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Pensamento e Atualidade de Aristóteles Olavo da Carvalho

Olavo de Carvalho - Pensamento e Atualidade de Aristóteles

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Pensamento e

Atualidade de

Aristóteles

Olavo da Carvalho

Pensamento e Atualidade de Aristóteles

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Pensamento e atualidade de Aristóteles

PRIMEIRA AULA

Casa de Cultura Laura Alvim, Rio de Janeiro, 15 de março de 1994.

Transcrição de:

Heloísa Madeira

João Augusto Madeira

e Kátia Torres Ribeiro

1a parte

Nesta primeira aula, serão colocadas as premissas e métodos que vamos desenvolver

em seguida. Tudo o que vamos expor aqui é baseado não só nos textos de Aristóteles

como nos dos autores de estudos aristotélicos já relacionados no Documento Auxiliar

II.

O esquema-padrão

das introduções

a Aristóteles.

Existem muitas maneiras de fazer uma exposição introdutória da obra de um filósofo.

Mas, com relação a Aristóteles, existe uma certa fórmula que é adotada em quase

todos os livros: colocar uma introdução biográfica, uma segunda introdução de ordem

filológica que dá a composição da bibliografia do autor, e depois a exposição de sua

filosofia de acordo com uma ordem que está consagrada há mais de dois mil anos:

1) Obras e doutrinas lógicas.

2) Obras de Física — de um lado a filosofia da natureza de um modo geral, na qual o

que hoje chamamos de Física seria apenas uma parte, abrangendo também Geografia,

Geologia, Astronomia, Meteorologia etc.; de outro a Biologia, com a Psicologia como

uma sua parte ou extensão.

3) Tratado de Metafísica — por ele chamada de Teologia, e também de Ontologia e

Filosofia Primeira.

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4) Ética e Política.

5) Poética e Retórica.

Muitos livros sobre Aristóteles seguem na sua exposição rigorosamente esta ordem. É

a que foi adotada no século I a.C. para a ordenação dos escritos aristotélicos por

Andrônico de Rodes.

Desde o momento em que essa ordem se consagrou, foi adotada não só para todas as

reedições dos escritos mas também para a maioria das exposições da filosofia

aristotélica.

Sempre que um esquema desses se consolida, vira uma espécie de cacoete e nos induz

a ver as coisas sempre pelos mesmos lados. Aristóteles estaria completando, se vivo,

2400 anos de idade, tempo mais que suficiente para se consagrarem a seu respeito

erros e confusões de toda espécie que, sacramentados pela antiguidade, podem se

tornar verdades inabaláveis.

A filosofia,

atividade da consciência

individual.

À medida que passa o tempo e que as várias tradições vão cristalizando a nossa

maneira de ver o filósofo, se torna mais difícil sair de dentro delas para encarar esse

filósofo com uma visão pessoal. Ora, em filosofia tudo o que não é visão pessoal não

tem valor nenhum. Se há alguma coisa que distingue a filosofia das demais formas de

saber, é o caráter radicalmente pessoal, individual das suas especulações. Nisto, ela

difere totalmente de todas as demais formas de conhecimento, nas quais o consenso

coletivo tem uma importância decisiva. Não concebemos uma ciência, no sentido em

que hoje se emprega esta palavra, exceto como um sistema que vai sendo construído

aos poucos, com contribuições de várias proveniências, e que vai se fechando numa

espécie de edifício, num sistema das verdades científicas admitidas ou consagradas. De

modo que, se num determinado momento um indivíduo enuncia uma tese, uma teoria

que contrarie flagrantemente o sistema admitido, ele terá de argumentar muito bem,

pois estará desafiando o consenso, compartilhado por toda a comunidade científica. É

claro que nem todas as teorias científicas admitidas gozam de um consenso assim

unânime, mas em geral é assim que as coisa se dão nesse setor.

Se formos para outro setor do conhecimento — a religião —, esta também é uma

elaboração coletiva, e toda e qualquer prática religiosa subentende que um certo

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corpo de crenças é aceito como verdade uniformemente por toda a comunidade dos

crentes. Subentende-se que o dogma — católico, judeu, mussulmano etc. — é

entendido e admitido de maneira mais ou menos uniforme. O dogma é uma

interpretação consensual do sentido das Escrituras.

Sócrates e o protesto

da consciência individual

ante o consenso social

Comparada ao que hoje chamamos de ciência, ou de religião, a filosofia se destaca por

não haver nela a necessidade desse tipo de consenso e por requerer uma participação

individual muito mais profunda. Desde o início, vemos que a filosofia nasce como o

protesto de um indivíduo contra um consenso estabelecido. Este indivíduo chama-se

Sócrates. Ele defronta-se com um conjunto de crenças e hábitos mentais e intelectuais,

admitidos como válidos no seu meio e cultivados pelos indivíduos que eram a máxima

expressão da cultura do tempo — aqueles que hoje chamamos sofistas. Eram

professores de Retórica que iam de cidade em cidade procurando os jovens membros

da classe dominante para lhes ensinar a arte da Retórica, com a qual poderiam

ingressar na carreira política.

A educação grega consistia fundamentalmente de três coisas: ginástica, música e

retórica. O ensino da retórica, prosseguindo durante séculos, tinha consagrado na

classe dominante grega uma série de convicções e hábitos mentais. Um indivíduo

isolado, que não dispõe de qualquer projeção pública peculiar, não exerce cargo

público, não participa da política, que era apenas um soldado aposentado e se

dedicava à arte da construção civil, um pequeno empreiteiro — este é Sócrates. Na

juventude tinha sido mais ou menos famoso como soldado, algo como um herói de

guerra. Mas, na maturidade, era um mero cidadão privado, que não era professor de

nada, que não era político e estava rigorosamente fora da vida intelectual da época. É

este indivíduo que, falando exclusivamente em seu próprio nome e sem poder alegar

nenhuma autoridade, começa a questionar certas convicções estabelecidas, e não só

questiona, mas desenvolve um método para interrogar as crenças estabelecidas e

mostrar, ou que são contraditórias, ou que não têm base suficiente. O sentido da frase

famosa "Só sei que nada sei" é irônico — significa que, se ele nada sabe, os outros

sabem menos ainda.

Duas maneiras

de dar coerência

às nossas crenças.

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A filosofia surge desse esforço de um indivíduo em particular para dar coerência às

suas crenças. Podemos estabelecer a coerência de um corpo de crenças por duas

maneiras contrárias. Uma delas é quando, pela prática repetida e pelo hábito, vamos

harmonizando estas crenças com os nossos atos, com nossos hábitos e expectativas,

também com as expectativas e hábitos dos outros e sobretudo com a nossa auto-

imagem. De modo que, estando habituados a viver dentro dessas crenças, elas se

tornam coerentes com o tom geral da nossa vida e por isto nos parecem coerentes em

si mesmas e coerentes umas com as outras. Isto é, da unidade da nossa auto-imagem

costumeira deduzimos erroneamente a unidade das nossas crenças.

A outra maneira de coerenciar as crenças é a filosófica. Significa confrontá-las

teoricamente umas com as outras. Quando começamos a fazer isto, vamos ver que a

nossa prática se assenta numa série de pressupostos contraditórios, que se

desmentem uns aos outros. Isto, evidentemente, pode nos causar um certo espanto e

nos deixar inseguros, derrubando uma auto-imagem tão laboriosamente construída..

De fato, Sócrates deixava as pessoas tão inseguras, que o compararam a uma enguia,

um peixe-elétrico. Quem encostava nele levava um choque, pois ele demonstrava que

as crenças mais comuns, tidas como coerentes e admitidas por todos, eram

contraditórias umas com as outras e frequentemente autocontraditórias, quer dizer,

intrinsecamente absurdas. Ele mostrava, por trás de uma ordem prática, uma

desordem teorética.

Como a contradição se introduz nas crenças que sustentam a nossa prática? Através da

nossa própria vontade. Quando queremos acreditar em determinadas coisas, porque

nos interessam ou nos fazem bem psicologicamente, tratamos de forçar as idéias para

que convivam umas com as outras, ainda que, pelos seus conteúdos respectivos, sejam

de fato incoerentes entre si. Fazemos isto constantemente. Quem já se submeteu a

algum tipo de psicanálise tem um idéia de até que ponto podemos mentir a nós

mesmos, para sustentar um falso sentimento de coerência e integridade da nossa

auto-imagem, justamente nos momentos em que nossa personalidade está mais

dividida. Quanto mais incoerentes são nossas crenças, maior é o esforço de nossa

vontade no sentido de dar um simulacro de coerência àquilo que não tem. Ora, se um

indivíduo consegue fazer isto, quanto não conseguirá a coletividade? Nesta, você

recebe o reforço de seus semelhantes e é protegido pela idéia de que, se erra, não erra

sozinho, e de que tantos juntos não poderiam errar de maneira alguma. O auto-

engano coletivo é mais eficiente do que o individual.

Quando vemos, no decurso do tempo, as mudanças de orientação da mentalidade

coletiva, surpreendemo-nos com a sua volubilidade, com a sua leviandade. Como as

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pessoas mudam rapidamente de crenças sem sequer examinar as anteriores! Quantos

ex-comunistas não gerou a queda do muro de Berlim, que, sem se sentirem abalados,

giraram o botão da sua máquina de opinar e saíram com um novo discurso, falado com

o mesmo tom de certeza do anterior discurso comunista? O sujeito abandona uma

crença por outra sem um exame pessoal, mas apoiando-se em um novo consenso

público. O consenso também tem suas mudanças, oscila entre a força do hábito e a

força da moda, e quando simplesmente nos acomodamos às novas modas temos a

impressão de estar nos renovando ou tornando mais autênticos, mas na verdade

consenso é consenso, é sempre coletivo e fundado na imitação. Sempre que nos

apoiamos no consenso público, velho ou novo, recorremos a uma espécie de reforço

psicológico que ajuda a dar uma impressão de coerência àquilo que não tem nenhuma.

É justamente face a esse consenso coletivo — que pode ser político, religioso,

ideológico, moral etc. — que se levanta a exigência filosófica. Ela parte de uma

necessidade interior, de um impulso de honestidade fundamental no sentido de dar às

idéias uma coerência efetiva e uma fundamentação mais sólida. É essa exigência de

uma fidelidade mais profunda à nossa consciência de veracidade que é representada

por Sócrates.

Este movimento inicial do qual nasce a filosofia é repetido de tempos em tempos,

onde quer que surja uma nova filosofia vigorosa e digna de atenção. Cada novo

filósofo que seja digno do nome se defronta inicialmente com uma perplexidade que

nasce da constatação da incoerência do consenso. Ele vivencia esta insegurança de

perceber que talvez todos estejam enganados, e ele também junto com todos.

Novamente faz a experiência desaber que não sabe, face a um consenso social que

finge que sabe. Entende-se aqui que este consenso não abrange literalmente todos os

membros da coletividade, mas apenas a intelectualidade, isto é, aqueles que

representam publicamente o papel de porta-vozes do consenso. Isto quer dizer que

nem sempre há um acordo explícito entre o consenso —- a ideologia reinante —- e a

vida social, as leis e instituições, as formas de organização da economia, etc. As épocas

em que existe esse acordo são épocas de conservadorismo, de tradicionalismo;

inversamente, as épocas de conflito entre o consenso ideológico e a esfera da vida

prática são épocas de renovação, ou de revolução. A renovação do consenso , e a luta

para mudar a sociedade em nome do novo consenso, fazem parte da história

ideológica da sociedade, e, não devem ser confundidos com o movimento da

consciência individual que reage ao consenso para buscar a verdade. O consenso, de

fato, é menos limitante e escravizador para a consciência individual nas épocas de

tradicionalismo do que nas de renovação, porque o consenso tradicional se apresenta

declaradamente como uma força conservadora, fácil de identificar e criticar, ao passo

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que o consenso renovador ou revolucionário funciona como um Ersatz, um sucedâneo

do autêntico pensamento filosófico, oferecendo aos homens, em lugar da vida

intelectual, as modas intelectuais que os desviam de todo esforço pessoal. Nossa

época é tão canalha que não apenas confunde maliciosamente a busca da verdade

com o esforço de renovação social, fazendo da adesão a certas modas políticas

a conditio sine qua non da vida intelectual, mas houve até mesmo um sujeito tido

como filósofo, Antonio Gramsci, que chegou a propor formalmente a redução de toda

vida intelectual à moda intelectual, à produção coletiva da ideologia revolucionária.

Cada época da história tem um corpo de crenças que é admitido pela classe letrada, tal

como ela aparece na ocasião. Na Idade Média, essa classe é constituída

fundamentalmente de clérigos. Hoje em dia, é a chamada comunidade acadêmica, o

pessoal das ciências, somado à turma das comunicações: imprensa, TV, movimento

editorial. A comunidade tem sempre um corpo de crenças que não é discutido e que

serve como padrão de julgamento das novas idéias que surjam. A filosofia aparece no

instante em que algum indivíduo percebe, nesse corpo de crenças, uma incoerência

profunda e se sente inseguro e na necessidade de reconstruir aquilo em novas bases.

Esta é uma atividade perene do espírito humano, não pára nunca. A filosofia só parará

quando chegarmos a um corpo de crenças absolutamente certo a respeito de tudo o

que existe. Como isto é evidentemente utópico, só Deus podendo realizar algo assim,

continuaremos sempre formando novos corpos de crenças, que terão novos pontos de

incoerência que necessitarão de um exame filosófico. Isto quer dizer que o movimento

filosófico é inicialmente um movimento crítico, o movimento de uma crítica que

deverá servir de base a uma reconstrução de novas crenças. Quando um filósofo faz

isto com sucesso, os novos parâmetros que ele estabelece duram algum tempo, mas

perdendo o seu teor crítico e tendendo a cristalizar-se em pensamento rotineiro, em

mera ideologia. Até que, com o crescimento da humanidade, a ampliação do círculo de

informações, as crenças começam a entrar novamente em contradição, e surge a

necessidade de uma nova filosofia. Isto quer dizer que, embora a filosofia seja uma

atividade interminável, ela não é ininterrupta, mas intermitente. A filosofia aparece e

desaparece de tempos em tempos.

Raridade

das filosofias

autênticas

Se procurarmos na História, veremos que o número de filosofias verdadeiramente

criadoras é relativamente pequeno. Colocaremos, evidentemente, o aristotelismo

entre elas. Podemos considerar que este movimento que vai de Sócrates até

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Aristóteles, passando por Platão, é como se fosse uma curva única, o desenvolvimento

de uma filosofia única, que se fecha, por assim dizer em Aristóteles e consegue durar

um certo tempo. Eu colocaria como outros marcos na história do pensamento, depois

de Aristóteles, Sto. Tomás de Aquino, Leibniz, Schelling e Edmund Husserl, fundador da

fenomenologia. Se fosse necessário resumir toda a história da filosofia em poucos

nomes, eu destacaria estes, onde todos os problemas discutidos por todos os demais

estão embutidos. Cada um desses teve uma sombra, ou complementar oposto, cujo

contraste ajuda a compreendê-los: o trio Sócrates-Platão-Aristóteles tem Agostinho;

Tomás tem Duns Scott; Leibniz tem Kant; Schelling tem Hegel e Husserl tem Heidegger.

Nos intervalos entre eles entram os estóicos, Descartes, Locke, Wronski, e isto é

rigorosamente tudo: o repertório essencial das idéias. O resto é comentário (

descontando, é claro, as idéias que vêm desde fora da filosofia, por exemplo da

tradição religiosa, do pensamento político, da ciência, etc. ).

Isto quer dizer, também, que a filosofia não surge a qualquer momento. Nas horas em

que as crenças coletivas estão funcionando perfeitamente bem e onde as contradições

internas que possam existir nelas estão ainda latentes e não chegam a causar

perplexidade, — nestas horas a filosofia decai, torna-se, por assim dizer,

desnecessária. É o que acontece, por exemplo, nos primeiros séculos da era cristã,

quando o surgimento de um novo tipo de crença, o Cristianismo, bastou para atender

às necessidades intelectuais das pessoas durante alguns séculos. Com o tempo, o

próprio Cristianismo começa a perceber suas deficiências internas —- sobretudo

lacunas e contradições na interpretação das Escrituras —- e começa a tentar completá-

las. Daí surge um movimento filosófico dentro do Cristianismo.

A filosofia

e o pensamento

coletivo.

Sendo então a filosofia um movimento essencialmente crítico, que nasce da

perplexidade, e sendo um movimento que parte de uma consciência individual,

poderíamos perguntar: Seria possível uma filosofia coletiva? A resposta é

decididamente não. Porque a filosofia parte da tentativa de unificar a totalidade da

experiência humana, e isto só pode ser feito dentro do indivíduo que tem em si, juntas

e coesas, todas as dimensões da vida humana e que é capaz de imediatamente

confrontar, por exemplo, suas idéias com sua conduta — sua conduta com suas

crenças estabelecidas — estas com seus sentimentos — estes com suas sensações

corporais etc. etc. Ou seja, o movimento de que parte a filosofia supõe que exista,

dentro de você, a possibilidade de unificar perante uma consciência o conjunto das

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informações acessíveis naquele momento a um ser humano. Não haveria tempo de

fazer isto coletivamente. Embora o diálogo, a troca de idéias, possam ser importantes

na filosofia, a título de estímulo, de critério de verificação e de correção, o movimento

decisivo se dá sempre no âmbito de um só indivíduo. Um dos motivos disto é que a

filosofia é coerenciação, é unificação, e só o indivíduo tem em si uma unidade real, a

unidade de um organismo vivente, ao passo que toda coletividade é um aglomerado

de parcelas bastante separáveis, e algumas delas incomunicáveis. "Consciência

coletiva" é uma força de expressão, e não o nome de um ente real. A tendência a

hipostasiar a sociedade, a nação, a classe, etc., fazendo delas entes quase que

fisicamente reais, nos torna cegos para a importância decisiva da consciência

individual, e acabamos esperando passivamente que a "consciência coletiva" faça o

serviço em nosso lugar.

A filosofia

como instituição

e meio social.

Aí temos um outro problema. A filosofia não é só o nome de uma prática intelectual

como esta que estou descrevendo, mas é também o nome de uma disciplina escolar,

acadêmica, que se registra em textos que vão sendo acumulados, formando uma vasta

bibliografia, que por sua vez vai necessitando de uma tradição de interpretação e de

um conjuntto de esquemas de transmissão daquilo às novas gerações. Isto faz com que

a filosofia também se torne, com o tempo, uma atividade coletiva. As formas

socialmente consolidadas dessa atividade influem, então, sobre o próprio conteúdo do

pensamento filosófico. Por exemplo, numa faculdade de filosofia hoje, você vai ver a

elaboração de uma espécie de pensamento coletivo. Penetrar no universo desta

filosofia universitária é mais ou menos como penetrar em qualquer outro meio social:

partido político, igreja, grupo de psicoterapia. Logo se vê que as pessoas que estão ali

dentro têm certos hábitos mentais, certas reações reflexas, modos de falar, cacoetes

que marcam aquela comunidade, distinguindo os de dentro e os de fora. Assim

também o meio filosófico universitário. O leigo que vem de fora vai gastar bons anos

de sua vida somente para adquirir este conjunto de reações que fará com que ele se

sinta um membro da comunidade, e ao fazer isto estará crente de estar aprendendo

filosofia, quando está apenas assimilando a casca sociológica necessária a que a

filosofia como prática social continue existindo. E o que isto tudo tem a ver com

filosofia? Rigorosamente nada, porque embora a filosofia sempre necessite de algum

veículo social para existir, a história prova que ela não depende de nenhum deles, que

tanto se faz boa e má filosofia numa hierarquia de clérigos como num grupo informal

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de amigos, numa organização acadêmica como numa sociedade esotérica, e que,

enfim, o dinamismo da filosofia independe da sua forma social de organizar-se.

É por influência dessa base social de atuação que se formarão estilos coletivos de

pensamento, que aprisionarão as mentes individuais dentro de certos esquemas de

que não poderão livrar-se nunca, porque o que deveria livrá-los disto é exatamente a

filosofia, ou seja, a reflexão pessoal, a que o império dos meios sobre os fins os impede

de chegar. Se a reflexão pessoal é desde o início canalizada por um conjunto de

reações mentais quase inconscientes, que equalizam o indivíduo com os demais

membros da comunidade, então a reflexão pessoal fica impossibilitada. Por exemplo:

saiu recentemente um livro cujo autor é Paulo Arantes, sobre o Departamento de

Filosofia da USP. O livro chama-se Um Departamento Francês de Ultramar — título de

assombrosa exatidão. Ele mostra que cinco décadas de reflexão filosófica na USP na

verdade foram um eco de um conjunto de cacoetes mentais aprendidos com os

primeiros professores que por ali passaram, todos de origem francesa. Alguns, aliás,

excelentes filósofos, como Etienne Souriau, homem de primeira grandeza. Mas não

interessa que o mestre seja grande. Interessa é que na hora em que o ensino se

organiza coletivamente, se institucionaliza através de institutos, faculdades etc., corre-

se o grande risco de fazer com que o ingresso nesse meio requeira um investimento

psicológico demasiado grande, tão grande ou maior do que o necessário para chegar à

filosofia mesma. Não é fácil você se integrar num novo meio. Quando este meio é, por

sua vez, mais ou menos internacional e a convivência não é direta, é feita mais através

de papéis que se trocam —- de artigos de um que são lidos por outro, que escreveu

um livro que é lido pelo primeiro —-, a absorção dos cacoetes é mais difícil, porque se

trata de cacoetes, por assim dizer, abstratos, e a aquisição disto é muito mais

trabalhosa para a psique humana do que a cópia direta do que é visto. Mas

evidentemente tudo isto não tem rigorosamente nada a ver com filosofia, assim como

a embalagem de pizza não tem nada a ver com pizza.

E Sócrates, quando filosofava, a quem podia copiar? Em que meio ele estava

procurando integrar-se? Que hábitos mentais ou cacoetes verbais ele estava

procurando aprender para parecer filósofo? Ele simplesmente fazia o melhor que

podia, usando a sua cabeça para refletir sobre certos assuntos. Isto não o tornava um

indivíduo mais aceitável em determinado meio, e é por isto mesmo que ele podia

filosofar livremente.

A partir do momento em que se forma um ensino mais ou menos regular de filosofia

— o que acontece nessa época, na Academia Platônica e depois no chamado Liceu de

Aristóteles (que na realidade veremos que não existiu efetivamente como entidade

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autônoma, sendo apenas um novo setor da Academia, dirigido por Aristóteles após a

morte de Platão) —-, a filosofia começa a constituir um meio social, e surgem as

invejas, as fofocas, a competição mesquinha, etc. Toda uma gordura mental que cerca

a carne e o sangue da filosofia, e que passa por filosofia. Estes aspectos geralmente

são desdenhados, mas eles nos dão o tom do pensamento do nosso tempo, onde a

organização acadêmica da atividade filosófica chegou a um máximo de abrangência,

eficácia e poder. Essa organização constitui uma máquina, estreitamente ligada ao

meio editorial, que às vezes promove a filosofia, às vezes a sufoca. Em todo caso, a

competição no meio profissional não é propícia ao desenvolvimento da filosofia, pois o

decisivo nela não são as qualidades que fazem um filósofo, e sim as que fazem um

hábil manejador social. Dois jornalistas que fizeram um estudo a respeito do meio

acadêmico e editorial parisiense disseram que a organização moderna da vida

intelectual criou um novo tipo de intelectual, o intelocrata. É o sujeito que tem poder

ou influência sobre o meio acadêmico, a imprensa cultural, a indústria editorial, e que

funciona como um guarda de trânsito, abrindo ou fechando o caminho às novas

ambições. O intelocrata pode ser também um intelectual de valor, mas isto não é

necessário para o exercício da função, que é de natureza política sobretudo. Nesse

meio, os melhores saem quase sempre perdendo, pois dedicam suas energias à

filosofia em detrimento da carreira. Raymond Aron diz, por exemplo, que no seu

tempo só havia dois legítimos espíritos superiores entre os universitários franceses:

Alexandre Kojève e Éric Weil. Mas o prestígio deles não se compara ao de um Sartre,

de um Merleau-Ponty, ou mesmo ao de cabeças-de-toucinho como Althusser ou

Bernard-Henry Lévy. Se isto se passa assim num país de tradição filosófica como a

França, imagine então no Brasil.

A Retórica

de Aristóteles no

ambiente mental grego.

A influência do meio social imediato no destino das filosofias é importante para

compreendermos o lugar de Aristóteles no ambiente grego. Veremos que no destino

do aristotelismo pesaram muito esses fatores que mencionei.

Quando Aristóteles entrou para a Academia Platônica, com dezoito anos de idade, logo

se destacou como um dos melhores alunos e foi incumbido de dar uma parte das

aulas, o curso de Retórica. Este sucesso inicial foi recebido como um insulto pessoal

por muitos dos seus colegas. Mais ainda; sendo a Retórica — curso que ele dava — a

ciência teorética que investiga a arte da persuasão, ele logo dominou esta ciência,

muito disseminada na época, e foi um dos primeiros a fazer dela uma especulação

Pensamento e Atualidade de Aristóteles

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teórica. Porque a Retórica até então era apenas transmitida como técnica, como

prática, e alguns levavam a vida inteira para dominar esta arte, que era a chave das

ambições políticas. Aristóteles domina-a prontamente e começa a especular

teoricamente. Isto consiste em perguntar: "Por que o argumento persuasivo é

persuasivo?" e mesmo: "Por que um argumento logicamente fraco ou absurdo

convence as pessoas, e outro que é razoável não as convence?" Aristóteles começa sua

carreira examinando a Retórica, exatamente como Sócrates havia feito. Sócrates via

que os oradores, políticos, conseguiam persuadir as pessoas às vezes de coisas

perfeitamente absurdas. Sócrates limitou-se a demonstrar que essas idéias eram

absurdas, por mais persuasivas que parecessem. Aristóteles já dá, na juventude, um

primeiro passo além. Começa a investigar as causas dessa persuasividade, e formula a

ciência da Retórica como uma verdadeira Psicologia da Comunicação. O livro

de Retórica de Aristóteles é um dos grandes livros livros de Psicologia que a

humanidade conheceu. Ora, conhecendo por um lado a técnica, e já tendo, por outro,

algumas idéias científicas sobre o fenômeno da persuasividade, Aristóteles não apenas

sabia produzir argumentos persuasivos, mas também conhecia os princípios teóricos

em que se baseava a persuasividade dos adversários. Isto significa que, com vinte e

poucos anos, ele tinha-se tornado uma espécie de terror dos retóricos, que

desmontava todos os argumentos deles com a maior facilidade. Aristóteles sintetizou

na sua pessoa, muito jovem, os dois papéis que mais tarde seriam

denominados retore retórico: o praticante da arte, o homem que escreve ou fala bem,

e o cientista que estuda e formula a teoria da Retórica. Seus escritos de juventude,

literários e retóricos na maior parte segundo parece, não chegaram até nós, mas o

maior retor e retórico do mundo romano, Marco T. Cícero, os cita como exemplos de

elegância e persuasividade. Tudo isso, aliado à mordacidade de certas réplicas de

Aristóteles, ajuda a explicar o ambiente de hostilidade que se formou em torno dele

desde muito cedo, e não consigo conceber que esta hostilidade não tenha pesado em

alguma coisa entre as causas da dissolução do aristotelismo logo após a morte de

Aristóteles.

Personalidades

de Platão e Aristóteles.

O Deus de Aristóteles.

Por outro lado, Aristóteles não tinha ambições políticas, ao contrário de Platão. Este

sempre tentou interferir na política, tentou reformar o mundo, inspirou revoluções e

golpes de Estado, e na sua famosa Carta Sétima declara que a obra de sua vida seria

uma reforma política da Grécia. Mas Aristóteles era um temperamento

completamente diferente. Aliás, esta confrontação de temperamentos é uma das

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coisas mais esclarecedoras quanto a todo o rumo posterior do pensamento ocidental.

Porque, como disse um grande historiador da Filosofia, Arthur Lovejoy, "toda a história

do pensamento ocidental não é nada mais que um conjunto de notas de rodapé a

Platão e Aristóteles". Sendo assim, desde que o nosso pensamento é sustentado por

estas duas grandes colunas, confrontá-los é uma das principais ocupações da mente

ocidental há dois mil anos. Nesta confrontação, os traços de personalidade são

muitíssimo importantes. Duas personalidades de imensa envergadura que marcarão

não apenas dois estilos de pensar, mas dois estilos de ser. Nesta confrontação, vemos

que Aristóteles difere de Platão e se aproxima muito de Sócrates, pela sua total falta

de ambição de interferir na ordem das coisas deste mundo, e pela sua total dedicação

ao saber enquanto tal. Para Aristóteles, não havia ocupação mais digna do homem do

que buscar conhecer, buscar compreender. Ele colocava esta atividade teorética —- a

palavra "teorético" vem do verbotheorein, que quer dizer olhar, ver, contemplar — tão

acima das outras que, no entender dele, era a única atividade do próprio Deus. O Deus

aristotélico é um Deus cuja atividade é inteiramente de ordem teorética. Deus olha,

vê, contempla, compreende, e nós vivemos dentro desta atmosfera intelectual divina,

somos pensamentos divinos, de algum modo. Deus age, mas na forma da pura

contemplação, e portanto, a ação de Deus tem aquela rapidez, aquela instantaneidade

própria da inteligência — o ato de intelecção é instantâneo, e assim também os atos

divinos, pois não supõem a mediação de um instrumento.

Posição social de

Aristóteles. Hostilidade

do meio ateniense.

Prosseguindo na confrontação, vamos ver que Platão era um filho da nobreza grega,

um homem que desde a juventude foi cercado de admiração, não só por sua origem —

família riquíssima — mas também pela beleza pessoal. Era um homem grande,

atlético, rico, bonito, cheio de ambições. Aristóteles, ao contrário, era de origem

estrangeira. A cidade de Estagira, onde nasceu, era uma colônia macedônica. Ele chega

a Atenas, por volta dos dezoito anos, depois da morte dos pais. Herdou certa

quantidade de dinheiro que lhe permitiu ser independente, sem chegar a ser um

milionário. Tinha dinheiro para se sustentar sem precisar trabalhar, podendo se

dedicar totalmente ao estudo. Entra na Academia ainda aos dezoito anos e por volta

dos 23, 24 já é um sucesso lá dentro. Mas em primeiro lugar, num meio aristocrático o

dinheiro, por si, não dá ingresso nas classes superiores. Para piorar, Aristóteles era um

estrangeiro. Fica difícil imaginar, num país como o Brasil onde o estrangeiro é tratado

como príncipe e o compatriota como um cachorro, a intensidade, a força do

preconceito grego contra o estrangeiro. Este, em Atenas não tinha direito a nada.

Pensamento e Atualidade de Aristóteles

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Estava pior do que um turco em Berlim. O simples fato de poder estar ali já era

considerado um grandissíssimo favor; mas o estrangeiro não votava, não participava

da política, não tinha direito a nada. Além disso, Aristóteles não era membro da

nobreza, mas apenas descendente de uma família de médicos. Seu pai tinha sido

médico do rei Felipe da Macedônia e se dizia que sua família descendia do próprio

deus Esculápio, ou Asclépio — o deus grego fundador da medicina — pelo fato de

terem tido muitos médicos no correr de gerações; mas todas as famílias de médicos

alegavam a mesma coisa. Os médicos tinham posição de certo prestígio, mas não se

comparavam à classe dominante. Eram apenas servidores de luxo. Aristóteles, então,

do ponto de vista do meio ateniense, era um homem de origem plebéia, estrangeira, e

que tinha entre suas características pessoais um senso de humor particularmente

ácido, sarcástico. Também não tinha a beleza física —- era de baixa estatura, magro, e

embora andasse muito elegantemente vestido jamais seria confundido com um

membro da jeunesse dorée ateniense. Este estrangeiro incômodo, muito jovem se

torna o dominador da ciência da retórica e é nomeado para dar os cursos na

Academia.

As Artes Liberais

na Academia platônica.

Lugar da Retórica.

Nesse tempo o ensino já tinha começado grosso modo a se organizar segundo uma

fórmula que duraria mais de mil anos, onde as matérias introdutórias consistiam

no Trivium e noQuadrivium (conjunto de três disciplinas que lidam com a linguagem —

- gramática, lógica ou dialética e retórica —-; e de quatro que lidam com números —-

aritmética, geometria, música e astrologia ou astronomia). As matérias elementares

eram estas. Quando Aristóteles é nomeado professor de retórica, a importância deste

fato não deve ser hipertrofiada, já que a retórica é apenas uma das ciências

elementares. O domínio destas sete disciplinas foi considerado desde a fundação da

Academia de Platão até quase o ano de 1500, isto é, por quase dois mil anos, como

condição básica para o ingresso nos estudos filosóficos. Na Idade Média européia, o

sistema adquirirá uma grande estabilidade. Os estudos começavam na adolescência,

pelo Trivium e Quadrivium, que duravam mais ou menos dez anos de aprendizado,

depois o sujeito entrava numa das três faculdades — Direito, Medicina ou Filosofia.

Nesta, o tempo de aprendizado até o aluno chegar a um estado comparável ao que

hoje se chama professor pleno era de aproximadamente vinte e cinco anos —- o

tempo que um professor universitário brasileiro leva para chegar à aposentadoria. Esse

sistema começa a se formalizar no tempo de Platão, e não vejo a menor chance de um

sujeito entender a filosofia antiga e medieval se não partir de um estudo das Artes

Olavo de Carvalho

15

Liberais —- Trivium e Quadrivium —-, que, constituindo a base do ensino, expressavam

o fundo comum da cosmovisão mais claramente do que as formas superiores de

atividade intelectual. Também não se pode esquecer que, nesse panorama, as sete

disciplinas não tinham individualmente os significados que têm hoje, mas eram

carregadas de nexos simbólicos e mitológicos que dão o seu verdadeiro sentido na

cultura antiga. Por isto é que simplesmente não posso levar a sério um historiador de

filosofia antiga ou medieval que, por exemplo, não conheça a fundo o simbolismo

astrológico, que constituía então como que uma chave da cosmovisão. E não se trata

só de conhecê-lo desde fora, porque o autêntico simbolismo, como a autêntica poesia,

não se rende a um estudo meramente exterior, mas requer uma compreensão

personalizada. Os melhores historiadores da filosofia antiga e medieval costumam ser,

por isto, aqueles que também têm interesses religiosos e estéticos, que facilitam a

penetração naquele universo.

Dentro da Academia, a retórica não estava entre as disciplinas mais nobres, pois cedia

lugar às disciplinas filosóficas propriamente ditas. Aliás, considerando-se que a filosofia

nasce de um movimento de oposição aos sofistas —- professores de retórica —-, esta

tendia a ser, dentro da Academia, um pouco desprezada. Ela é a arte de persuadir, não

a de encontrar a verdade; o que torna o argumento persuasivo não é ele ser verídico,

mas é ele encontrar uma ressonância no público. A ressonância ou persuasividade do

argumento depende exclusivamente de fatores psicológicos e sociológicos que

predispõem o público a aceitá-lo, e depende também de que o retórico conheça

minuciosamente esta predisposição e saiba usá-la. A persuasão retórica nada tem a ver

com a veracidade. Mas Aristóteles não se limita a dominar a retórica, e faz as primeiras

especulações científicas a respeito. A especulação científica sobre uma técnica é ao

mesmo tempo uma defesa contra esta técnica. Uma coisa é dominar uma técnica.

Outra é ter a noção teorética de como ela funciona, de por que funciona. Com isto

você fica sabendo também quais são os limites da técnica. Esta especulação que

Aristóteles começa muito cedo e que o leva depois a constituir o primeiro tratado

científico de retórica, o torna também um grande retor, um escritor elegante e

persuasivo. Isto estabelece uma distinção que será mais tarde consagrada. Retor é

aquele que domina a técnica da retórica, que sabe fazer um discurso e ser

persuasivo. Retórico é aquele que estuda cientificamente a técnica do retor, podendo

ele próprio ser um retor ou não. Mas é evidente que o estudo teorético desta técnica e

a sua aplicação têm resultados completamente diferentes. Seria mais ou menos como

dominar, hoje em dia, a arte da propaganda e fazer um estudo científico de por quê a

propaganda penetra e é aceita nas consciências. Evidentemente o estudo teorético

levaria a ver esta técnica "pelas costas" e a compreendê-la melhor do que o mero

praticante, e a saber também, portanto, neutralizá-la. Suponho que, na linha de uma

Pensamento e Atualidade de Aristóteles

16

investigação iniciada por Sócrates, o próprio Platão tenha determinado a Aristóteles o

estudo científico dos procedimentos retóricos, de modo a completar a superação da

retórica na dialética, dando uma forma acabada ao que Sócrates tinha feito

informalmente. De modo que há, na Academia, um esforço de dar mais rigor à

demonstração, a ir da persuasão à certeza apodíctica, e, neste movimento, Aristóteles

representará o ponto culminante.

Platão e Aristóteles

ante a opinião pública

ateniense.

Como resultado, então, em parte por seu sucesso, em parte por esta orientação que

está imprimindo a seus estudos, em parte por ser um estrangeiro metido onde não

devia, e ainda por motivo de intrigas e invejas entre os discípulos de Platão, Aristóteles

viverá maus bocados em Atenas. Platão também enfrentou dificuldades, mas no

Exterior, onde se meteu em conspirações, sendo preso, vendido como escravo e

resgatado por seus discípulos. Mas em Atenas ele sempre gozou de grande prestígio e,

ao morrer, era como que um herói nacional, uma celebridade cercada de honras, e que

praticamente não tinha inimigos. Aristóteles, ao contrário, enfrenta inimizades,

oposição, desde o início de sua vida, jamais chega a formar um círculo de discípulos

capaz de prosseguir sua obra num sentido fiel ao seu intuito e digno do seu nível,

exceto um único, que é Teofrasto. Nunca encontra em Atenas senão um ambiente de

relativa hostilidade, morre no exílio e nunca encontra uma repercussão pública muito

grande. Claro que ele não dava importância, a isto pelo seu próprio temperamento,

alheio à atividade política. O ideal dele seria viver relativamente isolado, podendo

prosseguir seus estudos sem ter que se defrontar com a política do dia. No entanto, os

conflitos políticos o perseguem ao longo de toda a sua vida. Principalmente porquê,

originário de uma colônia macedônica, sendo filho do médico do rei da Macedônia e

tendo-se tornado preceptor de Alexandre, filho de Felipe, imperador macedônico,

quando se instala mais tarde uma guerra entre Atenas e a Macedônia, Aristóteles,

embora já não tivesse nenhuma ligação com a Macedônia há algum tempo, fica

evidentemente numa posição suspeita; é perseguido e tem de fugir para o exílio. De

modo que não foi uma vida fácil, e um elemento constante desta vida é o contraste

entre o interesse puramente intelectual deste homem e a hostilidade política e social

que o cerca durante mais ou menos toda a vida, e contra a qual ele não deixa uma

única palavra de lamentação ou de recriminação. Não porque fosse insensível às

injustiças, já que muitas vezes protestou contra perseguições sofridas por amigos seus.

as talvez ele fosse muito discreto para lamentar em público suas desventuras pessoais.

Olavo de Carvalho

17

A intuição básica

de Aristóteles:

totalidade e organicidade.

O espírito mais reflexivo e científico de Aristóteles faz com que ele imprima ao seu

ensinamento, desde o início, um sentido de pesquisa que torna o seu Liceu um

depósito de conhecimentos sobre todas as disciplinas possíveis e imagináveis e o torna

o primeiro centro organizado de pesquisa que conhecemos na história do ocidente.

Após ter sido preceptor de Alexandre, Aristóteles recebe dele um dinheiro

considerável, que lhe permite contratar um exército de pessoas para que viajem e

tragam para ele as informações de que necessita: sobre geografia, geologia, vida dos

animais, política e leis dos demais países, etc. etc.. Nesse sentido, Aristóteles pôde

materializar o intuito que é central em toda a sua obra — o de organizar o

conhecimento e fazer com que o conjunto das ciências se torne um sistema das

ciências. Busca, assim, desde o princípio, um padrão de coerência na organização dos

conhecimentos, infinitamente mais rigoroso do que o que tinha sido exigido por

Platão. Quando estudamos a obra de Platão, vemos que tudo que ele escreveu vem de

inspirações que teve na juventude e que lhe foram, por assim dizer, inoculadas por

Sócrates bem pela herança pitagórica. A intuição básica de Platão, como a de Sócrates

e dos pitagóricos, é a do contraste entre dois tipos de objeto do conhecimento: 1) os

objetos dos sentidos que estão em permanente mutação e se fazem e desfazem diante

de nós, dia a dia, como de resto, nós mesmos mudamos, nos fazemos e desfazemos,

nosso corpo cresce, muda, envelhece e morre; 2) os objetos da geometria, das

matemáticas, que tinham a característica da perenidade, estabilidade, constância,

obediência à regularidade de leis que determinam implacavelmente, e imutavelmente,

as duas relações. Uma vez estabelecida uma relação matemática, constataram esses

filósofos, ela se reproduzia infinitamente sem que nada pudesse alterá-la ou abalá-la.

Este contraste, uma da primeiras noções transmitidas por Sócrates, desperta em

Platão a noção de que o mundo físico estaria envolvido numa rede de leis e

proporções matemáticas que constituiriam o verdadeiro segredo da realidade, a

estrutura invisível, mas rígida, do inconstante mundo visível. Esta é a intuição básica

em Platão. As relações matemáticas constituem a parte superior do que ele chama

demundo das idéias. Esta idéia platônica penetrará tão fundo na consciência humana

que dois mil anos depois, quando surgia a física moderna — Newton, Galileu,

Descartes, Kepler — é novamente a mesma idéia de encontrar o fundo matemático no

qual se apóia a realidade sensível que inspirará os cientistas. Por mais rico que seja o

universo platônico, vemos que todo ele não passa de uma vasta especulação em torno

desta idéia que é, no fundo, de origem pitagórica: de que os números e relações

matemáticas são a verdadeira essência da realidade. De que o mundo, tal como se

Pensamento e Atualidade de Aristóteles

18

apresenta a nós, é de certo modo ilusório ou falso — não totalmente, mas apenas uma

expressão parcial de um segredo que, na sua essência, é matemático. Toda a obra de

Platão é uma construção feita em torno desta idéia básica.

A obra de Aristóteles obedece desde o início a outro intuito. Ele percebe que não é

possível existirem apenas dois mundos — um mais ou menos ilusório, e outro um

pouco mais real — mas que existem muitas faixas de realidade, formando um tecido

enormemente complexo mas dotado, sempre, de unidade e coesão. E será esta

complexidade do real, ao mesmo tempo múltiplo nos seus nos seus planos, aspectos,

níveis etc. e constituindo um todo coeso, será esta idéia da unidade na variedade que

orientará todos os esforços de Aristóteles desde o início. Daí sua idéia de

um sistema do conhecimento. O conhecimento tem de ser um sistema, ou até, mais

propriamente um organismo. Um organismo é um conjunto de órgãos diferentes entre

si mas que são todos coordenados para uma certa função. Separados desta função do

organismo total, não fazem sentido algum. Também Aristóteles concebe a idéia de que

esta totalidade orgânica, que é o mundo, deveria por outro lado ser refletida no

sistema das ciências, de modo que o conhecimento formasse uma unidade que, como

um organismo vivente, pode crescer e transformar-se sem perder sua unidade. E com

isto, inventa outra idéia que penetrará muito fundo na mente humana — talvez mais

que a idéia dos padrões matemáticos de Platão — que é o que podemos chamar

deevolução orgânica, complementar à de totalidade orgânica. Tão fundo como a idéia

platônica penetrou no setor da astronomia e da física, a idéia de Aristóteles penetrará

fundo nas ciências da natureza terrestre, na biologia, na História, na Estética e mais

tarde no que hoje chamamos de ciências humanas ou ciências sociais. Praticamente

todos os esforços das ciências humanas, desde que existem, é no sentido de

conseguirem se organizar como totalidade orgânica, mais ou menos no sentido em que

Aristóteles organizou o conjunto das ciências no seu tempo. A idéia platônica dos

padrões matemáticos rende o seu máximo, alcança o seu pleno rendimento na física

clássica e na nova astronomia de Kepler. Kepler, Galileu, Newton representam o auge

da matematização da realidade. Mas a idéia aristotélica da totalidade orgânica, se bem

que exerça grande influência, até hoje ainda não rendeu todos os seus frutos. Hoje em

dia, o holismo é uma nova tentativa de organizar o sistema das ciências segundo a

idéia da totalidade orgânica. Esta idéia não está realizada ainda. Por isto este curso se

chama "Pensamento e Atualidade de Aristóteles". Quando vemos hoje um esforço

gigantesco no sentido de emendar as ciências humanas com as naturais, como se vê,

por exemplo, na obra deste grande antropólogo Edgar Morin, todo o esforço dele e de

toda a corrente que representa não é nada mais que a tentativa de devolver ao

sistema das ciências aquela organicidade sistêmica que Aristóteles tinha lhes

imprimido no começo, e que para nós se perdeu de crise em crise. Sendo assim, vemos

Olavo de Carvalho

19

que a obra de Aristóteles ainda está rendendo frutos e este é o motivo principal por

que temos de estudá-la. Praticamente tudo o que está acontecendo no mundo das

ciências hoje só pode ser compreendido como eco distante desta inspiração

aristotélica do sistema das ciências, de dar às ciências uma

organicidade enciclopédica ( kyklos = círculo, que representa totalidade, e paidos =

educação, cultura, formação da mente humana ), todas concorrendo para um mesmo

fim, como ocorre com os órgãos do nosso corpo.

Mas tudo isso não quer dizer que o legado aristotélico seja por toda parte bem

recebido com afetuosa gratidão. Esse legado parece que não pode ser adquirido senão

através do conflito —- dialeticamente, no sentido hegeliano do termo. Do mesmo

modo que Aristóteles foi muito combatido em vida, vamos ver que uma discussão com

Aristóteles, muitas vezes amarga e cheia de recriminações tem acompanhado a

história do pensamento ocidental há dois mil anos. Mas nem todas as discussões

foram construtivas. As tentativas de destruir Aristóteles, de suprimir o seu legado da

memória humana também foram muitas, ao longo da história. Aí já não se trata da

legítima contestação científica, que Aristóteles apreciava tanto que fez dela uma

técnica ( a dialética ), e sim de manifestações de ódio irracional à inteligência mesma.

Mas quando crêem tê-lo matado de um lado, ele ressurge de outro. De certo modo,

Aristóteles tem constituído para a civilização ocidental um fantasma, como o de

Merlin, "um sonho para alguns e um pesadelo para outros" , do qual ninguém se livra

completamente e que, mais dia menos dia, cruzará o caminho de quem busca a

verdade, para ajudá-lo mas também para testá-lo. Daí o sentimento ambíguo, de

amor-ódio, que ele inspira a muitos. Na verdade, isso não acontece só no Ocidente,

mas também no Oriente. No mundo islâmico há escolas de espiritualidade que vêem

Aristóteles como um profeta, um enviado de Deus, e outras que o consideram um

tentador diabólico. A Igreja ortodoxa russa chegou a proibir a sua leitura, enquanto

Sto. Tomás o considerava o príncipe dos filósofos. Após dois mil anos, é melhor tentar

achar com ele ummodus vivendi. Para mim, a questão está resolvida: considero-o o

melhor dos mestres, o mais honesto, o mais sincero, o mais sensato, o mais humano,

inclusive em seus defeitos mais óbvios.

2a parte

Na primeira parte da aula, dei uma idéia geral sobre Aristóteles e sobre nossos motivos

para estudá-lo. Agora vou expor o método a ser usado neste curso. Mas antes devo

Pensamento e Atualidade de Aristóteles

20

responder à pergunta que um aluno me fez no intervalo, a respeito da natureza

matemática dos arquétipos platônicos, questão que é importante para o que

estudaremos mais tarde, porque veremos que uma das principais modificações

introduzidas por Aristóteles foi justamente a de desgeometrizar, ou desmatematizar, a

teoria do conceito, fazendo do pensamento lógico menos uma estrutura formalmente

pura do que um método para o conhecimento da realidade efetiva. A explicação da

natureza matemática do "mundo das Idéias" encontra-se sobretudo no Timeu, um dos

livros mais difíceis e mais interessantes de Platão. O ensinamento de Platão se dividia

em duas partes, escrita e oral. O escrito era usado como instrumento de divulgação,

sendo o melhor de sua filosofiia reservado para o ensinamento oral. Durante quase

dois mil anos, este ensino oral constituiu um dos maiores enigmas da história da

filosofia e só muito recentemente, com os progressos da documentação, é que foi

possível esboçar uma reconstituição do que teria sido o ensinamento oral de Platão.

Reconstituição feita a partir dos testemunhos e depoimentos deixados, e mediante

comparação desses materiais com os textos de Platão. Como tudo isto ficou disperso

ao longo da história, não havia muitos meios de reunir esse material. No século XX,

quando o sistema internacional de documentação chegou a uma perfeição quase

luxuosa, foi possível fazer esta reconstituição, empreendida sobretudo por um grande

historiador da filosofia italiano chamado Giovanni Reale. Por uma coincidência, um

filósofo brasileiro chamado Mário Ferreira dos Santos havia tentado a mesma

reconstituição, não por meios histórico-filológicos como Reale, mas sim por meios

puramente filosóficos e especulativos, e seus resultados foram singularmente

idênticos aos de Reale, só que apresentados quinze anos antes! Mário Ferreira é o

único grande filósofo que este país produziu, para o meu gosto o maior dos brasileiros,

mas infelizmente o nosso meio universitário continua a ignorá-lo, por um misto de

ignorância presunçosa e despeito. Tanto os resultados de Mário Ferreira como os de

Reale permitem colocar Platão, com bastante segurança, como herdeiro da escola

pitagórica. Em suma, a famosa doutrina das idéias somente se esclarece se

entendermos que, para além do mundo das idéias, Platão admitia uma terceira

instância, que seria o mundo dos princípios ou leis — o mundo dos modelos

matemáticos que estruturam a realidade. Neste caso teríamos não dois, mas três

planos: primeiro, o da realidade sensível; segundo, o mundo das idéias, e, terceiro, o

mundo das leis ou princípios ( relações matemáticas, basicamente, mas no sentido

não-quantitativo das matemáticas, isto é, como lógica pura ). Esta interpretação de

Platão é bastante recente na historiografia. Existe em português uma resenha do livro

de Giovanni Reale feita pelo Pe. Henrique Lima Vaz na revista Síntese, de Belo

Horizonte. Os estudos filológicos a respeito de Platão e Aristóteles evoluíram muito no

século XX. Os estudiosos recentes que deram contribuições substantivas são em

grande número. Mas isto nos leva de volta à questão do método.

Olavo de Carvalho

21

Progressos da compreensão

e progressos da incompreensão:

história e filologia.

À medida que nos afastamos, no tempo, de um autor antigo, existe um duplo processo

de transformação das idéias que temos acerca dele. Por um lado, nos afastamos das

preocupações reais que constituíram o ponto de partida para ele. Na medida em que

vivemos uma outra situação social, cultural e psicológica distinta e cada vez mais

diferente, temos muitas vezes dificuldade em nos situarmos na motivação de onde o

filósofo partiu. Temos outros problemas e outras perguntas — não aquelas de onde

partiram Platão e Aristóteles. Neste sentido, tendemos a ver as obras deles como um

conjunto de respostas sem as respectivas perguntas. É claro que todo e qualquer texto

que se estude subentende uma situação humana, real, de onde emergiu, por

necessidade e não por capricho, a sua indagação filosófica, e de onde o autor partiu e

para a qual ele apresenta uma reação pessoal, ou uma resposta pessoal. De modo que

cada livro antigo é a metade dele mesmo — a outra metade está subentendida na

situação, que não vem reeditada junto com o texto. E esta, à medida que o tempo

passa, vai-se tornando cada vez mais difícil de imaginarmos com verossimilhança, com

uma imaginação vívida. Ou seja, a situação do autor antigo vai-nos parecendo cada vez

mais algo mitológico, e nossa compreensão do texto se torna deficiente, na medida em

que os atos humanos destituídos de sua motivação nos parecem postiços, esquisitos,

sem sentido. Por outro lado, à medida que o tempo passa, os meios de pesquisa, de

reconstituição dos textos e dos fatos históricos progridem assustadoramente. Hoje

temos uma idéia muito mais correta do que é o conjunto dos textos de Platão ou

Aristóteles do que tínhamos quinhentos anos atrás. Hoje em dia existe uma precisão

muito maior com relação à cronologia dos escritos. E até certo ponto, saber a ordem

cronológica da produção dos escritos é importante para a compreensão da obra.

Principalmente no caso de obras que chegaram até nós em estado mais ou menos

fragmentário, como é o caso das obras de Aristóteles. No caso de alguns de seus

textos, não sabemos bem como eles foram montados. O livro conhecido

como Metafísicaresulta de vários enxertos de textos feitos em épocas distintas. Ora, se

temos um texto escrito pelo autor aos 28 anos e outro aos 60, tratando mais ou menos

do mesmo assunto, podemos subentender uma continuidade de argumentação que na

realidade não existe, que foi projetada ali pelo leitor. Do mesmo modo, textos que

estão desconectados no seu conteúdo podem ser contemporâneos e corresponder

mais ou menos a um idêntico fundo de preocupações. A ciência da filologia, que

procura a reconstituição, a ordenação e a compreensão profunda dos textos, referidos

à cronologia, à situação histórica etc., é a ciência que vem em nosso socorro neste

sentido.

À mesma medida que o decurso do tempo nos torna um filósofo mais ou menos

incompreensível, também os progressos da filologia nos fornecem os meios de

Pensamento e Atualidade de Aristóteles

22

restaurar artificialmente esta compreensão que vai nos faltando. É uma espécie de

compensação artificial da perda natural. Como vitaminas que retardem o

envelhecimento. À medida que os textos envelhecem, a filologia trata de rejuvenescê-

los.

A incompreensão histórica:

historicismo

e desistoricismo.

Mas ao mesmo tempo existe outro desgaste mais profundo que nos dificulta a

compreensão. A nossa civilização é a primeira que tem acesso a documentos da

história de todas as outras civilizações e todos os outros tempos. Desde que começa a

se constituir a ciência histórica, a partir do século XVIII, e a moderna filologia que já

vinha desde o Renascimento, vamos conseguindo reunir uma documentação cada vez

melhor, cada vez mais extensa, cada vez mais depurada a respeito de todas as épocas,

lugares e civilizações. A partir do começo deste progresso da ciência histórica é grande

a tentação de forjar imaginativamente uma espécie de esquema da unidade do

desenvolvimento da história humana, com base nesta documentação reunida. À

medida que começa a progredir a ciência histórica, também começa a progredir

a filosofia da história ( séculos XVIII e XIX ), que propõe uma visão global do

desenvolvimento humano, no sentido, por exemplo, de um progresso em uma

determinada direção. É aí que o progresso da ciência histórica é compensado também

por um progresso do erro. Porque as primeiras grandes generalizações que a história

da filosofia faz são evidentemente erradas, já que sua documentação é insuficiente e

não há métodos ou critérios maduros. E à medida que a documentação nos séculos

seguintes ( XIX e XX ) progride, tendemos a receber esses documentos já com uma

perspectiva viciada pelas primeiras filosofias da história que surgiram. De modo que,

por exemplo, a idéia de um progresso linear do conhecimento está tão arraigada na

nossa mente hoje, que dificilmente conseguimos ver uma filosofia antiga, exceto como

algo que está "situado no seu tempo" e que já não nos diz nada exceto como

documento histórico. Como se Aristóteles ou Platão tivessem falado apenas para os

gregos, na situação grega, e não para nós. Esta perspectiva é denominadahistoricista.

Situa cada idéia no seu contexto histórico, cultural, social, e fazendo isto, ao mesmo

tempo ela nos ajuda a compreender essas idéias em função dos seus motivos, mas por

outro lado, ela distancia de nós estes textos, na medida em que os refere às

preocupações imediatas das quais brotaram, e distingue radicalmente estas

preocupações das nossas: os antigos ficam presos no "seu tempo" e nós no "nosso

tempo", como se os seccionamentos do tempo, na verdade invenções artificiais dos

historiadores, fossem distinções reais e como se não houvesse, por trás da

irreversibilidade do calendário, sutis intercâmbios de afinidade entre tempos distantes

entre si.

Olavo de Carvalho

23

A perspectiva historicista, que surge no século XVIII e vai-se afirmando ao longo de

todo o século XIX e que está profundamente embutida na nossa mente —- como uma

espécie de dogma no qual acreditamos sem exame —- acredita que situar as coisas na

sua devida perspectiva temporal é a melhor ou única maneira de compreendê-las. Ora,

na medida em que você situa os fatos e as idéias num tempo histórico, você também

os relativiza, os torna relativos a esse tempo, e atenua ou diminui a importância, a

significação, o valor e a eficácia que possam ter para nós hoje. A compreensão

historicista torna-se, por isto, uma verdadeira descompreensão, um afastamento

artificial do sentido das mensagens. Ao invés de reviver os valores do passado, ela os

enterra no "seu tempo", deixando-nos fechados na atualidade do presente como

numa redoma de sombras.

Este é um problema de método da maior importância para o que vamos ver depois.

Faça um modelo em miniatura e imagine que todas as idéias e sentimentos que você

teve ao longo de sua vida você referisse exclusivamente e absolutamente à etapa da

sua vida onde essas idéias e sentimentos surgiram, negando-lhes qualquer eficácia ou

importância na sua vida presente. Por exemplo, se certas crenças ou sentimentos que

surgem na infância, você os referisse inteiramente à situação de infância, e os

explicasse exclusivamente em função daquele momento, como se a criança que você

foi estivesse morta e enterrada. Isto quer dizer que cada idéia que você tem só seria

válida para aquele momento, não conservaria nenhuma importância para os

momentos seguintes. Por exemplo, na infância ou na adolescência, todos temos certas

idéias e valores. A infância cultiva mitos, lendas, heróis, amores. Na adolescência

temos grandes ambições e planos. Se depois, aos cinqüenta anos, digamos, fazendo

nossa autobiografia, estudando-a "cientificamente", referimos estas idéias

exclusivamente às etapas em que surgiram, tiramos a validade atual que elas possam

ter, julgamos a nossa infância com olhos do homem maduro, considerando-o um juiz

absoluto de uma infância que já não não pode falar, e que será condenada sem ter

sido ouvida, assim como mais tarde olharemos a idéia do homem maduro com a

perspectiva do velho que seremos, e esse homem maduro, já não tendo nada o que

dizer ao velho, será condenado por este num tribunal onde o réu está sempre ausente.

Se, das épocas que vão passando, nada conserva a validade sempre atual de uma

primavera que não passa, nossa vida não passa de uma coleção de cadáveres —- ou,

pior ainda, de uma sucessão de traições e abandonos. Isto significa que situar as idéias

na sua perspectiva histórica, por um lado, é compreendê-las em função do momento,

mas por outro lado é chutá-las para aquele momento, e tirar delas a vitalidade que

possam ter nestemomento. O historicismo, por um lado, nos dá a compreensão da

história, mas se ele eleva a história, isto é, o desenvolvimento temporal, a supremo ou

único critério do entendimento, ele situa cada idéia no seu tempo e cada idéia só é

válida no seu tempo. Ora, se as idéias só fossem válidas no seu tempo, na realidade

não seriam válidas para tempo nenhum, porque representariam apenas imagens que

passaram pela mente humana e que somente expressam aquele momento, cuja

Pensamento e Atualidade de Aristóteles

24

duração pode ser de um século como pode ser de um dia. Ora, se fosse assim, se as

idéias expressassem exclusivamente aquele momento, sem nenhuma validade para os

momentos seguintes, não poderíamos nem sequer compreendê-las. De modo que o

historicismo que cria este afunilamento e refere as idéias aos momentos e situações

históricas tem de ser compensado por uma operação inversa, uma espécie de

"desistoricismo", que julgue estas idéias não pelo momento onde surgiram, mas pelo

que elas exigem e cobram de nós hoje. Isto é válido para a história do mundo como

para a nossa história pessoal. Lembro-me de uma sentença de Alfred de Vigny, grande

poeta do Romantismo francês, segundo a qual "uma grande vida é um sonho de

infância realizado na idade madura". Sim, se o homem maduro já não recorda os seus

sonhos de infância, ou se, recordando-os, já não sente o apelo da sua mensagem,

então como ele irá julgar e compreender a trajetória da sua vida, exceto como uma

sucessão de imagens que, não tendo sentido umas para as outras, não formam, juntas,

sentido nenhum? Um outro grande escritor, Georges Bernanos, quando lhe

perguntaram para quem escrevia, respondeu: "Para o menino que fui." O menino é o

juiz do homem, porque aquilo que vem depois é a realização, ou o fracasso, das

expectativas e sonhos de antes.

Ora, se julgarmos a nossa personalidade de hoje à luz das nossas aspirações de infância

ou de juventude, freqüentemente o resultado deste julgamento será negativo. Neste

sentido, o historicismo é uma espécie de analgésico da consciência, porque ele nos

dispensa de prestar satisfações às nossas idéias e projetos antigos, ele secciona a vida

de tal modo que ela perde a unidade. Ora, o sentido dos meus atos e da minha vida

agora só existe se eu os confrontar com os meus sonhos e projetos do passado. Porque

você só pode entender aonde chegou se comparar com aonde queria ir.

Na sua maneira de compreender o pensamento antigo, a maior parte das pessoas

ainda está hoje sob o domínio do historicismo. Ou seja, hoje compreendemos

muitíssimo bem as idéias de Aristóteles ou de Platão, em função de seu momento e

lugar de origem. Mas ainda não realizamos a operação desistoricista, que nos levaria a

compreendê-los em função daquilo que eles têm a dizer, não para os gregos, mas para

todos os homens, inclusive nós. Conseguimos julgar as suas idéias em função do ponto

onde viemos parar, mas ainda não fizemos a operação contrária que é a de julgar a nós

mesmos em função de Platão e Aristóteles, ou da antiguidade em geral. Fazemos do

nosso tempo o juiz da Antiguidade e jamais convocamos a Antiguidade a depor sobre o

nosso tempo. Julgamos, como dizia Karl Kraus, para não sermos julgados. Para corrigir

isso, devemos desligar-nos da perspectiva unilateramente temporal e evolutiva, e,

invertendo o historicismo, julgar o presente com os critérios do passado.

Esta operação de vai-e-volta foi realizada, por exemplo, em outro sentido —- não

temporal, mas espacial —-, na ciência da antropologia. A antropologia começa a surgir

no século passado com os viajantes, sobretudo ingleses. Inglês tem esta mania de

Olavo de Carvalho

25

viajar e se instalar em tudo que é lugar exótico do mundo. Os ingleses vão

desenvolvendo a antropologia na medida em que mandam para a Sociedade Científica

de Londres informações sobre os hábitos, costumes, valores de todas as sociedades do

mundo. Graças a este imenso acúmulo de informações sobre as outras sociedades foi

possível de surgir no campo da antropologia o relativismo antropológico. Isto significa

que não devemos olhar as outras culturas somente com os olhos da nossa, mas tentar

fazer o contrário: olhar-nos também com os olhos da outra cultura. Se o antropólogo

inglês está entre os pigmeus da Nova Guiné, não interessa só o que o inglês pensa

sobre eles, mas o que eles pensam do inglês. Isto se chamou relativismo

antropológico. Também não deve ser absolutizado, transformado num dogma da

equivalência de todos os valores, mas é um método útil, porque ajuda a compreender

os outros povos nos seus próprios termos.

O nosso historicismo precisa ser compensado por uma espécie de relativismo, não no

sentido geográfico, como fizeram os antropólogos, mas no sentido temporal, de olhar

o nosso tempo com os olhos de outros tempos. Se existe um relativismo cultural, tem

de existir um relativismo histórico também. O próprio historicismo realiza uma

relativização, mas no sentido de encaixar cada idéia no "seu tempo" e fazer uma

coleção de "idéias-tempo", cada qual no seu vidrinho cronológico, bem fechadinha e

sem contaminação de outros tempos, isto é, todas igualmente neutralizadas e

"relativizadas". Mas, como este tipo de relativismo neutralizante é próprio do nosso

tempo e resulta de uma ideologia cientificista que é bem da modernidade, praticá-lo é

impor uma perspectiva moderna aos outros tempos, fingindo respeitá-los nas suas

respectivas especificidades estanques. Não é isto o que proponho. Proponho julgar o

nosso tempo com os olhos de outras épocas, não a título de diletantismo relativista,

mas como um meio de autoconhecimento e uma exigência prévia do método científico

em história. Neste sentido, a antropologia, que muitas vezes, com base em valores de

outras culturas, fez críticas profundas à nossa cultura presente, tem sido mais sensata

do que a História, ou pelo menos do que a História do pensamento, onde os valores do

presente continuam a medida de todas as coisas.

Se achamos que para ter uma descrição objetiva de uma outra cultura precisamos

olhar com uma espécie de dupla via, do nosso ponto de vista e do ponto de vista dela,

é evidente que o julgamento de uma outra época implica também esta dupla via. Não

olhar apenas o lugar que Platão e Aristóteles ocupam dentro de uma evolução cultural

que chegou até nós, mas inverter esta evolução e perguntar o que Platão e Aristóteles

diriam vendo o ponto a que chegamos. Esta é uma exigênciasine qua non do método

científico. A esta fase, os estudos sobre a antiguidade ainda não chegaram. Anuncio

isto como ideal futuro. Por enquanto, a quase totalidade dos livros conseguiu apenas

reconstituir o mundo grego, situando-o na perspectiva do seu tempo. Mas na mesma

medida em que se aperfeiçoa esta visão histórica, esse mundo grego vai-se tornando

distante e diferente do nosso, e com isto ele perde gravidade, presença, realidade. É o

Pensamento e Atualidade de Aristóteles

26

mesmo que dizer: "Que importância tem a opinião sobre você de um sujeito que mora

longe, que você nunca encontrou, e ademais já morreu há muito tempo?" Agora, se o

fantasma deste sujeito ressurgir e começar a julgar os seus atos neste momento, ele

ganha atualidade, adquire gravidade. As outras culturas — culturas indígenas, por

exemplo — ganharam da antropologia este privilégio de poderem julgar a nossa

cultura. As consequências práticas disto foram imensas, como se vê pelo crescimento

do movimento indigenista e pela incorporação de valores indígenas na cultura atual.

Por que este privilégio deveria ser concedido apenas no sentido geográfico, e não no

sentido histórico? É simples: por que então certas idéias e valores que decretamos

"ultrapassados" mostrariam todo o seu vigor, todo o esplendor da sua juventude

imperecível, e cobrariam de nós um dever de perfeição a que o historicismo nos ajuda

a fugir.

O método filológico da compreensão dos textos só se tornará completo e perfeito

quando à perspectiva historicista acrescentarmos este giro desistoricista. Ou seja,

quando o afunilamento que remete o passado para longe for invertido e colocarmos

diante de nós esses antigos, como nossos juízes.

Esta será nossa preocupação permanente neste curso. Não entender somente

Aristóteles como um fenômeno que aconteceu há 2.400 anos, mas olhar a nós mesmos

como um fenômeno que aconteceu 2.400 anos depois de Aristóteles.Como poderíamos

reviver a perspectiva dos antigos e torná-los nossos juízes? É muito simples. Pela

mesma maneira pela qual você julga sua vida de adulto em função dos seus projetos

de criança e adolescente. Você revivifica estes projetos, estes sonhos e pergunta: o

que a criança que fui diria de mim hoje? E é somente a partir daí que você pode saber

se sua vida foi um fracasso ou um sucesso. Temos de verificar esta perspectiva dos

antigos e perguntar: Naquele tempo, o que eles esperavam que acontecesse, ou o que

desejavam que acontecesse no futuro? Quais eram os sonhos, projetos, ambições e

valores que eles projetavam nas gerações futuras? Que é que eles esperavam da sua

posteridade que somos nós? Se sabemos, graças à filologia, à interpretação dos textos

e ao historicismo, julgar nossos antepassados, podemos, graças a um esforço de

imaginação fundado no mesmo historicismo, tornar atuais novamente as expectativas

que os antigos fariam sobre seus descendentes, que somos nós.

Como Aristóteles

julgaria a nossa visão

do aristotelismo?

Às vezes penso que se Aristóteles visse que, 2.400 anos depois dele, ainda estamos

lutando para ver se conseguimos organizar as ciências num sistema orgânico, que

ainda estamos discutindo "holismo", ele acharia que somos muito lerdos e atrasados.

Ele diria: "Por que se afastaram tanto desta idéia para ter de voltar a discuti-la 2400

anos depois?" Aristóteles provavelmente apreciaria muito as obras de Edgar Morin,

Olavo de Carvalho

27

mas estranharia que tivessem sido escritas só no século XX, e não no II ou III.

Aristóteles provavelmente julgaria que o progresso na história das idéias é muito

tortuoso, muito lento e muito problemático.

Também creio que ele ficaria muito surpreso com a maior parte dos debates que

surgiram em torno dele ao longo da História. Ele diria talvez: "Nenhum desses que

vocês estão discutindo sou eu. Todos estes Aristóteles que vocês discutiram são sua

própria invenção, uma sucessão de Aristóteles imaginários, uns diferentes dos outros,

nos quais uns projetam o seu herói e outros o seu antagonista. Uns o divinizam e

outros o diabolizam. E ficam lutando com estas sombras. Mas eu não tenho

rigorosamente nada a ver com isto. Não sou nem cristão nem anticristão, nem

racionalista nem empirista, nem materialista nem idealista, não sou nem um pré-Hegel

nem um neo-Platão, nem um anti-isto nem um pró-aquilo, e nada tenho contra nem a

favor dos partidos que surgiram depois de mim. Sou apenas um homem de ciência

buscando compreender o real e esperando que meus sucessores façam o mesmo com

igual empenho."

Por isto mesmo, concebi este curso e achei que, para chegarmos ao Aristóteles real, de

carne e osso, para presentificá-lo de alguma maneira, temos de partir do exame dos

Aristóteles imaginários. Algumas das próximas aulas analisarão as "imagens de

Aristóteles". Imagens não são Aristóteles, mas o que cada época pensou que

Aristóteles fosse, e as discussões que estabeleceu com este estereótipo, o qual

coincide em parte com o Aristóteles real, mas em parte se afasta dele. Hoje podemos

ter toda esta perspectiva graças à imensa documentação acumulada, graças aos

prodígios da ciência histórica e filológica que nos coloca à disposição um imenso

material (ver Documentos Auxiliares II ). Nosso estudo vai começar como uma

investigação dos equívocos humanos. No mundo da filosofia e da ciência também

impera, muitas vezes a fantasia, a ignorância, a imaginação projetiva, e isto nos obriga

a começar o nosso estudo aristotélico com uma espécie de psicanálise das imagens de

Aristóteles. Só isto nos dará uma idéia aproximada das relações que temos e das que

podemos ter com ele hoje.

Na medida em que Platão e Aristóteles formam uma espécie de paternidade da

civilização ocidental, é natural ainda que esta civilização faça sobre eles todas as

projeções edípicas a que a neurose tem direito. Muitas vezes, na luta pela auto-

afirmação, o homem acredita dever exorcizar a imagem paterna que no seu entender

limita, restringe etc. etc. Lutas contra a imagem paterna são algo em que todo mundo

se envolve numa certa etapa da vida. Mas um dia essa etapa chega ao fim, e você tem

de entrar num acordo com a imagem paterna, absorvendo os seus valores positivos e

perdoando, com bondade, os negativos. No entanto, nossa civilização ocidental

prosseguiu neste conflito edípico com Platão e Aristóteles, e principalmente com

Pensamento e Atualidade de Aristóteles

28

Aristóteles, até pelo menos o século XIX. Não sei se ainda estamos nele, mas me

parece que hoje em dia a tendência é para uma atitude mais compreensiva.

Alguns exemplos de imagens mutiladas, frutos do do desconforto permanente —- ou

cíclico —- que Aristóteles causa há dois milênios:

1. Na Igreja Ortodoxa Russa, Platão e Aristóteles foram tidos —- e em certas

circunstâncias ainda são —- como dois verdadeiros demônios. Sua leitura é

considerada prejudicial para a salvação das almas — hoje. A Igreja Russa surge

no século VIII; são doze séculos de preconceitos.

2. No mundo islâmico, existem algumas correntes esotéricas que consideram

Platão e Aristóteles como profetas e até mesmo como anjos do Senhor — algo

assim como uma dupla de Hermes Trimegistos, descidos ao mundo para trazer

uma revelação. Uma outra corrente os olha mais ou menos como a Igreja

Russa.

3. No Ocidente cristão, as primeiras reações contra Platão e Aristóteles foram do

mais incompreensivo desprezo. Alguns, como Tertuliano, logo identificaram a

filosofia grega como a "sabedoria mundana" de que fala a Bíblia. Os mais

moderados, como Clemente de Alexandria, aceitaram a filosofia como uma

introdução ao cristianismo, mas nada além disto.

4. Enquanto isso, no lado pagão, a escola epicúrea, mesmo depois da edição dos

textos de Aristóteles por Andrônico de Rodes, continuava a difundir, com

mecânico servilismo, as opiniões de seu fundador a respeito de Aristóteles,

baseadas apenas nos escritos publicados em vida do autor e de natureza

puramente literária.

5. Após a edição de Andrônico, os escritos de Aristóteles desapareceram do

Ocidente pela segunda vez, só retornando dez séculos depois, por intermédio

de traduções latinas feitas de versões árabes ( vocês podem imaginar com

quantos erros, saltos e interpolações ).

6. Divulgados em tradução latina, os escritos de Aristóteles causaram escândalo,

porque pareciam contrariar de frente os dogmas cristãos. Muitas teses de

Aristóteles foram formalmente condenadas pelos concílios, antes mesmo que

alguém se desse o trabalho de procurar assegurar-se do sentido dos textos.

7. Foi só com Sto. Alberto e Sto. Tomás, já no século XII, que a Igreja, muito

cautelosamente, se reconciliou com Aristóteles. É um casamento que vem

durando quase oito séculos, com alguns percalços. Esta reconciliação, longe de

ser aceita unanimemente logo após formalizada, continuou sendo combatida e

discutida dentro da própria Igreja até o século XIX. Hoje em dia todos sabem

Olavo de Carvalho

29

que Sto. Tomás de Aquino é um discípulo e um seguidor cristão de Aristóteles.

Todos vêem o império que Santo Tomás de Aquino exerce sobre o pensamento

cristão e imaginam ingenuamente que as coisas sempre foram assim. Mas a

posição de que Santo Tomás de Aquino desfruta hoje dentro da Igreja só foi

estabelecida no século XIX, meia dúzia de séculos depois de sua morte. Mesmo

assim, muitos somente o aceitaram porque o Papa mandou. O famoso

aristotélico-tomismo só existe no mundo como posição estabelecida a partir do

século XIX, depois de uma bula de Leão XIII, o qual era pessoalmente um

filósofo aristotélico e seguidor de Tomás, resultando que a mera obediência a

esse Papa acabou virando uma escola filosófica sob o nome de aristotélico-

tomismo, nome que o próprio Tomás sem dúvida acharia um tanto cômico.

8. Outra imagem de Aristóteles é aquela que se formou com os debates do

Renascimento em torno da astronomia. Aristóteles formulou, na física, os

rudimentos de uma astronomia onde as órbitas dos planetas seriam circulares.

Esta imagem foi refutada pelos cálculos de Kepler, e chegou-se à conclusão de

que a física de Aristóteles, neste ponto, estava errada. A partir daí, Aristóteles

virou um símbolo de todo o saber medieval, que alguns autores nesta época

pretendiam derrubar, na ilusão de que um tiro em Aristóteles acertaria na

cabeça da Igreja Católica, sem que jamais lhes tivesse ocorrido que a Igreja

vivera perfeitamente bem sem Aristóteles durante doze séculos. Pode-se ler

em quase todos os livros de história da ciência — livros populares — a idéia de

que Aristóteles imperou sobre a ciência medieval e foi derrubado na

Renascença. Esta sentença é uma idéia de senso comum, hoje repetida a torto

e a direito. É uma idéia totalmente errada. Em primeiro lugar, Aristóteles

começa a conquistar algum lugarzinho na ciência medieval somente a partir de

Sto. Tomás de Aquino, já na última fase da Idade Média, e mesmo assim não

obteve uma repercussão e aceitação imediatas, tanto que várias de suas teses

foram também impugnadas por concílios, na época. Depois se retirou a

impugnação. De outro lado, existe um fenômeno muito esquisito que é o de

que um dos livros de Aristóteles — a Poética — fica desaparecido desde o

século I até o século XVI, e quando é reencontrado, traduzido e comentado,

serve de molde à criação de tudo o que hoje chamamos estética do classicismo,

da qual são amostras o teatro francês de Racine, Corneille e Voltaire. A poética

de Aristóteles começa a exercer um império absoluto sobre o gosto literário do

mundo moderno, justamente no mesmo instante em que a física aristotélica

estava sendo rejeitada. E os escritores e poetas, a partir da Renascença,

seguiram Aristóteles com mais subserviência do que todos os físicos medievais.

A idéia de que Aristóteles imperou na Idade Média e de que nos livramos dele

na Renascença é verdadeira, portanto, só se for olhada do ponto de vista da

história de uma ciência em particular, que é a astronomia. Do ponto de vista da

Pensamento e Atualidade de Aristóteles

30

história literária, é exatamente o contrário. Como se vê, as generalizações que

dividem a história em etapas são muito falhas.

9. Nos séculos XIX e XX surge um novo debate aristotélico, desta vez no campo da

biologia, em torno da idéia de uma causa final (finalidade do mundo). Segundo

Aristóteles, os fenômenos biológicos, além de serem suscitados por causas

eficientes que os provocam, também obedecem a um sentido finalístico, a um

senso de propósito fundado na unidade cósmica. Há cem anos prossegue um

debate dentro da biologia em torno deste ponto. O livro de Jacques Monod,

por exemplo, O Acaso e a Necessidade, é uma vasta discussão com Aristóteles.

10. Cada nova descoberta importante, cada nova escola filosófica, logo cria uma

discussão com Aristóteles, desde o exclusivo ponto de vista dessa descoberta

em particular, como se o ponto que é central para seus autores fosse central

também para Aristóteles e como se o pensamento deste pudesse ser

reconstruído tomando esse ponto como base. Assim, pró ou contra, novas

imagens de Aristóteles foram produzidas desde o ponto de vista da evolução

biológica ( para saber se Aristóteles era darwinista ou não ), do marxismo ( para

alguns marxistas, Aristóteles é um precursor do materialismo, para outros é um

idealista incurável ), da nova lógica matemática ( para decidir se Aristóteles

adiantou ou atrasou o descobrimento dela ), e assim por diante. Isto é para

vocês terem uma idéia de como estes temas aristotélicos —- deformados o

quanto sejam pela parcialidade dos interesses que levam a buscá-los em cada

caso —- voltam obsessivamente e de certo modo são a gasolina que vem

movendo a máquina das idéias há dois mil anos.

11. O que vamos fazer, então, é passar em revista primeiro estes vários Aristóteles,

ou pedaços de Aristóteles, contra e a favor dos quais surgiram debates, para

ver se por trás deles encontramos um Aristóteles real e inteiro. É evidente que

se os debates em torno de um filósofo, durante um certo tempo, se

concentram num determinado ponto, este ponto passa a ser considerado o

centro do seu pensamento. Isto pode se prolongar por dois, três, quatro

séculos. Por exemplo, quando os cristãos lêem Aristóteles pela primeira vez e

vêem que ele afirma que o mundo é eterno, ficam escandalizados, porque na

perspectiva cristã Deus criou o mundo numa certa data. Antes o mundo não

existia, e depois do "Fiat Lux" passou a existir. Aristóteles dizia que o mundo

sempre existiu, o que produziu séculos de encrenca no mundo cristão.

Resultado: todos esses cristãos, desde os primeiros até o tempo de Sto. Tomás

de Aquino —- dez séculos —- constroem a sua interpretação de Aristóteles, pró

ou contra, tomando como ponto de partida este ponto de discordância. Todas

as demais teses de Aristóteles ficam referidas a esta, como as consequências

são derivadas da causa, e o resultado é que as teses mais importantes de

Olavo de Carvalho

31

Aristóteles ficam jogadas para a periferia, obscurecidas pelo debate da

eternidade do mundo. Mais tarde, quando, num contexto completamente

diferente, surge a discussão em torno da circularidade das órbitas planetárias, a

Renascença constrói sua imagem de Aristóteles tomando como centro este

ponto que estava em debate. Isto é tão absurdo como tentar construir o

retrato do indivíduo tomando como centro as objeções que outros tiveram

contra ele, por exemplo o trocador do ônibus que ele pagou com uma nota

alta, o bedel que ralhou quando ele chegou atrasado para a aula, o motorista

cujo caminho ele fechou num cruzamento, etc. Nunca se chega a nada — a não

ser uma coleção de retratos que têm como centro de perspectiva não o

personagem, mas o interesse acidental que este ou aquele aspecto dele

suscitou para este ou aquele indivíduo. A história das imagens de Aristóteles,

ou de Platão, e de muitos outros filósofos é assim: você vem andando por um

caminho e tropeça com um filosofo; ou adere a ele ou se opõe a ele em algum

ponto, e o conjunto de imagens que você forma dele é construído não a partir

dele, mas a partir do seu calo que ele pisou acidentalmente. É inevitável que

seja assim —- o que não quer dizer que seja justo. É inevitável que o

conhecimento do filósofo comece assim, ao sabor dos encontros e

desencontros acidentais. Mas algum dia é necessário fazer uma revisão do todo

e tentar fazer justiça, adotando um ponto de vista que abarque, transcenda e

unifique todas estas perspectivas parciais, acidentais e desencontradas. É mais

ou menos esta a ambição deste curso.

Limitações da minha

perspectiva pessoal

sobre Aristóteles.

Este curso transmite o resultado de uma convivência de mais ou menos quinze anos

com Aristóteles. Tenho de reconhecer que também eu me defrontei com ele movido

por algum interesse pessoal meu que talvez não tivesse nada de aristotélico, e comecei

a reconstruí-lo desde aquilo que ele representou para mim. A diferença é que estou

perfeitamente consciente de ter feito isto e estou consciente de que a minha

perspectiva sobre Aristóteles é acidental. E sobretudo estou consciente de que, se

tenho uma visão dele, ele também tem o direito de ter uma visão de mim. Isto quer

dizer que toda a vez que eu examinar uma idéia dele e tentar expô-la, tenho de

procurar ver a coisa dos dois pontos de vista. Tenho de estar consciente de por que

esta idéia me chamou a atenção, de qual o momento da minha vida intelectual em que

aquilo entrou nas minhas cogitações. Mas também tenho a obrigação de tentar olhar

com olhos de Aristóteles, o qual pode eventualmente me dizer: "Esta pergunta que

você lançou a meu respeito é absolutamente irrelevante, não interessa para a

interpretação do meu pensamento." Só olhando por este duplo lado podemos ter, não

Pensamento e Atualidade de Aristóteles

32

digo uma certeza, mas uma probabilidade de alcançar, se não uma visão científica

objetiva e certeira, pelo menos uma opinião justa e razoável.

No dia-a-dia, julgamos as pessoas das maneiras mais apressadas e levianas. Porém,

uma figura como esta que influenciou a humanidade inteira durante 2400 anos, e que

continua sendo discutida até hoje, merece um esforço de objetividade. O estudo das

obras de um filósofo —- que não é filosofia ainda, é filologia, é estudo de textos, é uma

preparação filológica à filosofia — deixa para nós um resíduo que é de alto valor.

Consiste na consciência das dificuldades que temos para entender o que uma outra

pessoa pensa, e que não é maior no caso de Aristóteles do que no caso do nosso

vizinho, da nossa empregada, dos nossos parentes e amigos. O sentido de uma frase

isolada, no instante em que foi dita, é uma coisa. Entender o que esta frase significa no

contexto da vida de quem a disse, e com o valor e a intenção precisos com que a disse,

é outra muito diferente.

A filologia é a compreensão dos textos. Os textos são expressões privilegiadas da

mente humana. A filologia é, neste sentido, o estudo do ser humano, a disciplina que

nos habilita à compreensão de outros seres humanos. E por isso foi considerada

sempre a rainha das humanidades. Um escritor medieval, Marciano Capella, fez dela a

esposa do deus Mercúrio, o deus dos intercâmbios, do encontro, da conversação e do

entendimento. Humanidades é o estudo que faz você situar-se dentro da espécie

humana, compreender-se como membro da espécie a que pertence. Ensinando você a

entender que não é melhor que nenhum dos outros, que seu pensamento é pelo

menos tão obscuro e errado como o dos outros, e que somente um longo trabalho de

compreensão pode colocá-lo em condição de discutir a validade ou não das idéias de

um outro, a filologia é um treino de paciência e tolerância, no sentido em que diz

Spinoza: "Não rir, não chorar, nem condenar — mas compreender."

Ainda uma palavra, sobre objetividade e neutralidade A idéia de que a compreensão

científica deve ser neutra pode ser compreendida em dois sentidos. Estar neutro pode

querer dizer não estar interessado num ou noutro dos lados que o desenlace de uma

questão pode tomar. Mas também pode significar a ausência de amor, de paixão pela

verdade, a crença errônea de que se pode compreender a realidade sem amá-la, e

como que por um olhar distante e blasé. Mas o juiz justo, se é neutro ante os

interesses da partes, não é neutro ante o processo. Ele deve ter a paixão de encontrar

a solução correta. É somente esta paixão de encontrar a verdade que nos poderá por

na pista para um dia podermos ter a certeza de haver inteligido razoavelmente alguma

coisa, tanto quanto o melhor da tradição milenar de ciência e filosofia que nos

antecedeu poderia esperar de nós.

Olavo de Carvalho

33

Antes de encerrar, eu gostaria de dar algumas explicações sobre a lista de nomes no

Documento Auxiliar II: Marcos na História dos Estudos Aristotélicos. Com base nesta

lista é que obteremos uma idéia sobre os progressos e retrocessos que a compreensão

de Aristóteles foi tendo na história do pensamento. Dos autores aqui citados temos

basicamente três tipos de estudiosos, que abordam o tema aristotélico desde três

perspectivas e com três interesses diferentes.

1. O filósofo que expõe, comenta e discute os textos de Aristóteles, desde o ponto

de vista da sua importância propriamente filosófica. No século II, há, por

exemplo, Alexandre de Afrodísia, que produziu um comentário de Aristóteles

que vale até hoje. Com o mesmo interesse filosófico são redigidos os

comentários de Sto. Tomás de Aquino.

2. O filólogo, às vezes misto de historiador da filosofia; um sujeito que, sem ter a

ambição pessoal de fazer uma filosofia própria ou de fazer avançar a filosofia,

põe em ação um conjunto de recursos científicos que lhe permite estabelecer

comparações históricas, avaliar o peso de cada palavra, reconstituir o texto na

sua materialidade e no seu sentido. No século XX, um dos grandes exemplos é

Werner Jaeger, homem a quem devemos um esplêndido trabalho de

reconstituição biográfica da evolução do pensamento de Aristóteles. Com isso

Jaeger mostrou que em nem todas as suas idéias Aristóteles acreditou ao

mesmo tempo. Ou seja, que nem tudo o que está escrito nos seus textos pode

ser exposto todo numa lousa como se fosse um sistema coerente e chapado,

mas que algumas das idéias que estão nesses textos foram pensadas e depois

abandonadas, refutadas pelo próprio Aristóteles. O filólogo faz o trabalho mais

humilde e apagado, mas sem ele jamais poderíamos chegar à compreensão dos

textos antigos.

3. O sujeito que não é nem um filósofo expondo idéias de Aristóteles, nem um

filólogo que procura aprofundar o conhecimento científico dos textos — mas

apenas um filósofo que está desenvolvendo as suas próprias idéias e que

acidentalmente esbarra em Aristóteles e, em função da sua filosofia pessoal, se

posiciona, a favor ou contra. Como exemplo cito aqui John Locke, famoso chefe

da escola empirista inglesa. Ele não discute propriamente Aristóteles, mas,

desenvolvendo a sua própria filosofia, reforça certos aspectos da filosofia

aristotélica e enfraquece outros, disso resultando que as gerações seguintes

passam a ler Aristóteles de uma nova maneira, isto é, à luz das idéias do

pensador mais recente. Na época de Locke surge o grande debate da filosofia

entre racionalistas e empiristas. Para a escola racionalista (Spinoza), a razão, o

puro raciocínio é a principal fonte do conhecimento, e a experiência real pouco

nos revela sobre a realidade das coisas. Para a escola empirista, exatamente o

contrário: a principal fonte de conhecimento é a experiência e os padrões

Pensamento e Atualidade de Aristóteles

34

racionais com que julgamos a experiência são, eles mesmos, produtos da

experiência. Estas duas escolas, que dominam o debate filosófico durante dois

séculos, como se verá em qualquer livro de História da filosofia, são como duas

metades de uma laranja aristotélica, porque Aristóteles era as duas coisas ao

mesmo tempo — empirista e racionalista. Só que, a partir dessa época, a

laranja é partida, e os dois lados que em Aristóteles estavam tão bem

sintetizados se separam de maneira antagônica. Tanto racionalismo quanto

empirismo são filhotes de Aristóteles, mas filhotes hostis entre si, repetindo

um Leitmotiv da história humana, o motivo dos gêmeos inimigos, como Esaú e

Jacó. Estudando a filosofia deste período de John Locke e Spinoza, século XVII,

não na perspectiva geral da história mas na perspectiva dos estudos

aristotélicos, entendemos que esta bipartição entre racionalismo e empirismo

determinou uma mudança na visão que a cultura européia tinha de Aristóteles.

Dentro desta categoria dos que fizeram de temas aristotélicos um aproveitamento

próprio dentro de seus objetivos filosóficos pessoais, é bom destacar uma subespécie:

4. O sujeito que pega alguma idéia aristotélica, citando ou não a origem, e a aplica

a um setor determinado do conhecimento, no qual essa idéia se torna

dominante. Por exemplo, quando, na entrada da Idade Moderna, alguns

juristas procuravam separar os domínios do Direito e da Religião, era natural

que buscassem em Aristóteles os fundamentos da idéia de direito natural. Só

por este fenômeno, representado por exemplo por Hugo Grotius, vocês vêm

como é errada a visão que identifica aristotelismo com Idade Média: a

importância da contribuição de Aristóteles para o pensamento medieval não é

maior nem menor do que a que ele deu às novas idéias científicas, jurídicas,

estéticas, criadas a partir do Renascimento. Há, enfim, um Aristóteles para cada

gosto, e, querendo ou não, ele tem dado e tirado reforço a praticamente todas

as escolas de pensamento há vinte e tantos séculos. Para encerrar, espero que

vocês tenham compreendido que este curso não será somente uma introdução

ao pensamento de Aristóteles, mas também aos estudos aristotélicos, seja do

ponto de vista filosófico, seja histórico-filológico. Espero que este curso abra

para vocês um leque de caminhos para esses estudos.

Olavo de Carvalho

35

Pensamento e atualidade de Aristóteles

SEGUNDA AULA

Casa de Cultura Laura Alvim, Rio de Janeiro, 22 de março de 1994.

Transcrição de:

Heloísa Madeira

João Carlos Madeira

e Kátia Torres Ribeiro

1a parte

NB - As explicações introdutórias sobre o historicismo, um tanto repetitivas, acabaram

tomando toda a primeira metade de aula em razão de perguntas dos alunos. Como o

intuito destas apostilas é documentar o mais fielmente possível a exposição oral,

julguei melhor conservar toda a transcrição dessa parte, que numa versão em livro

seria drasticamente abreviada. O leitor que preferir saltá-la poderá ir direto para o

parágrafo "Danos que o historicismo trouxe à nossa compreensão de Aristóteles", sem

prejuízo da compreensão do argumento central. – O. C.

A multiplicidade de visões a respeito de Aristóteles é causada pelo fato de que cada

estudioso toma como centro da sua reexposição ou reconstrução do pensamento de

Aristóteles os pontos que lhe parecem mais importantes, sem perguntar se o próprio

Aristóteles concordaria. Às vezes duas interpretações opostas são coincidentes no

sentido de que, opondo-se sobre um mesmo tópico, ambas fazem dele o ponto de

partida para suas respectivas reconstruções. Para exemplificar isto, podemos partir de

dois pólos extremos, das duas interpretações mais antagônicas. Estas são, de um lado,

o trabalho de Franz Brentano, da metade do século passado; do outro, o trabalho de

Werner Jaeger. Brentano é o protótipo dos que procuram tomar a filosofia aristotélica

como um sistema perfeito e acabado, como um todo fechado, quase numa visão

estruturalista. Jaeger é um filólogo do século XX, que reconstruiu através dos textos o

que teria sido a evolução biográfica do pensamento de Aristóteles. Ora, entre um

pensamento que se surge como um sistema perfeito e acabado e um pensamento que

evolui no tempo, através da luta do filósofo consigo mesmo, dificilmente podemos ter

uma conciliação perfeita. Vai ter de haver uma arbitragem entre as duas visões. A mim

me parece que as duas interpretações antagônicas são igualmente possíveis e úteis.

Não precisamos optar entre elas e também me parece que é um pouco nonsense este

debate que por quase cem anos ocupou os estudos aristotélicos, para saber se a

filosofia de Aristóteles é um sistema ou algo que evoluiu no tempo. Certamente ela é

Pensamento e Atualidade de Aristóteles

36

as duas coisas. Então usaremos uma dessas interpretações como antídoto da outra, e

vice-versa.

Em seguida, esbocei os princípios do método que aqui será usado. O primeiro aspecto

deste seria tentar conciliar todas as perspectivas opostas possíveis a respeito de

Aristóteles. Pegá-las todas como exemplos de visões possíveis e tentar chegar a uma

síntese em que nada de substancial se perca. Em segundo lugar, teríamos de

compensar a relativização historicista. O que vem a ser isto? É o seguinte: no momento

em que estamos vivendo, as posições que tomamos, as opiniões que temos, nos

parecem decisivas para os fins da vida real. Quando passa muito tempo e aquelas

questões já não são mais atuais, as tomadas de posição começam a ser relativizadas:

eram tomadas em termos absolutos, agora são tomadas em termos relativos à

situação de dentro da qual surgiram, e referidas a um momento que já passou. Não

somente as opiniões são relativizadas, mas as próprias questões a que elas respondem

também. Por exemplo, se você tomar um conflito histórico entre católicos e

protestantes tal como aparecia quatro séculos atrás, verá que hoje pode nos parecer

que as tomadas de posição que para aquelas pessoas eram fundamentais e absolutas

para nós são meramente secundárias e relativas. A questão, para nós, já não é optar

entre catolicismo e protestantismo, mas compreender por que aquelas pessoas tinham

de fazer essa opção. A questão tornou-se para nós, por assim dizer, metalinguística:

questionamos a questão, em vez de tentar resolvê-la. Outro exemplo: durante cem

anos assistimos a um conflito entre capitalismo e comunismo, e, na hora em que um

deles praticamente se dissolve, parece que a questão também se dissolve, e já nos

parece distante e inverossímil que ela tenha parecido tão urgente, tão vital a milhões

de pessoas. No confronto com o comunismo, quanta tinta não rolou, quantas palavras

não foram proferidas, quantas posições não foram tomadas em milhares de setores

derivados, em função deste conflito básico que determinava o enfoque principal? Não

só era preciso optar entre capitalismo e comunismo, como esta opção determinava as

soluções que dávamos a questões de ordem ética, estética, prática, etc. Num

transcurso de dez anos, a questão já não parece essencial. Para que nós entendamos

que as pessoas tenham podido discutir, emocionar-se, matar e morrer por essa

questão, temos de referi-la à situação da qual nasceu. Com isto, tudo fica relativizado.

Relativizado quer dizer referido ou condicionado a uma situação. Estas tomadas de

posição que para aqueles indivíduos eram tão importantes, para nós só existem

relativamente a uma situação que não existe mais. Ora, se adotamos só e

exclusivamente esse enfoque para as questões da filosofia, estas se tornam também

meros dilemas vividos por homens do passado, e não são mais questões vivas para

nós. É por isto que, ao menos em história da filosofia, o historicismo tem graves

inconvenientes. O historicismo é uma filosofia que, pretendendo tudo explicar pela

história, torna irrelevantes todas as questões fundamentais. Pois, se todas as questões

só têm importância quando referidas a uma determinada situação no tempo, então as

atuais também não terão importância daqui a algum tempo. Para o historicismo, todas

Olavo de Carvalho

37

as questões e todos os conhecimentos são gêneros perecíveis. É verdade que o

interesse pelas questões e a forma de concebê-las muda com o tempo, mas não se

pode elevar a critério teorético esse simples fato consumado. De um ponto de vista

teorético, duas questões, uma colocada por um pensador do séc. V a. C., outra

colocada por nós hoje, podem ser rigorosamente a mesma, se as essências designadas

por seus conceitos forem as mesmas, pouco importando a passagem do tempo e as

diferentes maneiras de "sentir" a questão nas duas épocas: a demonstração do

teorema de Pitágoras é a mesma para Pitágoras e para nós. A abolição da esfera

teorética e sua absorção na esfera do fato consumado são os erros do historicismo. É

em razão destes erros que o historicismo desvia o eixo das questões, dos objetos sobre

que elas versam para as motivações psicológicas, ideológicas, etc., que levaram os

homens a se interessar por elas, e isto produz às vezes confusões temíveis. Se você

pegar duas teorias científicas opostas, por exemplo, no famoso debate em que se

envolveu Pasteur a propósito da geração espontânea -- como surgiam os

microorganismos? -- , verá que, segundo uma teoria vigente na época, apareciam

sozinhos, brotavam do nada. Pasteur dizia que não, que tinha de haver determinadas

condições prévias para que eles pudessem surgir. Esta questão hoje para nós está

resolvida. Ora, quando Pasteur e seus adversários tomavam posição, faziam-no em

função do problema dos microorganismos, e não em função do problema de como

interpretar sua época histórica. Como para nós o problema dos microorganismos está

resolvido, e só nos resta compreender a época histórica de Pasteur, de certa forma

invertemos a questão e a colocamos de cabeça para baixo. O que era importante para

os personagens não é mais importante para nós. As idéias em jogo, para nós, só têm

importância como expressões de um determinado momento histórico, e não em si

mesmas. Ora, se levarmos esta posição às últimas consequências, todas as doutrinas

científicas, inclusive matemáticas, nunca mais dirão respeito à realidade objetiva que

elas estão discutindo, e serão apenas expressões das idéias que as pessoas tiveram

num certo momento. No entanto, está claro que a demonstração que Pasteur fez da

inexistência da geração espontânea continua teoreticamente válida hoje exatamente

como no momento em que ele a apresentou pela primeira vez, e sobre a veracidade

teorética -- ou falsidade teorética -- de uma demonstração a passagem do tempo não

exerce a mais mínima influência. É esta intemporalidade das verdades teoréticas que o

historicismo faz perder de vista, como se uma conta de 2 + 2 = 4 devesse ter diferentes

resultados em distintas épocas históricas.

Se você pegar a geometria de Euclides, do ponto de vista historicista não interessa

saber se ela está certa ou errada, mas só a correspondência entre aquela geometria e

as demais idéias vigentes naquele tempo. O resultado é que o historicismo acaba por

abolir todas as ciências, menos a história, ou pelo menos por submeter todos os

critérios científicos de veracidade à veracidade histórica. Por exemplo, as doutrinas

filosóficas, doutrinas sobre a física, sobre as ciências da natureza, sobre as fórmulas

matemáticas - são todas relativizadas, referidas a momentos no tempo.

Pensamento e Atualidade de Aristóteles

38

Mas acontece que doutrinas matemáticas não dizem respeito à história, e sim a

entidades matemáticas. Doutrinas físicas também não dizem respeito à história, mas

ao mundo físico. Se nós, estudando doutrinas físicas do passado, as encararmos

apenas como expressões do momento histórico, nunca podemos esquecer que

aqueles que as emitiram não tinham esta perspectiva, não as olharam por aí. Para um

físico do século XVI, as idéias dele não são sobre a história do século XVI, são sobre a

natureza. O historicismo levado às últimas consequências esvazia as questões de modo

que não faça mais sentido discutir se suas respostas estão certas ou erradas.

Se um diz que a Terra é plana e outro que a Terra é esférica, naturalmente os dois

pretendem ter razão, e certamente um deles tem, ou ambos têm, ou nenhum tem,

objetivamente falando. No entanto, ambas as respostas provêm de um determinado

quadro histórico, o que prova que o ponto de vista histórico não pode arbitrar esta

questão. Do ponto de vista historicista interessa apenas que numa certa época havia

um ambiente propício a que se pensasse que a Terra era plana, e que noutra época as

condições inclinaram o homem a pensar outra coisa. Conhecer essas condições em

ambos os casos não nos dirá se a Terra é plana ou esférica.

Para você entender isto mais concretamente, examine com os olhos de hoje as

questões que foram problema para você dez ou quinze anos atrás, e veja como essas

questões se tornaram indiretas e metalinguísticas. Se a moça vai casar com um sujeito,

e chega alguém e diz: "Não case com este sujeito, ele é um vigarista, estelionatário, um

Anão do Orçamento, etc.", ela chora, se sente muito mal, e tem de tomar uma posição.

Ou aceita a denúncia, ou a rejeita. Naquele momento, tudo que lhe interessa é saber

se aquela denúncia é verdadeira ou falsa, objetivamente falando. Mas vamos supor

que na semana seguinte ela conhece outro sujeito mais interessante, casa com ele e

esquece o primeiro. Aí aquela questão não interessa mais. Quanto mais tempo passe,

menos interessará saber se o sujeito era estelionatário ou não, mas a moça pode ainda

parar e pensar: "Por que naquela época eu sofri tanto com aquela questão?" Ela vai ter

de explicar o interesse que teve por este problema em função do seu estado

psicológico na época. Isto é que se chama relativizar historicamente. A questão perde

a sua importância objetiva, é esvaziada e absorvida numa outra questão que já não diz

respeito ao seu conteúdo objetivo, mas aos motivos subjetivos do seu surgimento.

Então, do ponto de vista do historicismo, não interessa saber se a Terra é esférica ou

plana, interessa saber por que, numa certa época, as condições culturais, psicológicas

etc. levaram as pessoas a pensar que era plana, e em outra época que era esférica.

Isto equivale a uma espécie de negação implícita de todas as formas de conhecimento

que não sejam históricas. Uma tribo de índios pensa que fazendo determinada dança

vai cair chuva. Numa outra época e noutro lugar, acha-se que a chuva cai por motivos

completamente diferentes, de ordem eletromagnética. Historicamente, não interessa

saber quem tem razão. Interessa só saber qual o elo de coerência entre estes dois

Olavo de Carvalho

39

pensamentos e os seus respectivos ambientes culturais. Ora, a dança da chuva tem

raízes histórico-culturais tanto quanto as têm a explicação eletromagnética. Se

conhecermos extensivamente essas condições para ambos os casos, ainda assim não

saberemos por que cai a chuva.

O advento da

ciência histórica

e o historicismo

O historicismo é uma maneira de ver que foi inoculada na mente ocidental no século

passado, desde que se formou a ciência da história. A formação da ciência histórica a

partir dos séculos XVIII e XIX, com Giambattista Vico, Edward Gibbon, Ranke, Savigny e

outros gênios imensos, é uma das grandes conquistas da humanidade. Mas deixou um

efeito colateral: o historicismo. A história como empirismo, como técnica prática, já

era conhecida desde a antiguidade. Mas como ciência, tal como a conhecemos hoje,

começa a ser formulada nos fins do século XVIIII e começo do XIX. É um progresso

imenso do conhecimento humano. A partir daí, você vai adquirindo uma perspectiva

temporal mais ou menos correta do que se passou antes. Começa-se a ter

preocupação com a exatidão da reconstituição dos fatos, através de uma quantidade

de técnicas de pesquisa histórica: crítica dos textos, dos testemunhos, epigrafia,

numismática etc. – uma quantidade de técnicas de investigação histórica que se

aprimoram muito neste começo do século passado e montam este monumento que é

a ciência histórica de hoje - uma ciência de enorme precisão, quase uma ciência exata.

Mas junto com a formação dessa ciência vem o efeito colateral. Quando uma ciência

faz sucesso, os outros ramos do saber querem imitá-la. Os modos de pensar que são

característicos da ciência histórica acabam então contaminando todas as outras

ciências e também a filosofia. Como acontecera antes com a física. Na Renascença, o

sucesso de Newton, Galileu etc. contaminava todo mundo, todos começaram a pensar

em termos físicos, levando os modelos da física para todos os setores do

conhecimento. No século XX, todos pensam informaticamente. O sucesso, primeiro, da

lógica matemática, e, depois, da informática, que é filhote dela, faz os modelos lógico-

matemáticos e informáticos serem adotados para todos os fins e em todas as ciências:

há modelos informáticos em biologia, em neurologia, em economia, em antropologia.

No momento eles parecem ter uma força explicativa muito grande, parecem nos dar a

visão da realidade mesma, mas no futuro eles também serão relativizados. Os modelos

sempre ajudam em alguma coisa, mas criam o perigo do que chamo ilusão retroativa.

O processo é este: Um indivíduo inventa uma máquina destinada a imitar alguns

processos do cérebro humano. Esta máquina chama-se computador, e funciona.

Retroativamente, começa-se a explicar o cérebro humano como se ele fosse uma

imitação do computador, e não o computador uma imitação de cérebro. Isto

aconteceu na Renascença com o aperfeiçoamento da arte da relojoaria. O relógio de

bolso foi inventado pelos beneditinos na Idade Média. Na Renascença, começaram a

Pensamento e Atualidade de Aristóteles

40

vender relógio de bolso para todo mundo. Logo em seguida, começa-se a explicar o

funcionamento do corpo humano como se ele fosse um mecanismo de relógio. O

homem inventa um modelo imitado a partir de alguma função dele mesmo, e em

seguida ele se explica a si mesmo por esta função, e a função pelo modelo que a imita.

Um caso de aprendiz de feiticeiro. Fica fascinado pelo que ele mesmo inventou e acha

que aquilo tem um poder explicativo, que o rabo é capaz de abanar o cachorro. Não

podemos esquecer que todos os equipamentos e todas as ciências são invenções do

homem. E como disse o Cristo: "O homem não foi feito para o sábado, e sim o sábado

para o homem". A ciência também foi feita pelo homem para o homem e ele tem o

direito de usar dela como bem entenda, e nunca pode esquecer que uma ciência é um

conjunto de procedimentos que ele mesmo inventou para conhecer algo, e que

poderão ser substituídos por outros amanhã ou depois se houver uma maneira melhor

de conhecer aquilo. Portanto, não existe a ciência que possa ser modelo

universalmente válido para as outras, nem modelo que possa explicar a coisa pela qual

se modela.

Métodos que foram inventados para estudar História, se aplicados para estudar outro

assunto, podem render alguma coisa, mas nunca tão bem como para estudar a própria

História. Mas ao longo dos tempos o que vemos é que toda ciência que faz sucesso

imprime o seu modelo a todo o universo cultural. O historicismo é um filhote da

ciência histórica. Ora, a ciência histórica não estuda a natureza ou os objetos

matemáticos. Ela só estuda os atos e pensamentos humanos no decorrer do tempo. Se

você tomar por exemplo o teorema de Pitágoras, verá que, por um lado ele expressa

um conjunto de relações que se dão dentro de uma determinada figura geométrica - o

triângulo retângulo --, mas por outro lado, é um pensamento que um certo sujeito

teve num certo momento da história. No historicismo, o primeiro aspecto, que

chamamos objetivo, a relação entre os vários aspectos do objeto ao qual ele se refere

(a relação entre os catetos e a hipotenusa), é comido pelo aspecto subjetivo ou

histórico. Ao historiador pouco lhe interessa saber se a soma dos quadrados dos

catetos dá o quadrado da hipotenusa ou o triplo do quadrado da hipotenusa. O que

interessa é que num certo ambiente mental surgiu certo pensamento na cabeça de um

tal Pitágoras ou de um grupo de pessoas em torno dele.

O historicismo surge primeiro discretamente e depois vai penetrando e solapando

todos os setores do conhecimento até chegar a um doidão chamado Antonio Gramsci,

teórico do Partido Comunista, que inventou o "historicismo absoluto". Isto significa

que todas as ciências, todos os conhecimentos são apenas expressões de momentos

históricos e a única coisa que realmente vale é a história. Ele chega a abolir a noção de

verdade objetiva. Não se pode dizer que 2+2=4; e sim que em tal época, em tal

sociedade se pensou que era 4 porque isto era bom para a sociedade naquele

momento. Gramsci é tido em alta conta por muitos. Mas quando você entra num

esquema de pensamento como o de Gramsci, acaba não entendendo mais coisa

Olavo de Carvalho

41

nenhuma, e quanto menos você entende, mais misterioso e profundo ele parece, e

quanto mais burro o discípulo fica, maior lhe parece o guru. É uma espécie de anti-

educação.

A educação verdadeira deve impelir os alunos a que eles cheguem a compreender o

pensamento do mestre às vezes melhor do que ele mesmo tinha compreendido, para

que possa aperfeiçoá-lo, completá-lo de algum modo. Tudo que o homem faz é

incompleto. Os homens morrem e por isto em suas obras fica faltando um pedaço, ou

há contradições não resolvidas, etc. Então é preciso que a geração seguinte prossiga o

trabalho, resolva as contradições, ou mesmo, se for o caso, reforme tudo. Ora, para

prosseguir ou reformar o trabalho de alguém, é preciso compreendê-lo a fundo, e

compreender para além dele, se possível. Mas hoje em dia há certas doutrinas

filosóficas, ou melhor, ideológicas que não se destinam propriamente a ser

compreendidas. Destinam-se a obscurecer as inteligências e a substituir a intelecção

pessoal e direta por um sentimento de pertinência a um grupo ou partido ou igreja

que é, ele sim, o sujeito coletivo encarregado de ter as intelecções. Assim, cada

membro se dispensa de buscar a compreensão pessoal e as provas, seguro de que nos

escalões superiores há sempre alguém que sabe o que ele não sabe. Antonio Gramsci é

um protótipo do sujeito que não escreve para ser compreendido, mas para ser

obedecido por quem não compreende. Aliás ele próprio também não se entendia,

porque em seu pensamento não há propriamente o que entender, do ponto de vista

teorético, mas somente o que obedecer. O historicismo absoluto é a absolutização do

tempo. Ora, o tempo é uma relação entre momentos. Então, o historicismo absoluto é

a absolutização do relativo, ou a relatividade absoluta, ou a relativa absolutidade. E o

que quer dizer isto? É uma proposta que não pode ser compreendida. Se os elementos

da relação nada são em si mesmos e considerados fora da relação, então é a relação

que os constitui, mas como poderia uma relação entre nada e nada produzir alguma

coisa? Gramsci, como muitos outros marxistas, confunde relação e totalidade. Dissolve

as substâncias individuais numa rede de relações que é tomada, em si e por si, como a

verdadeira realidade, como se uma relação considerada independentemente de seus

elementos não fosse apenas uma abstração lógica. A "História" é assim divinizada

como única realidade, como se toda história não fosse história de alguém, como se

uma história pudesse ser sujeito de si mesma. Mas o gramscismo já é o historicismo

febril.

É claro que o historicismo não é todo loucura. É um dos grandes movimentos de idéias

do Ocidente moderno, uma coisa digna de todo respeito. Porém tem seus limites. Só

serve para você entender história, saber por que os homens pensaram isto ou aquilo

em determinado momento, mas não para entender os objetos a respeito de que eles

pensaram. Senão, seria admitir que a história comeu todas as demais ciências. Ela

passa a ser física, fisiologia, matemática - tudo, enfim: uma única superciência que

abole todas as demais. Mas, se a história tem a pretensão de ser a ciência universal e

Pensamento e Atualidade de Aristóteles

42

come todas as outras, cada ciência vizinha pode ter a mesma pretensão. Que campos

na realidade estão dentro de quais, quais estão contíguos, quais hierarquizados - isto é

problema grave, não pode ser resolvido na base de uma ciência comer outras. Se o

historiador acha que a ciência dele é suprema, o físico tem o mesmo direito de achar

que o fundamento de tudo está na física, e que a história não é senão uma

pseudociência. Chega um terceiro e diz: "Não é nada disto, é tudo um problema de

linguística. Porque para falar de física e de história vocês usam signos". Aí pega as leis

da gramática e mostra que todas as proposições da física e da história não passam de

arranjos gramaticais e semânticos - e é uma verdade, tanto quanto é verdade que as

leis da física são acontecimentos históricos e que os acontecimentos históricos se

desenrolam num mundo regido pelas leis da física. Estes são os vários imperialismos

das várias ciências, cada um querendo comer o outro. Assim como há o historicismo,

temos o fisicismo, o linguisticismo, o matematicismo etc etc. Cada uma destas

hipóteses faz sucesso porque obtém alguns resultados bons - mas depois começa a

ampliar desmesuradamente seu campo de aplicação até virar uma metafísica, ou

pseudometafísica. É claro, no entanto, que nenhuma ciência em particular pode, por

si, fundamentar uma metafísica.

Imaginem então o que o historicismo não faz com alguém que morreu há mais de dois

mil anos. Se ele relativiza até o que está acontecendo hoje, imagine o que se passou

tanto tempo atrás. Você pega tudo que o sujeito falou, coloca numa distância

formidável, refere tudo ao meio histórico-social, psicológico etc., e reduz todo o

pensamento dele a um acontecimento histórico que se deu numa outra cultura, num

outro tempo, com outros interesses, e que afinal de contas não é verdadeiro nem falso

porque naquele tempo os padrões de veracidade e falsidade eram outros que não os

de hoje, isto torna impossível discutir se afinal de contas Aristóteles ou Platão ou outro

qualquer tinha razão naquilo que afirmava. Porém um pensamento que já não

podemos julgar verdadeiro ou falso não tem mais importância efetiva, é apenas uma

curiosidade histórica, uma peça de museu tornada inútil e incompreensível. O

historicismo pode, por essa via, chegar a nivelar descobertas valiosas e bobagens

puras, achatando a ambas como "fatos históricos". Aristóteles, por exemplo, foi quem

inventou a lógica tal como a concebemos. Ele inventou quase todas as ciências que

conhecemos - a história da filosofia, a biologia, a fisiologia, a anatomia; toda a nossa

nomenclatura de ciência é uma criação de Aristóteles. Este mesmo sujeito que fez

tudo isto, num dado momento declara que a mulher tem mais dentes que o homem.

Um sujeito desta envergadura falando uma asneira destas! Pois, do ponto de vista

historicista absoluto, vale a mesma coisa a contagem aristotélica dos dentes e o

conjunto da ciência aristotélica, já que foi o mesmo Aristóteles que produziu ambas as

coisas, no mesmo ambiente histórico e sob a ação das mesmas causas históricas.

É claro que você pode explicar o surgimento da geometria na Grécia em função das

condições culturais ambientes. Mas isto explica a origem da geometria, não seu valor

Olavo de Carvalho

43

cognitivo. Este só pode ser avaliado por meios geométricos, não históricos. Como faço

para saber se o teorema de Pitágoras está certo? Estudo a origem histórica do teorema

de Pitágoras ou a demonstração geométrica desse teorema? Saber quais as condições

em que foi gerada a idéia nada me diz sobre se ela é verdadeira ou falsa. As idéias

falsas têm uma origem histórica, tal como a têm as verdadeiras. No dia em que

Aristóteles atinou com a estrutura do silogismo - o raciocínio em três etapas, em que

dadas duas premissas, tira-se uma conclusão - devia haver alguma condição externa,

psicológica que o predispunha a isto. E no dia em que contou errado os dentes da sua

mulher, também. Teve causa a primeira como a teve a segunda coisa. Historicamente

dá na mesma explicar a asneira ou a grande descoberta. Há um grande repertório

destas asneiras. Sto. Anselmo diz que, plantando-se um escorpião, nasce uma vaca.

Santo Anselmo é um dos grandes gênios da filosofia, e fala uma coisa destas! Há para

isto alguma causa histórica e biográfica, como as há para os sutis argumentos

metafísicos que o mesmo Anselmo produziu num momento de mais lucidez. O ponto

de vista histórico só diz o que as pessoas fizeram, porque fizeram e com que fins. Não

diz se as ações e as idéias são sensatas ou insensatas, se estão certas ou erradas.

Outros preconceitos:

sociologismo

e antropologismo

Do mesmo modo, mais tarde, quando se desenvolvem as ciências sociais, sociologia e

antropologia, também surge um imperialismo destas. Você refere tudo ao quadro

social, às famosas classes sociais, proletariado, burguesia etc. Dá para você pegar todo

o conjunto do saber de um determinado momento e referi-lo à estrutura de classes,

encontrar as analogias entre ele e a ideologia da classe dominante. Assim. tomando

meras analogias estruturais como se fossem nexos de causa e efeito, você pode

"provar" que existe uma biologia burguesa, uma física burguesa, como existe uma

biologia proletária, uma fisiologia proletária e assim por diante.

Desde que usado com modéstia e articulado com outros critérios, o critério das classes

sociais pode ser esclarecedor, até certo ponto. Certas maneiras típicas de montar o

universo da ciência de fato parecem estar associadas a determinadas classes sociais.

Vemos por exemplo que existe uma filosofia medieval, feita praticamente por

membros do clero (os universitários faziam parte do clero, a universidade era uma

casta letrada separada do restante da sociedade), e isto produz um tipo de ciência.

Mais tarde, começa a surgir um outro tipo de intelectual que já não está na

universidade, o intelectual palaciano, da aristocracia, não mais do clero. Existe uma

diferença de conteúdo entre a ciência de uns e outros, assim como uma diferença de

estrutura global e de perspectiva. Portanto a hipótese das classes sociais não é um

absurdo. Mas ela está evidentemente limitada por duas coisas:

Pensamento e Atualidade de Aristóteles

44

1. As classes sociais não são o único fator que conta. Há, por exemplo, o fator nacional.

Só um cego não percebe que, se há um saber burguês ou proletário ou clerical, há

também um saber germânico, ou francês ou anglo-saxônico.

2. Saber se determinada descoberta científica é fruto da ciência clerical, aristocrática,

burguesa ou proletária não me diz se essa descoberta é verdadeira ou falsa. Julgar a

veracidade dos conhecimentos em função de sua origem social é cúmulo do

sociologismo. Este sociologismo chegou a produzir alguns fenômenos grotescos no

século XX. Na União Soviética a genética de Mendel até a década de 40 era proibida

por ser genética burguesa. Havia um geneticista marxista chamado Lissenko, cujas

teorias foram endossadas pelo Estado soviético a título de genética proletária.

Lamentavelmente, neste caso, como aliás em tantos outros, a burguesia é que tinha

razão. E hoje em dia ninguém mais fala em Lissenko, a não ser como exemplo do mal

que o pensamento ideológico pode fazer à ciência.

Tudo isto vem de que novas ciências que surgem e alcançam algum sucesso moldam a

cabeça de todo mundo. O historicismo se torna tanto mais poderoso quanto mais

distante no tempo está seu objeto. É mais fácil você ver uma idéia emitida 2.400 anos

atrás como expressão de uma sociedade longínqua do que você se situar dentro dessa

idéia para saber se é verdadeira ou falsa.

Vamos supor que uma tribo pratica a dança da chuva. É mais fácil explicar a dança da

chuva em função dos costumes e outras instituições dessa tribo que aprender a fazer a

dança da chuva para ver se funciona. Depois que você explicou tudo aquilo

antropologicamente, e reduziu tudo a uma projeção das instituições sociais sobre a

visão da natureza, que aconteceria se se comprovasse que o raio da dança funciona

mesmo? Então você já não precisaria explicar a dança em função do corpo de crenças

daquela tribo, porque o que é verdadeiro o é para qualquer um, e evidentemente a

eficácia da dança sobre a natureza deveria ser explicada por fatores físicos (ainda que

de física mágica) e não por fatores sociológicos.

Quando se estuda a Inquisição, há a história das bruxas que eram queimadas. Os

inquisidores mandavam matar as bruxas porque estavam persuadidos de que a

bruxaria funcionava, desencadeava efeitos físicos, podia matar pessoas ou destruir

colheiras. Quem praticava bruxaria contra alguém era portanto homicida tanto quanto

quem lhe desse facadas no estômago. Então chega o sociólogo, o antropólogo ou

historiador e explica: são "crenças da época". Acreditamos portanto que todo o

fenômeno da bruxaria e da sua perseguição pode ser compreendido dentro do campo

sociológico, ou antropológico, como mero fenômeno humano e subjetivo. Mas depois

chega outro sujeito e estuda o problema da bruxaria por um outro ponto de vista, o da

fisiologia. W. B. Cannon ganhou o prêmio Nobel de Fisiologia com o estudo Mudanças

Corporais no Medo, na Dor e na Raiva. Estudando o fenômeno da bruxaria com base

nas descobertas fisiológicas de Cannon, Claude Lévi-Strauss mostrou como é

Olavo de Carvalho

45

realmente possível matar uma pessoa por meio de bruxaria. Então vemos que a prática

da bruxaria não pode ser explicada somente pelas crenças ou ideologias de uma

sociedade ou época, pois há nesse fenômeno uma objetividade física que é a mesma

para todas as sociedades ou épocas. Aquilo que a história ou a antropologia

relativizou, é reabsolutizado, revalidado pela fisiologia.

A vacina contra tudo isto é entender que todas as ciências são legítimas no seu próprio

campo e alguma coisa delas se pode aproveitar no campo vizinho, mas nunca tudo.

Quanto mais distante no tempo e quanto mais estranha é a cultura de onde vem uma

idéia, mais fácil é relativizá-la ou historicizá-a, justamente porque o sentido objetivo

dessa idéia nos escapa; e, neste sentido, historicizar ou sociologizar essa idéia é apenas

uma forma científica de ignorância.

Danos que o historicismo

trouxe à nossa

compreensão de Aristóteles

O pobre Aristóteles, colocado 2.400 anos atrás, imaginem a desgraça historicista que

fizeram com ele! Tanto que há quase duzentos anos no Ocidente moderno ninguém

mais discute se esta ou aquela tese aristotélica é verdadeira ou falsa, sensata ou

absurda. Só se discute a "interpretação histórica" de Aristóteles. E particularmente se

discute se o sistema aristotélico é um todo fechado ou se, ao conrário, o pensamento

de Aristóteles evoluiu no tempo. Enquanto isto, não se discute se o próprio conteúdo

do pensamento de Aristóteles é verdadeiro ou falso. Estão trocando o estudo da

filosofia de Aristóteles pelo da história da filosofia de Aristóteles.

Todo estudo de filosofia do século XVIII para trás, em qualquer faculdade de filosofia

deste país, é feito quase que exclusivamente pelo lado historicista. Todos os

pensamentos perderam a atualidade e você só os estuda como expressões da sua

época. Mas vale a pena você estudar os pensamentos que outros tiveram durante

séculos para depois não saber se tais pensamentos são verdadeiros ou falsos? É claro

que o estudo histórico tem sentido mas não tem sentido abolir todas as outras

perspectivas em nome da perspectiva histórica, porque isto é afinal absolutizar o

historicismo e esquecer que ele também é um produto histórico, relativo portanto.

Jean Jacques Rousseau fez a teoria do bom selvagem: "O homem no estado de

natureza era bom; veio a sociedade e o corrompeu." Podemos estudar isto do ponto

de vista interno para saber se esta doutrina é verdadeira ou falsa, ou podemos estudá-

la historicamente. Por que, nas condições da França de então ocorreu esta idéia na

cabeça de Rousseau? Resposta: porque as pessoas viviam levando índios, inclusive do

Brasil, para mostrar na França, e surgiu uma atmosfera simpática em relação aos

índios. Fazia um ou dois séculos que havia um crescente afluxo de índios para a Europa

e Rousseau naturalmente viu um destes índios numa feira, ouviu o falatório e

Pensamento e Atualidade de Aristóteles

46

naturalmente lhe ocorreu a idéia. Então, você explica o surgimento da idéia em função

do ambiente. Agora digam: a teoria de Rousseau é verdadeira ou falsa? Saber que

Rousseau teve essa idéia quando viu um índio na exposição ajuda a julgar a veracidade

da idéia?

Se você se acostuma a estudar tudo do ponto de vista histórico, fica sabendo por que

fulano pensou isto ou por que surgiu tal ou qual idéia, mas desenvolve uma atitude

leviana em que não se interessa mais por saber se as idéias são verdadeiras ou falsas.

Este é um dos principais motivos da fraqueza do ensino de filosofia neste país. As

pessoas "curtem" as filosofias do passado esteticamente, preferindo umas, rejeitando

outras, mas sem colocá-las jamais seriamente em exame quanto à sua veracidade. A

filosofia aí tende a tornar-se um deleite mental, ou um depósito de argumentos para

uso das ideologias, uma técnica retórica, deixando de ser um saber propriamente dito

a respeito do real.

A crença de que as idéias mesmas mudam de época para época é totalmente falsa. Há

idéias que não mudam nunca, nem mesmo nas esferas mais relativas da vida. A esfera

mais relativa é a esfera moral. As idéias morais variam, sim. Mas mostrem-me uma

comunidade que tivesse entre seus valores e princípios a sua própria extinção ou a

prática sistemática do assassinato, ou em que fosse proibida a procriação - isto não

existe. Esses são princípios imutáveis, cósmicos, ou metafísicos, ou biológicos, como

queiram, mas não são culturais. Não sendo culturais, não podem mudar com as

mudanças de cultura. Mostrem uma comunidade onde fosse proibida toda e qualquer

forma de comércio. Ou toda e qualquer forma de propriedade. Portanto, estas coisas

correspondem a princípios imutáveis. Agora, se você investiga as formas de

casamento, há mil e uma, conforme as culturas. Mas há alguma cultura onde não

exista casamento de espécie alguma? Casamento, comércio, preservação da vida são

princípios universais que nunca foram mudados em parte alguma e que, enquanto

gêneros, não têm história, embora haja história das suas espécies. Assim como as

relações entre o quadrado dos catetos e o quadrado da hipotenusa também não têm

história. Tem história a descoberta desta idéia, mas não a idéia mesma.

Não sei se esses princípios invariantes são leis naturais ou leis metafísicas - não caberia

especular isto agora.

Por enquanto tudo isto está dentro da discussão do método da história da filosofia.

Vamos fazer o estudo histórico da filosofia de Aristóteles e para isto temos o o dever

de fazer uma série de discussões metodológicas preliminares, deixando tudo bem

esclarecido.

Como parte deste método, digo que nem tudo dá para entender historicamente, que

há pensamentos de Aristóteles que não podemos entender em função de sua época e

nem da personalidade de Aristóteles e que só entenderemos se olharmos firmemente

Olavo de Carvalho

47

para seus objetos, situando-nos desde dentro dessas idéias e perguntando: isto é

verdadeiro ou falso? Temos de nos colocar dentro do ponto de vista não somente da

história, mas da ciência à qual essa idéia pertence. O historicismo é um dos pais do

relativismo generalizado que hoje impera. As pessoas estão seguras de que todas as

idéias sempre mudaram e de que nunca houve idéia permanente ao longo de toda a

história, e isto é completamente falso. Mas hoje passa como se fosse um verdadeiro

dogma. Não interessa agora a discussão sobre o fundamento destes princípios

imutáveis, se é ontológico, se é natural, - mas que eles existem, isto é óbvio. Konrad

Lorenz diz que a perda da capacidade de perceber princípios universais é um sinal de

decadência biológica, de degenerescência da espécie. Existem muitas outras leis e

outros fenômenos cuja universalidade às vezes nos espanta. Por exemplo: em quase

todas as línguas do mundo a palavra pai e a palavra mãe têm as mesmas raízes. A letra

M em mãe é universal. Em pai, BPV ou F, que são variantes do mesmo som. Se tudo é

produto da história, da mudança cultural, como se explica essa universalidade? Mostre

uma língua que não tenha as categorias de verbo e substantivo. Ou que não tenha

sujeito e objeto. Não existe, é impossível. Todas as línguas têm uma história mas nem

tudo nas línguas tem história.

O historicismo é um movimento recente. Historicamente, o que tem duzentos anos é

recente. Importante é que ele é vigente ainda, e determina a maneira de as pessoas

pensarem. As pessoas acreditam naquilo como se fosse a realidade mesma e, pior,

como se todo mundo sempre tivesse pensado assim. Tudo o que a gente não sabe de

onde surgiu nos parece a realidade mesma. O valor dogmático do historicismo provém

de que ele esquece que ele mesmo é uma moda histórica.

O exagero historicista

nos estudos

aristotélicos. Sua origem.

Por outro lado, não podemos esquecer que, nos estudos sobre Aristóteles, o

historicismo surge em reação a uma espécie de exagero contrário - o exagero

sistematista. Aconteceu o seguinte: Aristóteles escreveu basicamente três tipos de

escritos; os que se destinavam à publicação, dos quais se tiravam várias cópias; os

escritos que eram apostilas e anotações de aulas, destinados aos alunos; e alguns

escritos que eram para seu próprio uso. Destes três tipos, só o segundo sobreviveu - as

anotações de aula. Os outros dois tipos, pessoais e publicados, desapareceram. Isto

quer dizer que aproximadamente uns cinquenta anos depois da morte de Aristóteles

os livros publicados dele já estavam começando a desaparecer; mais tarde não sobrou

nada.

No começo da era cristã, séculos I, II, só tinham sobrado os tratados, os textos

científicos que eram usados em aula. Ora, a evolução que o pensamento de Aristóteles

vai sofrendo ao longo do tempo se manifestaria sobretudo na diferença entre os

Pensamento e Atualidade de Aristóteles

48

rascunhos da maturidade e os escritos publicados, obras da juventude. Destas só

sobraram fragmentos e citações. Ora, se desapareceram os escritos da juventude, você

não tem mais traços de uma evolução, só aparece o produto final. Então, tem-se a

impressão de que Aristóteles nasceu com sua filosofia pronta e acabada. O sistema

está pronto e não se compõe de partes que se vão dialeticamente formando ao longo

do tempo; compõe-se não de partes sucessivas, como numa história, mas de partes

simultâneas como num organismo. Toda a interpretação medieval de Aristóteles é

feita exclusivamente em cima dos tratados e é uma interpretação organicista, vê o

pensamento de Aristóteles como se fosse um organismo completo. Foi só depois, com

a redescoberta de fragmentos de escritos de juventude e com a reconstituição a partir

destas citações que foi possível ver que Aristóteles nem sempre tinha pensado assim. E

daí surge a idéia historicista, que por sua vez tende a se absolutizar e a negar qualquer

caráter orgânico e sistêmico ao pensamento de Aristóteles, subdividindo-o em "fases"

que são como que várias filosofias diferentes.

O confronto das duas maneiras de pensar se dá sobretudo nos dois últimos séculos.

Com as primeiras conquistas da ciência histórica nascente, naturalmente aparece uma

interpretação historicista de Aristóteles contra a qual reage Franz Brentano. Este

produz aos 24 anos de idade - caso de precocidade raríssimo em filosofia - a melhor

exposição da organicidade, da unidade do pensamento de Aristóteles no livro Da

Significação do Ser em Aristóteles, que se torna o texto clássico desta interpretação.

No nosso século, na década de 20, aparece a obra de Werner Jaeger que representa a

outra corrente, ou seja o historicismo.

Estamos cercando Aristóteles por fora - até agora nada falei doconteúdo do

pensamento de Aristóteles. Estamos falando primeiro do que os outros pensaram que

ele era. Por isso digo que é um personagem múltiplo e ao longo da história foram

sendo criados novos Aristóteles, de acordo com interesses de época. Para corrigir este

desvio historicista, temos de fazer um recuo em sentido contrário ao que faz o

historicismo. Este faz com que as idéias, referidas aos seus momentos no tempo,

recuem e fiquem distantes de nós, percam a atualidade. Teríamos de fazer o contrário,

revigorar sua atualidade, olhando-as não como idéias surgidas num determinado

momento no tempo, mas como idéias que fossem válidas para nós agora. Ou seja, não

basta perguntar o que nós hoje pensamos do que Aristóteles pensou há 2400 anos

atrás, mas também o que Aristóteles pensaria de nós hoje. E esta opção não é

impossível. Aristóteles era gente, pertencia à mesma espécie biológica que nós, não

podia ser tão radicalmente diferente de nós e não tem sentido fazer que o

distanciamento temporal de dois seres se sobreponha à sua identidade de espécie. Ou

seja, entre um boi antigo e um boi moderno pode haver muitas diferenças. Um pode

ter mais proteínas, ser mais cuidado, de uma raça que se formou depois - mas no

fundo é tudo boi. Aristóteles é gente como nós - esta é a primeira exigência do nosso

método. Em segundo lugar, Aristóteles, como qualquer ser humano, vivia no tempo e

Olavo de Carvalho

49

sabia que ia morrer e que depois disto ia continuar a existir gente neste planeta.

Portanto, como todo ser humano, ele deveria ter alguma expectativa sobre o que

deveria acontecer depois. Se prolongarmos, ampliarmos esta expectativa por 2400

anos, obteremos o julgamento que Aristóteles faria de nós, assim como podemos nos

julgar partindo das expectativas que tínhamos quando crianças ou adolescentes. Este

método de fazer com que o julgamento seja de dupla via é o único que pode pode dar

equilíbrio e senso de justiça às nossas conclusões. Se absolutizamos um ponto de vista,

o do "nosso" tempo, relativizando todos os outros tempos - o que estamos fazendo?

Criamos uma espécie de cronocentrismo. Fala-se muito em etnocentrismo, mas pior é

o cronocentrismo - achar que o nosso tempo é soberano, como se antes dele não

houvesse existido outros e como se ele não estivesse destinado a passar também. Não

basta ver as outra épocas com o olho da nossa, temos de ver a nossa com os olhos das

outras, senão ficamos cegos, perdemos o fio da continuidade da existência humana.

Para fazer estas duas operações é que fiz a lista dos estudos aristotélicos. Vamos

estudar brevemente, antes de entrar no conteúdo do pensamento de Aristóteles, a

evolução do que pensaram sobre ele ao longo do tempo, examinar por onde o

olharam, que questões se levantaram, o que pareceu importante e desimportante,

essencial ou acidental na sua obra em cada época. Como o remontaram ou

dsmontaram e que soluções deram aos pontos obscuros da sua doutrina.

A variação aí é tão grande que podemos ir não só da escola sistematista para a

historicista, mas podemos levantar ainda um outro contraste. Durante muito tempo o

pensamento de Aristóteles pareceu o sistema mais completo que existia. Hoje em dia a

tese dominante é a de Pierre Aubenque, que diz: "O pensamento de Aristóteles é

incompleto e incompletável". Como viemos parar longe de Brentano! Afinal, o

pensamento de Aristóteles é um organismo que se formou e evoluiu no tempo ou é

uma estrutura firme e acabada desde o princípio? É um sistema completo e fechado

ou é o esboço de um plano que não chegou a se realizar? É um sistema completo ou

um projeto incompletável? No confronto entre sistematistas e historicistas,

completistas e incompletistas, a impressão que fica é que é impossível entender

Aristóteles. As pessoas o entendem das maneiras mais diversas. Um lê: "Aristóteles diz

que isto é quadrado". E outro: "Ele assegura que é redondo." E um terceiro: "Ele diz

que é um triângulo." Isto é para dar uma idéia de como achar a verdade pode ser

difícil.

Pensamento e Atualidade de Aristóteles

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Pensamento e atualidade de Aristóteles

TERCEIRA AULA

Casa de Cultura Laura Alvim, Rio de Janeiro, 29 de março de 1994.

Transcrição de:

Heloísa Madeira

João Augusto Madeira

e Kátia Torres Ribeiro

1a parte

O pensamento de Aristóteles surge dentro de certo desenvolvimento em três etapas

do que chamamos a Filosofia do Conceito - aquela que busca um objeto estável, algo

que possa ser objeto de conhecimento, e o encontra, com Sócrates, no elemento

conceptual da realidade. Elemento conceptual é a parte ou aspecto dos entes que,

podendo ser resumido, encaixado dentro de uma forma mental fixa, revela o que estes

entes são em essência, independentemente das variações ou transformações que

possam sofrer no curso de sua existência. Por exemplo, um animal qualquer, leão,

cavalo, burro, por um lado tem este aspecto essencial que faz com que possamos

designá-lo sempre pelo mesmo nome referindo-nos à mesma espécie; por outro lado,

é evidente que não há dois cavalos iguais, dois leões iguais. Também é evidente que o

cavalo não permanece o mesmo desde que nasce até que morre. E que todo o

processo de geração, existência, corrupção e morte não afeta a essência ou elemento

conceptual destes entes. O leão morto não passa a ser outra coisa;é um leão,

essencialmente o mesmo, porém privado de existência. Distinguindo entre o que seria

o aspecto essencial e o aspecto acidental ou transitório das coisas, o método de

Sócrates propunha que a mente humana se preocupasse principalmente do elemento

conceptual, sendo que o outro aspecto não seria propriamente matéria de

conhecimento, mas apenas de sensação e opinião.

Em seguida, com Platão, vemos que este elemento conceptual, já recortado, separado

por Sócrates, adquire uma espécie de autonomia no sentido ontológico. Em Sócrates, a

divisão entre o aspecto existencial e o conceptual era apenas técnica; era um artifício

através do qual Sócrates tentava apreender um aspecto mais valioso da realidade,

digno de ser investigado. Em Platão, esse aspecto separado por Sócrates é enfatizado

como sendo ele mesmo a realidade, ao passo que o aspecto existencial, acidental e

transitório é visto como uma espécie de tecido de aparências que nos oculta a

verdadeira realidade. A passagem de Sócrates para Platão é bastante nítida; é uma

Olavo de Carvalho

51

diferença quase abissal. Uma coisa é dizer que vale mais a pena olhar a realidade por

determinado aspecto por ser ele mais revelador; outra coisa é dizer que este aspecto é

que é real e que o outro é, se não totalmente falso, pelo menos parcialmente ilusório.

Podemos resumir tudo dizendo que em Sócrates a divisão dos dois mundos ou

aspectos tinha um sentido metodológico, ou gnoseológico, e em Platão passa a ter um

alcance ontológico. Um preceito metodológico ensina como você deve investigar as

coisas; um princípio ontológico estabelece como as coisas realmente são..

Muitas vezes, na história do pensamento e na história das ciências, aconteceu que

preceitos metodológicos se transformaram em leis ontológicas. O caso mais recente é

o do marxismo. Marx diz que devemos olhar a constituição da sociedade em primeiro

lugar por sua infra-estrutura econômica e depois, em função dela, descrever os outros

estratos da sociedade - leis, política, costumes, valores, artes etc. Em primeiro lugar,

isto é um preceito metodológico e como tal obviamente funciona. Porém, tem isto

também um alcance ontológico? Será a sociedade objetivamente constituída assim?

Uma base econômica sobre a qual e e função da qual se vão criando outros estratos?

Marx não deixa isto muito claro. Ele diz apenas que em última instância o fator

econômico é decisivo, dando a entender que outros fatores podem ser decisivos em

instâncias não últimas. Como ele não diz em parte alguma o que entende por última

instância e onde termina a instância penúltima, o mais prudente é interpretar o seu

preceito em sentido apenas metodológico. Porém, a tradição marxista começou a

tratar esta hierarquia metodológica como se fosse um preceito ontológico. Como se a

sociedade fosse construída realmente de baixo para cima, a partir de um

embasamento econômico que determinaria todo o resto. E hoje esta idéia, como

preceito ontológico, entrou tão fundo na cabeça das pessoas que praticamente todo

mundo pensa assim, mesmo quem não gosta do marxismo... O que seria um mero

preceito metodológico ou no máximo uma hipótese ontológica acaba virando uma

convicção das massas que acreditam que isto tenha um fundamento científico.

Também na antropologia, a idéia de que o antropólogo, quando examina diferentes

culturas, deve evitar fazer uma hierarquia valorativa, como se uma cultura fosse

melhor do que a outra, é um preceito metodológico. Depois, quase que

implicitamente, tornou-se uma regra ontológica que diz que "não existemdiferenças de

valor entre as culturas ou os costumes". Um costume como a antropofagia, por

exemplo, deve ser considerado tão bom - ou tão ruim - como o da adoção dos órfãos.

Sempre que passamos do preceito metodológico para o ontológico existe no mínimo

uma imprudência muito grande.

Na passagem do socratismo para o platonismo parece ter havido isto e não sei nem se

o próprio Platão e os que o cercavam se deram conta desta escorregadela, pela qual

foram do metodológico ao ontológico.

Pensamento e Atualidade de Aristóteles

52

E preciso cuidado para saber quando alguém está falando sobre a constituição da

realidade ou sobre a melhor maneira de examiná-la. Dizer que um método é mais

conveniente do que o outro nada pressupõe a respeito da realidade. O fato de que

convenha examinar algo por certo lado não quer dizer que este lado seja

objetivamente o mais importante.

Distinção entre

a ordem do ser

e a ordem do conhecer

Aristóteles esclareceu isto perfeitamente com a distinção daordem do ser e da ordem

do conhecer. Quando o arquiteto concebe uma casa, ele concebe o todo, o esquema

geral; mas na ora de construir tem de seguir a ordem exatamente inversa, tijolo por

tijolo. Quando você vê a casa, novamente o que vê é o todo; mas quando vai percorrê-

la tem de ir parte por parte. Há uma série de inversões da hierarquia. Do mesmo

modo, o primeiro que conhecemos nos seres é o seu aspecto exterior e manifesto, mas

é claro que este aspecto é o último na sequência de constituição desses seres.

Um preceito metodológico refere-se à ordem do conhecer, que nem sempre reflete a

hierarquia real do ser. Quando você conhece uma pessoa, a primeira coisa que vê é a

aparência física. Mas como esta pode ser reveladora, se ela é própria apenas daquele

momento? Você conhece alguém de quarenta anos, está vendo a aparência desta

idade, não sabe tudo o que aconteceu antes. A ordem do conhecer nem sempre vem

na hierarquia certa do ser.

Um método é apenas um caminho para chegar a alguma coisa. Ora, descrever o

caminho pelo qual você chega de São Paulo ao Rio de Janeiro não é falar nada sobre o

Rio. A partir de uma descrição da Via Dutra você nada fica sabendo sobre a cidade do

Rio.

Evolução da filosofia

do conceito:

de Sócrates a Platão.

Se procurarmos em tudo aquilo que está documentado como dito por Sócrates - as

falas a ele atribuídas - algo de uma ontologia, não o encontramos de maneira

nenhuma. Só encontramos preceitos de lógica, de ética e de metodologia. Quando o

Sócrates que aparece nos Diálogos de Platão começa a dar a preceitos de Sócrates

valor ontológico, aí podemos dizer que quem está falando é Platão. Ele transformou

uma sugestão metodológica numa doutrina formal sobre a constituição do real. Em vez

de dizer que é mais fácil examinar os seres pelo seu aspeto conceptual ou lógico do

que pelo simples aspecto sensível, ele diz que o aspecto conceptual ou lógico é a

verdadeira realidade, e que o aspecto sensível, ou existencial, é aparência, é um véu.

Olavo de Carvalho

53

Com isto, uma separação meramente mental que nós fazemos - a separação entre o

ser e o seu conceito - é hipostasiada, personificada, materializada numa divisão real do

mundo em dois estratos. Como se o mundo único da nossa experiência, aquele sobre o

qual investigamos, já não fosse bastante complicado, você cria dois mundos.

A doutrina dos dois mundos é quase um tendência natural do espírito humano. Hoje

vemos, dois mil e tantos anos depois de Platão, que certo platonismo já aparecia na

arte do homem das cavernas. Isto foi destacado por um grande historiador da arte,

chamado Wilhelm Worringer. Ele observou que o homem primitivo, longe de ser um

cidadão perfeitamente integrado na natureza, sentindo-se perfeitamente bem ali, é,

ao contrário, um ente aterrorizado pela natureza imensa que o cerca, cheia de

imprevistos e ameaças incompreensíveis. Por isso mesmo, a arte dos povos primitivos,

longe de ser uma arte naturalista, uma arte que retrate a natureza com toda a sua

variedade de formas e cores e seres, é uma arte simplificadora, uma arte geométrica,

que expressa um impulso abstrativo muito intenso. Worringer explica assim este estilo

de arte: quando o mundo real nos parece demasiadamente complicado ou ameaçador,

tendemos a nos refugiar num domínio intelectual puro, para podermos encontrar

dentro dele os princípios de organização simplificadora, com os quais mais tarde

voltaremos a tentar nos instalar no mundo externo. Como você não está entendendo o

que se passa fora, recua para organizar os próprios pensamentos. Depois de os ter

organizado, volta à ação exterior. Ora, uma arte de ornamentação puramente

geométrica é o que se observa em praticamente todas as sociedades tribais; e uma

arte naturalista, na qual o artista se deleita em copiar as formas da natureza, só

aparece nas sociedades organizadas, na polis. O naturalismo, a curtição da natureza,

são próprios do homem civilizado, e não do primitivo. Para este a natureza é um caos,

porque ele não tem poder sobre ela. A partir da hora em que consegue organizar o

pensamento humano, e em consequência, a sociedade, coloca uma hierarquia, coloca

todo mundo para trabalhar, monta as cidades, cria sistemas de produção e defesa, e

afinal sente-se mais seguro e face desta natureza, então sim os aspectos terrificantes

dela são atenuados e começam a aparecer os aspectos estéticos. A beleza da natureza

só é visível depois que você está a uma boa distância dela.

Esta arte primitiva tem também um sentido religioso, ritual, de modo que as formas

puramente geométricas expressam um realidade que, não sendo visível neste mundo,

não estando na natureza, é no entanto superior a ele, e na qual o homem se sente

protegido contra o caos exterior. Expressa um mundo de relações puramente

espirituais, angélicas. São símbolos, signos mágicos ou religiosos. Podemos ver nestes

fenômenos descritos por Worringer uma espécie de platonismo primitivo, e aí

entenderíamos o platonismo não apenas a filosofia de um certo cidadão, mas como

uma tendência constante do espírito humano, e que reaparece sempre que a situação

fica caótica e o homem, não conseguindo entender o que se passa, procura em

primeiro lugar reordenar o seu mundo interior. Por isto dizia Alain que Platão é o

Pensamento e Atualidade de Aristóteles

54

filósofo bom para os que estão em dificuldades interiores, ao passo que Aristóteles é

para os cientistas e pesquisadores do mundo.

Num outro contexto completamente diferente, Carl-Gustav Jung, que não levo muito a

sério como teórico mas cujas observações clínicas são primorosas, notou que sonhar

com objetos geométricos acontece na hora em que a anima está dialogando com o

superego ( anima é a parte da psique que congrega desejos, aspirações de felicidade;

superego é senso imanente de autoridade, legalidade interna ), no sentido de obter

autorização para fazer alguma coisa que ela deseja. Na hora e que se estabelece este

diálogo que visa reordenar a relação entre as leis e os desejos, é que o sujeito começa

a sonhar com figurar geométricas. O geometrismo expressa um princípio de

reorganização da mente. Por um motivo muito simples: o geométrico forma uma

espécie de ponte entre o puramente matemático e o sensível. As matemáticas

começam a se desenvolver primeiro pela geometria e só depois chegam à aritmética

pura. No tempo de Platão, a geometria já estava bastante desenvolvida e a aritmética

só começa a caminhar uns quatro séculos depois. É mais fácil raciocinar

matematicamente com figuras geométricas do que com números abstratos. O

geometrismo aparece como um diálogo, uma intermediação entre a parte sensível e a

parte inteligível, ou como diria Jung, entre a anima e o superego.

O geometrismo é um recuo para uma reorganização interior, um rearranjo entre as

exigências da alma humana e o senso de ordem, hierarquia lógica, realidade firme, etc.

Visto assim, o platonismo não é a filosofia de Platão, mas um tendência que reaparece

a todo momento, sempre que o homem sente a necessidade de refluir desde um

situação exterior caótica até um princípio espiritual, interno, invisível ou

transcendente de organização. E se é assim, sempre que houver uma situação de caos

social, intelectual, moral, ressurgirá algum platonismo, ou seja, uma divisão do mundo

em dois estratos, dando mais atenção ao estrato superior interno, representado em

geral por figuras e relações de tipo geométrico. Veremos isto às portas da Renascença,

época de muito caos, de dissolução da unidade da civilização cristã, e onde indivíduos

mais sensíveis, como Kepler, sentem a necessidade de restaurar a doutrina platônica

sob as formas geométricas do cosmos. Segundo Kepler, haveria entre as distintas

esferas planetárias as mesmas relações que existem na sequência dos sólidos

geométricos platônicos. O desejo de encontrar na realidade externa um princípio

geométrico é um desejo de ordenação. Do mesmo modo, a queda do marxismo após a

revelação dos crimes de Stalin por Kruschev precipitou a intelectualidade européia

numa crise de consciência para a qual encontrou alívio aderindo ao estruturalismo de

Cl. Lévi-Strauss, uma espécie de geometrismo antropológico que, inspirado no

rigorismo linguístico de Saussure, reflui do devir histórico para a busca das estruturas

permanentes.

Olavo de Carvalho

55

Ora, só procuramos ordenar o que está desordenado. Quando você está se sentindo

perfeitamente bem na confusão e na variedade do mundo externo, não quer organizá-

lo de maneira alguma. A distinção que faz o Worringer entre a arte primitiva ou

geometrizante e a arte clássica de tendências mais naturalísticas é a distinção que

existe entre o homem que teme o cosmos e o que se sente bem nele. Mas este sente-

se bem porque está um pouco fora dele, protegido por uma camada -- Lévi-Strauss

dizia "almofada" --que é a própria civilização.

A época de Platão era uma época de caos moral muito grande. Platão tinha o impulso

de reformar, reordenar o mundo todo; tinha um projeto político para o mundo inteiro,

principalmente para Atenas. Na famosa Carta VII ele explica que o grande objetivo de

sua vida tinha sido reformar politicamente a Grécia. Platão não era só um filósofo, era

um homem público, um homem de ação. Vemos na biografia de Platão que este

impulso reformador e reordenador se defronta com uma série impressionante de

fracassos, num dos quais ele tenta dar seu apoio a um golpe de Estado que teria sido

dado por um discípulo seu numa cidade vizinha; tinha ele a idéia de, a partir desta

cidade, reordenar a Grécia, voltando vitorioso para Atenas, como fez depois

Mohammed ( Maomé ) - saiu, reformou a cidade vizinha e voltou à sua, para reformá-

la nos moldes da primeira. Platão faz uma espécie de Hégira - mas não dá certo. O

golpe de Estado é reprimido, Platão é preso e vendido como escravo na feira, sendo

recomprado por seus discípulos.

Sócrates não teve nenhum intuito de agir politicamente, a sua é um tipo de filosofia

muito mais pura que a de Platão, mistura de filósofo e estadista -- reformador, político,

moralista, profeta. Saindo desta e de outras experiências do mesmo teor, ele inicia, na

maturidade, quando começa a se tornar independente do mundo socrático para criar

seu próprio mundo filosófico, uma transição marcada por um abstratismo, uma

geometrização e uma absolutização da divisão do mundo em dois estratos. Em parte,

essa mudança na orientação da filosofia de Platão acontece por força destas

experiências que mostram ao filósofo o caráter rebelde do caos do mundo, que não se

curva tão facilmente aos nossos impulsos reformadores. Aí ele sente que antes de

reformar o mundo é preciso fazer uma espécie de interiorização, uma reforma do

mundo interior, uma reordenação conceptual para mais tarde tentar com base nela

reorganizar o mundo. O empreendimento não foi totalmente fracassado porque toda a

proposta pedagógica que Platão oferece para a reforma do mundo acaba sendo

adotada, letra por letra, pelo clero católico. Se observarem o que é a educação de um

padre na igreja e perguntarem de onde a Igreja tirou isto, esta idéia de uma

preparação interior até que o sujeito esteja pronto para atuar no mundo, nada

encontrarão nos Evangelhos ou no Antigo Testamento. Não há fontes cristãs deste

modelo: sua fonte é o velho Platão. Na famosa República Platônica, a chefia é

conferida aos filósofos mais profundos; a filosofia deles é uniforme, todos pensam

igual, numa espécie de clero filosófico. Esta proposta não foi adotada na política

Pensamento e Atualidade de Aristóteles

56

mundial, mas o foi na organização da Igreja. Neste sentido, a proposta platônica

perdeu a batalha na Grécia mas venceu em uma outra parte do mundo, justamente a

parte que continha em si as mais promissoras sementes de futuro, as sementes da

civilização européia que, sem sombra de dúvida, é obra da Igreja.

Organicismo

versus

geometrismo

Em contraste com isto, vemos que Aristóteles, pertencente a uma família de médicos e

tendo, muito provavelmente estudado anatomia desde pequeno, não tendo nenhum

talento especial para matemáticas, e ao contrário, manifestando certa birra com elas,

e especialmente com o matematismo, se mostra um homem muito mais inclinado a

conceber a idéia de forma não segundo um modelo geométrico, mas segundo o

modelo do corpo vivente, seja do ser humano ou do animal. Daí parte uma série de

tendências características do pensamento aristotélico. Aristóteles é o inventor da

biologia e podemos tomar a sua filosofia como protótipo do pensamento biológico - o

que toma o ser vivente como modelo do real. Ora, o ser vivente não é encontrado num

outro mundo, através de um pensamento conceptual, mas sim neste mesmo e com os

dois olhos da cara. É possível vê-lo, tocá-lo, cheirá-lo, examiná-lo, observá-lo no seu

surgimento, no deu desenvolvimento, na sua plenitude, declínio e morte.

A primeira coisa que se observa num organismo é a inseparabilidade que existe entre a

unidade e a variedade que o compõe. O organismo tem a característica de morrer se

for cortado pelo meio. Se perder a unidade, já não existe mais. Por outro lado, é uma

unidade composta de uma diversidade, de uma diversificação muito grande de órgãos

- por isso mesmo se chama organismo (conjunto harmônico de órgãos que funcionam

para um mesmo fim). Se você observar os vários órgãos que compõem qualquer corpo

vivente, vai ver que não há nenhuma maneira de explicar a coordenação entre eles,

senão em vista dos fins a que este organismo visa. Os vários órgãos são tão diferentes

entre si que somente funcionam de maneira coordenada se o organismo todo tender a

um determinado fim. Quanto mais dirigido a um fim claro e definido está o organismo,

mais harmoniosamente funcionam os seus vários órgãos. Por isto, a ginástica ou

qualquer disciplina funcionam, porque acostumam todos os órgãos a agirem de uma

maneira sincrônica e harmônica, em vez de se dispersarem. Esta harmonia é a própria

integridade do corpo humano. Quando os órgãos se rebelam uns contra os outros é a

doença, e em seguida a morte. Quando o organismo morre, ele se decompõe, suas

partes mínimas separam-se e adquirem vida autônoma. Perde a coesão, a harmonia, s

subordinação e coordenação entre as partes. Tudo isto são observações que devem ter

ocorrido a Aristóteles muito precocemente, muito antes de que ele as formulasse

filosoficamente.

Olavo de Carvalho

57

O corpo humano tem ainda a característica de ser marcadamente hierárquico. No

organismo, nem todos os órgãos têm a mesma importância vital. Temos partes do

corpo humano que nós mesmos incessantemente cortamos e jogamos fora: cabelos,

unhas. Outras que expelimos constantemente. Outras que são substituídas: hoje

sabemos que todas as células são trocadas de tempos em tempos. Naquele tempo não

se sabia, mas era fácil ter uma certa antevisão disto. Temos órgãos que não podem ser

eliminados, pelo menos no todo, sem um grave prejuízo para o corpo. Se nos cortam

uma perna, continuamos vivendo, embora de maneira deficiente. E outros que não

podem ser cortados, nem mesmo tocados - se você for acertado ali está morto.

Sabemos que podemos viver sem uma parte do cérebro, mas não sem cérebro

nenhum. Mas não podemos viver sem metade do coração, ou sem ossos. Esta

gradação hierárquica de importância vital é outra característica do organismo. Então,

temos:

1º) Unidade na variedade.

2º) Identidade entre a coesão e a existência real (a coesão é a própria possibilidade de

existência).

3º) Caráter hierárquico.

Unidade diversificada, coordenação e subordinação são as carecterísticas mais

evidentes do ser biológico.

2a parte

A vida, plenitude

do real. Deus

é vivente, é zoon.

Acostumados a ver estas coisas no organismo vivente desde criança, são estes os

traços que Aristóteles vai encontrar no que ele chamará de realidade, ou seja, ele

procurará ver em tudo que existe, a sua unidade na variedade, a sua coesão e a

suahierarquia. O que é a mesmíssima coisa que encarar o real todo como se fosse um

gigantesco modelo orgânico. Daí é que vem também a irritação dele com as

matemáticas. Ele reconhecia, como os platônicos, que o mundo dos sentidos é muito

difícil de captar, porque está em constante transformação. Seus elementos individuais

não têm estabilidade suficiente para que você possa dizer algo sobre eles que já não se

torne falso no instante seguinte. Os platônicos reagiam a isto fugindo dos entes

sensíveis para os entes inteligíveis, sobretudo os geométricos, ao que Aristóteles

objetava que, se os entes matemáticos tinham a estabilidade, isto não bastava para

Pensamento e Atualidade de Aristóteles

58

lhes dar a plenitude da existência. Ademais, os objetos matemáticos sofriam do mais

grave de todos os defeitos - não serem objetos vivos. Segundo Aristóteles,

evidentemente, o vivo é mais real que o morto. O vivo age, o morto apenas está num

lugar, só vive espacialmente. O vivo, além de estar, age, produz efeitos sobre os outros

seres. Esta é uma forma de existência mais intensa, mais plena e mais rica.

Dizia Aristóteles: vemos de um lado entes que são vivos, mas impermanentes, e de

outro lado, temos entes permanentes, mas que não são vivos nem plenamente reais;

sabemos que estes dois tipos de seres existem - sensíveis e matemáticos -- ,

submetidos a leis que têm uma consistência própria e que não podemos mudar. Mas

se estas duas formas de seres, reconhecidamente existentes são, cada uma delas,

deficientes de um modo oposto, talvez haja alguma forma de existência que tenha as

qualidades destas duas e esteja isenta de seus defeitos. Tenha a permanência do

objeto matemático e seja viva e agente como os seres vivos. Este é o conceito

aristotélico de Deus. Este Deus que ele só conhece como hipótese demonstrável por

vias indiretas, do qual não tem experiência ou conhecimento direto, somente Ele

atende ao requisito de ser perfeitamente real. Perfeitamente real seria aquilo que

tivesse a forma mais intensa e rica de existência e ao mesmo tempo não fosse

perecível, sujeito a acidentes. Só conhecemos isto como suposição que fazemos

logicamente, não conhecemos por experiência, nunca ninguém viu Deus. Ele não se

deixa apreender inteiramente pelos nossos órgãos dos sentidos. Por outro lado,

também não se deixa apreender inteiramente pelos nossos cálculos e raciocínios

lógico-matemáticos. Por um paradoxo, este Ser inapreensível se impõe a nós como o

que seria o modelo da realidade plenamente real. Este vai ser o princípio fundamental

da metafísica de Aristóteles. Este Deus seria o estrato superior da realidade. No

entanto, este estrato não está separado do mundo sensível, como o mundo divino de

Platão, mas está misteriosamente imbricado no real, ou antes, o real está imerso nele

como dirá mais tarde S. Paulo Apóstolo: "Nele nos movemos, vivemos e somos".

A importância

das distinções

em Aristóteles

Aristóteles admite uma complexa hierarquia do real; primeiro, não é composta de dois

estratos, mas de uma infinidade. Em segundo lugar, o organismo é superior aos

órgãos, mas, em relação aos órgãos, onde está o organismo? Não está em nenhum

órgão. A relação complexa entre o todo e as partes que o compõem é uma outra

característica do pensamento aristotélico. Daí a enorme preocupação de Aristóteles de

estabelecer a relação entre unir e distinguir. A realidade é sempre é sempre composta

de elementos distintos ou distinguíveis, porém nem sempre separáveis.

Do socratismo e do platonismo, com sua visão mais ou menos esquemática do mundo

até esta rede de distinções enormemente sutis e trabalhosas há um salto, um

Olavo de Carvalho

59

aprofundamento monstruoso. Quando entramos no mundo aristotélico, subitamente

entramos no nosso mundo. Estas distinções, cuidados etc. ainda fazem parte do

mundo científico em que vivemos hoje. Ninguém se aventura a uma investigação

científica sobre o que quer que seja se já não tiver todo um sistema de uniões e

distinções mais ou menos estabelecido, um quadro conceptual dentro do qual os

vários aspectos da realidade aparecem nas suas relações mais ou menos verdadeiras,

que a investigação confirmará ou desmentirá.

Aí também há uma grande diferença entre toda a filosofia anterior e Aristóteles. Desde

que surgem os primeiros filósofos gregos, os chamados pré-socráticos, até Platão, a

principal ocupação deles consiste em dizer alguma coisa sobre a realidade, isto é,

emitir uma doutrina sobre a constituição do mundo. Em segundo lugar, têm a

preocupação de distinguir no mundo, radicalmente, o que é essencial do que é

acidental, e portanto em dizer logo o segredo fundamental das coisas. Toda a filosofia

pré-socrática se caracteriza pelo fato de que a cada filósofo corresponde uma fórmula

que ele emitiu sobre o que é o mundo em essência. Um diz que é água, outro os

quatro elementos, outro o ápeiron ou indefinido, e assim por diante. Resumem numa

fórmula a constituição do real, e arquitetam todo um mundo de pensamentos para

sustentar esta tese. Aristóteles não faz nada disto, não tem nenhuma doutrina sobre a

constituição última do mundo. Ao contrário, ele se preocupa em conceber estratégias

e métodos que permitam progressivamente ir descobrindo alguma coisa. Ele inventou

o que hoje chamamos ciência. A atitude científica é aquela que se abstém da

proclamação dogmática de uma verdade, mas pretende encontrar uma verdade

fundamental, provada em todas as suas etapas e que uma vez demonstrada, se torne

universalmente obrigatória para todos os seres pensantes.

Por que não existiu

um aristotelismo grego.

Teofrasto e Estratão.

Com este salto deixamos para trás a etapa dos gurus, dos quais Platão teria sido o

último (guru é o sujeito que detém o segredo da verdade, e o enuncia em duas ou três

fórmulas potentes, como aforismos ou sentenças proféticas). Platão, embora já seja

um grande filósofo no sentido posterior, é o último guru da antiguidade grega. Ele

entra na história mais ou menos como uma espécie de detentor de um segredo último,

que ele enuncia em algumas fórmulas como que reveladas. De Platão para Aristóteles

temos um salto imenso, no sentido da conquista do juízo crítico e da autoconsciência

da limitação humana. Comparado com Sócrates e Platão, para não falar dos

antecedentes, Aristóteles é de uma atualidade chocante. E, sendo assim, começamos a

entender porque não existiu um aristotelismo no mundo grego. A filosofia aristotélica

tinha propostas que estavam muito além e muito acima das exigências momentâneas

da mente grega. Por isto mesmo, embora o Liceu Aristotélico tenha continuado a

Pensamento e Atualidade de Aristóteles

60

existir, o aristotelismo desaparece de dentro do próprio Liceu e ele só tem

propriamente um discípulo que podemos dizer que é aristotélico - Teofrasto. Este é

apenas doze anos mais novo que Aristóteles, da mesma geração. Produz duas obras

importantes - uma Metafísica ( apresentação da metafísica aristotélica ) e outro livro

chamado Os Caracteres, série de perfis psicológicos de tipos, que conserva o vigor e

atualidade até hoje, principalmente através da tradução e complementação que lhe

deu La Rochefoucauld. Teofrasto é o único discípulo que captou algo de Aristóteles e

pode ser dito aristotélico.

O seguinte escoliarca do Liceu - Estratão de Lampsaco - já não é aristotélico de forma

alguma, embora imagine que o seja. Acredita estar sendo fiel ao mestre no instante

em que expõe doutrinas que são já lhe são radicalmente contráras. Estratão interpreta

Aristóteles num sentido empirista, isto é, declara que todo o conhecimento vem

exclusivamente pela experiência sensível. Mas Aristóteles não é nem empirista nem

racionalista, e acho mesmo que ele não veria nenhum sentido nesta oposição.

Segundo ele, o inteligível não está separado da realidade empírica, oculto num céu

onde só possa ser alcançado pela razão pura; está antes imbricado no tecido mesmo

da experiência, de onde é preciso desembrulhá-lo pelos esforços conjugados da análise

metafísica e da pesquisa experimental. A experiência, para Aristóteles, não é

concebível fora dos quadros lógicos que, por sua vez, se fundam na intuição intelectual

dos primeiros princípios, os quais não poderiam ser obtidos da experiência ( por mera

indução quantitativa ) mas também não poderiam chegar ao nosso conhecimento sem

ela. Estratão esmaga logo toda esta sutil combinação, reduzindo a filosofia de

Aristóteles a um empirismo, um erro tremendo que, quase dois mil anos mais tarde,

será causa de outro erro complementar e oposto, que é o de tomar Aristóteles por um

racionalista hostil à investigação experimental. ( Não há filósofo em torno do qual se

tenham acumulado tantas imagens equivocadas, e é por isto que, neste curso, adoto

esta abordagem indireta, de ir cercando Aristóteles através dos Aristóteles imaginários

concebidos pelos que o comentaram, defenderam e atacaram. )

Assim o aristotelismo vai desaparecendo. Mesmo a edição dos textos de Aristóteles no

século I a.C. (272 anos depois de sua morte), não suscita o nascimento de nenhuma

escola aristotélica. Enquanto isto, a Academia platônica continua existindo e continua

produzindo grandes nomes. As obras de Aristóteles passam a ser lidas por membros da

Academia platônica e os primeiros grandes comentaristas de Aristóteles na

Antiguidade -- Alexandre de Afrodísia, Porfírio e Siriano - são todos neoplatônicos, não

são aristotélicos.

Desde o último aristotélico - Teofrasto ( 372 a.C. ) até o primeiro aristotélico em

sentido pleno que surge na história - Avicena ( 980 d.C. ), no mundo islâmico -

passaram-se 1.400 anos! Este fato não tem sido enfatizado e sublinhado como o estou

fazendo neste momento. Não existiu nenhum aristotelismo no mundo, depois da

Olavo de Carvalho

61

morte de Aristóteles, até decorridos 1.400 anos, a duração de uma civilização. Não de

um país, ou de uma escola filosófica, ou de um regime político - é a duração de uma

civilização inteira, um ciclo inteiro de transformações. O mundo islâmico, hoje, ainda

não tem 1400 anos de idade. Se se observar o que ele é hoje, comparado a seus dias

de glória, pode-se afirmar que é uma civilização já em decadência. Em 1.400 anos dá

tempo de nascer, crescer, florescer, decair e morrer uma civilização. Portanto, afirmo

taxativamente: Aristóteles não fez parte do mundo grego. Foi uma semente grega que

ficou guardada num vidrinho para florescer somente dentro do que chamamos

civilização europeia. Aristóteles é um filósofo europeu e não grego.

Isto não é estranho. Diz Goethe: "O ente que realiza perfeitamente a qualidade que

define uma espécie já não pertence a esta espécie". Já está em outro plano. Assim

como o homem cujas qualidades e virtudes realizem o que existe de melhor no ser

humano já nos aparece como sobre-humano, com algo de angélico. Como Santo

Tomás de Aquino - o "Doutor Angélico". Ou um tipo como São Francisco de Assis, com

qualidades que são humanas, mas realizadas de maneira tão integral que você vê que

de certo modo passou para uma outra espécie.

Émile Boutroux na sua pequena biografia de Aristóteles diz que este não é só um

indivíduo, mas é a consumação, a perfeição de todo o gênio da civilização grega. É

verdade isto. Mas esta perfeição, esta consumação aparecem como o fruto de uma

árvore, que já não faz mais parte dela, que vai ser destacado e vai ser a semente de

outra árvore. O fruto perfeito, por sua vez só age - e esta ação é a própria realidade -

numa outra árvore que provém dele. Este hiato de 1.400 anos entre a produção das

obras de Aristóteles e o surgimento de um aristotelismo no mundo está na própria

natureza do aristotelismo que, representando o suprassumo do legado grego, não

poderia fazerparte da civilização grega. Assim como a herança deixada por um

milionário não faz parte da fortuna dele, pois só é herança depois que ele morre. A

herança necessariamente pertence a um outro. Ora, ainda assim, esta herança não é

apropriada de repente e toda de uma vez. A Europa toma posse do pensamento

aristotélico, mas não é uma posse integral. Uma posse no sentido imobiliário, em que

se tem a escritura definitiva. A tomada de posse do aristotelismo pela civilização

ocidental é um processo que começa a partir desta época, entre os anos 1000 e 1300,

que é justamente o que chamamos período de formação do pensamento escolástico, e

que na verdade não alcançou sua plenitude até hoje.

O último grande escolástico citado na nossa lista é Duns Scot, nascido em 1266, que já

não era propriamente um escolástico. Entre sua morte e o nascimento do sujeito que

foi a grande expressão do aristotelismo renascentista - Pietro Pomponazzi - decorrem

200 anos: tempo da história inteira do Brasil como nação.

Pensamento e Atualidade de Aristóteles

62

A História

é feita

de previsões errôneas

Nosso senso do tempo tem de sofrer alguns reajustes para estudarmos a história das

idéias, onde as coisas transcorrem com uma lentidão terrível. Dizia Homero: "Os

moinhos dos deuses moem lentamente". São eles que produzem a farinha para o pão

da história humana. As decisões dos deuses são tomadas lentamente, lentamente

entram em vigor e produzem consequências que se desenrolam ao longo dos milênios.

Para acompanhá-las temos de entrar numa espécie de câmara lenta. Nosso Congresso

toma "decisões históricas" toda semana, mas é claro que esta impressão é baseada

numa imagem falsa do que seja História. Não cabe ao próprio personagem da cena

dizer qual a importância que suas ações de hoje vão ter no futuro. Estas "decisões

históricas" são todas irrelevantes. Mas Weber diz que, com os eventos que parecem

importantes no momento, costumam acontecer duas coisas - a primeira é que esses

acontecimentos se fundem na massa acinzentada do historicamente indiferente; a

segunda hipótese, é que o sentido dos eventos acaba sendo tão alterado que vira às

vezes o seu contrário. Weber também diz, em outro lugar, que a História é o conjunto

dos resultados impremeditados das nossas ações.

Os políticos que tomam decisões segundo uma interpretação simplista e esquemática

do momento, caindo no engodo da retórica, arriscam-se a que suas decisões tenham

efeitos inversos aos desejados. Quando Luiz XVI manda convocar os Estados Gerais, é

para dar um fim ao clima de insatisfação. Ou quando o Czar da Rússia liberta os

escravos, é para eliminar uma situação de insatisfação causada pela injustiça. Como

resultado, Luiz XVI é guilhotinado e o Czar morre na explosão de uma bomba. Aqueles

atos que, no entender dos personagens ( e segundo a retórica dos intelectuais do

momento ), levariam à restauração do seu poder, causam em vez disto a sua extinção.

É difícil o caso de um evento histórico que tenha efetivamente o sentido que seu

personagem desejou ver nele. Como os mil anos do Reich, que se esgotaram em doze.

Aquilo que parecia ser a culminação de um movimento nazifascista foi na verdade o

seu fim. Imaginem se os autores da Revolução, ao guilhotinarem metade da França,

soubessem que o resultado de tudo aquilo seria um império, um imperador que

restauraria tudo e criaria uma nova dinastia, que depois cairia para dar lugar à volta da

velha dinastia, e que em 1848 seria preciso fazer uma segunda revolução para morrer

um bocado de gente novamente e que só por volta de 1870 haveria paz liberdade e

prosperidade? Robespierre acreditaria nisso? Acreditaria que viria a entrar para a

História como o protótipo do tirano sanguinário, em vez de como um libertador do

povo?

O sentido do evento histórico é sutil, é melhor consultar os deuses e tentar ver as

coisas a uma distância muito grande. Para isto, precisamos ter aquela neutralidade

Olavo de Carvalho

63

compassiva que nos permita querer ver o sentido das coisas como ele realmente é e

não como o desejamos. Mas se já aderi a esta ou àquela causa, com todo o empenho,

desejo evidentemente que ela seja vencedora e isto me faz apostar nela e ver as coisas

de uma certa maneira. Não que todo militante seja um sonhador. Há muitos que são

realistas, pessimistas ou cínicos. Mas é impossível que o militante não veja a situação

em termos de vitória ou derrota da sua causa, e nem de longe imagine que outras

contradições, alheias ao tema do seu interesse, venham a decidir o curso das coisas.

Então, se imaginarmos o que os contemporâneos de Aristóteles pensava dele, veremos

que estavam todos enganados. E o próprio Aristóteles só não se enganou nisso porque

não fez a menor previsão sobre o que aconteceria com o seu pensamento. Isto é outra

coisa que nos parece assombrosa. Aristóteles não parece ter deixado para os seus

discípulos nenhuma indicação sobre o que fazer. Não deixou uma orientação que

pudesse de certo modo permitir a continuação do seu trabalho, como tinha feito

Platão. Na Academia havia uma série de valores, de critérios tão bem estabelecidos

que era só continuar como o mestre tinha começado que daria tudo certo. Mas

Aristóteles não fez nada disso. Seu testamento é meramente pessoal, como os que se

fazem hoje - o destino dos seus bens. É incrível a total despreocupação de Aristóteles

com um trabalho que não tinha sido apenas pessoal - um trabalho coletivo, com

centenas de pessoas contratadas graças a Alexandre para trazer informação para o

Liceu. Como este trabalho imenso é deixado, quando ele morre - pelo menos ao que se

sabe - sem continuidade? Explico isto em parte pelo fato de que quando Aristóteles

morreu, este trabalho, para ele, estava praticamente encerrado; nos seus dois últimos

anos de vida, ele estava no exílio e provavelmente prevendo que ia morrer, pois já

partira doente, e sem comunicação com o pessoal do Liceu em Atenas. Em segundo

lugar, ele não era um reformador do mundo. Não fazia planos para a vida alheia, que

são a principal ocupação dos reformadores do mundo. Fez o que pode, e deixou os

discípulos à vontade para fazerem o que quisessem. Em terceiro lugar, duvido que o

próprio Aristóteles tivesse uma visão muito exata da revolução que havia começado.

Não poderia, a não ser que fosse um profeta, imaginar o que ia acontecer com sua

obra: o destino mais extravagante que se possa imaginar. Primeiro vai sumir tudo,

todo mundo vai esquecer e quem ler não vai entender. Depois, tudo em torno vai

acabar; esta polis, este regime; a Grécia será dominada pelos romanos; em seguida, vai

erguer-se no mundo oriental um povo, o povo judeu, e do meio dele aparecerá um tal

de Jesus Cristo que vai fundar uma nova religião sem importância, mas que trezentos

anos depois vai dominar tudo isto; então vai aparecer algo chamado Igreja, que

reconstruirá o mundo em novas bases; depois disto, mais a Oriente ainda, vai aparecer

outro maluco, chamado Maomé, que vai trazer outra religião que dominará as Arábias

e o Iran. Por lá é que vão ser reencontrados os manuscritos gregos, que serão passados

para o árabe, depois para o latim, e isto vai cair nas mãos de um tal de Sto. Alberto

Magno, que transmitirá a coisa a seu aluno Tomás de Aquino, o qual fará um

estardalhaço a respeito - e então, finalmente, todo mundo vai ser aristotélico durante

Pensamento e Atualidade de Aristóteles

64

quatrocentos anos. Que história mirabolante! Poderia Aristóteles imaginar, mesmo de

longe, esse destino póstumo das suas obras? Isto é absolutamente impossível.

Portanto, Aristóteles não tinha a mais mínima idéia do que viria a acontecer.

Causas do desaparecimento

do aristotelismo

após a morte do mestre.

As visões iniciais que temos de um assunto às vezes determinam todo o restante das

relações que teremos com ele. Por isso achei muito importante corrigir e explicar esta

noção de Aristóteles como fenômeno grego. Pode ser grego nas suas causas, mas não

nos seus efeitos.

Na aula passada mencionei que entre outras causas desta evolução anormal do

aristotelismo, houve o fato de Aristóteles ter sido exilado em circunstâncias um pouco

suspeitas por causa de suas ligações com Alexandre, o Grande. Relações que estavam

estremecidas porque, numa crise política, Alexandre tinha mandado matar um

sobrinho de Aristóteles, motivo pelo qual, apesar da amizade, todas as relações

cessaram. Não chegaram a entrar em hostilidade mas não se procuraram mais para

evitar de ter de acertar este ponto doloroso. Apesar deste distanciamento, quando

surge uma guerra contra a Macedônia, todos os que tinham relações com o governo

macedônico tornaram-se automaticamente suspeitos e Aristóteles teve de fugir. Não

há indício do que aconteceu no Liceu em seguida, mas podemos supor que quem é

amigo de suspeito, suspeito é. Portanto, deve ter havido uma correria geral para

apagar indícios de relações com Aristóteles. Imagino que os textos dele foram-se

tornando raros exatamente por isso. A história dos textos escondidos na caverna pode

ser fictícia, mas a lenda deve ter sido inventada para explicar algo que aconteceu

efetivamente. O fato é que os manuscritos sumiram e só dois séculos e meio depois

reaparece a coleção nas mãos de Andrônico de Rodes. Mas não podemos explicar de

maneira alguma pelo sumiço dos manuscritos a ausência de um aristotelismo grego.

Primeiro porque não é possível que tenham sumido todos os manuscritos; segundo

porque o Liceu continua funcionando. Acho que havia mesmo uma incompatibilidade

da mente grega para absorver esta nova atitude intelectual, tão isenta daquele fundo

profético-religioso que o grego estava acostumado a encontrar nos seus pensadores.

Sobretudo nos séculos seguintes, a crise político-social da Grécia, inclusive com a

extinção da chamada democracia grega e sua substituição por governos ditatoriais, vai

fazendo com que os indivíduos, já não podendo participar da política, se sintam

isolados e percam o sentido de participação na história e comecem a se preocupar

cada vez mais com problemas de ordem psicológica e particular. Daí o sucesso das

novas escolas filosóficas, das chamadas neo-socráticas -- cínicos, megáricos --, dos

estóicos e sobretudo dos epicuristas, porque estes todos transferiam o eixo das

preocupações filosóficas desde as grandes questões teoréticas para problemas

Olavo de Carvalho

65

psicológicos. Tirando o estoicismo, não são propriamente escolas filosóficas, são como

se fossem terapias tentando oferecer um alívio mais ou menos fictício, postiço, para os

sofrimentos humanos, mediante disciplinas mentais. A proposta epicúrea, por

exemplo, é nitidamente de nunca pensar na realidade, mas concentrar-se na

recordação dos momentos agradáveis e só pensar neles, como se o presente não

estivesse acontecendo. Tudo isto acompanhado de uma retirada da vida civil, para

você se fechar dentro de uma espécie de ashram. O famoso "Jardim de Epicuro" é

um ashram, para onde as pessoas iam para não sair mais, e onde ficavam curtindo as

coisas simples da vida: comer, dormir, conversar com os amigos, só falar de assuntos

agradáveis e nunca tocar nos males do presente. Uma espécie de sistematização da

evasão. Como chamar a isto de filosofia? Não só o epicurismo como outras escolas

deste tipo é o que estava em demanda - era o que as pessoas queriam, pois buscavam

alívio urgentemente. Quem está em busca de alívio não está em busca do

conhecimento da realidade. O conhecimento é um encargo, uma responsabilidade a

carregar e supõe um certo equilíbrio das faculdades, que as pessoas não estavam

absolutamente em condições de oferecer. Então, o aristotelismo desaparece não só

por causa do fator material, da ausência dos textos, mas também por um fator

psicológico- histórico, que o tornava desnecessário, do ponto de vista grego, naquele

momento.

A gnoseologia

de Aristóteles é organicista

como sua cosmologia

Voltando às características básicas do pensamento aristotélico, que foram perdidas na

geração seguinte do Liceu, vemos que desta visão inicial do real como organismo e

como hierarquia, Aristóteles tira uma conclusão que é das mais importantes até hoje.

A de que se a realidade que se oferece a nós tem uma forma de existência que se

assemelha à do organismo - isto é, de ser uma unidade múltipla, vivente, temporal - o

conhecimento humano devia ser exatamente a mesma coisa. Ou seja, não somente o

ser tem esta forma orgânica de existência - a unidade de uma diversidade imersa no

tempo e num processo evolutivo --, mas o conhecimento humano também deve ser

uma unidade muito complexa de elementos diversos, coeridos sob uma forma

orgânica, e existentes no tempo através de uma sucessão de transformações.

Além do mais, tal como o organismo humano é uma coleção, uma unidade composta

de estratos hierárquicos diferenciados, o conhecimento também deve ter vários

estratos diferenciados que vão emergindo uns dos outros e que estão intrinsecamente

ligados uns aos outros, de maneira a poderem ser distinguidos, mas não separados.

Estes estratos, tal como a própria hierarquia dos seres viventes, se dispunham desde

aquilo que é mais simples e pouco coeso até aquilo que é mais complexo e mais coeso.

As formas de vida mais simples que conhecemos, as mais elementares, têm uma

Pensamento e Atualidade de Aristóteles

66

coesão muito deficiente. Por exemplo, uma ameba pode ser cortada ao meio e resiste

a esta divisão. Se você cotuca uma ameba, ela se move, tem notícia de que algo de

ruim se aproxima, e foge da agressão. Mas se você a cortar ao meio, diante do fato

consumado, cada parte vai para um lado e trata de viver separadamente. Se uma

minhoca é partida ao meio, as duas partes continuam se agitando. Têm uma forma de

unidade deficiente. Conforme os animais vão manifestando funções mais

diferenciadas, mais abrangentes e superiores, ao mesmo tempo a coesão destes

animais é maior. Se você corta um pedaço de uma planta, ela pode continuar vivendo.

O pedaço cortado pode morrer, mas o resto continua vivendo. Um animal já não pode

ser seccionado da mesma maneira. E o princípio da coesão vai-se tornando mais

firmemente uno para proporcionar uma abrangência maior das funções. Nesta escala,

onde à maior complexidade corresponde uma unidade mais coesa, o homem estava

evidentemente colocado no topo. O homem é o mais complexo e, ao mesmo tempo, o

mais coeso dos seres terrestres.Aristóteles via o processo do conhecimento

exatamente nos mesmos termos em que via esta escala dos seres viventes, da qual

mais tarde sairá, por uma aplicação óbvia de um preceito aristotélico, a teoria da

evolução. Esta, pois, se encontra pressuposta nesta escala dos seres viventes proposta

por ele. É só temporalizar -- coisa que Aristóteles também não falou, mas é uma

decorrência óbvia de sua filosofia --, e você terá aí um esboço da teoria da evolução.

Darwin reconhecia sua imensa dívida para com Aristóleles, e dizia: "Lineu e Cuvier

foram as minhas duas divindades, mas não passam de colegiais quando comparados

ao velho Aristóteles."

A esta unidade diversa da visão do real corresponde então a unidade diversa como

visão do processo cognitivo.

l. A sensação. -- O conhecimento começa para Aristóteles com as simples percepções

sensíveis. Estas são pequenas alterações que um organismo sofre devido à entrada de

uma informação que vem do exterior. Nem todos os seres têm a capacidade de

receber estas informações. Os minerais, por exemplo, não a têm. Esta capacidade já

marca a diferença entre seres mais simples e mais complexos.

2. A memória. -- Porém, diz Aristóteles, entre os seres capazes de receber informações

sensíveis, há alguns capazes de retê-las, e outros não. Por exemplo, a ameba não tem

memória, mas o mosquito já tem. Então, a memória significa a capacidade de você

repetir a mesma informação na ausência do estímulo. Ou seja, se na primeira vez o

estímulo veio de fora do organismo, da segunda vez o organismo mesmo o produz, de

maneira atenuada. Entre os animais que não têm memória e os que têm existe um

salto de complexidade e qualidade, similar àquele que existe entre os seres que não

têm percepções sensíveis e aqueles que as têm. Já temos um duplo salto: os

insensíveis e os sensíveis, e dentre estes, os que são dotados de memória.

Olavo de Carvalho

67

3. A experiência. -- Dentre os seres dotados de memória, alguns são capazes do

conhecimento por experiência. O que é isto? É um princípio de generalização em que,

de várias experiências iguais, você conclui uma regra mais ou menos comum. Vemos

que um gato tem memória. Você o vê repetir certos circuitos de ações; porém ele não

tem a mesma capacidade de aprender por experiência que tem um cachorro. Quem já

tentou ensinar aos dois, verá que no caso do gato isto é quase impossível. O gato não

consegue generalizar - fazer dos casos individuais uma regra -- com a mesma facilidade

do cachorro. E dentre os animais dotados de experiência, o que a tem em maior grau é

o homem.

Resumindo os vários saltos até agora: insensível ® sensível ® memória ® experiência.

4. A técnica. -- Porém, a experiência e o conhecimento por experiência se dão

exclusivamente dentro de um organismo individual. Eu tenho as minhas sensações,

tenho a memória e, a partir desta, concebo a minha experiência e crio uma série de

circuitos repetíveis que me permitem reagir de maneira similar em situações similares.

No entanto, o homem tem algo mais do que isto. Ele não apenas tem a experiência,

mas ele pode resumi-la e transmiti-la a quem não a teve. Isto já é o que se

chama técnica. Bismarck diz que só os imbecis aprendem com a experiência. "Eu

aprendo com a experiência alheia". Técnica é exatamente isto: um conjunto de

preceitos que permite aprender com a experiência alheia e transmiti-la a outros, sem

que você tenha de passar por ela. É obviamente isto que já caracteriza o homem.

Depois da experiência, vem então a técnica que é experiência condensada, resumida e

distribuída socialmente. O indivíduo que pode aprender pela técnica tem um salto de

velocidade e eficácia imenso em relação àquele que só tem a experiência. Com a

técnica, começa o mundo da cultura e começa o mundo propriamente humano.

5. A ciência. -- Depois da técnica, ainda há mais um salto. A técnica é apenas uma

codificação das experiências repetidas. Além disso, temos uma forma mais

condensada, mais eficiente e mais profunda de conhecimento. É o que Aristóteles

chamaepistemê, que traduzimos normalmente por "ciência". É onde não somente se

conhece e sistematiza o circuito das experiências repetíveis, mas se encontram

os princípios que fundamentam a repetição das experiências. Desde o conhecimento

pelos sentidos até a epistemê, no topo da pirâmide, existe um processo de

simplificação e coerenciação cada vez mais abrangente. Ou seja: as experiências

sensíveis são muitas, mas nos dão relativamente pouco conhecimento útil; a memória

já resume isto e repete umas quantas informações significativas; destas, a experiência

abole as repetições e conserva apenas os esquemas úteis; estes, na técnica, são

simplificados e codificados de maneira a poder ser transmitidos, o que aumenta

barbaramente a eficácia da ação humana. Finalmente, na episteme ou ciência, dois ou

três princípios científicos que sejam encontrados permitem abarcar uma multidão de

conhecimentos organizada, coesa e eficientemente. De modo que o conhecimento se

Pensamento e Atualidade de Aristóteles

68

escalona numa pirâmide cujos vários estratos são inseparáveis. Se saltar um, não tem

o seguinte. Não se pode dizer: "Este conhecimento aqui é superior, podemos

abandonar o inferior". Não - ele é superiorporque tem inferior por baixo. O tijolo de

cima cai, se você tirar o tijolo de baixo. Esta hierarquia tem um sentido orgânico

insecável.Os vários estratos são logicamente distinguíveis, mas não são realmente

separáveis.

6. A sabedoria. -- A escalada poderia parar por aí, e já teríamos dado conta da inteireza

da esfera cognitiva no homem em geral. No entanto, Aristóteles admite que o homem

ainda possa subir mais um degrau, elevando-se do conhecimento dos princípios que

estruturam o mundo da experiência ao conhecimento dos princípios universais,

princípios de todos os princípios. A isto corresponde um novo "órgão cognitivo",

onúus, "espírito", órgão da sabedoria.

Porém, Aristóteles insiste que a sabedoria é própria somente de Deus, e que para o

homem ela é antes um ideal realizado de maneira precária e parcial do que uma posse

efetiva. Por isto, ele hesitará muitas vezes ao assinalar uma denominação para a

ciência correspondente a este estrato. A denominação "metafísica" é de Andrônico de

Rodes, e embora ela seja adequada sob muitos pontos de vista, Aristóteles não usa

esse nome em parte alguma. Às vezes ele usa "filosofia primeira", às vezes "teologia",

e às vezes -- olhem que coisa significativa -- "a ciência que buscamos". Que buscamos,

precisamente, porque não a possuímos. Por isto, no esquema da escala do

conhecimento segundo Aristóteles, é justo incluir ou excluir o sexto estrato, a

sabedoria, porque ela pertence à estrutura do homem como um ideal, mas não lhe

pertence como posse efetiva.

Olavo de Carvalho

69

Pensamento e Atualidade de Aristóteles

QUARTA AULA

5 de abril de 1994

Transcrição de:

Heloísa Madeira,

João Carlos Madeira

e Kátia Torres Ribeiro.

1a parte

A intuição básica de Aristóteles é a idéia de totalidade - a esta idéia voltaremos muitas

vezes, aprofundando mais e reconstruindo tudo a partir dela, que me parece a chave

da obra.

O item que se segue - a estrutura da obra de Aristóteles segundo a tradição - nos dá a

divisão que vamos usar como ponto de partida hipotético. Não quer dizer que eu

aceite esta divisão e que ache que a organização a ser compreendida na obra de

Aristóteles seja exatamente esta. Apenas, como esta estrutura é tomada como ponto

de referência desde o começo da era cristã, vamos usá-la como ponto de partida de

nossas investigações. Esta divisão foi mencionada também de passagem na primeira

aula. Vamos aprofundá-la ao longo das aulas, e assim iremos estruturando este tema

em torno de alguns pólos de atração aos quais retornaremos de tempos em tempos. A

questão da intuição básica é um deles, a da estrutura da obra é outro.

O primeiro editor da obra de Aristóteles, que foi Andrônico de Rodes, fez um divisão

de suas obras partindo da idéia de que ela deveria acompanhar rigorosamente as

divisões que Aristóteles estabelecia no sistema das ciências, de modo que a divisão em

volumes seria um reflexo da divisão ideal ou da divisão lógica das ciências. Esta divisão

feita por Andrônico, embora muito criticada ao longo dos tempos, jamais foi alterada.

A crítica principal que se pode fazer a ela é que a divisão do sistema das ciências é

sempre do tipo ideal. Quando você estrutura o sistema das ciências, está definindo

como esta divisão deveriaser, ou seja, quais os setores da realidade que estas ciências

deveriam idealmente abordar e quais os critérios da divisão ideal. Enquanto isto, a

divisão dos textos em volumes é uma divisão real e acidental. Porque, uma vez

definido o sistema das ciências, primeiro: daí não decorre que o sujeito deva escrever

um livro sobre cada ciência que ele tenha citado na divisão; segundo: mesmo que

idealmente o indivíduo queira escrever um volume para cada ciência, não está dito

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que ele vá conseguir fazê-lo. Pode, por exemplo, morrer antes. Ou seja, divisão de

textos é uma divisão de objetos, enquanto divisão do sistema das ciências é uma

divisão de conceitos. Nem sempre uma coisa terá de acompanhar a outra. No conjunto

da história da filosofia é raro que um filósofo escreva um volume para cada ciência de

acordo com a divisão exata que ele fez dos vários assuntos. Um exemplo disto seria

Kant. Ele divide os assuntos e escreve um volume para cada um. Outro exemplo, os

escolásticos. Depois que a Escolástica foi-se consolidando - não ainda em Santo Tomás

de Aquino -, firmou-se com ela uma divisão ideal das ciências que por sua vez se

projetou numa divisão em volumes. Na obra do cardeal Mercier, por exemplo, há um

rigoroso paralelismo entre as divisões do sistema e a repartição dos volumes, mas

acho que esse paralelismo só pode se realizar perfeitamente em obras que expõem

uma filosofia velha e consagrada, não naquelas que expõem a doutrina que o filósofo

está criando naquele mesmo momento. A filosofia em estado nascente tem

geralmente uma exposição improvisada e assimétrica. O neotomismo é por isto mais

organizado, editorialmente, do que o tomismo. Se você tomar os escolásticos

menores, sobretudo os mais recentes, por exemplo, Maritain ou André Marc, verá que

eles fazem um volume de lógica, um de psicologia, um de metafísica, acompanhando a

divisão das ciências.

Nesta divisão feita por Andrônico, não fica muito claro se ele está falando de

idealidades ou de realidades, de conceitos ou de textos efetivamente existentes. O

pior de tudo é que, se só havia sobrado, com as perdas, um terço da obra aristotélica,

como este terço poderia acompanhar a divisão global do sistema das ciências? Mesmo

que Aristóteles tivesse escrito os volumes rigorosamente de acordo com as divisões do

sistema, se dois terços da sua obra foram perdidos seria muito pouco provável que

sobrasse exatamente um pouco de texto para cada divisão, sem deixar nenhuma em

branco.

A divisão de Andrônico é a seguinte: primeiro, haveria um setor consagrado ao método

de todas as ciências; é isto que Aristóteles chama de Organon, que quer dizer

"instrumento". Aí estão os modos de esquematizar o pensamento que são comuns a

todas as ciências, a todos os setores do conhecimento, os tratados de lógica, em suma,

os tratados que se referem aos discursos de modo geral. Para se orientar no mundo de

Aristóteles, há uma série de nomes que é preciso decorar, assim como nomes de ruas,

para você saber aonde está entrando.

As Categorias:

o primeiro livro da

série "Lógica"

Olavo de Carvalho

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A primeira obra do Organon chama-se "As Categorias".Categorias são as formas

básicas sob as quais a realidade chega até nós. Você percebe alguma coisa e esta coisa

que você percebe é ou um ente real - como por exemplo percebo vocês neste

momento -, ou então é uma qualidade - quando você percebe que está com calor; ou é

uma relação entre as duas coisas - quando digo que a caneta está em cima da mesa;

ou é uma ação que está sendo praticada por algum ente - o cachorro mordeu o

menino. Todas as coisas que posso perceber no mundo estão colocadas numa destas

categorias. Elas são a divisão máxima da realidade. E seriam, equivalentemente, os

vários tipos de conceitos possíveis.

Voltando à frase "o cachorro mordeu o menino"- pergunto: mas isso é real? Sim. A

ação do cachorro morder o menino é real, mas uma ação pressupõe um sujeito que a

pratique. No entanto o sujeito não pressupunha esta ação. O cachorro poderia ser

perfeitamente real sem morder menino algum. Para que ele mordesse o menino seria

preciso que ele já fosse real antes disto e que o menino também o fosse. Entendemos

assim que a realidade da ação não é do mesmo tipo que a realidade do ente, daquilo

que Aristóteles denomina substância. No entanto, ela é real e não poderíamos reduzir

a realidade da ação à do sujeito. Não basta que o cachorro exista para que ele morda.

Entendemos que a ação tem um tipo de realidade própria que não se reduz à realidade

do sujeito, embora não exista sem ela.

Estas várias modalidades de realidade é que são as categorias. Isto do ponto de vista

ontológico. Do ponto de vista lógico, dizemos que elas são as espécies de conceitos

que existem. Ou seja, conforme as várias espécies de realidade, teremos outros tantos

tipos de conceitos. As Categorias são o primeiro livro da lógica.

Os predicáveis:

definição, gênero,

propriedade e acidente

O livro trata também de uma outra distinção. Quando faço uma afirmação qualquer a

respeito de um ente, ela pode referir-se àquilo que o ente é essencialmente; a algo

que ele fez acidentalmente, ou seja, que não faz parte da definição dele; e pode

referir-se a algo que não é nem parte de sua essência, nem acidente.

Se digo: "O homem é um animal racional" - estou dando uma definição do homem.

Porém se digo: "O homem é capaz de aprender aritmética" - isto não faz parte da

definição, mas decorre dela logicamente. A isto chamamos propriedade, aquilo que é

próprio do ente. Agora, se digo: "Fulano aprendeu aritmética" isto é um acidente,

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porque não é necessário que ele aprenda aritmética de fato. Toda e qualquer sentença

que você diga a respeito de qualquer coisa vai cair numa destas modalidades.

Ou vai estar dando a definição do ser, ou vai estar dizendo um acidente ou uma

propriedade dele, ou ainda pode estar dizendo o gênero a que ele pertence. Por

exemplo: "o cachorro é um animal" não é uma definição de cachorro, nem um

acidente nem uma propriedade. Digo apenas o gênero. A definição se faz indicando o

gênero a que um ente pertence e qual a diferença que ele tem em relação aos outros

do mesmo gênero. Vocês podem testar isto com quaisquer pensamentos e quaisquer

frases. Isto continua sendo rigorosamente assim.

Esta divisão em quatro é a dos predicáveis. Por que este nome? Predicar quer dizer

atribuir alguma coisa a algum ente. Tudo o que se afirma é uma predicação, é atribuir

um predicado a um sujeito. Tudo o que se fala pode ser colocado ou na tábua das

categorias ou na tábua dos quatro predicáveis. Quanto às categorias o próprio

Aristóteles mostra dúvida quanto ao seu número. Numa lista dá sete, e outra dá oito,

em outra dez. Isto significa que esta parte da teoria não está pronta. Quanto às sete

categorias básicas não parece haver dúvida, porque ele as repete sempre. Além disso

verifiquei que este número é o mesmo em todos os sistemas de categorias conhecidas

nas outras lógicas do mundo (chinesa, hindu etc.).

Quando existe uma coincidência muito grande entre indivíduos de muitas civilizações

sem contato entre si e com milênios de distância, muito provavelmente estes

indivíduos estão captando estruturas básicas do pensamento humano ou da realidade

mesma. Então podemos fechar negócio em torno das seguintes categorias: 1-

substância, 2- quantidade, 3- qualidade, 4- relação, 5- ação, 6- paixão, 7-

espaço/tempo.

O segundo livro da série da lógica chama-se "Da Interpretação" ( Peri Hermeneias ).

Quando Dante fala: "No meio do caminho desta vida, eu me encontrei por um selva

escura, onde a correta via era perdida", classifique isto nas categorias, se puder: de

que Dante está falando? De um acidente, teoricamente. Nem todo mundo se

encontra, em determinada etapa da vida, perdido em uma selva escura. Porém, num

outro sentido,podemos dizer: isto é uma imagem de um processo essencial à vida

humana, segundo Dante. A vida humana é perder-se do caminho reto, porque vivemos

no tempo, entre os acidentes, e perdemos o sentido da nossa caminhada. E isto é um

processo essencial à vida humana. Se é essencial, como pode ser um acidente?

Vemos que antes de classificar pelos predicáveis e pelas categorias é

necessário interpretar a sentença. Conforme o sentido, a mesma sentença poderá

equivaler a uma definição, a uma propriedade, um acontecimento etc.

Não podemos identificar a sentença gramaticalmente considerada, materialmente

falada, com a proposição lógica correspondente. Por exemplo, se se trata de uma obra

Olavo de Carvalho

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poética, a mesma sentença equivale a quatro, cinco, dez proposições lógicas. A

interpretação correta da frase e de seu desdobramento nas proposições ou juízos

lógicos formais é uma operação preliminar. É por isso que a gramática não funciona

nem funcionaria jamais. Na gramática, o cachorro, por exemplo, é substantivo, mas o

azul também é substantivo, embora às vezes também seja adjetivo. Ou seja, estes

conceitos lógicos das categorias não correspondem rigorosamente aos conceitos

gramaticais que depois foram forjados com base neles. Houve alguns espertinhos, a

começar por um dos fundadores da lógica matemática - Rudolph Carnap - que dizem

que as categorias de Aristóteles são apenas uma extrapolação das categorias

gramaticais. Ele as teria tomado, dando-lhes um sentido lógico. Isto é pura ignorância,

pois ninguém havia pensado em categorias gramaticais até então, não existia

nenhuma gramática da língua grega e as primeiras especulações gramaticais dos

gregos são do século I a.C., e baseadas em Aristóteles.

Carnap pertence à escola neopositivista. Para os neopositivistas, as categorias

aristotélicas seriam apenas tipos de palavras, quando o que se deu foi o contrário: a

gramática é que surge com base na lógica de Aristóteles. Surge, e já faz uma confusão

medonha, porque evidentemente os tipos de palavras não correspondem a estes tipos

de conceitos. Porque as palavras são apenas signos que indicam sons que por sua vez

indica idéias. São representações indiretas de conceitos. A uma mesma palavra podem

corresponder três, quatro, dez conceitos diferentes. É evidente que se temos sete

tipos de conceitos, não vamos poder ter sete tipos de palavras. Assim como a um

mesmo ser correspondem incontáveis maneiras de representá-lo. Você pode ser

representado pelo seu nome, ou por uma fotografia ( num outro sentido da palavra

representar ), e ainda em outro sentido, por um procurador, ou por um objeto de sua

propriedade ( marcando um lugar etc. ). Entre o conceito e a palavra a relação é esta.

Nossos educadores, o Ministério da Educação, acham que o ensino do pensamento, o

ensinar a raciocinar - incumbe aos professores de português. Ao ensinar a redigir,

estariam ensinando a pensar. E é evidente que uma coisa nada tem a ver com a outra.

Isto é admitir que ninguém pensa nada antes da escrever a primeira palavra. Existe um

hiato de pelo menos sete anos entre aprender a pensar e aprender a escrever. E

segundo lugar, os processos que estruturam a gramática não são processos lógicos.

Uma gramática se forma por usos e acidentes. Se as pessoas decidem chamar gato de

abóbora, ao fim de umas duas ou três gerações o gato fica abóbora definitivamente.

A gramática se faz empiricamente, isto é, ao sabor de fatos reais. E esperar que ela

tenha uma estrutura lógica é como esperar que os resultados da loteria esportiva

funcionem com um rigoroso padrão lógico repetitivo. As estruturas da gramática não

são lógicas - são estruturas de sons e grafismos que são sedimentadas pelo uso, uso

este que está submetido a milhões de influências casuais. Por exemplo, antes e depois

do sujeito comprar televisão, sua linguagem não será a mesma. Se dois povos entram

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em contato mais estreito, o povo mais forte, mais antigo, mais civilizado, exercerá

sobre o outro uma influência terrível. É o que acontece hoje com a língua inglesa que

está comendo a nossa língua, não no sentido de exportar palavras, processo normal,

mas no exportar estruturas de frases: estamos falando português com estrutura de

frase inglesa. Isto é muito comum em jornais, televisão etc. Os brasileiros também

começam a dar um valor semântico diferente às suas próprias palavras, similar ao

valor semântico de palavras vagamente parecidas da língua inglesa. Isto é a estrutura

mental de um povo sendo implantada sobre outro. O resultado disto será maior ou

menor conforme o apego maior ou menor que cada população tenha aos seus

costumes linguísticos anteriores.

É uma trama estabelecida pelo desenrolar dos fatos, e então não obedece a uma regra

lógica, mas ao puro empirismo. O serviço da gramática consiste e descrever o estado

da língua e cada momento, mais ou menos como ela se encontra. E por uma decisão

de ordem estética, estabelecer certos usos como preferenciais. Mas é uma decisão

estética. Quando dizemos que tal frase ou tal outra é errada, ela é errada em função

de determinado padrão que num certo momento foi adotado, às vezes por uma

conveniência sociológica, ou política. Quando uma província é mais adiantada do que

as outras, a linguagem dela se torna padrão para que as pessoas possa entender-se,

como aconteceu na Itália, quando o dialeto da província toscana foi adotado como

língua italiana. O que chamamos língua italiana hoje é na verdade um dos dialetos, que

se tornou dominante. Então o italiano aprende em casa o seu próprio dialeto e na

escola o toscano. É um processo de unificação da língua. Isto não quer dizer que a

língua toscana seja em si melhor do que as outras. Os processos de uniformização da

língua obedece a fatores casuais. Hoje em dia no Brasil, a linguagem-padrão é a da

Rede Globo. Podemos questionar a autoridade da Rede Globo em matéria gramatical,

mas não podemos questionar o seu poder, e a gramática não é feita pela autoridade,

ela é feita pelo poder. Quem fala mais alto acaba sendo imitado.

A tentativa de estruturar a gramática segundo conceitos rigorosamente lógicos leva a

perversões. Um exemplo comum é a diferença que existe entre sujeito lógico e sujeito

gramatical. Se digo: "João matou Pedro", o sujeito é João. Agora digo: "Pedro foi morto

por João". O sujeito gramatical é Pedro, mas o sujeito lógico continua sendo João. Isto

é para verem o abismo que existe entre lógica e gramática. E também deve dar para

entender a que desastre deve levar a idéia de quem tem de ensinar a pensar é o

professor de português.

Além de levar em conta as categorias e os predicáveis, para poder aplicar estes

conceitos à classificação dos demais conceitos, é necessário que a frase seja

interpretada e que da sentença gramatical considerada nós retiremos os juízos ou

proposições formais. Se pegamos esta primeira sentença daDivina Comédia, ela é uma

sentença só, mas poderá ter um ou mais sentidos que constituirão as suas proposições

Olavo de Carvalho

75

formais, que estão materialmente todas na mesma frase. Jamais confundir a sentença

real com as proposições formais. A sentença pode ser ambígua, ter dois sentidos, duas

proposições formais. É disto que trata o livro da interpretação.

A frase de Dante, conforme seja interpretada como acidental ou própria do destino

humano, já tem duas proposições formais que teriam de ser analisadas

separadamente. É próprio da linguagem poética corresponder a várias proposições

formais possíveis e é por isso mesmo que ela é sintética. Se desmembrássemos, para

cada sentença, uma proposição formal, teríamos uma linguagem logicalizada. Ora,

nem a língua corrente do dia-a-dia. nem a língua literária, nem a de comunicação

social ou jornalística ou da televisão - nada disto é linguagem logicalizada. Tudo isto é

linguagem ambígua.

A diferença da linguagem poética é que ela é um tratamento técnico dado a esta

linguagem ambígua. O poeta é ambíguo porque quer, porque quer fazer sentenças que

contenham o máximo de proposições formais possíveis. O máximo de sentidos no

mínimo de palavras - isto é a poesia. A linguagem do dia-a-dia não é ambígua por

escolha; ela não consegue ser outra coisa. O poeta é ambíguo por suficiência, e nós por

deficiência - mas há ambiguidade nos dois casos.

A terceira obra de lógica seria os "Tópicos", que tratam da ciência da dialética, que

leva este nome por tratar da confrontação de dois discursos simultâneos (dois ou

mais). Segundo Aristóteles, a dialética é a arte de raciocinar onde não temos premissas

firmes, ou seja, onde não conhecemos os princípios do assunto. Aí não temos base

para raciocinar sobre os casos particulares. Imagine que você é Charles Darwin

estudando a evolução animal. Você encontra o esqueleto de um determinado bicho e

quer referi-lo a uma evolução. Você vai ter primeiro de situa-lo num certo momento,

depois da espécie que o antecedeu e antes da que o sucedeu. Para isto você precisa

ter a noção pronta da escala. Se você não tem a escala pronta ao menos como

hipótese, não pode situar o bicho. É evidente que Charles Darwin não encontrou a

doutrina da evolução pronta. Ele encontrava fatos biológicos, mas na hora de

compreendê-los, lhe faltavam os princípios explicativos e mesmo os princípios

classificatórios pelos quais pudesse situar cada fato. Então, como raciocinar? Tinha de

fazer várias hipóteses. Por exemplo, você faz duas hipóteses a respeito do mesmo fato

- encontra um determinado bicho e diz: "Isto aqui parece ser parente da lagartixa, mas

por outro lado parece ser parente do hipopótamo". É difícil ter acontecido isto a

qualquer esqueleto real, mas suponhamos que você tivesse estas duas hipóteses.

Quando Darwin associou o elefante ao cavalo, como o fez? À luz das aparências, não

seria mais lógico procurar um parentesco com o rinoceronte, com alguma coisa mais

parecida fisicamente? Por que ele achou o parentesco com o cavalo? Porque não usou

o critério de aparência macroscópica, mas o da conformação dos ossos. Talvez, se

tivesse encontrado outro critério, teria feito outras associações. Pela estrutura dos

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ossos, viu que se tratava de espécies contíguas ou parentes. Para cada um destes

casos, ele tinha várias hipóteses possíveis. Ora, duas hipóteses contrárias se sustentam

em duas séries contrárias de razões. Há argumentos a favor desta, que formam uma

linha de raciocínio, e argumentos em favor daquela, que formam outra linha de

raciocínio. Esta comparação é que se chama dialética. Quando você não tem princípios

para explicar o caso determinado que você está averiguando, só lhe resta procurar

estes princípios. E como encontrá-los? Seguindo as várias linhas de hipóteses

contrárias, ao mesmo tempo. Não pode ser uma depois da outra. Porque cada

hipótese é validada pelo confronto com a sua contrária. Entre duas hipóteses, uma

parece mais válida. Então a que sobrou você compara com uma terceira e assim por

diante. Por isso se chama dialética, porque é sempre uma operação dupla.

A arte da dialética serve, segundo Aristóteles, para três coisas:

1) Para investigações nas quais não existam ainda princípios científicos assentados.

2) Para o treinamento da mente. A dialética servirá ao longo de mais de mil anos como

a prática escolar central do aprendizado de filosofia. Porque é pela dialética que

aprendemos a confrontar as diversas possibilidades e deixar que elas se desenvolvam

até que uma delas saia vencendo.

A importância escolar disto é incalculável. Se houvesse um treino dialético hoje em dia,

a maior parte das idéias que estão em curso público desapareceriam, porque não

suportam o mais leve exame dialético. Sustentam-se exclusivamente em argumentos

retóricos. A argumentação retórica é baseada na verossimilhança, na impressão de

veracidade. Quando discutimos retoricamente, temos uma crença e produzimos

verossimilhança para sustentar esta crença. Produzimos exemplos em profusão.

O exemplo é o tipo mais característico de argumento retórico. Exemplo não prova

nada, mas dá verossimilhança; faz parecer verídico, dá vida ao assunto. Quando

argumentamos mediante exemplos, estamos tentando tornar nosso raciocínio

verossímil para quem nos ouve, tentando fazê-lo ver as coisas como as vemos. Se

soubermos produzir exemplos vívidos, interessantes, o sujeito acaba vendo as coisas

como queremos. Mas isto só serve para persuadi-lo, não serve para testar a veracidade

do argumento. Então, como já foi explicado, a dialética serve para fazer uma triagem

dos argumentos retóricos. Você confronta os vários "prós" e "contras" e desenvolve

cada um de acordo com a melhor argumentação lógica possível, dando igual chance a

todos os argumentos, para ver qual deles fica de pé no fim. Ou seja, na dialética você

faz uma arbitragem, não toma partido. O argumento retórico é um advogado

defendendo uma causa. O dialético é um juiz julgando a causa. Se houvesse este

treinamento nas escolas de filosofia, política, ciências sociais etc, 99% das crenças

iriam embora, porque elas não suportam o exame dialético. Nele devemos conferir

igual chance aos dois argumentos. Se isto não é possível, entendemos também que

não é possível uma decisão correta do assunto e que esta irá para o lado volitivo ou

Olavo de Carvalho

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irracional. Se isto fosse levado em consideração não teríamos discussões como o

confronto entre o capitalismo e o socialismo. O homem que defende o capitalismo,

refere-se ao capitalismo como existe historicamente. O que defende o socialismo não

se refere a nenhum socialismo histórico, que tenha acontecido em algum lugar, mas a

um vago ideal futuro. Ora, o capitalismo também tem ideais - mas a discussão retórica

compara os ideais de um com a realidade de outro, em vez de comparar ideais com

ideais, realidades com realidades. Então é evidente que esta questão não pode ser

resolvida. Se você compara os ideais de um com as realidades do outro, a discussão

está viciada. Se você compara as suas qualidades com os meus defeitos, você sai

ganhando automaticamente. Por outro lado, os defensores do socialismo - todos, sem

exceção - hoje em dia já não podem fazer assim, porque temos uma experiência

socialista de cem anos no mundo. Mas dizem que não é representativo, porque não

corresponde ao seu ideal... Isto é o mesmo que julgar um indivíduo levando em conta

somente os atos que correspondem aos seus ideais, e considerando como falsos todos

aqueles que estão abaixo do ideal. Vejo que um sujeito é um bêbado, ms como tem o

ideal de deixar de beber, tenho de apagar a realidade da sua bebedeira, e encará-lo

como se ele não bebesse. Isto é o tipo da discussão viciada. Tenho um belíssimo livro

que se chama Ideals and Realities of Islam, escrito por um homem por quem tenho o

máximo respeito, Seyed Hossein Nasr, onde ele confronta civilizações tradicionais,

particularmente a islâmica, com a moderna sociedade industrial, e chega à conclusão

que a sociedade industrial é um horror e que as civilizações tradicionais é que são

bonitas. Só que ele faz isto: compara os ideais islâmicos com as realidades do

Ocidente, e nunca o contrário. O que é representativo do ocidente? A crise ecológica,

esta sujeira toda, a alienação do trabalho. O que é característico do Islã? Os ideais

maravilhosos que estão no Corão. Esta comparação não é possível, está viciada. Teria

de comparar bens com bens e males com males; ideais com ideais e realidades com

realidades.

Isto é uma regra dialética elementar. Quando você faz isto, é obrigado a engolir muitas

coisas que retoricamente não desejaria. Toda esta revisão de ideais socialistas que

existe hoje começou com a queda do muro de Berlim - ex post facto. Também fui

socialista aos 20 anos, mas mudei sozinho muito antes que caísse o muro - por exame,

confrontando. Levou quinze anos este processo; eu sei o trabalho que me deu. E as

pessoas hoje mudam do dia para a noite, com a maior facilidade. Isto indica que não

querem chegar a uma conclusão real. A solução não é fácil, do tipo pró ou contra. A

dialética tem, então, entre outros usos, esta utilidade de formar a mente para o exame

objetivo das questões.

3) A terceira utilidade assinalada por Aristóteles é a utilidade científica. Quando você

está discutindo um assunto cujos princípios você desconhece, tem de remontar das

questões até os princípios. Como se faz isto? Pela discussão dialética. O confronto

crítico das várias possibilidades acaba fechando as alternativas até que num certo

Pensamento e Atualidade de Aristóteles

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momento você tem uma espécie de intelecção ou intuição dos princípios que

governam aquele assunto. Pode ser uma falsa intuição. Porém é claro que onde você

não conhece os princípios, não tem as premissas, você não pode fazer um raciocínio

inteiramente lógico. Vai partir do que? Todo raciocínio lógico parte de uma premissa.

Se não tem premissa você tem de fazer uma espécie de raciocínio lógico ao contrário,

das consequências para as premissas possíveis - sem esquecer que as mesmas

consequências podem derivar de vinte premissas diferentes e até contrárias. Então os

processos de exame dialético podem ser infinitamente complicados e estão todos

descritos com bastante sutileza não só no livro dosTópicos mas também em todos os

tratados de dialética que depois foram escritos, desde então até a Idade Média e

depois. Este é um material pelo qual a maior parte dos filósofos modernos não tem o

menor interesse.

Vimos então os três usos da dialética:

1º) Para discussões onde você pretende alcançar um resultado meramente provável

(uma retórica aperfeiçoada).

2º) Para utilização escolar - treinamento da mente.

3º) Uso científico - princípio de investigação científica. Guardem isto porque mais tarde

é a esta sentença de Aristóteles, de que "a dialética é o meio de encontrar os

princípios" que vamos recorrer para propor uma remontagem da nossa visão do

sistema aristotélico, onde se coloca a dialética como a ciência principal.

As Analíticas

e a teoria

do silogismo

Depois do livro dos Tópicos, vêm dois livros que se chamam asAnalíticas e tratam do

raciocínio lógico - o sistema dos silogismos. Silogismo é uma sequência de três

proposições, onde das duas primeiras decorre necessariamente a terceira. Existem

várias maneiras de montar um silogismo, algumas válidas, outras não. Aristóteles

distingue 64 caminhos pelos quais o raciocínio silogístico pode chegar a uma

conclusão. As premissas, por sua vez, segundo ele se dividem em dois tipos: universais

ou gerais e particulares. Universais são as que se referem a toda uma espécie de

seres; particulares, as que se referem a um em particular.

No famoso exemplo - Todo homem é mortal, Sócrates é homem, logo Sócrates é

mortal - a primeira premissa é universal ( Todo homem... ) e a segunda particular.

Conforme o jogo de premissas universais e particulares, você terá conclusões que

Olavo de Carvalho

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serão válidas para um indivíduo em particular ou para vários. No exemplo citado a

conclusão se refere especificamente a Sócrates - a um indivíduo em particular e não a

todos. Seguindo o jogo de premissas universais e particulares, temos um ciclo de 64

etapas possíveis - exatamente a estrutura do I Ching. O conceito de universal-

particular em grande parte coincide com o conceito de Yang-Yin, respectivamente.

Se você pegar os silogismos válidos e os inválidos e fizer um raciocínio completo, terá

64 etapas, das quais somente dezoito são efetivas, probantes, as outras não. Por

exemplo: Algum homem é careca, Sócrates é um homem. Posso concluir queSócrates é

careca? Não. Mas posso fazer o silogismo. Tem uma estrutura silogística, porém não é

válido. Se você pegar cada etapa do raciocínio, pode tomar como nova premissa uma

conclusão para um segundo raciocínio, desde que a some com uma outra premissa.

A = Premissa universal D = Nova sentença (

premissa universal ou

particular )

B = Premissa particular E = Conclusão.

C = Conclusão particular,

premissa ( particular ) do

novo silogismo

Rodando com todas as combinações possíveis, você verá que algumas são válidas,

outras não. E a totalidade destes arranjos dá 64.

A combinação é entre as palavras todos e algum; conformetodos ou algum estejam na

1ª, ou na 2ª premissa ou na conclusão, você terá 64 combinações.

Existe uma clara analogia aí, porque o yang evidentemente se refere sempre ao

universal e o yin ao particular, -- o grande e o pequeno. Isto é bastante claro. O yin é

Pensamento e Atualidade de Aristóteles

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um princípio de particularização, de segmentação, por isso mesmo é representado por

um traço dividido ( — — ). A divisão, a distinção entre os seres é um princípio yin; a

unidade do universo é um princípio yang. É o contrário do que diz o Fithjof Capra. Para

ele, o yang representa a razão que é analítica e divide, e o yin representa a intuição

que unifica. Mas se é assim, por que o chinês representou o yang com um traço

contínuo ( —— ) e o yin com um traço dividido ( — — )? É porque o chinês não tinha

lido o Capra...

Como se divide o I Ching? Não é um jogo de 3 e 2? Aqui também temos um jogo de 3 e

2. São três sentenças e duas possibilidades ( todos e algum - universal e particular). Se

você tiver paciência, vai combinando e vai chegar nos 64. A silogística é um jogo

exclusivamente matemático. Na verdade, um joguinho para crianças. É algo que

qualquer pessoa aprende com a maior facilidade, é algo totalmente mecanizado, que é

possível ensinar a um computador mediante um circuito em que você tem um jogo de

2 e 3 igualzinho.

Isto seria a Analítica. Aristóteles nunca usou a palavra "lógica", que será mais tarde

inventada pelos estóicos. Ele chama-aAnalítica ou ciência demonstrativa. Esta é a

ciência que, partindo de uma premissa admitida como certa, chegará a um resultado

que terá de ser admitido como certo, queiram ou não queiram, exatamente como na

aritmética elementar. Se você tem a premissa certa, chegar à conclusão certa é mera

questão de ajeitar formalmente o raciocínio correto. Um computador faz isto. Dada a

premissa, se você der a conclusão errada, ele corrige, porque é mero ajuste formal.

Este é o raciocínio mais certo que existe, uma vez que você tenha a premissa certa. O

problema é este: onde encontrar as premissas? Se tudo fosse uma questão de

raciocinar logicamente, já estava tudo resolvido há muito tempo. Porém, é claro que a

lógica não pode encontrar premissas, e sem premissas nada se pode fazer. Para

encontrar a premissa certa, é preciso partir de um grande número delas - meramente

prováveis, premissas hipotéticas. Portanto, a coisa decisiva passa a ser a dialética

2a parte

O mito da lógica

nas interpretações

de Aristóteles

É à luz desta observação que vamos ver que parece ter havido um enorme equívoco na

interpretação de Aristóteles ao longo de muitos séculos. Porque sempre se considerou

que a dialética, sendo uma ciência do raciocínio meramente provável, seria inferior à

lógica, que tem exatidão matemática. E que, portanto, quando Aristóteles criou a

Olavo de Carvalho

81

lógica, superou e abandonou a dialética. Existe um grande historiador da filosofia

grega - Solmsen - que é um dos grandes responsáveis pela consolidação desta

interpretação. Segundo ele, a analítica anula a tópica (dialética). Como numa evolução,

Aristóteles teria vindo por um caminho e chegado a um fim - primeiro foi professor de

retórica; depois, desenvolveu a dialética, e finalmente se dedicou à lógica. Solmsen

partiu também da premissa de que a ordem temporal deve representar uma ordem

hierárquica. Aristóteles teria concedido atenção, no fim, à coisa mais importante, num

sentido evolutivo. Ao que há uma objeção feita por um dos grandes intérpretes de

Aristóteles, que é Éric Weil. Este escreveu pouco - não chegou a dez livros. Era um

judeu alemão que quando viu o avanço do nazismo, fugiu da Alemanha para a França,

adotou a língua francesa e nunca mais escreveu uma única palavra em alemão. Para o

meu gosto, é o maior filósofo francês do século. Éric Weil faz uma observação mortal.

Diz ele: "Se a lógica é tão mais importante que a dialética, por que Aristóteles nunca

fez uma demonstração lógica de nenhuma tese?" Nenhum livro de Aristóteles é escrito

logicamente, todos dialeticamente. Se Aristóteles descobriu uma coisa tão importante

assim, por que nunca a usou? Depois de ter descoberto a técnica mais perfeita, por

que continua usando a imperfeita até morrer?

Um exemplo de demonstração lógica se encontra na Ética de Spinoza - assenta as

premissas e vai tirando conclusões, como numa demonstração matemática. Outro é o

livro de Wittgenstein. Tractatus Logico- Philosophicus - coloca as premissas, axiomas, e

continua em linha reta a dedução lógica. Aristóteles nunca faz isto, em momento

algum. Ora, tendo descoberto uma técnica mais profunda, mais exata que a anterior,

como iria ele resistir à tentação de usar a nova? Hoje em dia, qualquer garoto que

aprenda um programa de computador mais sofisticado que o anterior, vai logo testar o

novo. E Aristóteles nunca usou a nova técnica em nenhum dos textos conhecidos.

Acontece, que dos textos conhecidos, acredita-se que temos - neste um terço que

sobrou de sua obra - aproximadamente setenta por cento das obras filosóficas

importantes de Aristóteles. Existem sérias razões filológicas para crer que, das obras

filosoficamente decisivas, sobrou quase tudo. Pode ter faltado uma coisinha ou outra.

De tudo o que se encontrou de Aristóteles depois de Andrônico, nada se achou que

pudesse mudar gravemente as bases conhecidas do sistema aristotélico. Até no século

passado se encontrou um novo texto. Uma obra conhecida como "A constituição de

Atenas", hoje incluída nas obras completas. Isto foi achado em 1890. É importante

porque é de Aristóteles; mas trata só da constituição de Atenas, não é nada decisivo

filosoficamente. Claro que se você achar uma receita de cozinha assinada "Aristóteles",

é um documento histórico, mas não vai abalar a interpretação do sistema.

Historicamente importante é uma coisa, filosoficamente importante é outra. Não riam

quando falo de receitas de cozinha, porque Aristóteles escreveu até um "Tratado de

Economia Doméstica" - não há assunto que esteja para ele fora do mundo do

conhecimento.

Pensamento e Atualidade de Aristóteles

82

Então, os livros de lógica abarcaram as categorias, a interpretação, os tópicos, as duas

analíticas. Existe um outro livrinho que se chama Das Refutações Sofísticas, que pode

ser considerado ou como livro independente ou como capítulo final dos Tópicos. É

mais fácil incluí-lo aí - menos um nome para decorar. É uma aplicação dos critérios

dialéticos à refutação de determinadas argumentações sofísticas - ou erísticas. Erístico

é um argumento que você lança para fins de combate. Não é argumento sério, a ele

você recorre no calor da polêmica, só para criar dificuldades para o adversário. Uma

discussão política na maior parte dos casos não chega a ser retórica, é apenas erística.

As obras teoréticas:

Física

e Metafísica

Depois das obras lógicas, vem a série das ciências teoréticas (aquelas cuja finalidade é

tratar do real e dizer alguma coisa a seu respeito). A obra teorética esgota sua

finalidade quando consegue pronunciar uma proposição ou juízo no sentido de que

algo é alguma coisa ou é outra coisa. Responde à pergunta "o que é?" A lógica não

pode responder a esta pergunta de jeito nenhum. Ela não trata de nada, não tem

assunto. Mostra apenas os esquemas de pensamento possíveis. A série das obras

lógicas pega o conjunto de tipos esquemáticos de raciocínios que fazemos sobre a

realidade e os considera independentemente da realidade a respeito da qual eles

versam. Portanto, a lógica só existe como ciência distinta por uma distinção mental,

não real.

Vamos pegar uma ciência real qualquer - a física, por exemplo. Física para Aristóteles é

a ciência da natureza e trata de algo real - o cosmos existente, que chega a nós através

dos sentidos. Em seguida, você vê como raciocinamos - ou deveríamos raciocinar - a

respeito da natureza, e isola o raciocínio de seu assunto. Ora, este isolamento só é

feito por um truque mental, não real. Portanto, a lógica não tem um objeto real, tem

apenas um objeto formal, definido idealmente. E isto é que a diferencia da ciência

teorética. Ela não é uma ciência teorética porquetheoréin quer dizer olhar,

contemplar. A lógica não tem um objeto para o qual possa olhar. Seu objeto é

totalmente inventado. A separação entre o raciocínio e seu conteúdo é, por sua vez,

uma distinção simplesmente lógica, não uma distinção real.

Seguem-se os tratados de física. Tal como Aristóteles e o mundo grego a entendem, a

física é o mundo dos fenômenos - o mundo que se apresenta diante de nós,

considerado na sua totalidade. O sentido moderno da palavra "física" é muito mais

restrito. Aquilo que hoje chamaríamos de biologia, e também a química se tivesse

ocorrido uma química a Aristóteles, entrariam nos tratados de física. A física se divide

Olavo de Carvalho

83

basicamente em duas partes: primeiro, aquilo que se refere aos processos cósmicos;

segundo, o que se refere aos seres vivos. Mais tarde, receberam os nomes de

cosmologia e biologia, respectivamente.

A biologia, por sua vez, não se destaca do que hoje chamamos psicologia. Aristóteles

jamais conceberia um estudo da psique que não tivesse uma raiz no corpo vivente. A

alma é para ele como se fosse um aperfeiçoamento, um escalão superior da vida e não

um fenômeno distinto. Vamos ver que esta inseparabilidade dos fenômenos psíquicos

e orgânicos é uma das intuições centrais de Aristóteles, e que o tornará um filósofo

particularmente apto a ser aceito no mundo cristão, porque o cristianismo é a religião

da encarnação, da união inseparável entre alma e corpo.

Em seguida, deveriam vir os objetos matemáticos. E aí vemos que a divisão das

ciências feita por Andrônico não coincide inteiramente com a divisão dos textos.

Aristóteles não escreveu uma linha sobre matemática. E na divisão das ciências, a

ordem seria esta: em primeiro lugar, os objetos físicos; em segundo, os matemáticos;

em terceiro, a metafísica.

Aqui precisamos fazer um parêntese no seguinte sentido: quando dizemos que um

objeto é um "objeto da natureza", nós o estamos distinguindo de outros objetos

possíveis. Entendemos que um triângulo não existe na natureza. E também

entendemos que um tatu não existe matematicamente. Porém, a diferença entre o

triângulo e o tatu é uma diferença de plano ou modo de existência. Porque na verdade

os dois são existentes, os dois são reais. Mas estes objetos - o tatu e o triângulo - do

ponto de vista de Aristóteles, são ambos abstratos, embora sejam reais. Abstratos

porque o geométrico e o biológico são aspectos da realidade; aspectos que, na

verdade, coexistem, mas que nós separamos por maior facilidade de examiná-los.

Quando dizemos que 2 + 2 = 4, isto é um fato bruto, ao qual porém só chegamos

através de raciocínio. Mas também entendemos que não fomos nós que fizemos dar 4,

entendemos que este resultado nos é imposto pela estrutura mesma dos números.

Entendemos que as propriedades das figuras geométricas também nos são impostas.

Entendemos que se dividirmos um quadrado pela diagonal, vamos encontrar dois

triângulos isósceles e quantas vezes fizermos esta operação, encontraremos o mesmo

resultado. Isto nos é imposto de maneira dura e implacável. Esta resistência, esta

consistência própria dos objetos matemáticos faz com que não somente Aristóteles,

mas os gregos em geral os considerem reais. No entanto, o tipo de realidade deles não

é o mesmo que tem um tatu. O tatu pode ser visto - ele nos é imposto aos sentidos. A

divisão do quadrado em dois triângulos isósceles não nos é imposta aos sentidos, mas

tão logo raciocinamos, percebemos que isto não é montado por nós, mas também nos

é imposto. As duas coisas são reais. Triângulos, quadrados, números e suas

propriedades - existem efetivamente, são relações perfeitamente reais. Tatus e

elefantes também são reais. Se decidimos separar uns dos outros, é porque, além de

Pensamento e Atualidade de Aristóteles

84

sabermos que são reais, introduzimos uma divisão na realidade, de acordo com um

interesse que é nosso. Decidimos encarar alguns como fenômenos naturais, e outros

como não naturais. Ou seja, o tatu e o triângulo se distinguem não pela sua realidade,

mas por uma segunda qualidade que abre esta divisão no "natural" e no "não natural".

É por isso que Aristóteles os considera abstratos. Só são percebidos como distintos

mediante uma abstração mental que separa o natural do não natural, embora ambos

sejam igualmente reais.

O que é mais real? 2 + 2 = 4, isto é real. Não, você diz, real é o tatu que eu vejo com os

olhos. Mas o tatu antes de nascer não existia e quando morrer não vai existir mais.

Então ele é menos real que os números. O que eles são não diz respeito à sua maior ou

menor realidade. Ambos são reais. Só que o sentido da palavra realidade, aí, se divide.

Um é real de um jeito, outro de outro. Mas na realidade eles não são distintos, não

podemos graduar a realidade em função deles. Representam distinçõesdentro da

mesma realidade.

Ora, somente a realidade como tal e independentemente das suas distinções é que

pode ser considerada concreta e real objetivamente. E isto é que é o conceito de

Aristóteles do ser enquanto ser, a realidade enquanto tal. Para entender mais

claramente isto, você pode imaginar o "tatu voador". Ele não faz parte da realidade. E

a conta 2 + 2 = 5 também não faz parte da realidade. Mas também entendemos que é

mais fácil haver um tatu voador do que 2 + 2 dar 5. Se a evolução animal tivesse

tomado um outro rumo, poderia haver um tatu voador, ou talvez o tatu pudesse falar

sânscrito - nada impede. A impossibilidade do tatu voador é relativa e condicionada a

determinadas condições do universo físico. Num outro planeta pode ser que existam

tatus voadores, ou tatus filólogos. No filme "Guerra nas Estrelas" há um tatu filósofo -

o guru do Luke Skywalker. Estas coisas não são inconcebíveis. Mas é inconcebível que 2

+ 2 dêem 5. O tatu filólogo ou o tatu voador são idéias com as quais os nossos sentidos

se revoltam. Mas somente os sentidos - a inteligência não. Ela admite esta hipótese,

embora como remotíssima. Agora, existe a hipótese remotíssima de que 2 + 2 dê 5?

Existe a hipótese de que em algum outro planeta 2 + 2 possam dar 5? Existe a hipótese

de que em outro universo 2 + 2 dê 5? É inconcebível e seria auto-contraditório. Então

você entende que há gradações de impossibilidade. O estudo do real só se esclarece

quando se confronta o real com o irreal, e você vê estas distintas gradações de

irrealidade. Este estudo faz parte de alguma ciência? Não, nenhuma ciência pode

estudar isto, porque toda ciência já subentende estas distinções. Então Aristóteles se

viu na contingência de ter de inventar outra ciência. Todas as ciências se fundavam em

distinções deste tipo - real, irreal, possível, contingente, necessário. Todas elas se

baseavam nisto e estas distinções não eram estudadas por ciência alguma. Este estudo

das condições que definem o real, que o delimitam, que o separam do irreal, e

também o possível do impossível, é o que se chama ontologia ou metafísica,

ou filosofia primeira, ou como Aristóteles também a chamava, teologia. Por um

Olavo de Carvalho

85

curioso paradoxo, somente o objeto da metafísica é perfeitamente concreto, pois o

real como tal não pode ser abstrato. Neste sentido é que triângulos e tatus são

abstratos, em face da realidade como tal, do ser como tal.

As ciências

práticas

e técnicas

Em seguida vinham as ciências práticas que dizem respeito à ação humana, ou mais

genericamente, à conduta humana, que Aristóteles dividia em duas partes: conduta do

indivíduo enquanto tal e a conduta dele enquanto membro de uma sociedade em

particular. Esta a distinção entre a ética (ou moral) e a política. Entre as ciências

práticas Aristóteles inclui a economia, seja doméstica, seja política: a economia do

cidadão e a da polis.

E finalmente as ciências que chamaríamos artísticas ou técnicas ou poéticas

ou poiêticas. Estas estudam, não a conduta humana, mas o meio de produzir alguma

coisa, algum objeto. Para entender a diferença entre ciências práticas e ciências

poiêticas, é preciso entender a diferença entre ação imanente e ação transitiva. A

primeira é a que esgota sua finalidade no próprio sujeito que faz a ação; a segunda, a

que se define pelo resultado que ela produz num objeto. Por exemplo, respirar é típica

ação imanente, quem respira é você mesmo e quem sofre o efeito da respiração é

você mesmo. Pintar é uma ação transitiva. Se a pintura se esgotasse no gesto do

pintor, independentemente do quadro, não a poderíamos chamar pintura de maneira

alguma. Toda produção, todas as artes produtivas, pertencem à ação transitiva.

Nesta última divisão, Andrônico colocou a Poética, que ensina a fazer obras literárias e

a Retórica, que ensina a fazer discursos para o foro, os tribunais, as assembléias

populares. O discurso, peça escrita, é um objeto, embora um pouco abstrato. Ao passo

que a conduta pessoal ou política não é uma coisa, mas uma ação. As ciências práticas

visam à ação humana e as ciências poéticas visam ao objeto da produção humana. Esta

divisão das obras está rigorosamente de acordo com a divisão das ciências feita por

Aristóteles, com um senão que é aquele das matemáticas. Falta um tratado

consagrado às matemáticas - coisa que Aristóteles não fez em parte por ojeriza

pessoal: ele devia estar farto de vinte anos de estudos matemáticos na Academia. Na

Academia só se falava em matemática, e o que irritava muito a Aristóteles era a

tendência platônica de tirar conclusões filosóficas direto da matemática. As pessoas na

Academia achavam que triângulos existiam como tatus... Aristóteles tem uma mente

muito concretista, orgânica. A materialização de conceitos abstratos é muito irritante

para ele.

Pensamento e Atualidade de Aristóteles

86

Introdução

ao texto

de Tertuliano

A propósito do texto que vamos ler na próxima aula: Tertuliano é um dos apologetas

cristãos. Temos aqui mais uma imagem do que pensaram sobre Aristóteles. O ano é

213. O texto está no livro de Tertuliano, De Anima. Não fala de Aristóteles em parte

alguma. Dificilmente encontraremos alguma menção exclusiva a Aristóteles em todos

os primeiros padres apologistas cristãos. Não houve uma discussão com Aristóteles,

houve com a Academia platônica, o que incluía Aristóteles. Nos escritos dos

apologetas, praticamente todos os filósofos eram englobados neste conceito, com

exceção dos que pertencessem declaradamente a uma escola adversária. Como este

não é o caso de Aristóteles, ele fica englobado dentro da Academia. E o curioso é que

as objeções lançadas por Tertuliano contra a Academia são objeções aristotélicas, que

Aristóteles poderia subscrever em gênero, número e grau. O texto é do ano 200 -

seiscentos anos depois de Aristóteles e 263 anos após a edição dos textos por

Andrônico. E o autor do texto, discutindo com a Academia e lançando contra ela

objeções de conteúdo aristotélico, não tem disto a menor suspeita e imagina estar

discutindo com a Academia como um todo. Isto prova que nos primeiros anos do

mundo europeu e no final da civilização grega, a Aristóteles se aplica a famosa frase de

Stanislaw Ponte Preta: "Sua ausência preencheu uma lacuna". É uma ausência tão

notável que ocupa um espaço. Uma espécie de Aristóteles está subentendido,

pairando no ar. Não houve uma consciência de que havia uma obra aristotélica e que

seria necessário se posicionar perante ela. Tanto que este indivíduo, discutindo com a

Academia, se dirige coletivamente aos seus membros, sem ter a menor idéia de que

um deles, Aristóteles, já havia dito coisas do mesmo teor. Também selecionei este

texto porque ele mostra uma espécie de sentido da organicidade, da integridade do

real, que é profundamente aristotélica. Só que Tertuliano não conhecia Aristóteles ou,

se conhecia, não lhe tinha dado importância. Então, de onde tirou este espírito da

organicidade do real? Ele obtém isto de uma inspiração cristã. O cristianismo inaugura

uma nova forma de abordagem do real, que enfatiza também este sentido da

organicidade, costurando os dois mundos que o platonismo havia separado, na pessoa

do Cristo. O cristianismo não deve nada a Aristóteles, vem de uma fonte

completamente diferente - a fonte judaica. Mas como o cristianismo tem esta idéia da

Encarnação, isto é, de que Deus nasceu como gente, já não é possível considerar que

existem dois mundos, um profano, aqui, outro, divino, lá; ou um semi-real, aqui, outro

real lá para cima. Se este aqui é irreal, dizer que Deus virou homem é o mesmo que

dizer que Deus sumiu, entrou na ilusão. Se existe uma gradação de setores da

Olavo de Carvalho

87

realidade ou de planos da realidade, nenhum deles pode ser considerado mais real do

que o outro. É o que mais tarde estará no verso de um poeta do século XX, aliás ateu e

comunista, Paul Éluard: "Há outros mundos, mas estão neste". É tudo um mundo só.

Este senso profundo da unidade do real está de fato subentendido, mas muito

ocultamente e em germe, no próprio platonismo. Este só pode ter validade se a

distinção dos dois mundos emana de uma unidade prévia; se a distinção for

absolutizada, vira demência. O senso da unidade e organicidade do real é a inspiração

aristotélica mais característica e ela aparece neste Tertuliano que pega este mesmo

senso, não de fonte aristotélica, mas de uma fonte judaico-cristã.

Pergunta: -- Mas o cristianismo não enfatiza a separação entre mente e corpo? Pelo

menos é o que todo mundo diz.

-- O cristianismo é uma das doutrinas a respeito das quais circulam mais mentiras. O

combate ao cristianismo no Ocidente foi muito intenso, é muito intenso ainda. Como

acontece com quaisquer tradições espirituais, em volta das quais sempre existem

incontáveis grupos interessados não em discutir as doutrinas cara-a-cara, mas em

deformá-las, para lhes atribuir absurdos. No cristianismo a doutrina da separação

entre corpo e alma é anátema. Esta separação que os inimigos atuais do cristianismo

lhe atribuem foi proposta por inimigos antigos, e o cristianismo paga assim pelo mal

que lhe fizeram.

Um dos grandes segredos da história do Ocidente é a gnose. Quem entender isto,

entenderá em conseqüência tanta, tanta coisa! Entre os vários inimigos do

cristianismo, desde o começo, há um setor chamado gnose. Ela defende uma série de

doutrinas que, quando expostas à luz do dia, se mostram realmente escandalosas. Em

parte sabendo disto, ela mesma atribui suas doutrinas ao adversário.

Estudando a evolução da doutrina cristã, você verá que ela é realmente muito

diferente nos textos, nas falas dos papas, em toda a realidade na evolução do dogma,

e na versão que dela os intelectuais anticristãos apresentam ao público. Esta

separação de alma e corpo é anátema. Tertuliano é uma das primeiras grandes

expressões de doutrina cristã, e ele se bate precisamente por este ponto.

Do mesmo modo que existe uma história de dois mil anos da Igreja, existe uma história

de dois mil anos da gnose. A Igreja é uma entidade única, cuja história se acompanha

facilmente graças aos textos básicos reunidos numa coleção chamada "Patrística". A

grega tem mais ou menos 400 volumes e a latina 300, de mil páginas cada uma, está

tudo lá documentado. Quem quer saber qual é a doutrina da Igreja vai lá e lê. Como

ninguém o faz, pode-se atribuir qualquer coisa ao cristianismo. O cristianismo não é

uma religião feita para ser compreendida por pessoas de baixa qualificação intelectual.

É difícil. Então, é muito fácil entendê-lo pela versão popular inventada por intelectuais

anticristãos e combatê-lo por aí mesmo. Quantos teóricos não falam que o

Pensamento e Atualidade de Aristóteles

88

cristianismo separa a alma do corpo, quando na verdade é o contrário. Isto é o mesmo

que atribuir ao cristianismo a idéia de que Deus não existe.

As pessoas formam uma idéia do cristianismo a partir do que é divulgado por não-

cristãos. Para saber o que é uma religião, deve-se perguntar a quem a conhece e a

pratica, não ao seu adversário. Para saber sobre o judaísmo pergunta-se a um rabino,

não a um nazista. Do mesmo modo, para saber o que é o comunismo não vou

perguntar à CIA, tenho de ler Marx, Lênin etc. Só o cristianismo é que não merece este

privilégio. As pessoas divulgam o cristianismo já propositadamente distorcido e

tornado absurdo para ser mais fácil combatê-lo. As grandes obras de doutrina cristã

ninguém lê.

Qualquer idéia tem o direito de ser defendida por ela mesma. Não se concede este

privilégio ao cristianismo. As pessoas não têm idéia do que é a guerra pró e contra o

cristianismo há dois mil anos. É uma coisa terrível. Ao mesmo tempo, não se pode

identificar o cristianismo com a horda de padres e pastores que podem falar o que lhes

dá na cabeça. O que a Igreja em si pensa está nas sentenças dos papas e nos chamados

"doutores da Igreja", um grupo seleto dentre os santos, cuja fala foi incorporada como

parte do dogma - como por exemplo Sto Tomás de Aquino, Sta. Teresa de Ávila ou Sto.

Afonso de Ligório. Não é o que qualquer pensador cristão fala que vale. Somente

aquilo é pensamento da Igreja. Agora, um certo estado de espírito difuso que as

pessoas chamam de cristianismo nada tem a ver com isto.

Aristóteles foi incorporado mais tarde ao cristianismo por Sto. Tomás de Aquino

precisamente por aqui; este era o ponto de união: a unidade entre corpo e alma. Não

havia uma contradição muito profunda entre o aristotelismo e o dogma cristão da

encarnação. Ao passo que no platonismo essa conciliação já ficava mais difícil, o que

não quer dizer que seja impossível.

Onde aparece uma tradição espiritual, uma revelação, uma eclosão de inteligência,

surge necessariamente em seguida uma sombra e às vezes esta sombra tenta agir por

conta própria, como se o rabo abanasse o cachorro. Do mesmo modo que existe um

esforço humano em direção à verdade, existe um esforço no sentido contrário, no

sentido do erro. A paixão pelo erro é incoercível, e certas pessoas, quando ouvem falar

a verdade, isto lhes provoca raiva. Por exemplo, na Índia você tem o hinduísmo, a

tradição vedântica, uma coisa maravilhosa - só que lá está cheio também de

Rajneeshs, sociedades teosóficas etc, etc. - são parasitas. Do mesmo modo, você tem a

Escola Platônica, um florescimento de inteligência, e logo em seguida, epicurismo,

socráticos menores, um monte de parasitas que não entendem aquilo por falta de

qualificação intelectual; então pegam um pedacinho da doutrina e o deformam. Isto é

uma tendência humana - o homem é um bicho fraco e tende incoercivelmente ao erro.

Olavo de Carvalho

89

Do mesmo modo, em relação ao cristianismo. É mais fácil inventar um cristianismo do

que procurar o que realmente existe. Por exemplo, para falar de repressão sexual -

"esta nossa velha desconhecida" - e provar que o cristianismo só tem repressão sexual,

essa dona Marilena Chauí pega a estátua de Santa Teresa, por Bernini, e mostra que o

êxtase de Santa Teresa, na estátua de Bernini, tem a fisionomia de um orgasmo

corporal; de onde ela conclui que os êxtases místicos de Santa Teresa eram meros

orgasmos disfarçados por muita repressão. Ora, em primeiro lugar, Bernini, que fez a

estátua, nunca viu Santa Teresa. Em segundo lugar, como seria possível representar

materialmente um êxtase espiritual senão sob a feição de um orgasmo físico? Agora,

dona Marilena começa por atribuir à santa as características da estátua - o que é

inteiramente absurdo. No século passado, um grande historiador - Michelet - pegou

um quadro de Franz Hals e descreveu a psicologia do personagem -- René Descartes --

pelo quadro -, só que que Hals nunca tinha visto Descartes mais gordo. O caso ficou

célebre como rateada de um grande historiador. Dona Marilena faz a mesma coisa, só

que movida por uma intenção de "desmascarar", e na verdade ela só se desmascara a

si mesma. A necessidade que certas pessoas têm de depreciar os que lhes são

espiritualmente superiores é o que se chama inveja espiritual, e é um dos sentimentos

mais baixos que podem existir. Há pessoas que não gostam de Cristianismo porque um

padre as suspendeu da aula ou lhes botou medo da masturbação. E fica aquela raiva

de padre, que depois, travestindo-se de filosofia, é projetada sobre dois mil anos de

Cristianismo. Mas não é filosofia, é rancor pessoal mesquinho. É querer medir a

civilização com o tamanho das suas dorezinhas pessoais. Não se pode fazer isto. E

condenar o Cristianismo é praticamente condenar a humanidade. Condenar qualquer

destas grandes tradições - Judaísmo, Cristianismo, Islamismo, Budismo - é condenar a

humanidade. É preciso confiar um pouco no bom senso da espécie humana.

Muitas religiões nos parecem esquisitas quando vistas de fora, mas na realidade somos

nós que não as estamos entendendo. O sujeito diz: "Olha, o cristianismo condenou o

corpo humano". Se fizeram isto, são uns animais. Mas vamos ver se fizeram mesmo.

Não, não faziam; mas seu adversário, a escola gnóstica, fazia. Baseados no preceito de

que o mundo foi criado não por Deus, mas por um deus rebelde que violando

instruções do Todo Poderoso criou o mundo, que é portanto necessariamente mau, os

gnósticos concluiam que a nós cabe destruir esse mundo mau. Para isto existem dois

meios - ou pelo ascetismo total, ou pela gandaia cósmica. Existem vários evangelhos

gnósticos. A escola tem uma característica. Não há uma palavra que ela use que não

tenha sentido ambíguo. Por exemplo - a curtição do "todo". Existem duas maneiras de

perverter o sentido do real. Uma é isolando uma parte; outra, empastelando tudo no

"todo". Então, de um lado temos o Panteísmo. A idéia de que tudo é Deus, sem

distinção, é gnóstica. E a idéia da separação absoluta também é gnóstica. Porque no

organismo humano, na vida biológica, na vida real, não existe separação absoluta nem

indistinção absoluta. Tudo funciona harmoniosamente segundo um jogo de todo e

parte, no qual os dois são inseparáveis. E é este o sentido profundo do aristotelismo. E

Pensamento e Atualidade de Aristóteles

90

é o que lhe permitirá mais tarde ser harmonizado com o Cristianismo, como poderia

ser harmonizado com o hinduísmo, ou o judaísmo ou qualquer das grandes tradições,

porque isto é a linha mestra do pensamento humano, que no fundo é o nosso senso-

comum, o senso do homem são. Quando você faz a idealização do "todo cósmico", da

integração na consciência cósmica - isto só serve para o indivíduo perder o senso da

sua distinção, da sua limitação. Se por outro lado você enfatiza a total separação -

coloca um Deus inatingível, numa esfera tão remota que não dá para saber o que é -,

isto também deixa você meio maluco. O esforço das grandes tradições é para manter o

verdadeiro equilíbrio orgânico, o verdadeiro equilíbrio ecológico da alma. E esta é a

grande contribuição aristotélica.

Este texto de Tertuliano documenta isto que a maioria das pessoas ignora: que a

unidade indissolúvel de corpo e alma é um dogma cristão. E o que quer que sirva ou

para cortar esta distinção ou para empastelar uma coisa na outra, não é cristão. Nem

judaico ou islâmico. É gnostico. Estas questões são muito graves. Mas quando se

estuda filosofia é para estudar questões graves, atuais e urgentes, não uma coisa

remota e boba que aconteceu na Grécia. É para estudar as coisas mais fundamentais

da nossa decisão nesta vida. Aqui e agora. Importa muito para a condução da nossa

vida termos uma idéia exata do que é dimensão corporal, espiritual, anímica no

homem. O unir e o distinguir são as operações fundamentais da razão humana. O

isolar e o empastelar são as duas operações fundamentais da ignorância, a qual

também é organizada e sistêmica a seu modo. Existem sistemas inteiros que são feitos

só para isto. O epicurismo, por exemplo, é um sistema premeditado de confusões, não

é um mero engano acidental. O engano, a partir de certo ponto, se torna maldade. Do

mesmo modo que existe gente se empenhando há milênios para que a humanidade se

coloque numa direção luminosa, inteligível, equilibrada, tem gente fazendo força no

sentido contrário. Existem representantes das duas coisas. Estamos num momento

dificílimo. O papa há dias falou: "Parece que junto com a nossa civilização está-se

desenvolvendo uma civilização do Anticristo". Agora é que ele descobriu? Isto já está aí

há uns cinquenta anos. Mas os papas têm isto, sempre falam as coisas muito tarde. A

Igreja Católica tem um aspecto paquidérmico. Leva tempo para se mexer, e por isto

mesmo os inimigos acabam com ela. Mas todas as grandes religiões têm isto. São

lentas. "Os moinhos dos deuses moem lentamente..." E o nosso grande poeta Murilo

Mendes fala das "lentas sandálias do bem" e das "velozes hélices do mal"...