,

sobre os caminhos que resolvi trilhar ao escrever esse livro,

preciso dizer que estruturei o livro em formato de uma liturgia

cristã, que vai do prelúdio ao poslúdio com vários elementos

cúlticos da tradição cristã. Claro está que não sigo à risca a

definição de cada elemento litúrgico e que a divisão que faço

aqui é aleatória, confiscada de uma ordem litúrgica que serve

somente para minhas próprios necessidades. Seja como for,

não tenho como escapar ao fato de que meus estudos de

teologia, liturgia e arte foram decisivos na confecção do livro.

O Português de todo o texto não foi corrigido

propositadamente para retratar como a língua portuguesa e seu

uso capenga me definia.

Pois bem, você está convidado a pedir um café e a sentar-se

conosco, meu pai e eu, adicionando, criticando, se assustando

ou sorrindo com nossas estórias/histórias, ou melhor, com a

parcialidade delas, e quem sabe, você também possa contar

sua própria estória para a gente. Prometo que o “Seu

Waldemar” e eu seremos bons ouvintes! Boa leitura!