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Pensamento e Atualidade de Aristóteles
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Pensamento e atualidade de Aristóteles
PRIMEIRA AULA
Casa de Cultura Laura Alvim, Rio de Janeiro, 15 de março de 1994.
Transcrição de:
Heloísa Madeira
João Augusto Madeira
e Kátia Torres Ribeiro
1a parte
Nesta primeira aula, serão colocadas as premissas e métodos que vamos desenvolver
em seguida. Tudo o que vamos expor aqui é baseado não só nos textos de Aristóteles
como nos dos autores de estudos aristotélicos já relacionados no Documento Auxiliar
II.
O esquema-padrão
das introduções
a Aristóteles.
Existem muitas maneiras de fazer uma exposição introdutória da obra de um filósofo.
Mas, com relação a Aristóteles, existe uma certa fórmula que é adotada em quase
todos os livros: colocar uma introdução biográfica, uma segunda introdução de ordem
filológica que dá a composição da bibliografia do autor, e depois a exposição de sua
filosofia de acordo com uma ordem que está consagrada há mais de dois mil anos:
1) Obras e doutrinas lógicas.
2) Obras de Física — de um lado a filosofia da natureza de um modo geral, na qual o
que hoje chamamos de Física seria apenas uma parte, abrangendo também Geografia,
Geologia, Astronomia, Meteorologia etc.; de outro a Biologia, com a Psicologia como
uma sua parte ou extensão.
3) Tratado de Metafísica — por ele chamada de Teologia, e também de Ontologia e
Filosofia Primeira.
Olavo de Carvalho
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4) Ética e Política.
5) Poética e Retórica.
Muitos livros sobre Aristóteles seguem na sua exposição rigorosamente esta ordem. É
a que foi adotada no século I a.C. para a ordenação dos escritos aristotélicos por
Andrônico de Rodes.
Desde o momento em que essa ordem se consagrou, foi adotada não só para todas as
reedições dos escritos mas também para a maioria das exposições da filosofia
aristotélica.
Sempre que um esquema desses se consolida, vira uma espécie de cacoete e nos induz
a ver as coisas sempre pelos mesmos lados. Aristóteles estaria completando, se vivo,
2400 anos de idade, tempo mais que suficiente para se consagrarem a seu respeito
erros e confusões de toda espécie que, sacramentados pela antiguidade, podem se
tornar verdades inabaláveis.
A filosofia,
atividade da consciência
individual.
À medida que passa o tempo e que as várias tradições vão cristalizando a nossa
maneira de ver o filósofo, se torna mais difícil sair de dentro delas para encarar esse
filósofo com uma visão pessoal. Ora, em filosofia tudo o que não é visão pessoal não
tem valor nenhum. Se há alguma coisa que distingue a filosofia das demais formas de
saber, é o caráter radicalmente pessoal, individual das suas especulações. Nisto, ela
difere totalmente de todas as demais formas de conhecimento, nas quais o consenso
coletivo tem uma importância decisiva. Não concebemos uma ciência, no sentido em
que hoje se emprega esta palavra, exceto como um sistema que vai sendo construído
aos poucos, com contribuições de várias proveniências, e que vai se fechando numa
espécie de edifício, num sistema das verdades científicas admitidas ou consagradas. De
modo que, se num determinado momento um indivíduo enuncia uma tese, uma teoria
que contrarie flagrantemente o sistema admitido, ele terá de argumentar muito bem,
pois estará desafiando o consenso, compartilhado por toda a comunidade científica. É
claro que nem todas as teorias científicas admitidas gozam de um consenso assim
unânime, mas em geral é assim que as coisa se dão nesse setor.
Se formos para outro setor do conhecimento — a religião —, esta também é uma
elaboração coletiva, e toda e qualquer prática religiosa subentende que um certo
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corpo de crenças é aceito como verdade uniformemente por toda a comunidade dos
crentes. Subentende-se que o dogma — católico, judeu, mussulmano etc. — é
entendido e admitido de maneira mais ou menos uniforme. O dogma é uma
interpretação consensual do sentido das Escrituras.
Sócrates e o protesto
da consciência individual
ante o consenso social
Comparada ao que hoje chamamos de ciência, ou de religião, a filosofia se destaca por
não haver nela a necessidade desse tipo de consenso e por requerer uma participação
individual muito mais profunda. Desde o início, vemos que a filosofia nasce como o
protesto de um indivíduo contra um consenso estabelecido. Este indivíduo chama-se
Sócrates. Ele defronta-se com um conjunto de crenças e hábitos mentais e intelectuais,
admitidos como válidos no seu meio e cultivados pelos indivíduos que eram a máxima
expressão da cultura do tempo — aqueles que hoje chamamos sofistas. Eram
professores de Retórica que iam de cidade em cidade procurando os jovens membros
da classe dominante para lhes ensinar a arte da Retórica, com a qual poderiam
ingressar na carreira política.
A educação grega consistia fundamentalmente de três coisas: ginástica, música e
retórica. O ensino da retórica, prosseguindo durante séculos, tinha consagrado na
classe dominante grega uma série de convicções e hábitos mentais. Um indivíduo
isolado, que não dispõe de qualquer projeção pública peculiar, não exerce cargo
público, não participa da política, que era apenas um soldado aposentado e se
dedicava à arte da construção civil, um pequeno empreiteiro — este é Sócrates. Na
juventude tinha sido mais ou menos famoso como soldado, algo como um herói de
guerra. Mas, na maturidade, era um mero cidadão privado, que não era professor de
nada, que não era político e estava rigorosamente fora da vida intelectual da época. É
este indivíduo que, falando exclusivamente em seu próprio nome e sem poder alegar
nenhuma autoridade, começa a questionar certas convicções estabelecidas, e não só
questiona, mas desenvolve um método para interrogar as crenças estabelecidas e
mostrar, ou que são contraditórias, ou que não têm base suficiente. O sentido da frase
famosa "Só sei que nada sei" é irônico — significa que, se ele nada sabe, os outros
sabem menos ainda.
Duas maneiras
de dar coerência
às nossas crenças.
Olavo de Carvalho
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A filosofia surge desse esforço de um indivíduo em particular para dar coerência às
suas crenças. Podemos estabelecer a coerência de um corpo de crenças por duas
maneiras contrárias. Uma delas é quando, pela prática repetida e pelo hábito, vamos
harmonizando estas crenças com os nossos atos, com nossos hábitos e expectativas,
também com as expectativas e hábitos dos outros e sobretudo com a nossa auto-
imagem. De modo que, estando habituados a viver dentro dessas crenças, elas se
tornam coerentes com o tom geral da nossa vida e por isto nos parecem coerentes em
si mesmas e coerentes umas com as outras. Isto é, da unidade da nossa auto-imagem
costumeira deduzimos erroneamente a unidade das nossas crenças.
A outra maneira de coerenciar as crenças é a filosófica. Significa confrontá-las
teoricamente umas com as outras. Quando começamos a fazer isto, vamos ver que a
nossa prática se assenta numa série de pressupostos contraditórios, que se
desmentem uns aos outros. Isto, evidentemente, pode nos causar um certo espanto e
nos deixar inseguros, derrubando uma auto-imagem tão laboriosamente construída..
De fato, Sócrates deixava as pessoas tão inseguras, que o compararam a uma enguia,
um peixe-elétrico. Quem encostava nele levava um choque, pois ele demonstrava que
as crenças mais comuns, tidas como coerentes e admitidas por todos, eram
contraditórias umas com as outras e frequentemente autocontraditórias, quer dizer,
intrinsecamente absurdas. Ele mostrava, por trás de uma ordem prática, uma
desordem teorética.
Como a contradição se introduz nas crenças que sustentam a nossa prática? Através da
nossa própria vontade. Quando queremos acreditar em determinadas coisas, porque
nos interessam ou nos fazem bem psicologicamente, tratamos de forçar as idéias para
que convivam umas com as outras, ainda que, pelos seus conteúdos respectivos, sejam
de fato incoerentes entre si. Fazemos isto constantemente. Quem já se submeteu a
algum tipo de psicanálise tem um idéia de até que ponto podemos mentir a nós
mesmos, para sustentar um falso sentimento de coerência e integridade da nossa
auto-imagem, justamente nos momentos em que nossa personalidade está mais
dividida. Quanto mais incoerentes são nossas crenças, maior é o esforço de nossa
vontade no sentido de dar um simulacro de coerência àquilo que não tem. Ora, se um
indivíduo consegue fazer isto, quanto não conseguirá a coletividade? Nesta, você
recebe o reforço de seus semelhantes e é protegido pela idéia de que, se erra, não erra
sozinho, e de que tantos juntos não poderiam errar de maneira alguma. O auto-
engano coletivo é mais eficiente do que o individual.
Quando vemos, no decurso do tempo, as mudanças de orientação da mentalidade
coletiva, surpreendemo-nos com a sua volubilidade, com a sua leviandade. Como as
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pessoas mudam rapidamente de crenças sem sequer examinar as anteriores! Quantos
ex-comunistas não gerou a queda do muro de Berlim, que, sem se sentirem abalados,
giraram o botão da sua máquina de opinar e saíram com um novo discurso, falado com
o mesmo tom de certeza do anterior discurso comunista? O sujeito abandona uma
crença por outra sem um exame pessoal, mas apoiando-se em um novo consenso
público. O consenso também tem suas mudanças, oscila entre a força do hábito e a
força da moda, e quando simplesmente nos acomodamos às novas modas temos a
impressão de estar nos renovando ou tornando mais autênticos, mas na verdade
consenso é consenso, é sempre coletivo e fundado na imitação. Sempre que nos
apoiamos no consenso público, velho ou novo, recorremos a uma espécie de reforço
psicológico que ajuda a dar uma impressão de coerência àquilo que não tem nenhuma.
É justamente face a esse consenso coletivo — que pode ser político, religioso,
ideológico, moral etc. — que se levanta a exigência filosófica. Ela parte de uma
necessidade interior, de um impulso de honestidade fundamental no sentido de dar às
idéias uma coerência efetiva e uma fundamentação mais sólida. É essa exigência de
uma fidelidade mais profunda à nossa consciência de veracidade que é representada
por Sócrates.
Este movimento inicial do qual nasce a filosofia é repetido de tempos em tempos,
onde quer que surja uma nova filosofia vigorosa e digna de atenção. Cada novo
filósofo que seja digno do nome se defronta inicialmente com uma perplexidade que
nasce da constatação da incoerência do consenso. Ele vivencia esta insegurança de
perceber que talvez todos estejam enganados, e ele também junto com todos.
Novamente faz a experiência desaber que não sabe, face a um consenso social que
finge que sabe. Entende-se aqui que este consenso não abrange literalmente todos os
membros da coletividade, mas apenas a intelectualidade, isto é, aqueles que
representam publicamente o papel de porta-vozes do consenso. Isto quer dizer que
nem sempre há um acordo explícito entre o consenso —- a ideologia reinante —- e a
vida social, as leis e instituições, as formas de organização da economia, etc. As épocas
em que existe esse acordo são épocas de conservadorismo, de tradicionalismo;
inversamente, as épocas de conflito entre o consenso ideológico e a esfera da vida
prática são épocas de renovação, ou de revolução. A renovação do consenso , e a luta
para mudar a sociedade em nome do novo consenso, fazem parte da história
ideológica da sociedade, e, não devem ser confundidos com o movimento da
consciência individual que reage ao consenso para buscar a verdade. O consenso, de
fato, é menos limitante e escravizador para a consciência individual nas épocas de
tradicionalismo do que nas de renovação, porque o consenso tradicional se apresenta
declaradamente como uma força conservadora, fácil de identificar e criticar, ao passo
Olavo de Carvalho
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que o consenso renovador ou revolucionário funciona como um Ersatz, um sucedâneo
do autêntico pensamento filosófico, oferecendo aos homens, em lugar da vida
intelectual, as modas intelectuais que os desviam de todo esforço pessoal. Nossa
época é tão canalha que não apenas confunde maliciosamente a busca da verdade
com o esforço de renovação social, fazendo da adesão a certas modas políticas
a conditio sine qua non da vida intelectual, mas houve até mesmo um sujeito tido
como filósofo, Antonio Gramsci, que chegou a propor formalmente a redução de toda
vida intelectual à moda intelectual, à produção coletiva da ideologia revolucionária.
Cada época da história tem um corpo de crenças que é admitido pela classe letrada, tal
como ela aparece na ocasião. Na Idade Média, essa classe é constituída
fundamentalmente de clérigos. Hoje em dia, é a chamada comunidade acadêmica, o
pessoal das ciências, somado à turma das comunicações: imprensa, TV, movimento
editorial. A comunidade tem sempre um corpo de crenças que não é discutido e que
serve como padrão de julgamento das novas idéias que surjam. A filosofia aparece no
instante em que algum indivíduo percebe, nesse corpo de crenças, uma incoerência
profunda e se sente inseguro e na necessidade de reconstruir aquilo em novas bases.
Esta é uma atividade perene do espírito humano, não pára nunca. A filosofia só parará
quando chegarmos a um corpo de crenças absolutamente certo a respeito de tudo o
que existe. Como isto é evidentemente utópico, só Deus podendo realizar algo assim,
continuaremos sempre formando novos corpos de crenças, que terão novos pontos de
incoerência que necessitarão de um exame filosófico. Isto quer dizer que o movimento
filosófico é inicialmente um movimento crítico, o movimento de uma crítica que
deverá servir de base a uma reconstrução de novas crenças. Quando um filósofo faz
isto com sucesso, os novos parâmetros que ele estabelece duram algum tempo, mas
perdendo o seu teor crítico e tendendo a cristalizar-se em pensamento rotineiro, em
mera ideologia. Até que, com o crescimento da humanidade, a ampliação do círculo de
informações, as crenças começam a entrar novamente em contradição, e surge a
necessidade de uma nova filosofia. Isto quer dizer que, embora a filosofia seja uma
atividade interminável, ela não é ininterrupta, mas intermitente. A filosofia aparece e
desaparece de tempos em tempos.
Raridade
das filosofias
autênticas
Se procurarmos na História, veremos que o número de filosofias verdadeiramente
criadoras é relativamente pequeno. Colocaremos, evidentemente, o aristotelismo
entre elas. Podemos considerar que este movimento que vai de Sócrates até
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Aristóteles, passando por Platão, é como se fosse uma curva única, o desenvolvimento
de uma filosofia única, que se fecha, por assim dizer em Aristóteles e consegue durar
um certo tempo. Eu colocaria como outros marcos na história do pensamento, depois
de Aristóteles, Sto. Tomás de Aquino, Leibniz, Schelling e Edmund Husserl, fundador da
fenomenologia. Se fosse necessário resumir toda a história da filosofia em poucos
nomes, eu destacaria estes, onde todos os problemas discutidos por todos os demais
estão embutidos. Cada um desses teve uma sombra, ou complementar oposto, cujo
contraste ajuda a compreendê-los: o trio Sócrates-Platão-Aristóteles tem Agostinho;
Tomás tem Duns Scott; Leibniz tem Kant; Schelling tem Hegel e Husserl tem Heidegger.
Nos intervalos entre eles entram os estóicos, Descartes, Locke, Wronski, e isto é
rigorosamente tudo: o repertório essencial das idéias. O resto é comentário (
descontando, é claro, as idéias que vêm desde fora da filosofia, por exemplo da
tradição religiosa, do pensamento político, da ciência, etc. ).
Isto quer dizer, também, que a filosofia não surge a qualquer momento. Nas horas em
que as crenças coletivas estão funcionando perfeitamente bem e onde as contradições
internas que possam existir nelas estão ainda latentes e não chegam a causar
perplexidade, — nestas horas a filosofia decai, torna-se, por assim dizer,
desnecessária. É o que acontece, por exemplo, nos primeiros séculos da era cristã,
quando o surgimento de um novo tipo de crença, o Cristianismo, bastou para atender
às necessidades intelectuais das pessoas durante alguns séculos. Com o tempo, o
próprio Cristianismo começa a perceber suas deficiências internas —- sobretudo
lacunas e contradições na interpretação das Escrituras —- e começa a tentar completá-
las. Daí surge um movimento filosófico dentro do Cristianismo.
A filosofia
e o pensamento
coletivo.
Sendo então a filosofia um movimento essencialmente crítico, que nasce da
perplexidade, e sendo um movimento que parte de uma consciência individual,
poderíamos perguntar: Seria possível uma filosofia coletiva? A resposta é
decididamente não. Porque a filosofia parte da tentativa de unificar a totalidade da
experiência humana, e isto só pode ser feito dentro do indivíduo que tem em si, juntas
e coesas, todas as dimensões da vida humana e que é capaz de imediatamente
confrontar, por exemplo, suas idéias com sua conduta — sua conduta com suas
crenças estabelecidas — estas com seus sentimentos — estes com suas sensações
corporais etc. etc. Ou seja, o movimento de que parte a filosofia supõe que exista,
dentro de você, a possibilidade de unificar perante uma consciência o conjunto das
Olavo de Carvalho
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informações acessíveis naquele momento a um ser humano. Não haveria tempo de
fazer isto coletivamente. Embora o diálogo, a troca de idéias, possam ser importantes
na filosofia, a título de estímulo, de critério de verificação e de correção, o movimento
decisivo se dá sempre no âmbito de um só indivíduo. Um dos motivos disto é que a
filosofia é coerenciação, é unificação, e só o indivíduo tem em si uma unidade real, a
unidade de um organismo vivente, ao passo que toda coletividade é um aglomerado
de parcelas bastante separáveis, e algumas delas incomunicáveis. "Consciência
coletiva" é uma força de expressão, e não o nome de um ente real. A tendência a
hipostasiar a sociedade, a nação, a classe, etc., fazendo delas entes quase que
fisicamente reais, nos torna cegos para a importância decisiva da consciência
individual, e acabamos esperando passivamente que a "consciência coletiva" faça o
serviço em nosso lugar.
A filosofia
como instituição
e meio social.
Aí temos um outro problema. A filosofia não é só o nome de uma prática intelectual
como esta que estou descrevendo, mas é também o nome de uma disciplina escolar,
acadêmica, que se registra em textos que vão sendo acumulados, formando uma vasta
bibliografia, que por sua vez vai necessitando de uma tradição de interpretação e de
um conjuntto de esquemas de transmissão daquilo às novas gerações. Isto faz com que
a filosofia também se torne, com o tempo, uma atividade coletiva. As formas
socialmente consolidadas dessa atividade influem, então, sobre o próprio conteúdo do
pensamento filosófico. Por exemplo, numa faculdade de filosofia hoje, você vai ver a
elaboração de uma espécie de pensamento coletivo. Penetrar no universo desta
filosofia universitária é mais ou menos como penetrar em qualquer outro meio social:
partido político, igreja, grupo de psicoterapia. Logo se vê que as pessoas que estão ali
dentro têm certos hábitos mentais, certas reações reflexas, modos de falar, cacoetes
que marcam aquela comunidade, distinguindo os de dentro e os de fora. Assim
também o meio filosófico universitário. O leigo que vem de fora vai gastar bons anos
de sua vida somente para adquirir este conjunto de reações que fará com que ele se
sinta um membro da comunidade, e ao fazer isto estará crente de estar aprendendo
filosofia, quando está apenas assimilando a casca sociológica necessária a que a
filosofia como prática social continue existindo. E o que isto tudo tem a ver com
filosofia? Rigorosamente nada, porque embora a filosofia sempre necessite de algum
veículo social para existir, a história prova que ela não depende de nenhum deles, que
tanto se faz boa e má filosofia numa hierarquia de clérigos como num grupo informal
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de amigos, numa organização acadêmica como numa sociedade esotérica, e que,
enfim, o dinamismo da filosofia independe da sua forma social de organizar-se.
É por influência dessa base social de atuação que se formarão estilos coletivos de
pensamento, que aprisionarão as mentes individuais dentro de certos esquemas de
que não poderão livrar-se nunca, porque o que deveria livrá-los disto é exatamente a
filosofia, ou seja, a reflexão pessoal, a que o império dos meios sobre os fins os impede
de chegar. Se a reflexão pessoal é desde o início canalizada por um conjunto de
reações mentais quase inconscientes, que equalizam o indivíduo com os demais
membros da comunidade, então a reflexão pessoal fica impossibilitada. Por exemplo:
saiu recentemente um livro cujo autor é Paulo Arantes, sobre o Departamento de
Filosofia da USP. O livro chama-se Um Departamento Francês de Ultramar — título de
assombrosa exatidão. Ele mostra que cinco décadas de reflexão filosófica na USP na
verdade foram um eco de um conjunto de cacoetes mentais aprendidos com os
primeiros professores que por ali passaram, todos de origem francesa. Alguns, aliás,
excelentes filósofos, como Etienne Souriau, homem de primeira grandeza. Mas não
interessa que o mestre seja grande. Interessa é que na hora em que o ensino se
organiza coletivamente, se institucionaliza através de institutos, faculdades etc., corre-
se o grande risco de fazer com que o ingresso nesse meio requeira um investimento
psicológico demasiado grande, tão grande ou maior do que o necessário para chegar à
filosofia mesma. Não é fácil você se integrar num novo meio. Quando este meio é, por
sua vez, mais ou menos internacional e a convivência não é direta, é feita mais através
de papéis que se trocam —- de artigos de um que são lidos por outro, que escreveu
um livro que é lido pelo primeiro —-, a absorção dos cacoetes é mais difícil, porque se
trata de cacoetes, por assim dizer, abstratos, e a aquisição disto é muito mais
trabalhosa para a psique humana do que a cópia direta do que é visto. Mas
evidentemente tudo isto não tem rigorosamente nada a ver com filosofia, assim como
a embalagem de pizza não tem nada a ver com pizza.
E Sócrates, quando filosofava, a quem podia copiar? Em que meio ele estava
procurando integrar-se? Que hábitos mentais ou cacoetes verbais ele estava
procurando aprender para parecer filósofo? Ele simplesmente fazia o melhor que
podia, usando a sua cabeça para refletir sobre certos assuntos. Isto não o tornava um
indivíduo mais aceitável em determinado meio, e é por isto mesmo que ele podia
filosofar livremente.
A partir do momento em que se forma um ensino mais ou menos regular de filosofia
— o que acontece nessa época, na Academia Platônica e depois no chamado Liceu de
Aristóteles (que na realidade veremos que não existiu efetivamente como entidade
Olavo de Carvalho
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autônoma, sendo apenas um novo setor da Academia, dirigido por Aristóteles após a
morte de Platão) —-, a filosofia começa a constituir um meio social, e surgem as
invejas, as fofocas, a competição mesquinha, etc. Toda uma gordura mental que cerca
a carne e o sangue da filosofia, e que passa por filosofia. Estes aspectos geralmente
são desdenhados, mas eles nos dão o tom do pensamento do nosso tempo, onde a
organização acadêmica da atividade filosófica chegou a um máximo de abrangência,
eficácia e poder. Essa organização constitui uma máquina, estreitamente ligada ao
meio editorial, que às vezes promove a filosofia, às vezes a sufoca. Em todo caso, a
competição no meio profissional não é propícia ao desenvolvimento da filosofia, pois o
decisivo nela não são as qualidades que fazem um filósofo, e sim as que fazem um
hábil manejador social. Dois jornalistas que fizeram um estudo a respeito do meio
acadêmico e editorial parisiense disseram que a organização moderna da vida
intelectual criou um novo tipo de intelectual, o intelocrata. É o sujeito que tem poder
ou influência sobre o meio acadêmico, a imprensa cultural, a indústria editorial, e que
funciona como um guarda de trânsito, abrindo ou fechando o caminho às novas
ambições. O intelocrata pode ser também um intelectual de valor, mas isto não é
necessário para o exercício da função, que é de natureza política sobretudo. Nesse
meio, os melhores saem quase sempre perdendo, pois dedicam suas energias à
filosofia em detrimento da carreira. Raymond Aron diz, por exemplo, que no seu
tempo só havia dois legítimos espíritos superiores entre os universitários franceses:
Alexandre Kojève e Éric Weil. Mas o prestígio deles não se compara ao de um Sartre,
de um Merleau-Ponty, ou mesmo ao de cabeças-de-toucinho como Althusser ou
Bernard-Henry Lévy. Se isto se passa assim num país de tradição filosófica como a
França, imagine então no Brasil.
A Retórica
de Aristóteles no
ambiente mental grego.
A influência do meio social imediato no destino das filosofias é importante para
compreendermos o lugar de Aristóteles no ambiente grego. Veremos que no destino
do aristotelismo pesaram muito esses fatores que mencionei.
Quando Aristóteles entrou para a Academia Platônica, com dezoito anos de idade, logo
se destacou como um dos melhores alunos e foi incumbido de dar uma parte das
aulas, o curso de Retórica. Este sucesso inicial foi recebido como um insulto pessoal
por muitos dos seus colegas. Mais ainda; sendo a Retórica — curso que ele dava — a
ciência teorética que investiga a arte da persuasão, ele logo dominou esta ciência,
muito disseminada na época, e foi um dos primeiros a fazer dela uma especulação
Pensamento e Atualidade de Aristóteles
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teórica. Porque a Retórica até então era apenas transmitida como técnica, como
prática, e alguns levavam a vida inteira para dominar esta arte, que era a chave das
ambições políticas. Aristóteles domina-a prontamente e começa a especular
teoricamente. Isto consiste em perguntar: "Por que o argumento persuasivo é
persuasivo?" e mesmo: "Por que um argumento logicamente fraco ou absurdo
convence as pessoas, e outro que é razoável não as convence?" Aristóteles começa sua
carreira examinando a Retórica, exatamente como Sócrates havia feito. Sócrates via
que os oradores, políticos, conseguiam persuadir as pessoas às vezes de coisas
perfeitamente absurdas. Sócrates limitou-se a demonstrar que essas idéias eram
absurdas, por mais persuasivas que parecessem. Aristóteles já dá, na juventude, um
primeiro passo além. Começa a investigar as causas dessa persuasividade, e formula a
ciência da Retórica como uma verdadeira Psicologia da Comunicação. O livro
de Retórica de Aristóteles é um dos grandes livros livros de Psicologia que a
humanidade conheceu. Ora, conhecendo por um lado a técnica, e já tendo, por outro,
algumas idéias científicas sobre o fenômeno da persuasividade, Aristóteles não apenas
sabia produzir argumentos persuasivos, mas também conhecia os princípios teóricos
em que se baseava a persuasividade dos adversários. Isto significa que, com vinte e
poucos anos, ele tinha-se tornado uma espécie de terror dos retóricos, que
desmontava todos os argumentos deles com a maior facilidade. Aristóteles sintetizou
na sua pessoa, muito jovem, os dois papéis que mais tarde seriam
denominados retore retórico: o praticante da arte, o homem que escreve ou fala bem,
e o cientista que estuda e formula a teoria da Retórica. Seus escritos de juventude,
literários e retóricos na maior parte segundo parece, não chegaram até nós, mas o
maior retor e retórico do mundo romano, Marco T. Cícero, os cita como exemplos de
elegância e persuasividade. Tudo isso, aliado à mordacidade de certas réplicas de
Aristóteles, ajuda a explicar o ambiente de hostilidade que se formou em torno dele
desde muito cedo, e não consigo conceber que esta hostilidade não tenha pesado em
alguma coisa entre as causas da dissolução do aristotelismo logo após a morte de
Aristóteles.
Personalidades
de Platão e Aristóteles.
O Deus de Aristóteles.
Por outro lado, Aristóteles não tinha ambições políticas, ao contrário de Platão. Este
sempre tentou interferir na política, tentou reformar o mundo, inspirou revoluções e
golpes de Estado, e na sua famosa Carta Sétima declara que a obra de sua vida seria
uma reforma política da Grécia. Mas Aristóteles era um temperamento
completamente diferente. Aliás, esta confrontação de temperamentos é uma das
Olavo de Carvalho
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coisas mais esclarecedoras quanto a todo o rumo posterior do pensamento ocidental.
Porque, como disse um grande historiador da Filosofia, Arthur Lovejoy, "toda a história
do pensamento ocidental não é nada mais que um conjunto de notas de rodapé a
Platão e Aristóteles". Sendo assim, desde que o nosso pensamento é sustentado por
estas duas grandes colunas, confrontá-los é uma das principais ocupações da mente
ocidental há dois mil anos. Nesta confrontação, os traços de personalidade são
muitíssimo importantes. Duas personalidades de imensa envergadura que marcarão
não apenas dois estilos de pensar, mas dois estilos de ser. Nesta confrontação, vemos
que Aristóteles difere de Platão e se aproxima muito de Sócrates, pela sua total falta
de ambição de interferir na ordem das coisas deste mundo, e pela sua total dedicação
ao saber enquanto tal. Para Aristóteles, não havia ocupação mais digna do homem do
que buscar conhecer, buscar compreender. Ele colocava esta atividade teorética —- a
palavra "teorético" vem do verbotheorein, que quer dizer olhar, ver, contemplar — tão
acima das outras que, no entender dele, era a única atividade do próprio Deus. O Deus
aristotélico é um Deus cuja atividade é inteiramente de ordem teorética. Deus olha,
vê, contempla, compreende, e nós vivemos dentro desta atmosfera intelectual divina,
somos pensamentos divinos, de algum modo. Deus age, mas na forma da pura
contemplação, e portanto, a ação de Deus tem aquela rapidez, aquela instantaneidade
própria da inteligência — o ato de intelecção é instantâneo, e assim também os atos
divinos, pois não supõem a mediação de um instrumento.
Posição social de
Aristóteles. Hostilidade
do meio ateniense.
Prosseguindo na confrontação, vamos ver que Platão era um filho da nobreza grega,
um homem que desde a juventude foi cercado de admiração, não só por sua origem —
família riquíssima — mas também pela beleza pessoal. Era um homem grande,
atlético, rico, bonito, cheio de ambições. Aristóteles, ao contrário, era de origem
estrangeira. A cidade de Estagira, onde nasceu, era uma colônia macedônica. Ele chega
a Atenas, por volta dos dezoito anos, depois da morte dos pais. Herdou certa
quantidade de dinheiro que lhe permitiu ser independente, sem chegar a ser um
milionário. Tinha dinheiro para se sustentar sem precisar trabalhar, podendo se
dedicar totalmente ao estudo. Entra na Academia ainda aos dezoito anos e por volta
dos 23, 24 já é um sucesso lá dentro. Mas em primeiro lugar, num meio aristocrático o
dinheiro, por si, não dá ingresso nas classes superiores. Para piorar, Aristóteles era um
estrangeiro. Fica difícil imaginar, num país como o Brasil onde o estrangeiro é tratado
como príncipe e o compatriota como um cachorro, a intensidade, a força do
preconceito grego contra o estrangeiro. Este, em Atenas não tinha direito a nada.
Pensamento e Atualidade de Aristóteles
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Estava pior do que um turco em Berlim. O simples fato de poder estar ali já era
considerado um grandissíssimo favor; mas o estrangeiro não votava, não participava
da política, não tinha direito a nada. Além disso, Aristóteles não era membro da
nobreza, mas apenas descendente de uma família de médicos. Seu pai tinha sido
médico do rei Felipe da Macedônia e se dizia que sua família descendia do próprio
deus Esculápio, ou Asclépio — o deus grego fundador da medicina — pelo fato de
terem tido muitos médicos no correr de gerações; mas todas as famílias de médicos
alegavam a mesma coisa. Os médicos tinham posição de certo prestígio, mas não se
comparavam à classe dominante. Eram apenas servidores de luxo. Aristóteles, então,
do ponto de vista do meio ateniense, era um homem de origem plebéia, estrangeira, e
que tinha entre suas características pessoais um senso de humor particularmente
ácido, sarcástico. Também não tinha a beleza física —- era de baixa estatura, magro, e
embora andasse muito elegantemente vestido jamais seria confundido com um
membro da jeunesse dorée ateniense. Este estrangeiro incômodo, muito jovem se
torna o dominador da ciência da retórica e é nomeado para dar os cursos na
Academia.
As Artes Liberais
na Academia platônica.
Lugar da Retórica.
Nesse tempo o ensino já tinha começado grosso modo a se organizar segundo uma
fórmula que duraria mais de mil anos, onde as matérias introdutórias consistiam
no Trivium e noQuadrivium (conjunto de três disciplinas que lidam com a linguagem —
- gramática, lógica ou dialética e retórica —-; e de quatro que lidam com números —-
aritmética, geometria, música e astrologia ou astronomia). As matérias elementares
eram estas. Quando Aristóteles é nomeado professor de retórica, a importância deste
fato não deve ser hipertrofiada, já que a retórica é apenas uma das ciências
elementares. O domínio destas sete disciplinas foi considerado desde a fundação da
Academia de Platão até quase o ano de 1500, isto é, por quase dois mil anos, como
condição básica para o ingresso nos estudos filosóficos. Na Idade Média européia, o
sistema adquirirá uma grande estabilidade. Os estudos começavam na adolescência,
pelo Trivium e Quadrivium, que duravam mais ou menos dez anos de aprendizado,
depois o sujeito entrava numa das três faculdades — Direito, Medicina ou Filosofia.
Nesta, o tempo de aprendizado até o aluno chegar a um estado comparável ao que
hoje se chama professor pleno era de aproximadamente vinte e cinco anos —- o
tempo que um professor universitário brasileiro leva para chegar à aposentadoria. Esse
sistema começa a se formalizar no tempo de Platão, e não vejo a menor chance de um
sujeito entender a filosofia antiga e medieval se não partir de um estudo das Artes
Olavo de Carvalho
15
Liberais —- Trivium e Quadrivium —-, que, constituindo a base do ensino, expressavam
o fundo comum da cosmovisão mais claramente do que as formas superiores de
atividade intelectual. Também não se pode esquecer que, nesse panorama, as sete
disciplinas não tinham individualmente os significados que têm hoje, mas eram
carregadas de nexos simbólicos e mitológicos que dão o seu verdadeiro sentido na
cultura antiga. Por isto é que simplesmente não posso levar a sério um historiador de
filosofia antiga ou medieval que, por exemplo, não conheça a fundo o simbolismo
astrológico, que constituía então como que uma chave da cosmovisão. E não se trata
só de conhecê-lo desde fora, porque o autêntico simbolismo, como a autêntica poesia,
não se rende a um estudo meramente exterior, mas requer uma compreensão
personalizada. Os melhores historiadores da filosofia antiga e medieval costumam ser,
por isto, aqueles que também têm interesses religiosos e estéticos, que facilitam a
penetração naquele universo.
Dentro da Academia, a retórica não estava entre as disciplinas mais nobres, pois cedia
lugar às disciplinas filosóficas propriamente ditas. Aliás, considerando-se que a filosofia
nasce de um movimento de oposição aos sofistas —- professores de retórica —-, esta
tendia a ser, dentro da Academia, um pouco desprezada. Ela é a arte de persuadir, não
a de encontrar a verdade; o que torna o argumento persuasivo não é ele ser verídico,
mas é ele encontrar uma ressonância no público. A ressonância ou persuasividade do
argumento depende exclusivamente de fatores psicológicos e sociológicos que
predispõem o público a aceitá-lo, e depende também de que o retórico conheça
minuciosamente esta predisposição e saiba usá-la. A persuasão retórica nada tem a ver
com a veracidade. Mas Aristóteles não se limita a dominar a retórica, e faz as primeiras
especulações científicas a respeito. A especulação científica sobre uma técnica é ao
mesmo tempo uma defesa contra esta técnica. Uma coisa é dominar uma técnica.
Outra é ter a noção teorética de como ela funciona, de por que funciona. Com isto
você fica sabendo também quais são os limites da técnica. Esta especulação que
Aristóteles começa muito cedo e que o leva depois a constituir o primeiro tratado
científico de retórica, o torna também um grande retor, um escritor elegante e
persuasivo. Isto estabelece uma distinção que será mais tarde consagrada. Retor é
aquele que domina a técnica da retórica, que sabe fazer um discurso e ser
persuasivo. Retórico é aquele que estuda cientificamente a técnica do retor, podendo
ele próprio ser um retor ou não. Mas é evidente que o estudo teorético desta técnica e
a sua aplicação têm resultados completamente diferentes. Seria mais ou menos como
dominar, hoje em dia, a arte da propaganda e fazer um estudo científico de por quê a
propaganda penetra e é aceita nas consciências. Evidentemente o estudo teorético
levaria a ver esta técnica "pelas costas" e a compreendê-la melhor do que o mero
praticante, e a saber também, portanto, neutralizá-la. Suponho que, na linha de uma
Pensamento e Atualidade de Aristóteles
16
investigação iniciada por Sócrates, o próprio Platão tenha determinado a Aristóteles o
estudo científico dos procedimentos retóricos, de modo a completar a superação da
retórica na dialética, dando uma forma acabada ao que Sócrates tinha feito
informalmente. De modo que há, na Academia, um esforço de dar mais rigor à
demonstração, a ir da persuasão à certeza apodíctica, e, neste movimento, Aristóteles
representará o ponto culminante.
Platão e Aristóteles
ante a opinião pública
ateniense.
Como resultado, então, em parte por seu sucesso, em parte por esta orientação que
está imprimindo a seus estudos, em parte por ser um estrangeiro metido onde não
devia, e ainda por motivo de intrigas e invejas entre os discípulos de Platão, Aristóteles
viverá maus bocados em Atenas. Platão também enfrentou dificuldades, mas no
Exterior, onde se meteu em conspirações, sendo preso, vendido como escravo e
resgatado por seus discípulos. Mas em Atenas ele sempre gozou de grande prestígio e,
ao morrer, era como que um herói nacional, uma celebridade cercada de honras, e que
praticamente não tinha inimigos. Aristóteles, ao contrário, enfrenta inimizades,
oposição, desde o início de sua vida, jamais chega a formar um círculo de discípulos
capaz de prosseguir sua obra num sentido fiel ao seu intuito e digno do seu nível,
exceto um único, que é Teofrasto. Nunca encontra em Atenas senão um ambiente de
relativa hostilidade, morre no exílio e nunca encontra uma repercussão pública muito
grande. Claro que ele não dava importância, a isto pelo seu próprio temperamento,
alheio à atividade política. O ideal dele seria viver relativamente isolado, podendo
prosseguir seus estudos sem ter que se defrontar com a política do dia. No entanto, os
conflitos políticos o perseguem ao longo de toda a sua vida. Principalmente porquê,
originário de uma colônia macedônica, sendo filho do médico do rei da Macedônia e
tendo-se tornado preceptor de Alexandre, filho de Felipe, imperador macedônico,
quando se instala mais tarde uma guerra entre Atenas e a Macedônia, Aristóteles,
embora já não tivesse nenhuma ligação com a Macedônia há algum tempo, fica
evidentemente numa posição suspeita; é perseguido e tem de fugir para o exílio. De
modo que não foi uma vida fácil, e um elemento constante desta vida é o contraste
entre o interesse puramente intelectual deste homem e a hostilidade política e social
que o cerca durante mais ou menos toda a vida, e contra a qual ele não deixa uma
única palavra de lamentação ou de recriminação. Não porque fosse insensível às
injustiças, já que muitas vezes protestou contra perseguições sofridas por amigos seus.
as talvez ele fosse muito discreto para lamentar em público suas desventuras pessoais.
Olavo de Carvalho
17
A intuição básica
de Aristóteles:
totalidade e organicidade.
O espírito mais reflexivo e científico de Aristóteles faz com que ele imprima ao seu
ensinamento, desde o início, um sentido de pesquisa que torna o seu Liceu um
depósito de conhecimentos sobre todas as disciplinas possíveis e imagináveis e o torna
o primeiro centro organizado de pesquisa que conhecemos na história do ocidente.
Após ter sido preceptor de Alexandre, Aristóteles recebe dele um dinheiro
considerável, que lhe permite contratar um exército de pessoas para que viajem e
tragam para ele as informações de que necessita: sobre geografia, geologia, vida dos
animais, política e leis dos demais países, etc. etc.. Nesse sentido, Aristóteles pôde
materializar o intuito que é central em toda a sua obra — o de organizar o
conhecimento e fazer com que o conjunto das ciências se torne um sistema das
ciências. Busca, assim, desde o princípio, um padrão de coerência na organização dos
conhecimentos, infinitamente mais rigoroso do que o que tinha sido exigido por
Platão. Quando estudamos a obra de Platão, vemos que tudo que ele escreveu vem de
inspirações que teve na juventude e que lhe foram, por assim dizer, inoculadas por
Sócrates bem pela herança pitagórica. A intuição básica de Platão, como a de Sócrates
e dos pitagóricos, é a do contraste entre dois tipos de objeto do conhecimento: 1) os
objetos dos sentidos que estão em permanente mutação e se fazem e desfazem diante
de nós, dia a dia, como de resto, nós mesmos mudamos, nos fazemos e desfazemos,
nosso corpo cresce, muda, envelhece e morre; 2) os objetos da geometria, das
matemáticas, que tinham a característica da perenidade, estabilidade, constância,
obediência à regularidade de leis que determinam implacavelmente, e imutavelmente,
as duas relações. Uma vez estabelecida uma relação matemática, constataram esses
filósofos, ela se reproduzia infinitamente sem que nada pudesse alterá-la ou abalá-la.
Este contraste, uma da primeiras noções transmitidas por Sócrates, desperta em
Platão a noção de que o mundo físico estaria envolvido numa rede de leis e
proporções matemáticas que constituiriam o verdadeiro segredo da realidade, a
estrutura invisível, mas rígida, do inconstante mundo visível. Esta é a intuição básica
em Platão. As relações matemáticas constituem a parte superior do que ele chama
demundo das idéias. Esta idéia platônica penetrará tão fundo na consciência humana
que dois mil anos depois, quando surgia a física moderna — Newton, Galileu,
Descartes, Kepler — é novamente a mesma idéia de encontrar o fundo matemático no
qual se apóia a realidade sensível que inspirará os cientistas. Por mais rico que seja o
universo platônico, vemos que todo ele não passa de uma vasta especulação em torno
desta idéia que é, no fundo, de origem pitagórica: de que os números e relações
matemáticas são a verdadeira essência da realidade. De que o mundo, tal como se
Pensamento e Atualidade de Aristóteles
18
apresenta a nós, é de certo modo ilusório ou falso — não totalmente, mas apenas uma
expressão parcial de um segredo que, na sua essência, é matemático. Toda a obra de
Platão é uma construção feita em torno desta idéia básica.
A obra de Aristóteles obedece desde o início a outro intuito. Ele percebe que não é
possível existirem apenas dois mundos — um mais ou menos ilusório, e outro um
pouco mais real — mas que existem muitas faixas de realidade, formando um tecido
enormemente complexo mas dotado, sempre, de unidade e coesão. E será esta
complexidade do real, ao mesmo tempo múltiplo nos seus nos seus planos, aspectos,
níveis etc. e constituindo um todo coeso, será esta idéia da unidade na variedade que
orientará todos os esforços de Aristóteles desde o início. Daí sua idéia de
um sistema do conhecimento. O conhecimento tem de ser um sistema, ou até, mais
propriamente um organismo. Um organismo é um conjunto de órgãos diferentes entre
si mas que são todos coordenados para uma certa função. Separados desta função do
organismo total, não fazem sentido algum. Também Aristóteles concebe a idéia de que
esta totalidade orgânica, que é o mundo, deveria por outro lado ser refletida no
sistema das ciências, de modo que o conhecimento formasse uma unidade que, como
um organismo vivente, pode crescer e transformar-se sem perder sua unidade. E com
isto, inventa outra idéia que penetrará muito fundo na mente humana — talvez mais
que a idéia dos padrões matemáticos de Platão — que é o que podemos chamar
deevolução orgânica, complementar à de totalidade orgânica. Tão fundo como a idéia
platônica penetrou no setor da astronomia e da física, a idéia de Aristóteles penetrará
fundo nas ciências da natureza terrestre, na biologia, na História, na Estética e mais
tarde no que hoje chamamos de ciências humanas ou ciências sociais. Praticamente
todos os esforços das ciências humanas, desde que existem, é no sentido de
conseguirem se organizar como totalidade orgânica, mais ou menos no sentido em que
Aristóteles organizou o conjunto das ciências no seu tempo. A idéia platônica dos
padrões matemáticos rende o seu máximo, alcança o seu pleno rendimento na física
clássica e na nova astronomia de Kepler. Kepler, Galileu, Newton representam o auge
da matematização da realidade. Mas a idéia aristotélica da totalidade orgânica, se bem
que exerça grande influência, até hoje ainda não rendeu todos os seus frutos. Hoje em
dia, o holismo é uma nova tentativa de organizar o sistema das ciências segundo a
idéia da totalidade orgânica. Esta idéia não está realizada ainda. Por isto este curso se
chama "Pensamento e Atualidade de Aristóteles". Quando vemos hoje um esforço
gigantesco no sentido de emendar as ciências humanas com as naturais, como se vê,
por exemplo, na obra deste grande antropólogo Edgar Morin, todo o esforço dele e de
toda a corrente que representa não é nada mais que a tentativa de devolver ao
sistema das ciências aquela organicidade sistêmica que Aristóteles tinha lhes
imprimido no começo, e que para nós se perdeu de crise em crise. Sendo assim, vemos
Olavo de Carvalho
19
que a obra de Aristóteles ainda está rendendo frutos e este é o motivo principal por
que temos de estudá-la. Praticamente tudo o que está acontecendo no mundo das
ciências hoje só pode ser compreendido como eco distante desta inspiração
aristotélica do sistema das ciências, de dar às ciências uma
organicidade enciclopédica ( kyklos = círculo, que representa totalidade, e paidos =
educação, cultura, formação da mente humana ), todas concorrendo para um mesmo
fim, como ocorre com os órgãos do nosso corpo.
Mas tudo isso não quer dizer que o legado aristotélico seja por toda parte bem
recebido com afetuosa gratidão. Esse legado parece que não pode ser adquirido senão
através do conflito —- dialeticamente, no sentido hegeliano do termo. Do mesmo
modo que Aristóteles foi muito combatido em vida, vamos ver que uma discussão com
Aristóteles, muitas vezes amarga e cheia de recriminações tem acompanhado a
história do pensamento ocidental há dois mil anos. Mas nem todas as discussões
foram construtivas. As tentativas de destruir Aristóteles, de suprimir o seu legado da
memória humana também foram muitas, ao longo da história. Aí já não se trata da
legítima contestação científica, que Aristóteles apreciava tanto que fez dela uma
técnica ( a dialética ), e sim de manifestações de ódio irracional à inteligência mesma.
Mas quando crêem tê-lo matado de um lado, ele ressurge de outro. De certo modo,
Aristóteles tem constituído para a civilização ocidental um fantasma, como o de
Merlin, "um sonho para alguns e um pesadelo para outros" , do qual ninguém se livra
completamente e que, mais dia menos dia, cruzará o caminho de quem busca a
verdade, para ajudá-lo mas também para testá-lo. Daí o sentimento ambíguo, de
amor-ódio, que ele inspira a muitos. Na verdade, isso não acontece só no Ocidente,
mas também no Oriente. No mundo islâmico há escolas de espiritualidade que vêem
Aristóteles como um profeta, um enviado de Deus, e outras que o consideram um
tentador diabólico. A Igreja ortodoxa russa chegou a proibir a sua leitura, enquanto
Sto. Tomás o considerava o príncipe dos filósofos. Após dois mil anos, é melhor tentar
achar com ele ummodus vivendi. Para mim, a questão está resolvida: considero-o o
melhor dos mestres, o mais honesto, o mais sincero, o mais sensato, o mais humano,
inclusive em seus defeitos mais óbvios.
2a parte
Na primeira parte da aula, dei uma idéia geral sobre Aristóteles e sobre nossos motivos
para estudá-lo. Agora vou expor o método a ser usado neste curso. Mas antes devo
Pensamento e Atualidade de Aristóteles
20
responder à pergunta que um aluno me fez no intervalo, a respeito da natureza
matemática dos arquétipos platônicos, questão que é importante para o que
estudaremos mais tarde, porque veremos que uma das principais modificações
introduzidas por Aristóteles foi justamente a de desgeometrizar, ou desmatematizar, a
teoria do conceito, fazendo do pensamento lógico menos uma estrutura formalmente
pura do que um método para o conhecimento da realidade efetiva. A explicação da
natureza matemática do "mundo das Idéias" encontra-se sobretudo no Timeu, um dos
livros mais difíceis e mais interessantes de Platão. O ensinamento de Platão se dividia
em duas partes, escrita e oral. O escrito era usado como instrumento de divulgação,
sendo o melhor de sua filosofiia reservado para o ensinamento oral. Durante quase
dois mil anos, este ensino oral constituiu um dos maiores enigmas da história da
filosofia e só muito recentemente, com os progressos da documentação, é que foi
possível esboçar uma reconstituição do que teria sido o ensinamento oral de Platão.
Reconstituição feita a partir dos testemunhos e depoimentos deixados, e mediante
comparação desses materiais com os textos de Platão. Como tudo isto ficou disperso
ao longo da história, não havia muitos meios de reunir esse material. No século XX,
quando o sistema internacional de documentação chegou a uma perfeição quase
luxuosa, foi possível fazer esta reconstituição, empreendida sobretudo por um grande
historiador da filosofia italiano chamado Giovanni Reale. Por uma coincidência, um
filósofo brasileiro chamado Mário Ferreira dos Santos havia tentado a mesma
reconstituição, não por meios histórico-filológicos como Reale, mas sim por meios
puramente filosóficos e especulativos, e seus resultados foram singularmente
idênticos aos de Reale, só que apresentados quinze anos antes! Mário Ferreira é o
único grande filósofo que este país produziu, para o meu gosto o maior dos brasileiros,
mas infelizmente o nosso meio universitário continua a ignorá-lo, por um misto de
ignorância presunçosa e despeito. Tanto os resultados de Mário Ferreira como os de
Reale permitem colocar Platão, com bastante segurança, como herdeiro da escola
pitagórica. Em suma, a famosa doutrina das idéias somente se esclarece se
entendermos que, para além do mundo das idéias, Platão admitia uma terceira
instância, que seria o mundo dos princípios ou leis — o mundo dos modelos
matemáticos que estruturam a realidade. Neste caso teríamos não dois, mas três
planos: primeiro, o da realidade sensível; segundo, o mundo das idéias, e, terceiro, o
mundo das leis ou princípios ( relações matemáticas, basicamente, mas no sentido
não-quantitativo das matemáticas, isto é, como lógica pura ). Esta interpretação de
Platão é bastante recente na historiografia. Existe em português uma resenha do livro
de Giovanni Reale feita pelo Pe. Henrique Lima Vaz na revista Síntese, de Belo
Horizonte. Os estudos filológicos a respeito de Platão e Aristóteles evoluíram muito no
século XX. Os estudiosos recentes que deram contribuições substantivas são em
grande número. Mas isto nos leva de volta à questão do método.
Olavo de Carvalho
21
Progressos da compreensão
e progressos da incompreensão:
história e filologia.
À medida que nos afastamos, no tempo, de um autor antigo, existe um duplo processo
de transformação das idéias que temos acerca dele. Por um lado, nos afastamos das
preocupações reais que constituíram o ponto de partida para ele. Na medida em que
vivemos uma outra situação social, cultural e psicológica distinta e cada vez mais
diferente, temos muitas vezes dificuldade em nos situarmos na motivação de onde o
filósofo partiu. Temos outros problemas e outras perguntas — não aquelas de onde
partiram Platão e Aristóteles. Neste sentido, tendemos a ver as obras deles como um
conjunto de respostas sem as respectivas perguntas. É claro que todo e qualquer texto
que se estude subentende uma situação humana, real, de onde emergiu, por
necessidade e não por capricho, a sua indagação filosófica, e de onde o autor partiu e
para a qual ele apresenta uma reação pessoal, ou uma resposta pessoal. De modo que
cada livro antigo é a metade dele mesmo — a outra metade está subentendida na
situação, que não vem reeditada junto com o texto. E esta, à medida que o tempo
passa, vai-se tornando cada vez mais difícil de imaginarmos com verossimilhança, com
uma imaginação vívida. Ou seja, a situação do autor antigo vai-nos parecendo cada vez
mais algo mitológico, e nossa compreensão do texto se torna deficiente, na medida em
que os atos humanos destituídos de sua motivação nos parecem postiços, esquisitos,
sem sentido. Por outro lado, à medida que o tempo passa, os meios de pesquisa, de
reconstituição dos textos e dos fatos históricos progridem assustadoramente. Hoje
temos uma idéia muito mais correta do que é o conjunto dos textos de Platão ou
Aristóteles do que tínhamos quinhentos anos atrás. Hoje em dia existe uma precisão
muito maior com relação à cronologia dos escritos. E até certo ponto, saber a ordem
cronológica da produção dos escritos é importante para a compreensão da obra.
Principalmente no caso de obras que chegaram até nós em estado mais ou menos
fragmentário, como é o caso das obras de Aristóteles. No caso de alguns de seus
textos, não sabemos bem como eles foram montados. O livro conhecido
como Metafísicaresulta de vários enxertos de textos feitos em épocas distintas. Ora, se
temos um texto escrito pelo autor aos 28 anos e outro aos 60, tratando mais ou menos
do mesmo assunto, podemos subentender uma continuidade de argumentação que na
realidade não existe, que foi projetada ali pelo leitor. Do mesmo modo, textos que
estão desconectados no seu conteúdo podem ser contemporâneos e corresponder
mais ou menos a um idêntico fundo de preocupações. A ciência da filologia, que
procura a reconstituição, a ordenação e a compreensão profunda dos textos, referidos
à cronologia, à situação histórica etc., é a ciência que vem em nosso socorro neste
sentido.
À mesma medida que o decurso do tempo nos torna um filósofo mais ou menos
incompreensível, também os progressos da filologia nos fornecem os meios de
Pensamento e Atualidade de Aristóteles
22
restaurar artificialmente esta compreensão que vai nos faltando. É uma espécie de
compensação artificial da perda natural. Como vitaminas que retardem o
envelhecimento. À medida que os textos envelhecem, a filologia trata de rejuvenescê-
los.
A incompreensão histórica:
historicismo
e desistoricismo.
Mas ao mesmo tempo existe outro desgaste mais profundo que nos dificulta a
compreensão. A nossa civilização é a primeira que tem acesso a documentos da
história de todas as outras civilizações e todos os outros tempos. Desde que começa a
se constituir a ciência histórica, a partir do século XVIII, e a moderna filologia que já
vinha desde o Renascimento, vamos conseguindo reunir uma documentação cada vez
melhor, cada vez mais extensa, cada vez mais depurada a respeito de todas as épocas,
lugares e civilizações. A partir do começo deste progresso da ciência histórica é grande
a tentação de forjar imaginativamente uma espécie de esquema da unidade do
desenvolvimento da história humana, com base nesta documentação reunida. À
medida que começa a progredir a ciência histórica, também começa a progredir
a filosofia da história ( séculos XVIII e XIX ), que propõe uma visão global do
desenvolvimento humano, no sentido, por exemplo, de um progresso em uma
determinada direção. É aí que o progresso da ciência histórica é compensado também
por um progresso do erro. Porque as primeiras grandes generalizações que a história
da filosofia faz são evidentemente erradas, já que sua documentação é insuficiente e
não há métodos ou critérios maduros. E à medida que a documentação nos séculos
seguintes ( XIX e XX ) progride, tendemos a receber esses documentos já com uma
perspectiva viciada pelas primeiras filosofias da história que surgiram. De modo que,
por exemplo, a idéia de um progresso linear do conhecimento está tão arraigada na
nossa mente hoje, que dificilmente conseguimos ver uma filosofia antiga, exceto como
algo que está "situado no seu tempo" e que já não nos diz nada exceto como
documento histórico. Como se Aristóteles ou Platão tivessem falado apenas para os
gregos, na situação grega, e não para nós. Esta perspectiva é denominadahistoricista.
Situa cada idéia no seu contexto histórico, cultural, social, e fazendo isto, ao mesmo
tempo ela nos ajuda a compreender essas idéias em função dos seus motivos, mas por
outro lado, ela distancia de nós estes textos, na medida em que os refere às
preocupações imediatas das quais brotaram, e distingue radicalmente estas
preocupações das nossas: os antigos ficam presos no "seu tempo" e nós no "nosso
tempo", como se os seccionamentos do tempo, na verdade invenções artificiais dos
historiadores, fossem distinções reais e como se não houvesse, por trás da
irreversibilidade do calendário, sutis intercâmbios de afinidade entre tempos distantes
entre si.
Olavo de Carvalho
23
A perspectiva historicista, que surge no século XVIII e vai-se afirmando ao longo de
todo o século XIX e que está profundamente embutida na nossa mente —- como uma
espécie de dogma no qual acreditamos sem exame —- acredita que situar as coisas na
sua devida perspectiva temporal é a melhor ou única maneira de compreendê-las. Ora,
na medida em que você situa os fatos e as idéias num tempo histórico, você também
os relativiza, os torna relativos a esse tempo, e atenua ou diminui a importância, a
significação, o valor e a eficácia que possam ter para nós hoje. A compreensão
historicista torna-se, por isto, uma verdadeira descompreensão, um afastamento
artificial do sentido das mensagens. Ao invés de reviver os valores do passado, ela os
enterra no "seu tempo", deixando-nos fechados na atualidade do presente como
numa redoma de sombras.
Este é um problema de método da maior importância para o que vamos ver depois.
Faça um modelo em miniatura e imagine que todas as idéias e sentimentos que você
teve ao longo de sua vida você referisse exclusivamente e absolutamente à etapa da
sua vida onde essas idéias e sentimentos surgiram, negando-lhes qualquer eficácia ou
importância na sua vida presente. Por exemplo, se certas crenças ou sentimentos que
surgem na infância, você os referisse inteiramente à situação de infância, e os
explicasse exclusivamente em função daquele momento, como se a criança que você
foi estivesse morta e enterrada. Isto quer dizer que cada idéia que você tem só seria
válida para aquele momento, não conservaria nenhuma importância para os
momentos seguintes. Por exemplo, na infância ou na adolescência, todos temos certas
idéias e valores. A infância cultiva mitos, lendas, heróis, amores. Na adolescência
temos grandes ambições e planos. Se depois, aos cinqüenta anos, digamos, fazendo
nossa autobiografia, estudando-a "cientificamente", referimos estas idéias
exclusivamente às etapas em que surgiram, tiramos a validade atual que elas possam
ter, julgamos a nossa infância com olhos do homem maduro, considerando-o um juiz
absoluto de uma infância que já não não pode falar, e que será condenada sem ter
sido ouvida, assim como mais tarde olharemos a idéia do homem maduro com a
perspectiva do velho que seremos, e esse homem maduro, já não tendo nada o que
dizer ao velho, será condenado por este num tribunal onde o réu está sempre ausente.
Se, das épocas que vão passando, nada conserva a validade sempre atual de uma
primavera que não passa, nossa vida não passa de uma coleção de cadáveres —- ou,
pior ainda, de uma sucessão de traições e abandonos. Isto significa que situar as idéias
na sua perspectiva histórica, por um lado, é compreendê-las em função do momento,
mas por outro lado é chutá-las para aquele momento, e tirar delas a vitalidade que
possam ter nestemomento. O historicismo, por um lado, nos dá a compreensão da
história, mas se ele eleva a história, isto é, o desenvolvimento temporal, a supremo ou
único critério do entendimento, ele situa cada idéia no seu tempo e cada idéia só é
válida no seu tempo. Ora, se as idéias só fossem válidas no seu tempo, na realidade
não seriam válidas para tempo nenhum, porque representariam apenas imagens que
passaram pela mente humana e que somente expressam aquele momento, cuja
Pensamento e Atualidade de Aristóteles
24
duração pode ser de um século como pode ser de um dia. Ora, se fosse assim, se as
idéias expressassem exclusivamente aquele momento, sem nenhuma validade para os
momentos seguintes, não poderíamos nem sequer compreendê-las. De modo que o
historicismo que cria este afunilamento e refere as idéias aos momentos e situações
históricas tem de ser compensado por uma operação inversa, uma espécie de
"desistoricismo", que julgue estas idéias não pelo momento onde surgiram, mas pelo
que elas exigem e cobram de nós hoje. Isto é válido para a história do mundo como
para a nossa história pessoal. Lembro-me de uma sentença de Alfred de Vigny, grande
poeta do Romantismo francês, segundo a qual "uma grande vida é um sonho de
infância realizado na idade madura". Sim, se o homem maduro já não recorda os seus
sonhos de infância, ou se, recordando-os, já não sente o apelo da sua mensagem,
então como ele irá julgar e compreender a trajetória da sua vida, exceto como uma
sucessão de imagens que, não tendo sentido umas para as outras, não formam, juntas,
sentido nenhum? Um outro grande escritor, Georges Bernanos, quando lhe
perguntaram para quem escrevia, respondeu: "Para o menino que fui." O menino é o
juiz do homem, porque aquilo que vem depois é a realização, ou o fracasso, das
expectativas e sonhos de antes.
Ora, se julgarmos a nossa personalidade de hoje à luz das nossas aspirações de infância
ou de juventude, freqüentemente o resultado deste julgamento será negativo. Neste
sentido, o historicismo é uma espécie de analgésico da consciência, porque ele nos
dispensa de prestar satisfações às nossas idéias e projetos antigos, ele secciona a vida
de tal modo que ela perde a unidade. Ora, o sentido dos meus atos e da minha vida
agora só existe se eu os confrontar com os meus sonhos e projetos do passado. Porque
você só pode entender aonde chegou se comparar com aonde queria ir.
Na sua maneira de compreender o pensamento antigo, a maior parte das pessoas
ainda está hoje sob o domínio do historicismo. Ou seja, hoje compreendemos
muitíssimo bem as idéias de Aristóteles ou de Platão, em função de seu momento e
lugar de origem. Mas ainda não realizamos a operação desistoricista, que nos levaria a
compreendê-los em função daquilo que eles têm a dizer, não para os gregos, mas para
todos os homens, inclusive nós. Conseguimos julgar as suas idéias em função do ponto
onde viemos parar, mas ainda não fizemos a operação contrária que é a de julgar a nós
mesmos em função de Platão e Aristóteles, ou da antiguidade em geral. Fazemos do
nosso tempo o juiz da Antiguidade e jamais convocamos a Antiguidade a depor sobre o
nosso tempo. Julgamos, como dizia Karl Kraus, para não sermos julgados. Para corrigir
isso, devemos desligar-nos da perspectiva unilateramente temporal e evolutiva, e,
invertendo o historicismo, julgar o presente com os critérios do passado.
Esta operação de vai-e-volta foi realizada, por exemplo, em outro sentido —- não
temporal, mas espacial —-, na ciência da antropologia. A antropologia começa a surgir
no século passado com os viajantes, sobretudo ingleses. Inglês tem esta mania de
Olavo de Carvalho
25
viajar e se instalar em tudo que é lugar exótico do mundo. Os ingleses vão
desenvolvendo a antropologia na medida em que mandam para a Sociedade Científica
de Londres informações sobre os hábitos, costumes, valores de todas as sociedades do
mundo. Graças a este imenso acúmulo de informações sobre as outras sociedades foi
possível de surgir no campo da antropologia o relativismo antropológico. Isto significa
que não devemos olhar as outras culturas somente com os olhos da nossa, mas tentar
fazer o contrário: olhar-nos também com os olhos da outra cultura. Se o antropólogo
inglês está entre os pigmeus da Nova Guiné, não interessa só o que o inglês pensa
sobre eles, mas o que eles pensam do inglês. Isto se chamou relativismo
antropológico. Também não deve ser absolutizado, transformado num dogma da
equivalência de todos os valores, mas é um método útil, porque ajuda a compreender
os outros povos nos seus próprios termos.
O nosso historicismo precisa ser compensado por uma espécie de relativismo, não no
sentido geográfico, como fizeram os antropólogos, mas no sentido temporal, de olhar
o nosso tempo com os olhos de outros tempos. Se existe um relativismo cultural, tem
de existir um relativismo histórico também. O próprio historicismo realiza uma
relativização, mas no sentido de encaixar cada idéia no "seu tempo" e fazer uma
coleção de "idéias-tempo", cada qual no seu vidrinho cronológico, bem fechadinha e
sem contaminação de outros tempos, isto é, todas igualmente neutralizadas e
"relativizadas". Mas, como este tipo de relativismo neutralizante é próprio do nosso
tempo e resulta de uma ideologia cientificista que é bem da modernidade, praticá-lo é
impor uma perspectiva moderna aos outros tempos, fingindo respeitá-los nas suas
respectivas especificidades estanques. Não é isto o que proponho. Proponho julgar o
nosso tempo com os olhos de outras épocas, não a título de diletantismo relativista,
mas como um meio de autoconhecimento e uma exigência prévia do método científico
em história. Neste sentido, a antropologia, que muitas vezes, com base em valores de
outras culturas, fez críticas profundas à nossa cultura presente, tem sido mais sensata
do que a História, ou pelo menos do que a História do pensamento, onde os valores do
presente continuam a medida de todas as coisas.
Se achamos que para ter uma descrição objetiva de uma outra cultura precisamos
olhar com uma espécie de dupla via, do nosso ponto de vista e do ponto de vista dela,
é evidente que o julgamento de uma outra época implica também esta dupla via. Não
olhar apenas o lugar que Platão e Aristóteles ocupam dentro de uma evolução cultural
que chegou até nós, mas inverter esta evolução e perguntar o que Platão e Aristóteles
diriam vendo o ponto a que chegamos. Esta é uma exigênciasine qua non do método
científico. A esta fase, os estudos sobre a antiguidade ainda não chegaram. Anuncio
isto como ideal futuro. Por enquanto, a quase totalidade dos livros conseguiu apenas
reconstituir o mundo grego, situando-o na perspectiva do seu tempo. Mas na mesma
medida em que se aperfeiçoa esta visão histórica, esse mundo grego vai-se tornando
distante e diferente do nosso, e com isto ele perde gravidade, presença, realidade. É o
Pensamento e Atualidade de Aristóteles
26
mesmo que dizer: "Que importância tem a opinião sobre você de um sujeito que mora
longe, que você nunca encontrou, e ademais já morreu há muito tempo?" Agora, se o
fantasma deste sujeito ressurgir e começar a julgar os seus atos neste momento, ele
ganha atualidade, adquire gravidade. As outras culturas — culturas indígenas, por
exemplo — ganharam da antropologia este privilégio de poderem julgar a nossa
cultura. As consequências práticas disto foram imensas, como se vê pelo crescimento
do movimento indigenista e pela incorporação de valores indígenas na cultura atual.
Por que este privilégio deveria ser concedido apenas no sentido geográfico, e não no
sentido histórico? É simples: por que então certas idéias e valores que decretamos
"ultrapassados" mostrariam todo o seu vigor, todo o esplendor da sua juventude
imperecível, e cobrariam de nós um dever de perfeição a que o historicismo nos ajuda
a fugir.
O método filológico da compreensão dos textos só se tornará completo e perfeito
quando à perspectiva historicista acrescentarmos este giro desistoricista. Ou seja,
quando o afunilamento que remete o passado para longe for invertido e colocarmos
diante de nós esses antigos, como nossos juízes.
Esta será nossa preocupação permanente neste curso. Não entender somente
Aristóteles como um fenômeno que aconteceu há 2.400 anos, mas olhar a nós mesmos
como um fenômeno que aconteceu 2.400 anos depois de Aristóteles.Como poderíamos
reviver a perspectiva dos antigos e torná-los nossos juízes? É muito simples. Pela
mesma maneira pela qual você julga sua vida de adulto em função dos seus projetos
de criança e adolescente. Você revivifica estes projetos, estes sonhos e pergunta: o
que a criança que fui diria de mim hoje? E é somente a partir daí que você pode saber
se sua vida foi um fracasso ou um sucesso. Temos de verificar esta perspectiva dos
antigos e perguntar: Naquele tempo, o que eles esperavam que acontecesse, ou o que
desejavam que acontecesse no futuro? Quais eram os sonhos, projetos, ambições e
valores que eles projetavam nas gerações futuras? Que é que eles esperavam da sua
posteridade que somos nós? Se sabemos, graças à filologia, à interpretação dos textos
e ao historicismo, julgar nossos antepassados, podemos, graças a um esforço de
imaginação fundado no mesmo historicismo, tornar atuais novamente as expectativas
que os antigos fariam sobre seus descendentes, que somos nós.
Como Aristóteles
julgaria a nossa visão
do aristotelismo?
Às vezes penso que se Aristóteles visse que, 2.400 anos depois dele, ainda estamos
lutando para ver se conseguimos organizar as ciências num sistema orgânico, que
ainda estamos discutindo "holismo", ele acharia que somos muito lerdos e atrasados.
Ele diria: "Por que se afastaram tanto desta idéia para ter de voltar a discuti-la 2400
anos depois?" Aristóteles provavelmente apreciaria muito as obras de Edgar Morin,
Olavo de Carvalho
27
mas estranharia que tivessem sido escritas só no século XX, e não no II ou III.
Aristóteles provavelmente julgaria que o progresso na história das idéias é muito
tortuoso, muito lento e muito problemático.
Também creio que ele ficaria muito surpreso com a maior parte dos debates que
surgiram em torno dele ao longo da História. Ele diria talvez: "Nenhum desses que
vocês estão discutindo sou eu. Todos estes Aristóteles que vocês discutiram são sua
própria invenção, uma sucessão de Aristóteles imaginários, uns diferentes dos outros,
nos quais uns projetam o seu herói e outros o seu antagonista. Uns o divinizam e
outros o diabolizam. E ficam lutando com estas sombras. Mas eu não tenho
rigorosamente nada a ver com isto. Não sou nem cristão nem anticristão, nem
racionalista nem empirista, nem materialista nem idealista, não sou nem um pré-Hegel
nem um neo-Platão, nem um anti-isto nem um pró-aquilo, e nada tenho contra nem a
favor dos partidos que surgiram depois de mim. Sou apenas um homem de ciência
buscando compreender o real e esperando que meus sucessores façam o mesmo com
igual empenho."
Por isto mesmo, concebi este curso e achei que, para chegarmos ao Aristóteles real, de
carne e osso, para presentificá-lo de alguma maneira, temos de partir do exame dos
Aristóteles imaginários. Algumas das próximas aulas analisarão as "imagens de
Aristóteles". Imagens não são Aristóteles, mas o que cada época pensou que
Aristóteles fosse, e as discussões que estabeleceu com este estereótipo, o qual
coincide em parte com o Aristóteles real, mas em parte se afasta dele. Hoje podemos
ter toda esta perspectiva graças à imensa documentação acumulada, graças aos
prodígios da ciência histórica e filológica que nos coloca à disposição um imenso
material (ver Documentos Auxiliares II ). Nosso estudo vai começar como uma
investigação dos equívocos humanos. No mundo da filosofia e da ciência também
impera, muitas vezes a fantasia, a ignorância, a imaginação projetiva, e isto nos obriga
a começar o nosso estudo aristotélico com uma espécie de psicanálise das imagens de
Aristóteles. Só isto nos dará uma idéia aproximada das relações que temos e das que
podemos ter com ele hoje.
Na medida em que Platão e Aristóteles formam uma espécie de paternidade da
civilização ocidental, é natural ainda que esta civilização faça sobre eles todas as
projeções edípicas a que a neurose tem direito. Muitas vezes, na luta pela auto-
afirmação, o homem acredita dever exorcizar a imagem paterna que no seu entender
limita, restringe etc. etc. Lutas contra a imagem paterna são algo em que todo mundo
se envolve numa certa etapa da vida. Mas um dia essa etapa chega ao fim, e você tem
de entrar num acordo com a imagem paterna, absorvendo os seus valores positivos e
perdoando, com bondade, os negativos. No entanto, nossa civilização ocidental
prosseguiu neste conflito edípico com Platão e Aristóteles, e principalmente com
Pensamento e Atualidade de Aristóteles
28
Aristóteles, até pelo menos o século XIX. Não sei se ainda estamos nele, mas me
parece que hoje em dia a tendência é para uma atitude mais compreensiva.
Alguns exemplos de imagens mutiladas, frutos do do desconforto permanente —- ou
cíclico —- que Aristóteles causa há dois milênios:
1. Na Igreja Ortodoxa Russa, Platão e Aristóteles foram tidos —- e em certas
circunstâncias ainda são —- como dois verdadeiros demônios. Sua leitura é
considerada prejudicial para a salvação das almas — hoje. A Igreja Russa surge
no século VIII; são doze séculos de preconceitos.
2. No mundo islâmico, existem algumas correntes esotéricas que consideram
Platão e Aristóteles como profetas e até mesmo como anjos do Senhor — algo
assim como uma dupla de Hermes Trimegistos, descidos ao mundo para trazer
uma revelação. Uma outra corrente os olha mais ou menos como a Igreja
Russa.
3. No Ocidente cristão, as primeiras reações contra Platão e Aristóteles foram do
mais incompreensivo desprezo. Alguns, como Tertuliano, logo identificaram a
filosofia grega como a "sabedoria mundana" de que fala a Bíblia. Os mais
moderados, como Clemente de Alexandria, aceitaram a filosofia como uma
introdução ao cristianismo, mas nada além disto.
4. Enquanto isso, no lado pagão, a escola epicúrea, mesmo depois da edição dos
textos de Aristóteles por Andrônico de Rodes, continuava a difundir, com
mecânico servilismo, as opiniões de seu fundador a respeito de Aristóteles,
baseadas apenas nos escritos publicados em vida do autor e de natureza
puramente literária.
5. Após a edição de Andrônico, os escritos de Aristóteles desapareceram do
Ocidente pela segunda vez, só retornando dez séculos depois, por intermédio
de traduções latinas feitas de versões árabes ( vocês podem imaginar com
quantos erros, saltos e interpolações ).
6. Divulgados em tradução latina, os escritos de Aristóteles causaram escândalo,
porque pareciam contrariar de frente os dogmas cristãos. Muitas teses de
Aristóteles foram formalmente condenadas pelos concílios, antes mesmo que
alguém se desse o trabalho de procurar assegurar-se do sentido dos textos.
7. Foi só com Sto. Alberto e Sto. Tomás, já no século XII, que a Igreja, muito
cautelosamente, se reconciliou com Aristóteles. É um casamento que vem
durando quase oito séculos, com alguns percalços. Esta reconciliação, longe de
ser aceita unanimemente logo após formalizada, continuou sendo combatida e
discutida dentro da própria Igreja até o século XIX. Hoje em dia todos sabem
Olavo de Carvalho
29
que Sto. Tomás de Aquino é um discípulo e um seguidor cristão de Aristóteles.
Todos vêem o império que Santo Tomás de Aquino exerce sobre o pensamento
cristão e imaginam ingenuamente que as coisas sempre foram assim. Mas a
posição de que Santo Tomás de Aquino desfruta hoje dentro da Igreja só foi
estabelecida no século XIX, meia dúzia de séculos depois de sua morte. Mesmo
assim, muitos somente o aceitaram porque o Papa mandou. O famoso
aristotélico-tomismo só existe no mundo como posição estabelecida a partir do
século XIX, depois de uma bula de Leão XIII, o qual era pessoalmente um
filósofo aristotélico e seguidor de Tomás, resultando que a mera obediência a
esse Papa acabou virando uma escola filosófica sob o nome de aristotélico-
tomismo, nome que o próprio Tomás sem dúvida acharia um tanto cômico.
8. Outra imagem de Aristóteles é aquela que se formou com os debates do
Renascimento em torno da astronomia. Aristóteles formulou, na física, os
rudimentos de uma astronomia onde as órbitas dos planetas seriam circulares.
Esta imagem foi refutada pelos cálculos de Kepler, e chegou-se à conclusão de
que a física de Aristóteles, neste ponto, estava errada. A partir daí, Aristóteles
virou um símbolo de todo o saber medieval, que alguns autores nesta época
pretendiam derrubar, na ilusão de que um tiro em Aristóteles acertaria na
cabeça da Igreja Católica, sem que jamais lhes tivesse ocorrido que a Igreja
vivera perfeitamente bem sem Aristóteles durante doze séculos. Pode-se ler
em quase todos os livros de história da ciência — livros populares — a idéia de
que Aristóteles imperou sobre a ciência medieval e foi derrubado na
Renascença. Esta sentença é uma idéia de senso comum, hoje repetida a torto
e a direito. É uma idéia totalmente errada. Em primeiro lugar, Aristóteles
começa a conquistar algum lugarzinho na ciência medieval somente a partir de
Sto. Tomás de Aquino, já na última fase da Idade Média, e mesmo assim não
obteve uma repercussão e aceitação imediatas, tanto que várias de suas teses
foram também impugnadas por concílios, na época. Depois se retirou a
impugnação. De outro lado, existe um fenômeno muito esquisito que é o de
que um dos livros de Aristóteles — a Poética — fica desaparecido desde o
século I até o século XVI, e quando é reencontrado, traduzido e comentado,
serve de molde à criação de tudo o que hoje chamamos estética do classicismo,
da qual são amostras o teatro francês de Racine, Corneille e Voltaire. A poética
de Aristóteles começa a exercer um império absoluto sobre o gosto literário do
mundo moderno, justamente no mesmo instante em que a física aristotélica
estava sendo rejeitada. E os escritores e poetas, a partir da Renascença,
seguiram Aristóteles com mais subserviência do que todos os físicos medievais.
A idéia de que Aristóteles imperou na Idade Média e de que nos livramos dele
na Renascença é verdadeira, portanto, só se for olhada do ponto de vista da
história de uma ciência em particular, que é a astronomia. Do ponto de vista da
Pensamento e Atualidade de Aristóteles
30
história literária, é exatamente o contrário. Como se vê, as generalizações que
dividem a história em etapas são muito falhas.
9. Nos séculos XIX e XX surge um novo debate aristotélico, desta vez no campo da
biologia, em torno da idéia de uma causa final (finalidade do mundo). Segundo
Aristóteles, os fenômenos biológicos, além de serem suscitados por causas
eficientes que os provocam, também obedecem a um sentido finalístico, a um
senso de propósito fundado na unidade cósmica. Há cem anos prossegue um
debate dentro da biologia em torno deste ponto. O livro de Jacques Monod,
por exemplo, O Acaso e a Necessidade, é uma vasta discussão com Aristóteles.
10. Cada nova descoberta importante, cada nova escola filosófica, logo cria uma
discussão com Aristóteles, desde o exclusivo ponto de vista dessa descoberta
em particular, como se o ponto que é central para seus autores fosse central
também para Aristóteles e como se o pensamento deste pudesse ser
reconstruído tomando esse ponto como base. Assim, pró ou contra, novas
imagens de Aristóteles foram produzidas desde o ponto de vista da evolução
biológica ( para saber se Aristóteles era darwinista ou não ), do marxismo ( para
alguns marxistas, Aristóteles é um precursor do materialismo, para outros é um
idealista incurável ), da nova lógica matemática ( para decidir se Aristóteles
adiantou ou atrasou o descobrimento dela ), e assim por diante. Isto é para
vocês terem uma idéia de como estes temas aristotélicos —- deformados o
quanto sejam pela parcialidade dos interesses que levam a buscá-los em cada
caso —- voltam obsessivamente e de certo modo são a gasolina que vem
movendo a máquina das idéias há dois mil anos.
11. O que vamos fazer, então, é passar em revista primeiro estes vários Aristóteles,
ou pedaços de Aristóteles, contra e a favor dos quais surgiram debates, para
ver se por trás deles encontramos um Aristóteles real e inteiro. É evidente que
se os debates em torno de um filósofo, durante um certo tempo, se
concentram num determinado ponto, este ponto passa a ser considerado o
centro do seu pensamento. Isto pode se prolongar por dois, três, quatro
séculos. Por exemplo, quando os cristãos lêem Aristóteles pela primeira vez e
vêem que ele afirma que o mundo é eterno, ficam escandalizados, porque na
perspectiva cristã Deus criou o mundo numa certa data. Antes o mundo não
existia, e depois do "Fiat Lux" passou a existir. Aristóteles dizia que o mundo
sempre existiu, o que produziu séculos de encrenca no mundo cristão.
Resultado: todos esses cristãos, desde os primeiros até o tempo de Sto. Tomás
de Aquino —- dez séculos —- constroem a sua interpretação de Aristóteles, pró
ou contra, tomando como ponto de partida este ponto de discordância. Todas
as demais teses de Aristóteles ficam referidas a esta, como as consequências
são derivadas da causa, e o resultado é que as teses mais importantes de
Olavo de Carvalho
31
Aristóteles ficam jogadas para a periferia, obscurecidas pelo debate da
eternidade do mundo. Mais tarde, quando, num contexto completamente
diferente, surge a discussão em torno da circularidade das órbitas planetárias, a
Renascença constrói sua imagem de Aristóteles tomando como centro este
ponto que estava em debate. Isto é tão absurdo como tentar construir o
retrato do indivíduo tomando como centro as objeções que outros tiveram
contra ele, por exemplo o trocador do ônibus que ele pagou com uma nota
alta, o bedel que ralhou quando ele chegou atrasado para a aula, o motorista
cujo caminho ele fechou num cruzamento, etc. Nunca se chega a nada — a não
ser uma coleção de retratos que têm como centro de perspectiva não o
personagem, mas o interesse acidental que este ou aquele aspecto dele
suscitou para este ou aquele indivíduo. A história das imagens de Aristóteles,
ou de Platão, e de muitos outros filósofos é assim: você vem andando por um
caminho e tropeça com um filosofo; ou adere a ele ou se opõe a ele em algum
ponto, e o conjunto de imagens que você forma dele é construído não a partir
dele, mas a partir do seu calo que ele pisou acidentalmente. É inevitável que
seja assim —- o que não quer dizer que seja justo. É inevitável que o
conhecimento do filósofo comece assim, ao sabor dos encontros e
desencontros acidentais. Mas algum dia é necessário fazer uma revisão do todo
e tentar fazer justiça, adotando um ponto de vista que abarque, transcenda e
unifique todas estas perspectivas parciais, acidentais e desencontradas. É mais
ou menos esta a ambição deste curso.
Limitações da minha
perspectiva pessoal
sobre Aristóteles.
Este curso transmite o resultado de uma convivência de mais ou menos quinze anos
com Aristóteles. Tenho de reconhecer que também eu me defrontei com ele movido
por algum interesse pessoal meu que talvez não tivesse nada de aristotélico, e comecei
a reconstruí-lo desde aquilo que ele representou para mim. A diferença é que estou
perfeitamente consciente de ter feito isto e estou consciente de que a minha
perspectiva sobre Aristóteles é acidental. E sobretudo estou consciente de que, se
tenho uma visão dele, ele também tem o direito de ter uma visão de mim. Isto quer
dizer que toda a vez que eu examinar uma idéia dele e tentar expô-la, tenho de
procurar ver a coisa dos dois pontos de vista. Tenho de estar consciente de por que
esta idéia me chamou a atenção, de qual o momento da minha vida intelectual em que
aquilo entrou nas minhas cogitações. Mas também tenho a obrigação de tentar olhar
com olhos de Aristóteles, o qual pode eventualmente me dizer: "Esta pergunta que
você lançou a meu respeito é absolutamente irrelevante, não interessa para a
interpretação do meu pensamento." Só olhando por este duplo lado podemos ter, não
Pensamento e Atualidade de Aristóteles
32
digo uma certeza, mas uma probabilidade de alcançar, se não uma visão científica
objetiva e certeira, pelo menos uma opinião justa e razoável.
No dia-a-dia, julgamos as pessoas das maneiras mais apressadas e levianas. Porém,
uma figura como esta que influenciou a humanidade inteira durante 2400 anos, e que
continua sendo discutida até hoje, merece um esforço de objetividade. O estudo das
obras de um filósofo —- que não é filosofia ainda, é filologia, é estudo de textos, é uma
preparação filológica à filosofia — deixa para nós um resíduo que é de alto valor.
Consiste na consciência das dificuldades que temos para entender o que uma outra
pessoa pensa, e que não é maior no caso de Aristóteles do que no caso do nosso
vizinho, da nossa empregada, dos nossos parentes e amigos. O sentido de uma frase
isolada, no instante em que foi dita, é uma coisa. Entender o que esta frase significa no
contexto da vida de quem a disse, e com o valor e a intenção precisos com que a disse,
é outra muito diferente.
A filologia é a compreensão dos textos. Os textos são expressões privilegiadas da
mente humana. A filologia é, neste sentido, o estudo do ser humano, a disciplina que
nos habilita à compreensão de outros seres humanos. E por isso foi considerada
sempre a rainha das humanidades. Um escritor medieval, Marciano Capella, fez dela a
esposa do deus Mercúrio, o deus dos intercâmbios, do encontro, da conversação e do
entendimento. Humanidades é o estudo que faz você situar-se dentro da espécie
humana, compreender-se como membro da espécie a que pertence. Ensinando você a
entender que não é melhor que nenhum dos outros, que seu pensamento é pelo
menos tão obscuro e errado como o dos outros, e que somente um longo trabalho de
compreensão pode colocá-lo em condição de discutir a validade ou não das idéias de
um outro, a filologia é um treino de paciência e tolerância, no sentido em que diz
Spinoza: "Não rir, não chorar, nem condenar — mas compreender."
Ainda uma palavra, sobre objetividade e neutralidade A idéia de que a compreensão
científica deve ser neutra pode ser compreendida em dois sentidos. Estar neutro pode
querer dizer não estar interessado num ou noutro dos lados que o desenlace de uma
questão pode tomar. Mas também pode significar a ausência de amor, de paixão pela
verdade, a crença errônea de que se pode compreender a realidade sem amá-la, e
como que por um olhar distante e blasé. Mas o juiz justo, se é neutro ante os
interesses da partes, não é neutro ante o processo. Ele deve ter a paixão de encontrar
a solução correta. É somente esta paixão de encontrar a verdade que nos poderá por
na pista para um dia podermos ter a certeza de haver inteligido razoavelmente alguma
coisa, tanto quanto o melhor da tradição milenar de ciência e filosofia que nos
antecedeu poderia esperar de nós.
Olavo de Carvalho
33
Antes de encerrar, eu gostaria de dar algumas explicações sobre a lista de nomes no
Documento Auxiliar II: Marcos na História dos Estudos Aristotélicos. Com base nesta
lista é que obteremos uma idéia sobre os progressos e retrocessos que a compreensão
de Aristóteles foi tendo na história do pensamento. Dos autores aqui citados temos
basicamente três tipos de estudiosos, que abordam o tema aristotélico desde três
perspectivas e com três interesses diferentes.
1. O filósofo que expõe, comenta e discute os textos de Aristóteles, desde o ponto
de vista da sua importância propriamente filosófica. No século II, há, por
exemplo, Alexandre de Afrodísia, que produziu um comentário de Aristóteles
que vale até hoje. Com o mesmo interesse filosófico são redigidos os
comentários de Sto. Tomás de Aquino.
2. O filólogo, às vezes misto de historiador da filosofia; um sujeito que, sem ter a
ambição pessoal de fazer uma filosofia própria ou de fazer avançar a filosofia,
põe em ação um conjunto de recursos científicos que lhe permite estabelecer
comparações históricas, avaliar o peso de cada palavra, reconstituir o texto na
sua materialidade e no seu sentido. No século XX, um dos grandes exemplos é
Werner Jaeger, homem a quem devemos um esplêndido trabalho de
reconstituição biográfica da evolução do pensamento de Aristóteles. Com isso
Jaeger mostrou que em nem todas as suas idéias Aristóteles acreditou ao
mesmo tempo. Ou seja, que nem tudo o que está escrito nos seus textos pode
ser exposto todo numa lousa como se fosse um sistema coerente e chapado,
mas que algumas das idéias que estão nesses textos foram pensadas e depois
abandonadas, refutadas pelo próprio Aristóteles. O filólogo faz o trabalho mais
humilde e apagado, mas sem ele jamais poderíamos chegar à compreensão dos
textos antigos.
3. O sujeito que não é nem um filósofo expondo idéias de Aristóteles, nem um
filólogo que procura aprofundar o conhecimento científico dos textos — mas
apenas um filósofo que está desenvolvendo as suas próprias idéias e que
acidentalmente esbarra em Aristóteles e, em função da sua filosofia pessoal, se
posiciona, a favor ou contra. Como exemplo cito aqui John Locke, famoso chefe
da escola empirista inglesa. Ele não discute propriamente Aristóteles, mas,
desenvolvendo a sua própria filosofia, reforça certos aspectos da filosofia
aristotélica e enfraquece outros, disso resultando que as gerações seguintes
passam a ler Aristóteles de uma nova maneira, isto é, à luz das idéias do
pensador mais recente. Na época de Locke surge o grande debate da filosofia
entre racionalistas e empiristas. Para a escola racionalista (Spinoza), a razão, o
puro raciocínio é a principal fonte do conhecimento, e a experiência real pouco
nos revela sobre a realidade das coisas. Para a escola empirista, exatamente o
contrário: a principal fonte de conhecimento é a experiência e os padrões
Pensamento e Atualidade de Aristóteles
34
racionais com que julgamos a experiência são, eles mesmos, produtos da
experiência. Estas duas escolas, que dominam o debate filosófico durante dois
séculos, como se verá em qualquer livro de História da filosofia, são como duas
metades de uma laranja aristotélica, porque Aristóteles era as duas coisas ao
mesmo tempo — empirista e racionalista. Só que, a partir dessa época, a
laranja é partida, e os dois lados que em Aristóteles estavam tão bem
sintetizados se separam de maneira antagônica. Tanto racionalismo quanto
empirismo são filhotes de Aristóteles, mas filhotes hostis entre si, repetindo
um Leitmotiv da história humana, o motivo dos gêmeos inimigos, como Esaú e
Jacó. Estudando a filosofia deste período de John Locke e Spinoza, século XVII,
não na perspectiva geral da história mas na perspectiva dos estudos
aristotélicos, entendemos que esta bipartição entre racionalismo e empirismo
determinou uma mudança na visão que a cultura européia tinha de Aristóteles.
Dentro desta categoria dos que fizeram de temas aristotélicos um aproveitamento
próprio dentro de seus objetivos filosóficos pessoais, é bom destacar uma subespécie:
4. O sujeito que pega alguma idéia aristotélica, citando ou não a origem, e a aplica
a um setor determinado do conhecimento, no qual essa idéia se torna
dominante. Por exemplo, quando, na entrada da Idade Moderna, alguns
juristas procuravam separar os domínios do Direito e da Religião, era natural
que buscassem em Aristóteles os fundamentos da idéia de direito natural. Só
por este fenômeno, representado por exemplo por Hugo Grotius, vocês vêm
como é errada a visão que identifica aristotelismo com Idade Média: a
importância da contribuição de Aristóteles para o pensamento medieval não é
maior nem menor do que a que ele deu às novas idéias científicas, jurídicas,
estéticas, criadas a partir do Renascimento. Há, enfim, um Aristóteles para cada
gosto, e, querendo ou não, ele tem dado e tirado reforço a praticamente todas
as escolas de pensamento há vinte e tantos séculos. Para encerrar, espero que
vocês tenham compreendido que este curso não será somente uma introdução
ao pensamento de Aristóteles, mas também aos estudos aristotélicos, seja do
ponto de vista filosófico, seja histórico-filológico. Espero que este curso abra
para vocês um leque de caminhos para esses estudos.
Olavo de Carvalho
35
Pensamento e atualidade de Aristóteles
SEGUNDA AULA
Casa de Cultura Laura Alvim, Rio de Janeiro, 22 de março de 1994.
Transcrição de:
Heloísa Madeira
João Carlos Madeira
e Kátia Torres Ribeiro
1a parte
NB - As explicações introdutórias sobre o historicismo, um tanto repetitivas, acabaram
tomando toda a primeira metade de aula em razão de perguntas dos alunos. Como o
intuito destas apostilas é documentar o mais fielmente possível a exposição oral,
julguei melhor conservar toda a transcrição dessa parte, que numa versão em livro
seria drasticamente abreviada. O leitor que preferir saltá-la poderá ir direto para o
parágrafo "Danos que o historicismo trouxe à nossa compreensão de Aristóteles", sem
prejuízo da compreensão do argumento central. – O. C.
A multiplicidade de visões a respeito de Aristóteles é causada pelo fato de que cada
estudioso toma como centro da sua reexposição ou reconstrução do pensamento de
Aristóteles os pontos que lhe parecem mais importantes, sem perguntar se o próprio
Aristóteles concordaria. Às vezes duas interpretações opostas são coincidentes no
sentido de que, opondo-se sobre um mesmo tópico, ambas fazem dele o ponto de
partida para suas respectivas reconstruções. Para exemplificar isto, podemos partir de
dois pólos extremos, das duas interpretações mais antagônicas. Estas são, de um lado,
o trabalho de Franz Brentano, da metade do século passado; do outro, o trabalho de
Werner Jaeger. Brentano é o protótipo dos que procuram tomar a filosofia aristotélica
como um sistema perfeito e acabado, como um todo fechado, quase numa visão
estruturalista. Jaeger é um filólogo do século XX, que reconstruiu através dos textos o
que teria sido a evolução biográfica do pensamento de Aristóteles. Ora, entre um
pensamento que se surge como um sistema perfeito e acabado e um pensamento que
evolui no tempo, através da luta do filósofo consigo mesmo, dificilmente podemos ter
uma conciliação perfeita. Vai ter de haver uma arbitragem entre as duas visões. A mim
me parece que as duas interpretações antagônicas são igualmente possíveis e úteis.
Não precisamos optar entre elas e também me parece que é um pouco nonsense este
debate que por quase cem anos ocupou os estudos aristotélicos, para saber se a
filosofia de Aristóteles é um sistema ou algo que evoluiu no tempo. Certamente ela é
Pensamento e Atualidade de Aristóteles
36
as duas coisas. Então usaremos uma dessas interpretações como antídoto da outra, e
vice-versa.
Em seguida, esbocei os princípios do método que aqui será usado. O primeiro aspecto
deste seria tentar conciliar todas as perspectivas opostas possíveis a respeito de
Aristóteles. Pegá-las todas como exemplos de visões possíveis e tentar chegar a uma
síntese em que nada de substancial se perca. Em segundo lugar, teríamos de
compensar a relativização historicista. O que vem a ser isto? É o seguinte: no momento
em que estamos vivendo, as posições que tomamos, as opiniões que temos, nos
parecem decisivas para os fins da vida real. Quando passa muito tempo e aquelas
questões já não são mais atuais, as tomadas de posição começam a ser relativizadas:
eram tomadas em termos absolutos, agora são tomadas em termos relativos à
situação de dentro da qual surgiram, e referidas a um momento que já passou. Não
somente as opiniões são relativizadas, mas as próprias questões a que elas respondem
também. Por exemplo, se você tomar um conflito histórico entre católicos e
protestantes tal como aparecia quatro séculos atrás, verá que hoje pode nos parecer
que as tomadas de posição que para aquelas pessoas eram fundamentais e absolutas
para nós são meramente secundárias e relativas. A questão, para nós, já não é optar
entre catolicismo e protestantismo, mas compreender por que aquelas pessoas tinham
de fazer essa opção. A questão tornou-se para nós, por assim dizer, metalinguística:
questionamos a questão, em vez de tentar resolvê-la. Outro exemplo: durante cem
anos assistimos a um conflito entre capitalismo e comunismo, e, na hora em que um
deles praticamente se dissolve, parece que a questão também se dissolve, e já nos
parece distante e inverossímil que ela tenha parecido tão urgente, tão vital a milhões
de pessoas. No confronto com o comunismo, quanta tinta não rolou, quantas palavras
não foram proferidas, quantas posições não foram tomadas em milhares de setores
derivados, em função deste conflito básico que determinava o enfoque principal? Não
só era preciso optar entre capitalismo e comunismo, como esta opção determinava as
soluções que dávamos a questões de ordem ética, estética, prática, etc. Num
transcurso de dez anos, a questão já não parece essencial. Para que nós entendamos
que as pessoas tenham podido discutir, emocionar-se, matar e morrer por essa
questão, temos de referi-la à situação da qual nasceu. Com isto, tudo fica relativizado.
Relativizado quer dizer referido ou condicionado a uma situação. Estas tomadas de
posição que para aqueles indivíduos eram tão importantes, para nós só existem
relativamente a uma situação que não existe mais. Ora, se adotamos só e
exclusivamente esse enfoque para as questões da filosofia, estas se tornam também
meros dilemas vividos por homens do passado, e não são mais questões vivas para
nós. É por isto que, ao menos em história da filosofia, o historicismo tem graves
inconvenientes. O historicismo é uma filosofia que, pretendendo tudo explicar pela
história, torna irrelevantes todas as questões fundamentais. Pois, se todas as questões
só têm importância quando referidas a uma determinada situação no tempo, então as
atuais também não terão importância daqui a algum tempo. Para o historicismo, todas
Olavo de Carvalho
37
as questões e todos os conhecimentos são gêneros perecíveis. É verdade que o
interesse pelas questões e a forma de concebê-las muda com o tempo, mas não se
pode elevar a critério teorético esse simples fato consumado. De um ponto de vista
teorético, duas questões, uma colocada por um pensador do séc. V a. C., outra
colocada por nós hoje, podem ser rigorosamente a mesma, se as essências designadas
por seus conceitos forem as mesmas, pouco importando a passagem do tempo e as
diferentes maneiras de "sentir" a questão nas duas épocas: a demonstração do
teorema de Pitágoras é a mesma para Pitágoras e para nós. A abolição da esfera
teorética e sua absorção na esfera do fato consumado são os erros do historicismo. É
em razão destes erros que o historicismo desvia o eixo das questões, dos objetos sobre
que elas versam para as motivações psicológicas, ideológicas, etc., que levaram os
homens a se interessar por elas, e isto produz às vezes confusões temíveis. Se você
pegar duas teorias científicas opostas, por exemplo, no famoso debate em que se
envolveu Pasteur a propósito da geração espontânea -- como surgiam os
microorganismos? -- , verá que, segundo uma teoria vigente na época, apareciam
sozinhos, brotavam do nada. Pasteur dizia que não, que tinha de haver determinadas
condições prévias para que eles pudessem surgir. Esta questão hoje para nós está
resolvida. Ora, quando Pasteur e seus adversários tomavam posição, faziam-no em
função do problema dos microorganismos, e não em função do problema de como
interpretar sua época histórica. Como para nós o problema dos microorganismos está
resolvido, e só nos resta compreender a época histórica de Pasteur, de certa forma
invertemos a questão e a colocamos de cabeça para baixo. O que era importante para
os personagens não é mais importante para nós. As idéias em jogo, para nós, só têm
importância como expressões de um determinado momento histórico, e não em si
mesmas. Ora, se levarmos esta posição às últimas consequências, todas as doutrinas
científicas, inclusive matemáticas, nunca mais dirão respeito à realidade objetiva que
elas estão discutindo, e serão apenas expressões das idéias que as pessoas tiveram
num certo momento. No entanto, está claro que a demonstração que Pasteur fez da
inexistência da geração espontânea continua teoreticamente válida hoje exatamente
como no momento em que ele a apresentou pela primeira vez, e sobre a veracidade
teorética -- ou falsidade teorética -- de uma demonstração a passagem do tempo não
exerce a mais mínima influência. É esta intemporalidade das verdades teoréticas que o
historicismo faz perder de vista, como se uma conta de 2 + 2 = 4 devesse ter diferentes
resultados em distintas épocas históricas.
Se você pegar a geometria de Euclides, do ponto de vista historicista não interessa
saber se ela está certa ou errada, mas só a correspondência entre aquela geometria e
as demais idéias vigentes naquele tempo. O resultado é que o historicismo acaba por
abolir todas as ciências, menos a história, ou pelo menos por submeter todos os
critérios científicos de veracidade à veracidade histórica. Por exemplo, as doutrinas
filosóficas, doutrinas sobre a física, sobre as ciências da natureza, sobre as fórmulas
matemáticas - são todas relativizadas, referidas a momentos no tempo.
Pensamento e Atualidade de Aristóteles
38
Mas acontece que doutrinas matemáticas não dizem respeito à história, e sim a
entidades matemáticas. Doutrinas físicas também não dizem respeito à história, mas
ao mundo físico. Se nós, estudando doutrinas físicas do passado, as encararmos
apenas como expressões do momento histórico, nunca podemos esquecer que
aqueles que as emitiram não tinham esta perspectiva, não as olharam por aí. Para um
físico do século XVI, as idéias dele não são sobre a história do século XVI, são sobre a
natureza. O historicismo levado às últimas consequências esvazia as questões de modo
que não faça mais sentido discutir se suas respostas estão certas ou erradas.
Se um diz que a Terra é plana e outro que a Terra é esférica, naturalmente os dois
pretendem ter razão, e certamente um deles tem, ou ambos têm, ou nenhum tem,
objetivamente falando. No entanto, ambas as respostas provêm de um determinado
quadro histórico, o que prova que o ponto de vista histórico não pode arbitrar esta
questão. Do ponto de vista historicista interessa apenas que numa certa época havia
um ambiente propício a que se pensasse que a Terra era plana, e que noutra época as
condições inclinaram o homem a pensar outra coisa. Conhecer essas condições em
ambos os casos não nos dirá se a Terra é plana ou esférica.
Para você entender isto mais concretamente, examine com os olhos de hoje as
questões que foram problema para você dez ou quinze anos atrás, e veja como essas
questões se tornaram indiretas e metalinguísticas. Se a moça vai casar com um sujeito,
e chega alguém e diz: "Não case com este sujeito, ele é um vigarista, estelionatário, um
Anão do Orçamento, etc.", ela chora, se sente muito mal, e tem de tomar uma posição.
Ou aceita a denúncia, ou a rejeita. Naquele momento, tudo que lhe interessa é saber
se aquela denúncia é verdadeira ou falsa, objetivamente falando. Mas vamos supor
que na semana seguinte ela conhece outro sujeito mais interessante, casa com ele e
esquece o primeiro. Aí aquela questão não interessa mais. Quanto mais tempo passe,
menos interessará saber se o sujeito era estelionatário ou não, mas a moça pode ainda
parar e pensar: "Por que naquela época eu sofri tanto com aquela questão?" Ela vai ter
de explicar o interesse que teve por este problema em função do seu estado
psicológico na época. Isto é que se chama relativizar historicamente. A questão perde
a sua importância objetiva, é esvaziada e absorvida numa outra questão que já não diz
respeito ao seu conteúdo objetivo, mas aos motivos subjetivos do seu surgimento.
Então, do ponto de vista do historicismo, não interessa saber se a Terra é esférica ou
plana, interessa saber por que, numa certa época, as condições culturais, psicológicas
etc. levaram as pessoas a pensar que era plana, e em outra época que era esférica.
Isto equivale a uma espécie de negação implícita de todas as formas de conhecimento
que não sejam históricas. Uma tribo de índios pensa que fazendo determinada dança
vai cair chuva. Numa outra época e noutro lugar, acha-se que a chuva cai por motivos
completamente diferentes, de ordem eletromagnética. Historicamente, não interessa
saber quem tem razão. Interessa só saber qual o elo de coerência entre estes dois
Olavo de Carvalho
39
pensamentos e os seus respectivos ambientes culturais. Ora, a dança da chuva tem
raízes histórico-culturais tanto quanto as têm a explicação eletromagnética. Se
conhecermos extensivamente essas condições para ambos os casos, ainda assim não
saberemos por que cai a chuva.
O advento da
ciência histórica
e o historicismo
O historicismo é uma maneira de ver que foi inoculada na mente ocidental no século
passado, desde que se formou a ciência da história. A formação da ciência histórica a
partir dos séculos XVIII e XIX, com Giambattista Vico, Edward Gibbon, Ranke, Savigny e
outros gênios imensos, é uma das grandes conquistas da humanidade. Mas deixou um
efeito colateral: o historicismo. A história como empirismo, como técnica prática, já
era conhecida desde a antiguidade. Mas como ciência, tal como a conhecemos hoje,
começa a ser formulada nos fins do século XVIIII e começo do XIX. É um progresso
imenso do conhecimento humano. A partir daí, você vai adquirindo uma perspectiva
temporal mais ou menos correta do que se passou antes. Começa-se a ter
preocupação com a exatidão da reconstituição dos fatos, através de uma quantidade
de técnicas de pesquisa histórica: crítica dos textos, dos testemunhos, epigrafia,
numismática etc. – uma quantidade de técnicas de investigação histórica que se
aprimoram muito neste começo do século passado e montam este monumento que é
a ciência histórica de hoje - uma ciência de enorme precisão, quase uma ciência exata.
Mas junto com a formação dessa ciência vem o efeito colateral. Quando uma ciência
faz sucesso, os outros ramos do saber querem imitá-la. Os modos de pensar que são
característicos da ciência histórica acabam então contaminando todas as outras
ciências e também a filosofia. Como acontecera antes com a física. Na Renascença, o
sucesso de Newton, Galileu etc. contaminava todo mundo, todos começaram a pensar
em termos físicos, levando os modelos da física para todos os setores do
conhecimento. No século XX, todos pensam informaticamente. O sucesso, primeiro, da
lógica matemática, e, depois, da informática, que é filhote dela, faz os modelos lógico-
matemáticos e informáticos serem adotados para todos os fins e em todas as ciências:
há modelos informáticos em biologia, em neurologia, em economia, em antropologia.
No momento eles parecem ter uma força explicativa muito grande, parecem nos dar a
visão da realidade mesma, mas no futuro eles também serão relativizados. Os modelos
sempre ajudam em alguma coisa, mas criam o perigo do que chamo ilusão retroativa.
O processo é este: Um indivíduo inventa uma máquina destinada a imitar alguns
processos do cérebro humano. Esta máquina chama-se computador, e funciona.
Retroativamente, começa-se a explicar o cérebro humano como se ele fosse uma
imitação do computador, e não o computador uma imitação de cérebro. Isto
aconteceu na Renascença com o aperfeiçoamento da arte da relojoaria. O relógio de
bolso foi inventado pelos beneditinos na Idade Média. Na Renascença, começaram a
Pensamento e Atualidade de Aristóteles
40
vender relógio de bolso para todo mundo. Logo em seguida, começa-se a explicar o
funcionamento do corpo humano como se ele fosse um mecanismo de relógio. O
homem inventa um modelo imitado a partir de alguma função dele mesmo, e em
seguida ele se explica a si mesmo por esta função, e a função pelo modelo que a imita.
Um caso de aprendiz de feiticeiro. Fica fascinado pelo que ele mesmo inventou e acha
que aquilo tem um poder explicativo, que o rabo é capaz de abanar o cachorro. Não
podemos esquecer que todos os equipamentos e todas as ciências são invenções do
homem. E como disse o Cristo: "O homem não foi feito para o sábado, e sim o sábado
para o homem". A ciência também foi feita pelo homem para o homem e ele tem o
direito de usar dela como bem entenda, e nunca pode esquecer que uma ciência é um
conjunto de procedimentos que ele mesmo inventou para conhecer algo, e que
poderão ser substituídos por outros amanhã ou depois se houver uma maneira melhor
de conhecer aquilo. Portanto, não existe a ciência que possa ser modelo
universalmente válido para as outras, nem modelo que possa explicar a coisa pela qual
se modela.
Métodos que foram inventados para estudar História, se aplicados para estudar outro
assunto, podem render alguma coisa, mas nunca tão bem como para estudar a própria
História. Mas ao longo dos tempos o que vemos é que toda ciência que faz sucesso
imprime o seu modelo a todo o universo cultural. O historicismo é um filhote da
ciência histórica. Ora, a ciência histórica não estuda a natureza ou os objetos
matemáticos. Ela só estuda os atos e pensamentos humanos no decorrer do tempo. Se
você tomar por exemplo o teorema de Pitágoras, verá que, por um lado ele expressa
um conjunto de relações que se dão dentro de uma determinada figura geométrica - o
triângulo retângulo --, mas por outro lado, é um pensamento que um certo sujeito
teve num certo momento da história. No historicismo, o primeiro aspecto, que
chamamos objetivo, a relação entre os vários aspectos do objeto ao qual ele se refere
(a relação entre os catetos e a hipotenusa), é comido pelo aspecto subjetivo ou
histórico. Ao historiador pouco lhe interessa saber se a soma dos quadrados dos
catetos dá o quadrado da hipotenusa ou o triplo do quadrado da hipotenusa. O que
interessa é que num certo ambiente mental surgiu certo pensamento na cabeça de um
tal Pitágoras ou de um grupo de pessoas em torno dele.
O historicismo surge primeiro discretamente e depois vai penetrando e solapando
todos os setores do conhecimento até chegar a um doidão chamado Antonio Gramsci,
teórico do Partido Comunista, que inventou o "historicismo absoluto". Isto significa
que todas as ciências, todos os conhecimentos são apenas expressões de momentos
históricos e a única coisa que realmente vale é a história. Ele chega a abolir a noção de
verdade objetiva. Não se pode dizer que 2+2=4; e sim que em tal época, em tal
sociedade se pensou que era 4 porque isto era bom para a sociedade naquele
momento. Gramsci é tido em alta conta por muitos. Mas quando você entra num
esquema de pensamento como o de Gramsci, acaba não entendendo mais coisa
Olavo de Carvalho
41
nenhuma, e quanto menos você entende, mais misterioso e profundo ele parece, e
quanto mais burro o discípulo fica, maior lhe parece o guru. É uma espécie de anti-
educação.
A educação verdadeira deve impelir os alunos a que eles cheguem a compreender o
pensamento do mestre às vezes melhor do que ele mesmo tinha compreendido, para
que possa aperfeiçoá-lo, completá-lo de algum modo. Tudo que o homem faz é
incompleto. Os homens morrem e por isto em suas obras fica faltando um pedaço, ou
há contradições não resolvidas, etc. Então é preciso que a geração seguinte prossiga o
trabalho, resolva as contradições, ou mesmo, se for o caso, reforme tudo. Ora, para
prosseguir ou reformar o trabalho de alguém, é preciso compreendê-lo a fundo, e
compreender para além dele, se possível. Mas hoje em dia há certas doutrinas
filosóficas, ou melhor, ideológicas que não se destinam propriamente a ser
compreendidas. Destinam-se a obscurecer as inteligências e a substituir a intelecção
pessoal e direta por um sentimento de pertinência a um grupo ou partido ou igreja
que é, ele sim, o sujeito coletivo encarregado de ter as intelecções. Assim, cada
membro se dispensa de buscar a compreensão pessoal e as provas, seguro de que nos
escalões superiores há sempre alguém que sabe o que ele não sabe. Antonio Gramsci é
um protótipo do sujeito que não escreve para ser compreendido, mas para ser
obedecido por quem não compreende. Aliás ele próprio também não se entendia,
porque em seu pensamento não há propriamente o que entender, do ponto de vista
teorético, mas somente o que obedecer. O historicismo absoluto é a absolutização do
tempo. Ora, o tempo é uma relação entre momentos. Então, o historicismo absoluto é
a absolutização do relativo, ou a relatividade absoluta, ou a relativa absolutidade. E o
que quer dizer isto? É uma proposta que não pode ser compreendida. Se os elementos
da relação nada são em si mesmos e considerados fora da relação, então é a relação
que os constitui, mas como poderia uma relação entre nada e nada produzir alguma
coisa? Gramsci, como muitos outros marxistas, confunde relação e totalidade. Dissolve
as substâncias individuais numa rede de relações que é tomada, em si e por si, como a
verdadeira realidade, como se uma relação considerada independentemente de seus
elementos não fosse apenas uma abstração lógica. A "História" é assim divinizada
como única realidade, como se toda história não fosse história de alguém, como se
uma história pudesse ser sujeito de si mesma. Mas o gramscismo já é o historicismo
febril.
É claro que o historicismo não é todo loucura. É um dos grandes movimentos de idéias
do Ocidente moderno, uma coisa digna de todo respeito. Porém tem seus limites. Só
serve para você entender história, saber por que os homens pensaram isto ou aquilo
em determinado momento, mas não para entender os objetos a respeito de que eles
pensaram. Senão, seria admitir que a história comeu todas as demais ciências. Ela
passa a ser física, fisiologia, matemática - tudo, enfim: uma única superciência que
abole todas as demais. Mas, se a história tem a pretensão de ser a ciência universal e
Pensamento e Atualidade de Aristóteles
42
come todas as outras, cada ciência vizinha pode ter a mesma pretensão. Que campos
na realidade estão dentro de quais, quais estão contíguos, quais hierarquizados - isto é
problema grave, não pode ser resolvido na base de uma ciência comer outras. Se o
historiador acha que a ciência dele é suprema, o físico tem o mesmo direito de achar
que o fundamento de tudo está na física, e que a história não é senão uma
pseudociência. Chega um terceiro e diz: "Não é nada disto, é tudo um problema de
linguística. Porque para falar de física e de história vocês usam signos". Aí pega as leis
da gramática e mostra que todas as proposições da física e da história não passam de
arranjos gramaticais e semânticos - e é uma verdade, tanto quanto é verdade que as
leis da física são acontecimentos históricos e que os acontecimentos históricos se
desenrolam num mundo regido pelas leis da física. Estes são os vários imperialismos
das várias ciências, cada um querendo comer o outro. Assim como há o historicismo,
temos o fisicismo, o linguisticismo, o matematicismo etc etc. Cada uma destas
hipóteses faz sucesso porque obtém alguns resultados bons - mas depois começa a
ampliar desmesuradamente seu campo de aplicação até virar uma metafísica, ou
pseudometafísica. É claro, no entanto, que nenhuma ciência em particular pode, por
si, fundamentar uma metafísica.
Imaginem então o que o historicismo não faz com alguém que morreu há mais de dois
mil anos. Se ele relativiza até o que está acontecendo hoje, imagine o que se passou
tanto tempo atrás. Você pega tudo que o sujeito falou, coloca numa distância
formidável, refere tudo ao meio histórico-social, psicológico etc., e reduz todo o
pensamento dele a um acontecimento histórico que se deu numa outra cultura, num
outro tempo, com outros interesses, e que afinal de contas não é verdadeiro nem falso
porque naquele tempo os padrões de veracidade e falsidade eram outros que não os
de hoje, isto torna impossível discutir se afinal de contas Aristóteles ou Platão ou outro
qualquer tinha razão naquilo que afirmava. Porém um pensamento que já não
podemos julgar verdadeiro ou falso não tem mais importância efetiva, é apenas uma
curiosidade histórica, uma peça de museu tornada inútil e incompreensível. O
historicismo pode, por essa via, chegar a nivelar descobertas valiosas e bobagens
puras, achatando a ambas como "fatos históricos". Aristóteles, por exemplo, foi quem
inventou a lógica tal como a concebemos. Ele inventou quase todas as ciências que
conhecemos - a história da filosofia, a biologia, a fisiologia, a anatomia; toda a nossa
nomenclatura de ciência é uma criação de Aristóteles. Este mesmo sujeito que fez
tudo isto, num dado momento declara que a mulher tem mais dentes que o homem.
Um sujeito desta envergadura falando uma asneira destas! Pois, do ponto de vista
historicista absoluto, vale a mesma coisa a contagem aristotélica dos dentes e o
conjunto da ciência aristotélica, já que foi o mesmo Aristóteles que produziu ambas as
coisas, no mesmo ambiente histórico e sob a ação das mesmas causas históricas.
É claro que você pode explicar o surgimento da geometria na Grécia em função das
condições culturais ambientes. Mas isto explica a origem da geometria, não seu valor
Olavo de Carvalho
43
cognitivo. Este só pode ser avaliado por meios geométricos, não históricos. Como faço
para saber se o teorema de Pitágoras está certo? Estudo a origem histórica do teorema
de Pitágoras ou a demonstração geométrica desse teorema? Saber quais as condições
em que foi gerada a idéia nada me diz sobre se ela é verdadeira ou falsa. As idéias
falsas têm uma origem histórica, tal como a têm as verdadeiras. No dia em que
Aristóteles atinou com a estrutura do silogismo - o raciocínio em três etapas, em que
dadas duas premissas, tira-se uma conclusão - devia haver alguma condição externa,
psicológica que o predispunha a isto. E no dia em que contou errado os dentes da sua
mulher, também. Teve causa a primeira como a teve a segunda coisa. Historicamente
dá na mesma explicar a asneira ou a grande descoberta. Há um grande repertório
destas asneiras. Sto. Anselmo diz que, plantando-se um escorpião, nasce uma vaca.
Santo Anselmo é um dos grandes gênios da filosofia, e fala uma coisa destas! Há para
isto alguma causa histórica e biográfica, como as há para os sutis argumentos
metafísicos que o mesmo Anselmo produziu num momento de mais lucidez. O ponto
de vista histórico só diz o que as pessoas fizeram, porque fizeram e com que fins. Não
diz se as ações e as idéias são sensatas ou insensatas, se estão certas ou erradas.
Outros preconceitos:
sociologismo
e antropologismo
Do mesmo modo, mais tarde, quando se desenvolvem as ciências sociais, sociologia e
antropologia, também surge um imperialismo destas. Você refere tudo ao quadro
social, às famosas classes sociais, proletariado, burguesia etc. Dá para você pegar todo
o conjunto do saber de um determinado momento e referi-lo à estrutura de classes,
encontrar as analogias entre ele e a ideologia da classe dominante. Assim. tomando
meras analogias estruturais como se fossem nexos de causa e efeito, você pode
"provar" que existe uma biologia burguesa, uma física burguesa, como existe uma
biologia proletária, uma fisiologia proletária e assim por diante.
Desde que usado com modéstia e articulado com outros critérios, o critério das classes
sociais pode ser esclarecedor, até certo ponto. Certas maneiras típicas de montar o
universo da ciência de fato parecem estar associadas a determinadas classes sociais.
Vemos por exemplo que existe uma filosofia medieval, feita praticamente por
membros do clero (os universitários faziam parte do clero, a universidade era uma
casta letrada separada do restante da sociedade), e isto produz um tipo de ciência.
Mais tarde, começa a surgir um outro tipo de intelectual que já não está na
universidade, o intelectual palaciano, da aristocracia, não mais do clero. Existe uma
diferença de conteúdo entre a ciência de uns e outros, assim como uma diferença de
estrutura global e de perspectiva. Portanto a hipótese das classes sociais não é um
absurdo. Mas ela está evidentemente limitada por duas coisas:
Pensamento e Atualidade de Aristóteles
44
1. As classes sociais não são o único fator que conta. Há, por exemplo, o fator nacional.
Só um cego não percebe que, se há um saber burguês ou proletário ou clerical, há
também um saber germânico, ou francês ou anglo-saxônico.
2. Saber se determinada descoberta científica é fruto da ciência clerical, aristocrática,
burguesa ou proletária não me diz se essa descoberta é verdadeira ou falsa. Julgar a
veracidade dos conhecimentos em função de sua origem social é cúmulo do
sociologismo. Este sociologismo chegou a produzir alguns fenômenos grotescos no
século XX. Na União Soviética a genética de Mendel até a década de 40 era proibida
por ser genética burguesa. Havia um geneticista marxista chamado Lissenko, cujas
teorias foram endossadas pelo Estado soviético a título de genética proletária.
Lamentavelmente, neste caso, como aliás em tantos outros, a burguesia é que tinha
razão. E hoje em dia ninguém mais fala em Lissenko, a não ser como exemplo do mal
que o pensamento ideológico pode fazer à ciência.
Tudo isto vem de que novas ciências que surgem e alcançam algum sucesso moldam a
cabeça de todo mundo. O historicismo se torna tanto mais poderoso quanto mais
distante no tempo está seu objeto. É mais fácil você ver uma idéia emitida 2.400 anos
atrás como expressão de uma sociedade longínqua do que você se situar dentro dessa
idéia para saber se é verdadeira ou falsa.
Vamos supor que uma tribo pratica a dança da chuva. É mais fácil explicar a dança da
chuva em função dos costumes e outras instituições dessa tribo que aprender a fazer a
dança da chuva para ver se funciona. Depois que você explicou tudo aquilo
antropologicamente, e reduziu tudo a uma projeção das instituições sociais sobre a
visão da natureza, que aconteceria se se comprovasse que o raio da dança funciona
mesmo? Então você já não precisaria explicar a dança em função do corpo de crenças
daquela tribo, porque o que é verdadeiro o é para qualquer um, e evidentemente a
eficácia da dança sobre a natureza deveria ser explicada por fatores físicos (ainda que
de física mágica) e não por fatores sociológicos.
Quando se estuda a Inquisição, há a história das bruxas que eram queimadas. Os
inquisidores mandavam matar as bruxas porque estavam persuadidos de que a
bruxaria funcionava, desencadeava efeitos físicos, podia matar pessoas ou destruir
colheiras. Quem praticava bruxaria contra alguém era portanto homicida tanto quanto
quem lhe desse facadas no estômago. Então chega o sociólogo, o antropólogo ou
historiador e explica: são "crenças da época". Acreditamos portanto que todo o
fenômeno da bruxaria e da sua perseguição pode ser compreendido dentro do campo
sociológico, ou antropológico, como mero fenômeno humano e subjetivo. Mas depois
chega outro sujeito e estuda o problema da bruxaria por um outro ponto de vista, o da
fisiologia. W. B. Cannon ganhou o prêmio Nobel de Fisiologia com o estudo Mudanças
Corporais no Medo, na Dor e na Raiva. Estudando o fenômeno da bruxaria com base
nas descobertas fisiológicas de Cannon, Claude Lévi-Strauss mostrou como é
Olavo de Carvalho
45
realmente possível matar uma pessoa por meio de bruxaria. Então vemos que a prática
da bruxaria não pode ser explicada somente pelas crenças ou ideologias de uma
sociedade ou época, pois há nesse fenômeno uma objetividade física que é a mesma
para todas as sociedades ou épocas. Aquilo que a história ou a antropologia
relativizou, é reabsolutizado, revalidado pela fisiologia.
A vacina contra tudo isto é entender que todas as ciências são legítimas no seu próprio
campo e alguma coisa delas se pode aproveitar no campo vizinho, mas nunca tudo.
Quanto mais distante no tempo e quanto mais estranha é a cultura de onde vem uma
idéia, mais fácil é relativizá-la ou historicizá-a, justamente porque o sentido objetivo
dessa idéia nos escapa; e, neste sentido, historicizar ou sociologizar essa idéia é apenas
uma forma científica de ignorância.
Danos que o historicismo
trouxe à nossa
compreensão de Aristóteles
O pobre Aristóteles, colocado 2.400 anos atrás, imaginem a desgraça historicista que
fizeram com ele! Tanto que há quase duzentos anos no Ocidente moderno ninguém
mais discute se esta ou aquela tese aristotélica é verdadeira ou falsa, sensata ou
absurda. Só se discute a "interpretação histórica" de Aristóteles. E particularmente se
discute se o sistema aristotélico é um todo fechado ou se, ao conrário, o pensamento
de Aristóteles evoluiu no tempo. Enquanto isto, não se discute se o próprio conteúdo
do pensamento de Aristóteles é verdadeiro ou falso. Estão trocando o estudo da
filosofia de Aristóteles pelo da história da filosofia de Aristóteles.
Todo estudo de filosofia do século XVIII para trás, em qualquer faculdade de filosofia
deste país, é feito quase que exclusivamente pelo lado historicista. Todos os
pensamentos perderam a atualidade e você só os estuda como expressões da sua
época. Mas vale a pena você estudar os pensamentos que outros tiveram durante
séculos para depois não saber se tais pensamentos são verdadeiros ou falsos? É claro
que o estudo histórico tem sentido mas não tem sentido abolir todas as outras
perspectivas em nome da perspectiva histórica, porque isto é afinal absolutizar o
historicismo e esquecer que ele também é um produto histórico, relativo portanto.
Jean Jacques Rousseau fez a teoria do bom selvagem: "O homem no estado de
natureza era bom; veio a sociedade e o corrompeu." Podemos estudar isto do ponto
de vista interno para saber se esta doutrina é verdadeira ou falsa, ou podemos estudá-
la historicamente. Por que, nas condições da França de então ocorreu esta idéia na
cabeça de Rousseau? Resposta: porque as pessoas viviam levando índios, inclusive do
Brasil, para mostrar na França, e surgiu uma atmosfera simpática em relação aos
índios. Fazia um ou dois séculos que havia um crescente afluxo de índios para a Europa
e Rousseau naturalmente viu um destes índios numa feira, ouviu o falatório e
Pensamento e Atualidade de Aristóteles
46
naturalmente lhe ocorreu a idéia. Então, você explica o surgimento da idéia em função
do ambiente. Agora digam: a teoria de Rousseau é verdadeira ou falsa? Saber que
Rousseau teve essa idéia quando viu um índio na exposição ajuda a julgar a veracidade
da idéia?
Se você se acostuma a estudar tudo do ponto de vista histórico, fica sabendo por que
fulano pensou isto ou por que surgiu tal ou qual idéia, mas desenvolve uma atitude
leviana em que não se interessa mais por saber se as idéias são verdadeiras ou falsas.
Este é um dos principais motivos da fraqueza do ensino de filosofia neste país. As
pessoas "curtem" as filosofias do passado esteticamente, preferindo umas, rejeitando
outras, mas sem colocá-las jamais seriamente em exame quanto à sua veracidade. A
filosofia aí tende a tornar-se um deleite mental, ou um depósito de argumentos para
uso das ideologias, uma técnica retórica, deixando de ser um saber propriamente dito
a respeito do real.
A crença de que as idéias mesmas mudam de época para época é totalmente falsa. Há
idéias que não mudam nunca, nem mesmo nas esferas mais relativas da vida. A esfera
mais relativa é a esfera moral. As idéias morais variam, sim. Mas mostrem-me uma
comunidade que tivesse entre seus valores e princípios a sua própria extinção ou a
prática sistemática do assassinato, ou em que fosse proibida a procriação - isto não
existe. Esses são princípios imutáveis, cósmicos, ou metafísicos, ou biológicos, como
queiram, mas não são culturais. Não sendo culturais, não podem mudar com as
mudanças de cultura. Mostrem uma comunidade onde fosse proibida toda e qualquer
forma de comércio. Ou toda e qualquer forma de propriedade. Portanto, estas coisas
correspondem a princípios imutáveis. Agora, se você investiga as formas de
casamento, há mil e uma, conforme as culturas. Mas há alguma cultura onde não
exista casamento de espécie alguma? Casamento, comércio, preservação da vida são
princípios universais que nunca foram mudados em parte alguma e que, enquanto
gêneros, não têm história, embora haja história das suas espécies. Assim como as
relações entre o quadrado dos catetos e o quadrado da hipotenusa também não têm
história. Tem história a descoberta desta idéia, mas não a idéia mesma.
Não sei se esses princípios invariantes são leis naturais ou leis metafísicas - não caberia
especular isto agora.
Por enquanto tudo isto está dentro da discussão do método da história da filosofia.
Vamos fazer o estudo histórico da filosofia de Aristóteles e para isto temos o o dever
de fazer uma série de discussões metodológicas preliminares, deixando tudo bem
esclarecido.
Como parte deste método, digo que nem tudo dá para entender historicamente, que
há pensamentos de Aristóteles que não podemos entender em função de sua época e
nem da personalidade de Aristóteles e que só entenderemos se olharmos firmemente
Olavo de Carvalho
47
para seus objetos, situando-nos desde dentro dessas idéias e perguntando: isto é
verdadeiro ou falso? Temos de nos colocar dentro do ponto de vista não somente da
história, mas da ciência à qual essa idéia pertence. O historicismo é um dos pais do
relativismo generalizado que hoje impera. As pessoas estão seguras de que todas as
idéias sempre mudaram e de que nunca houve idéia permanente ao longo de toda a
história, e isto é completamente falso. Mas hoje passa como se fosse um verdadeiro
dogma. Não interessa agora a discussão sobre o fundamento destes princípios
imutáveis, se é ontológico, se é natural, - mas que eles existem, isto é óbvio. Konrad
Lorenz diz que a perda da capacidade de perceber princípios universais é um sinal de
decadência biológica, de degenerescência da espécie. Existem muitas outras leis e
outros fenômenos cuja universalidade às vezes nos espanta. Por exemplo: em quase
todas as línguas do mundo a palavra pai e a palavra mãe têm as mesmas raízes. A letra
M em mãe é universal. Em pai, BPV ou F, que são variantes do mesmo som. Se tudo é
produto da história, da mudança cultural, como se explica essa universalidade? Mostre
uma língua que não tenha as categorias de verbo e substantivo. Ou que não tenha
sujeito e objeto. Não existe, é impossível. Todas as línguas têm uma história mas nem
tudo nas línguas tem história.
O historicismo é um movimento recente. Historicamente, o que tem duzentos anos é
recente. Importante é que ele é vigente ainda, e determina a maneira de as pessoas
pensarem. As pessoas acreditam naquilo como se fosse a realidade mesma e, pior,
como se todo mundo sempre tivesse pensado assim. Tudo o que a gente não sabe de
onde surgiu nos parece a realidade mesma. O valor dogmático do historicismo provém
de que ele esquece que ele mesmo é uma moda histórica.
O exagero historicista
nos estudos
aristotélicos. Sua origem.
Por outro lado, não podemos esquecer que, nos estudos sobre Aristóteles, o
historicismo surge em reação a uma espécie de exagero contrário - o exagero
sistematista. Aconteceu o seguinte: Aristóteles escreveu basicamente três tipos de
escritos; os que se destinavam à publicação, dos quais se tiravam várias cópias; os
escritos que eram apostilas e anotações de aulas, destinados aos alunos; e alguns
escritos que eram para seu próprio uso. Destes três tipos, só o segundo sobreviveu - as
anotações de aula. Os outros dois tipos, pessoais e publicados, desapareceram. Isto
quer dizer que aproximadamente uns cinquenta anos depois da morte de Aristóteles
os livros publicados dele já estavam começando a desaparecer; mais tarde não sobrou
nada.
No começo da era cristã, séculos I, II, só tinham sobrado os tratados, os textos
científicos que eram usados em aula. Ora, a evolução que o pensamento de Aristóteles
vai sofrendo ao longo do tempo se manifestaria sobretudo na diferença entre os
Pensamento e Atualidade de Aristóteles
48
rascunhos da maturidade e os escritos publicados, obras da juventude. Destas só
sobraram fragmentos e citações. Ora, se desapareceram os escritos da juventude, você
não tem mais traços de uma evolução, só aparece o produto final. Então, tem-se a
impressão de que Aristóteles nasceu com sua filosofia pronta e acabada. O sistema
está pronto e não se compõe de partes que se vão dialeticamente formando ao longo
do tempo; compõe-se não de partes sucessivas, como numa história, mas de partes
simultâneas como num organismo. Toda a interpretação medieval de Aristóteles é
feita exclusivamente em cima dos tratados e é uma interpretação organicista, vê o
pensamento de Aristóteles como se fosse um organismo completo. Foi só depois, com
a redescoberta de fragmentos de escritos de juventude e com a reconstituição a partir
destas citações que foi possível ver que Aristóteles nem sempre tinha pensado assim. E
daí surge a idéia historicista, que por sua vez tende a se absolutizar e a negar qualquer
caráter orgânico e sistêmico ao pensamento de Aristóteles, subdividindo-o em "fases"
que são como que várias filosofias diferentes.
O confronto das duas maneiras de pensar se dá sobretudo nos dois últimos séculos.
Com as primeiras conquistas da ciência histórica nascente, naturalmente aparece uma
interpretação historicista de Aristóteles contra a qual reage Franz Brentano. Este
produz aos 24 anos de idade - caso de precocidade raríssimo em filosofia - a melhor
exposição da organicidade, da unidade do pensamento de Aristóteles no livro Da
Significação do Ser em Aristóteles, que se torna o texto clássico desta interpretação.
No nosso século, na década de 20, aparece a obra de Werner Jaeger que representa a
outra corrente, ou seja o historicismo.
Estamos cercando Aristóteles por fora - até agora nada falei doconteúdo do
pensamento de Aristóteles. Estamos falando primeiro do que os outros pensaram que
ele era. Por isso digo que é um personagem múltiplo e ao longo da história foram
sendo criados novos Aristóteles, de acordo com interesses de época. Para corrigir este
desvio historicista, temos de fazer um recuo em sentido contrário ao que faz o
historicismo. Este faz com que as idéias, referidas aos seus momentos no tempo,
recuem e fiquem distantes de nós, percam a atualidade. Teríamos de fazer o contrário,
revigorar sua atualidade, olhando-as não como idéias surgidas num determinado
momento no tempo, mas como idéias que fossem válidas para nós agora. Ou seja, não
basta perguntar o que nós hoje pensamos do que Aristóteles pensou há 2400 anos
atrás, mas também o que Aristóteles pensaria de nós hoje. E esta opção não é
impossível. Aristóteles era gente, pertencia à mesma espécie biológica que nós, não
podia ser tão radicalmente diferente de nós e não tem sentido fazer que o
distanciamento temporal de dois seres se sobreponha à sua identidade de espécie. Ou
seja, entre um boi antigo e um boi moderno pode haver muitas diferenças. Um pode
ter mais proteínas, ser mais cuidado, de uma raça que se formou depois - mas no
fundo é tudo boi. Aristóteles é gente como nós - esta é a primeira exigência do nosso
método. Em segundo lugar, Aristóteles, como qualquer ser humano, vivia no tempo e
Olavo de Carvalho
49
sabia que ia morrer e que depois disto ia continuar a existir gente neste planeta.
Portanto, como todo ser humano, ele deveria ter alguma expectativa sobre o que
deveria acontecer depois. Se prolongarmos, ampliarmos esta expectativa por 2400
anos, obteremos o julgamento que Aristóteles faria de nós, assim como podemos nos
julgar partindo das expectativas que tínhamos quando crianças ou adolescentes. Este
método de fazer com que o julgamento seja de dupla via é o único que pode pode dar
equilíbrio e senso de justiça às nossas conclusões. Se absolutizamos um ponto de vista,
o do "nosso" tempo, relativizando todos os outros tempos - o que estamos fazendo?
Criamos uma espécie de cronocentrismo. Fala-se muito em etnocentrismo, mas pior é
o cronocentrismo - achar que o nosso tempo é soberano, como se antes dele não
houvesse existido outros e como se ele não estivesse destinado a passar também. Não
basta ver as outra épocas com o olho da nossa, temos de ver a nossa com os olhos das
outras, senão ficamos cegos, perdemos o fio da continuidade da existência humana.
Para fazer estas duas operações é que fiz a lista dos estudos aristotélicos. Vamos
estudar brevemente, antes de entrar no conteúdo do pensamento de Aristóteles, a
evolução do que pensaram sobre ele ao longo do tempo, examinar por onde o
olharam, que questões se levantaram, o que pareceu importante e desimportante,
essencial ou acidental na sua obra em cada época. Como o remontaram ou
dsmontaram e que soluções deram aos pontos obscuros da sua doutrina.
A variação aí é tão grande que podemos ir não só da escola sistematista para a
historicista, mas podemos levantar ainda um outro contraste. Durante muito tempo o
pensamento de Aristóteles pareceu o sistema mais completo que existia. Hoje em dia a
tese dominante é a de Pierre Aubenque, que diz: "O pensamento de Aristóteles é
incompleto e incompletável". Como viemos parar longe de Brentano! Afinal, o
pensamento de Aristóteles é um organismo que se formou e evoluiu no tempo ou é
uma estrutura firme e acabada desde o princípio? É um sistema completo e fechado
ou é o esboço de um plano que não chegou a se realizar? É um sistema completo ou
um projeto incompletável? No confronto entre sistematistas e historicistas,
completistas e incompletistas, a impressão que fica é que é impossível entender
Aristóteles. As pessoas o entendem das maneiras mais diversas. Um lê: "Aristóteles diz
que isto é quadrado". E outro: "Ele assegura que é redondo." E um terceiro: "Ele diz
que é um triângulo." Isto é para dar uma idéia de como achar a verdade pode ser
difícil.
Pensamento e Atualidade de Aristóteles
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Pensamento e atualidade de Aristóteles
TERCEIRA AULA
Casa de Cultura Laura Alvim, Rio de Janeiro, 29 de março de 1994.
Transcrição de:
Heloísa Madeira
João Augusto Madeira
e Kátia Torres Ribeiro
1a parte
O pensamento de Aristóteles surge dentro de certo desenvolvimento em três etapas
do que chamamos a Filosofia do Conceito - aquela que busca um objeto estável, algo
que possa ser objeto de conhecimento, e o encontra, com Sócrates, no elemento
conceptual da realidade. Elemento conceptual é a parte ou aspecto dos entes que,
podendo ser resumido, encaixado dentro de uma forma mental fixa, revela o que estes
entes são em essência, independentemente das variações ou transformações que
possam sofrer no curso de sua existência. Por exemplo, um animal qualquer, leão,
cavalo, burro, por um lado tem este aspecto essencial que faz com que possamos
designá-lo sempre pelo mesmo nome referindo-nos à mesma espécie; por outro lado,
é evidente que não há dois cavalos iguais, dois leões iguais. Também é evidente que o
cavalo não permanece o mesmo desde que nasce até que morre. E que todo o
processo de geração, existência, corrupção e morte não afeta a essência ou elemento
conceptual destes entes. O leão morto não passa a ser outra coisa;é um leão,
essencialmente o mesmo, porém privado de existência. Distinguindo entre o que seria
o aspecto essencial e o aspecto acidental ou transitório das coisas, o método de
Sócrates propunha que a mente humana se preocupasse principalmente do elemento
conceptual, sendo que o outro aspecto não seria propriamente matéria de
conhecimento, mas apenas de sensação e opinião.
Em seguida, com Platão, vemos que este elemento conceptual, já recortado, separado
por Sócrates, adquire uma espécie de autonomia no sentido ontológico. Em Sócrates, a
divisão entre o aspecto existencial e o conceptual era apenas técnica; era um artifício
através do qual Sócrates tentava apreender um aspecto mais valioso da realidade,
digno de ser investigado. Em Platão, esse aspecto separado por Sócrates é enfatizado
como sendo ele mesmo a realidade, ao passo que o aspecto existencial, acidental e
transitório é visto como uma espécie de tecido de aparências que nos oculta a
verdadeira realidade. A passagem de Sócrates para Platão é bastante nítida; é uma
Olavo de Carvalho
51
diferença quase abissal. Uma coisa é dizer que vale mais a pena olhar a realidade por
determinado aspecto por ser ele mais revelador; outra coisa é dizer que este aspecto é
que é real e que o outro é, se não totalmente falso, pelo menos parcialmente ilusório.
Podemos resumir tudo dizendo que em Sócrates a divisão dos dois mundos ou
aspectos tinha um sentido metodológico, ou gnoseológico, e em Platão passa a ter um
alcance ontológico. Um preceito metodológico ensina como você deve investigar as
coisas; um princípio ontológico estabelece como as coisas realmente são..
Muitas vezes, na história do pensamento e na história das ciências, aconteceu que
preceitos metodológicos se transformaram em leis ontológicas. O caso mais recente é
o do marxismo. Marx diz que devemos olhar a constituição da sociedade em primeiro
lugar por sua infra-estrutura econômica e depois, em função dela, descrever os outros
estratos da sociedade - leis, política, costumes, valores, artes etc. Em primeiro lugar,
isto é um preceito metodológico e como tal obviamente funciona. Porém, tem isto
também um alcance ontológico? Será a sociedade objetivamente constituída assim?
Uma base econômica sobre a qual e e função da qual se vão criando outros estratos?
Marx não deixa isto muito claro. Ele diz apenas que em última instância o fator
econômico é decisivo, dando a entender que outros fatores podem ser decisivos em
instâncias não últimas. Como ele não diz em parte alguma o que entende por última
instância e onde termina a instância penúltima, o mais prudente é interpretar o seu
preceito em sentido apenas metodológico. Porém, a tradição marxista começou a
tratar esta hierarquia metodológica como se fosse um preceito ontológico. Como se a
sociedade fosse construída realmente de baixo para cima, a partir de um
embasamento econômico que determinaria todo o resto. E hoje esta idéia, como
preceito ontológico, entrou tão fundo na cabeça das pessoas que praticamente todo
mundo pensa assim, mesmo quem não gosta do marxismo... O que seria um mero
preceito metodológico ou no máximo uma hipótese ontológica acaba virando uma
convicção das massas que acreditam que isto tenha um fundamento científico.
Também na antropologia, a idéia de que o antropólogo, quando examina diferentes
culturas, deve evitar fazer uma hierarquia valorativa, como se uma cultura fosse
melhor do que a outra, é um preceito metodológico. Depois, quase que
implicitamente, tornou-se uma regra ontológica que diz que "não existemdiferenças de
valor entre as culturas ou os costumes". Um costume como a antropofagia, por
exemplo, deve ser considerado tão bom - ou tão ruim - como o da adoção dos órfãos.
Sempre que passamos do preceito metodológico para o ontológico existe no mínimo
uma imprudência muito grande.
Na passagem do socratismo para o platonismo parece ter havido isto e não sei nem se
o próprio Platão e os que o cercavam se deram conta desta escorregadela, pela qual
foram do metodológico ao ontológico.
Pensamento e Atualidade de Aristóteles
52
E preciso cuidado para saber quando alguém está falando sobre a constituição da
realidade ou sobre a melhor maneira de examiná-la. Dizer que um método é mais
conveniente do que o outro nada pressupõe a respeito da realidade. O fato de que
convenha examinar algo por certo lado não quer dizer que este lado seja
objetivamente o mais importante.
Distinção entre
a ordem do ser
e a ordem do conhecer
Aristóteles esclareceu isto perfeitamente com a distinção daordem do ser e da ordem
do conhecer. Quando o arquiteto concebe uma casa, ele concebe o todo, o esquema
geral; mas na ora de construir tem de seguir a ordem exatamente inversa, tijolo por
tijolo. Quando você vê a casa, novamente o que vê é o todo; mas quando vai percorrê-
la tem de ir parte por parte. Há uma série de inversões da hierarquia. Do mesmo
modo, o primeiro que conhecemos nos seres é o seu aspecto exterior e manifesto, mas
é claro que este aspecto é o último na sequência de constituição desses seres.
Um preceito metodológico refere-se à ordem do conhecer, que nem sempre reflete a
hierarquia real do ser. Quando você conhece uma pessoa, a primeira coisa que vê é a
aparência física. Mas como esta pode ser reveladora, se ela é própria apenas daquele
momento? Você conhece alguém de quarenta anos, está vendo a aparência desta
idade, não sabe tudo o que aconteceu antes. A ordem do conhecer nem sempre vem
na hierarquia certa do ser.
Um método é apenas um caminho para chegar a alguma coisa. Ora, descrever o
caminho pelo qual você chega de São Paulo ao Rio de Janeiro não é falar nada sobre o
Rio. A partir de uma descrição da Via Dutra você nada fica sabendo sobre a cidade do
Rio.
Evolução da filosofia
do conceito:
de Sócrates a Platão.
Se procurarmos em tudo aquilo que está documentado como dito por Sócrates - as
falas a ele atribuídas - algo de uma ontologia, não o encontramos de maneira
nenhuma. Só encontramos preceitos de lógica, de ética e de metodologia. Quando o
Sócrates que aparece nos Diálogos de Platão começa a dar a preceitos de Sócrates
valor ontológico, aí podemos dizer que quem está falando é Platão. Ele transformou
uma sugestão metodológica numa doutrina formal sobre a constituição do real. Em vez
de dizer que é mais fácil examinar os seres pelo seu aspeto conceptual ou lógico do
que pelo simples aspecto sensível, ele diz que o aspecto conceptual ou lógico é a
verdadeira realidade, e que o aspecto sensível, ou existencial, é aparência, é um véu.
Olavo de Carvalho
53
Com isto, uma separação meramente mental que nós fazemos - a separação entre o
ser e o seu conceito - é hipostasiada, personificada, materializada numa divisão real do
mundo em dois estratos. Como se o mundo único da nossa experiência, aquele sobre o
qual investigamos, já não fosse bastante complicado, você cria dois mundos.
A doutrina dos dois mundos é quase um tendência natural do espírito humano. Hoje
vemos, dois mil e tantos anos depois de Platão, que certo platonismo já aparecia na
arte do homem das cavernas. Isto foi destacado por um grande historiador da arte,
chamado Wilhelm Worringer. Ele observou que o homem primitivo, longe de ser um
cidadão perfeitamente integrado na natureza, sentindo-se perfeitamente bem ali, é,
ao contrário, um ente aterrorizado pela natureza imensa que o cerca, cheia de
imprevistos e ameaças incompreensíveis. Por isso mesmo, a arte dos povos primitivos,
longe de ser uma arte naturalista, uma arte que retrate a natureza com toda a sua
variedade de formas e cores e seres, é uma arte simplificadora, uma arte geométrica,
que expressa um impulso abstrativo muito intenso. Worringer explica assim este estilo
de arte: quando o mundo real nos parece demasiadamente complicado ou ameaçador,
tendemos a nos refugiar num domínio intelectual puro, para podermos encontrar
dentro dele os princípios de organização simplificadora, com os quais mais tarde
voltaremos a tentar nos instalar no mundo externo. Como você não está entendendo o
que se passa fora, recua para organizar os próprios pensamentos. Depois de os ter
organizado, volta à ação exterior. Ora, uma arte de ornamentação puramente
geométrica é o que se observa em praticamente todas as sociedades tribais; e uma
arte naturalista, na qual o artista se deleita em copiar as formas da natureza, só
aparece nas sociedades organizadas, na polis. O naturalismo, a curtição da natureza,
são próprios do homem civilizado, e não do primitivo. Para este a natureza é um caos,
porque ele não tem poder sobre ela. A partir da hora em que consegue organizar o
pensamento humano, e em consequência, a sociedade, coloca uma hierarquia, coloca
todo mundo para trabalhar, monta as cidades, cria sistemas de produção e defesa, e
afinal sente-se mais seguro e face desta natureza, então sim os aspectos terrificantes
dela são atenuados e começam a aparecer os aspectos estéticos. A beleza da natureza
só é visível depois que você está a uma boa distância dela.
Esta arte primitiva tem também um sentido religioso, ritual, de modo que as formas
puramente geométricas expressam um realidade que, não sendo visível neste mundo,
não estando na natureza, é no entanto superior a ele, e na qual o homem se sente
protegido contra o caos exterior. Expressa um mundo de relações puramente
espirituais, angélicas. São símbolos, signos mágicos ou religiosos. Podemos ver nestes
fenômenos descritos por Worringer uma espécie de platonismo primitivo, e aí
entenderíamos o platonismo não apenas a filosofia de um certo cidadão, mas como
uma tendência constante do espírito humano, e que reaparece sempre que a situação
fica caótica e o homem, não conseguindo entender o que se passa, procura em
primeiro lugar reordenar o seu mundo interior. Por isto dizia Alain que Platão é o
Pensamento e Atualidade de Aristóteles
54
filósofo bom para os que estão em dificuldades interiores, ao passo que Aristóteles é
para os cientistas e pesquisadores do mundo.
Num outro contexto completamente diferente, Carl-Gustav Jung, que não levo muito a
sério como teórico mas cujas observações clínicas são primorosas, notou que sonhar
com objetos geométricos acontece na hora em que a anima está dialogando com o
superego ( anima é a parte da psique que congrega desejos, aspirações de felicidade;
superego é senso imanente de autoridade, legalidade interna ), no sentido de obter
autorização para fazer alguma coisa que ela deseja. Na hora e que se estabelece este
diálogo que visa reordenar a relação entre as leis e os desejos, é que o sujeito começa
a sonhar com figurar geométricas. O geometrismo expressa um princípio de
reorganização da mente. Por um motivo muito simples: o geométrico forma uma
espécie de ponte entre o puramente matemático e o sensível. As matemáticas
começam a se desenvolver primeiro pela geometria e só depois chegam à aritmética
pura. No tempo de Platão, a geometria já estava bastante desenvolvida e a aritmética
só começa a caminhar uns quatro séculos depois. É mais fácil raciocinar
matematicamente com figuras geométricas do que com números abstratos. O
geometrismo aparece como um diálogo, uma intermediação entre a parte sensível e a
parte inteligível, ou como diria Jung, entre a anima e o superego.
O geometrismo é um recuo para uma reorganização interior, um rearranjo entre as
exigências da alma humana e o senso de ordem, hierarquia lógica, realidade firme, etc.
Visto assim, o platonismo não é a filosofia de Platão, mas um tendência que reaparece
a todo momento, sempre que o homem sente a necessidade de refluir desde um
situação exterior caótica até um princípio espiritual, interno, invisível ou
transcendente de organização. E se é assim, sempre que houver uma situação de caos
social, intelectual, moral, ressurgirá algum platonismo, ou seja, uma divisão do mundo
em dois estratos, dando mais atenção ao estrato superior interno, representado em
geral por figuras e relações de tipo geométrico. Veremos isto às portas da Renascença,
época de muito caos, de dissolução da unidade da civilização cristã, e onde indivíduos
mais sensíveis, como Kepler, sentem a necessidade de restaurar a doutrina platônica
sob as formas geométricas do cosmos. Segundo Kepler, haveria entre as distintas
esferas planetárias as mesmas relações que existem na sequência dos sólidos
geométricos platônicos. O desejo de encontrar na realidade externa um princípio
geométrico é um desejo de ordenação. Do mesmo modo, a queda do marxismo após a
revelação dos crimes de Stalin por Kruschev precipitou a intelectualidade européia
numa crise de consciência para a qual encontrou alívio aderindo ao estruturalismo de
Cl. Lévi-Strauss, uma espécie de geometrismo antropológico que, inspirado no
rigorismo linguístico de Saussure, reflui do devir histórico para a busca das estruturas
permanentes.
Olavo de Carvalho
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Ora, só procuramos ordenar o que está desordenado. Quando você está se sentindo
perfeitamente bem na confusão e na variedade do mundo externo, não quer organizá-
lo de maneira alguma. A distinção que faz o Worringer entre a arte primitiva ou
geometrizante e a arte clássica de tendências mais naturalísticas é a distinção que
existe entre o homem que teme o cosmos e o que se sente bem nele. Mas este sente-
se bem porque está um pouco fora dele, protegido por uma camada -- Lévi-Strauss
dizia "almofada" --que é a própria civilização.
A época de Platão era uma época de caos moral muito grande. Platão tinha o impulso
de reformar, reordenar o mundo todo; tinha um projeto político para o mundo inteiro,
principalmente para Atenas. Na famosa Carta VII ele explica que o grande objetivo de
sua vida tinha sido reformar politicamente a Grécia. Platão não era só um filósofo, era
um homem público, um homem de ação. Vemos na biografia de Platão que este
impulso reformador e reordenador se defronta com uma série impressionante de
fracassos, num dos quais ele tenta dar seu apoio a um golpe de Estado que teria sido
dado por um discípulo seu numa cidade vizinha; tinha ele a idéia de, a partir desta
cidade, reordenar a Grécia, voltando vitorioso para Atenas, como fez depois
Mohammed ( Maomé ) - saiu, reformou a cidade vizinha e voltou à sua, para reformá-
la nos moldes da primeira. Platão faz uma espécie de Hégira - mas não dá certo. O
golpe de Estado é reprimido, Platão é preso e vendido como escravo na feira, sendo
recomprado por seus discípulos.
Sócrates não teve nenhum intuito de agir politicamente, a sua é um tipo de filosofia
muito mais pura que a de Platão, mistura de filósofo e estadista -- reformador, político,
moralista, profeta. Saindo desta e de outras experiências do mesmo teor, ele inicia, na
maturidade, quando começa a se tornar independente do mundo socrático para criar
seu próprio mundo filosófico, uma transição marcada por um abstratismo, uma
geometrização e uma absolutização da divisão do mundo em dois estratos. Em parte,
essa mudança na orientação da filosofia de Platão acontece por força destas
experiências que mostram ao filósofo o caráter rebelde do caos do mundo, que não se
curva tão facilmente aos nossos impulsos reformadores. Aí ele sente que antes de
reformar o mundo é preciso fazer uma espécie de interiorização, uma reforma do
mundo interior, uma reordenação conceptual para mais tarde tentar com base nela
reorganizar o mundo. O empreendimento não foi totalmente fracassado porque toda a
proposta pedagógica que Platão oferece para a reforma do mundo acaba sendo
adotada, letra por letra, pelo clero católico. Se observarem o que é a educação de um
padre na igreja e perguntarem de onde a Igreja tirou isto, esta idéia de uma
preparação interior até que o sujeito esteja pronto para atuar no mundo, nada
encontrarão nos Evangelhos ou no Antigo Testamento. Não há fontes cristãs deste
modelo: sua fonte é o velho Platão. Na famosa República Platônica, a chefia é
conferida aos filósofos mais profundos; a filosofia deles é uniforme, todos pensam
igual, numa espécie de clero filosófico. Esta proposta não foi adotada na política
Pensamento e Atualidade de Aristóteles
56
mundial, mas o foi na organização da Igreja. Neste sentido, a proposta platônica
perdeu a batalha na Grécia mas venceu em uma outra parte do mundo, justamente a
parte que continha em si as mais promissoras sementes de futuro, as sementes da
civilização européia que, sem sombra de dúvida, é obra da Igreja.
Organicismo
versus
geometrismo
Em contraste com isto, vemos que Aristóteles, pertencente a uma família de médicos e
tendo, muito provavelmente estudado anatomia desde pequeno, não tendo nenhum
talento especial para matemáticas, e ao contrário, manifestando certa birra com elas,
e especialmente com o matematismo, se mostra um homem muito mais inclinado a
conceber a idéia de forma não segundo um modelo geométrico, mas segundo o
modelo do corpo vivente, seja do ser humano ou do animal. Daí parte uma série de
tendências características do pensamento aristotélico. Aristóteles é o inventor da
biologia e podemos tomar a sua filosofia como protótipo do pensamento biológico - o
que toma o ser vivente como modelo do real. Ora, o ser vivente não é encontrado num
outro mundo, através de um pensamento conceptual, mas sim neste mesmo e com os
dois olhos da cara. É possível vê-lo, tocá-lo, cheirá-lo, examiná-lo, observá-lo no seu
surgimento, no deu desenvolvimento, na sua plenitude, declínio e morte.
A primeira coisa que se observa num organismo é a inseparabilidade que existe entre a
unidade e a variedade que o compõe. O organismo tem a característica de morrer se
for cortado pelo meio. Se perder a unidade, já não existe mais. Por outro lado, é uma
unidade composta de uma diversidade, de uma diversificação muito grande de órgãos
- por isso mesmo se chama organismo (conjunto harmônico de órgãos que funcionam
para um mesmo fim). Se você observar os vários órgãos que compõem qualquer corpo
vivente, vai ver que não há nenhuma maneira de explicar a coordenação entre eles,
senão em vista dos fins a que este organismo visa. Os vários órgãos são tão diferentes
entre si que somente funcionam de maneira coordenada se o organismo todo tender a
um determinado fim. Quanto mais dirigido a um fim claro e definido está o organismo,
mais harmoniosamente funcionam os seus vários órgãos. Por isto, a ginástica ou
qualquer disciplina funcionam, porque acostumam todos os órgãos a agirem de uma
maneira sincrônica e harmônica, em vez de se dispersarem. Esta harmonia é a própria
integridade do corpo humano. Quando os órgãos se rebelam uns contra os outros é a
doença, e em seguida a morte. Quando o organismo morre, ele se decompõe, suas
partes mínimas separam-se e adquirem vida autônoma. Perde a coesão, a harmonia, s
subordinação e coordenação entre as partes. Tudo isto são observações que devem ter
ocorrido a Aristóteles muito precocemente, muito antes de que ele as formulasse
filosoficamente.
Olavo de Carvalho
57
O corpo humano tem ainda a característica de ser marcadamente hierárquico. No
organismo, nem todos os órgãos têm a mesma importância vital. Temos partes do
corpo humano que nós mesmos incessantemente cortamos e jogamos fora: cabelos,
unhas. Outras que expelimos constantemente. Outras que são substituídas: hoje
sabemos que todas as células são trocadas de tempos em tempos. Naquele tempo não
se sabia, mas era fácil ter uma certa antevisão disto. Temos órgãos que não podem ser
eliminados, pelo menos no todo, sem um grave prejuízo para o corpo. Se nos cortam
uma perna, continuamos vivendo, embora de maneira deficiente. E outros que não
podem ser cortados, nem mesmo tocados - se você for acertado ali está morto.
Sabemos que podemos viver sem uma parte do cérebro, mas não sem cérebro
nenhum. Mas não podemos viver sem metade do coração, ou sem ossos. Esta
gradação hierárquica de importância vital é outra característica do organismo. Então,
temos:
1º) Unidade na variedade.
2º) Identidade entre a coesão e a existência real (a coesão é a própria possibilidade de
existência).
3º) Caráter hierárquico.
Unidade diversificada, coordenação e subordinação são as carecterísticas mais
evidentes do ser biológico.
2a parte
A vida, plenitude
do real. Deus
é vivente, é zoon.
Acostumados a ver estas coisas no organismo vivente desde criança, são estes os
traços que Aristóteles vai encontrar no que ele chamará de realidade, ou seja, ele
procurará ver em tudo que existe, a sua unidade na variedade, a sua coesão e a
suahierarquia. O que é a mesmíssima coisa que encarar o real todo como se fosse um
gigantesco modelo orgânico. Daí é que vem também a irritação dele com as
matemáticas. Ele reconhecia, como os platônicos, que o mundo dos sentidos é muito
difícil de captar, porque está em constante transformação. Seus elementos individuais
não têm estabilidade suficiente para que você possa dizer algo sobre eles que já não se
torne falso no instante seguinte. Os platônicos reagiam a isto fugindo dos entes
sensíveis para os entes inteligíveis, sobretudo os geométricos, ao que Aristóteles
objetava que, se os entes matemáticos tinham a estabilidade, isto não bastava para
Pensamento e Atualidade de Aristóteles
58
lhes dar a plenitude da existência. Ademais, os objetos matemáticos sofriam do mais
grave de todos os defeitos - não serem objetos vivos. Segundo Aristóteles,
evidentemente, o vivo é mais real que o morto. O vivo age, o morto apenas está num
lugar, só vive espacialmente. O vivo, além de estar, age, produz efeitos sobre os outros
seres. Esta é uma forma de existência mais intensa, mais plena e mais rica.
Dizia Aristóteles: vemos de um lado entes que são vivos, mas impermanentes, e de
outro lado, temos entes permanentes, mas que não são vivos nem plenamente reais;
sabemos que estes dois tipos de seres existem - sensíveis e matemáticos -- ,
submetidos a leis que têm uma consistência própria e que não podemos mudar. Mas
se estas duas formas de seres, reconhecidamente existentes são, cada uma delas,
deficientes de um modo oposto, talvez haja alguma forma de existência que tenha as
qualidades destas duas e esteja isenta de seus defeitos. Tenha a permanência do
objeto matemático e seja viva e agente como os seres vivos. Este é o conceito
aristotélico de Deus. Este Deus que ele só conhece como hipótese demonstrável por
vias indiretas, do qual não tem experiência ou conhecimento direto, somente Ele
atende ao requisito de ser perfeitamente real. Perfeitamente real seria aquilo que
tivesse a forma mais intensa e rica de existência e ao mesmo tempo não fosse
perecível, sujeito a acidentes. Só conhecemos isto como suposição que fazemos
logicamente, não conhecemos por experiência, nunca ninguém viu Deus. Ele não se
deixa apreender inteiramente pelos nossos órgãos dos sentidos. Por outro lado,
também não se deixa apreender inteiramente pelos nossos cálculos e raciocínios
lógico-matemáticos. Por um paradoxo, este Ser inapreensível se impõe a nós como o
que seria o modelo da realidade plenamente real. Este vai ser o princípio fundamental
da metafísica de Aristóteles. Este Deus seria o estrato superior da realidade. No
entanto, este estrato não está separado do mundo sensível, como o mundo divino de
Platão, mas está misteriosamente imbricado no real, ou antes, o real está imerso nele
como dirá mais tarde S. Paulo Apóstolo: "Nele nos movemos, vivemos e somos".
A importância
das distinções
em Aristóteles
Aristóteles admite uma complexa hierarquia do real; primeiro, não é composta de dois
estratos, mas de uma infinidade. Em segundo lugar, o organismo é superior aos
órgãos, mas, em relação aos órgãos, onde está o organismo? Não está em nenhum
órgão. A relação complexa entre o todo e as partes que o compõem é uma outra
característica do pensamento aristotélico. Daí a enorme preocupação de Aristóteles de
estabelecer a relação entre unir e distinguir. A realidade é sempre é sempre composta
de elementos distintos ou distinguíveis, porém nem sempre separáveis.
Do socratismo e do platonismo, com sua visão mais ou menos esquemática do mundo
até esta rede de distinções enormemente sutis e trabalhosas há um salto, um
Olavo de Carvalho
59
aprofundamento monstruoso. Quando entramos no mundo aristotélico, subitamente
entramos no nosso mundo. Estas distinções, cuidados etc. ainda fazem parte do
mundo científico em que vivemos hoje. Ninguém se aventura a uma investigação
científica sobre o que quer que seja se já não tiver todo um sistema de uniões e
distinções mais ou menos estabelecido, um quadro conceptual dentro do qual os
vários aspectos da realidade aparecem nas suas relações mais ou menos verdadeiras,
que a investigação confirmará ou desmentirá.
Aí também há uma grande diferença entre toda a filosofia anterior e Aristóteles. Desde
que surgem os primeiros filósofos gregos, os chamados pré-socráticos, até Platão, a
principal ocupação deles consiste em dizer alguma coisa sobre a realidade, isto é,
emitir uma doutrina sobre a constituição do mundo. Em segundo lugar, têm a
preocupação de distinguir no mundo, radicalmente, o que é essencial do que é
acidental, e portanto em dizer logo o segredo fundamental das coisas. Toda a filosofia
pré-socrática se caracteriza pelo fato de que a cada filósofo corresponde uma fórmula
que ele emitiu sobre o que é o mundo em essência. Um diz que é água, outro os
quatro elementos, outro o ápeiron ou indefinido, e assim por diante. Resumem numa
fórmula a constituição do real, e arquitetam todo um mundo de pensamentos para
sustentar esta tese. Aristóteles não faz nada disto, não tem nenhuma doutrina sobre a
constituição última do mundo. Ao contrário, ele se preocupa em conceber estratégias
e métodos que permitam progressivamente ir descobrindo alguma coisa. Ele inventou
o que hoje chamamos ciência. A atitude científica é aquela que se abstém da
proclamação dogmática de uma verdade, mas pretende encontrar uma verdade
fundamental, provada em todas as suas etapas e que uma vez demonstrada, se torne
universalmente obrigatória para todos os seres pensantes.
Por que não existiu
um aristotelismo grego.
Teofrasto e Estratão.
Com este salto deixamos para trás a etapa dos gurus, dos quais Platão teria sido o
último (guru é o sujeito que detém o segredo da verdade, e o enuncia em duas ou três
fórmulas potentes, como aforismos ou sentenças proféticas). Platão, embora já seja
um grande filósofo no sentido posterior, é o último guru da antiguidade grega. Ele
entra na história mais ou menos como uma espécie de detentor de um segredo último,
que ele enuncia em algumas fórmulas como que reveladas. De Platão para Aristóteles
temos um salto imenso, no sentido da conquista do juízo crítico e da autoconsciência
da limitação humana. Comparado com Sócrates e Platão, para não falar dos
antecedentes, Aristóteles é de uma atualidade chocante. E, sendo assim, começamos a
entender porque não existiu um aristotelismo no mundo grego. A filosofia aristotélica
tinha propostas que estavam muito além e muito acima das exigências momentâneas
da mente grega. Por isto mesmo, embora o Liceu Aristotélico tenha continuado a
Pensamento e Atualidade de Aristóteles
60
existir, o aristotelismo desaparece de dentro do próprio Liceu e ele só tem
propriamente um discípulo que podemos dizer que é aristotélico - Teofrasto. Este é
apenas doze anos mais novo que Aristóteles, da mesma geração. Produz duas obras
importantes - uma Metafísica ( apresentação da metafísica aristotélica ) e outro livro
chamado Os Caracteres, série de perfis psicológicos de tipos, que conserva o vigor e
atualidade até hoje, principalmente através da tradução e complementação que lhe
deu La Rochefoucauld. Teofrasto é o único discípulo que captou algo de Aristóteles e
pode ser dito aristotélico.
O seguinte escoliarca do Liceu - Estratão de Lampsaco - já não é aristotélico de forma
alguma, embora imagine que o seja. Acredita estar sendo fiel ao mestre no instante
em que expõe doutrinas que são já lhe são radicalmente contráras. Estratão interpreta
Aristóteles num sentido empirista, isto é, declara que todo o conhecimento vem
exclusivamente pela experiência sensível. Mas Aristóteles não é nem empirista nem
racionalista, e acho mesmo que ele não veria nenhum sentido nesta oposição.
Segundo ele, o inteligível não está separado da realidade empírica, oculto num céu
onde só possa ser alcançado pela razão pura; está antes imbricado no tecido mesmo
da experiência, de onde é preciso desembrulhá-lo pelos esforços conjugados da análise
metafísica e da pesquisa experimental. A experiência, para Aristóteles, não é
concebível fora dos quadros lógicos que, por sua vez, se fundam na intuição intelectual
dos primeiros princípios, os quais não poderiam ser obtidos da experiência ( por mera
indução quantitativa ) mas também não poderiam chegar ao nosso conhecimento sem
ela. Estratão esmaga logo toda esta sutil combinação, reduzindo a filosofia de
Aristóteles a um empirismo, um erro tremendo que, quase dois mil anos mais tarde,
será causa de outro erro complementar e oposto, que é o de tomar Aristóteles por um
racionalista hostil à investigação experimental. ( Não há filósofo em torno do qual se
tenham acumulado tantas imagens equivocadas, e é por isto que, neste curso, adoto
esta abordagem indireta, de ir cercando Aristóteles através dos Aristóteles imaginários
concebidos pelos que o comentaram, defenderam e atacaram. )
Assim o aristotelismo vai desaparecendo. Mesmo a edição dos textos de Aristóteles no
século I a.C. (272 anos depois de sua morte), não suscita o nascimento de nenhuma
escola aristotélica. Enquanto isto, a Academia platônica continua existindo e continua
produzindo grandes nomes. As obras de Aristóteles passam a ser lidas por membros da
Academia platônica e os primeiros grandes comentaristas de Aristóteles na
Antiguidade -- Alexandre de Afrodísia, Porfírio e Siriano - são todos neoplatônicos, não
são aristotélicos.
Desde o último aristotélico - Teofrasto ( 372 a.C. ) até o primeiro aristotélico em
sentido pleno que surge na história - Avicena ( 980 d.C. ), no mundo islâmico -
passaram-se 1.400 anos! Este fato não tem sido enfatizado e sublinhado como o estou
fazendo neste momento. Não existiu nenhum aristotelismo no mundo, depois da
Olavo de Carvalho
61
morte de Aristóteles, até decorridos 1.400 anos, a duração de uma civilização. Não de
um país, ou de uma escola filosófica, ou de um regime político - é a duração de uma
civilização inteira, um ciclo inteiro de transformações. O mundo islâmico, hoje, ainda
não tem 1400 anos de idade. Se se observar o que ele é hoje, comparado a seus dias
de glória, pode-se afirmar que é uma civilização já em decadência. Em 1.400 anos dá
tempo de nascer, crescer, florescer, decair e morrer uma civilização. Portanto, afirmo
taxativamente: Aristóteles não fez parte do mundo grego. Foi uma semente grega que
ficou guardada num vidrinho para florescer somente dentro do que chamamos
civilização europeia. Aristóteles é um filósofo europeu e não grego.
Isto não é estranho. Diz Goethe: "O ente que realiza perfeitamente a qualidade que
define uma espécie já não pertence a esta espécie". Já está em outro plano. Assim
como o homem cujas qualidades e virtudes realizem o que existe de melhor no ser
humano já nos aparece como sobre-humano, com algo de angélico. Como Santo
Tomás de Aquino - o "Doutor Angélico". Ou um tipo como São Francisco de Assis, com
qualidades que são humanas, mas realizadas de maneira tão integral que você vê que
de certo modo passou para uma outra espécie.
Émile Boutroux na sua pequena biografia de Aristóteles diz que este não é só um
indivíduo, mas é a consumação, a perfeição de todo o gênio da civilização grega. É
verdade isto. Mas esta perfeição, esta consumação aparecem como o fruto de uma
árvore, que já não faz mais parte dela, que vai ser destacado e vai ser a semente de
outra árvore. O fruto perfeito, por sua vez só age - e esta ação é a própria realidade -
numa outra árvore que provém dele. Este hiato de 1.400 anos entre a produção das
obras de Aristóteles e o surgimento de um aristotelismo no mundo está na própria
natureza do aristotelismo que, representando o suprassumo do legado grego, não
poderia fazerparte da civilização grega. Assim como a herança deixada por um
milionário não faz parte da fortuna dele, pois só é herança depois que ele morre. A
herança necessariamente pertence a um outro. Ora, ainda assim, esta herança não é
apropriada de repente e toda de uma vez. A Europa toma posse do pensamento
aristotélico, mas não é uma posse integral. Uma posse no sentido imobiliário, em que
se tem a escritura definitiva. A tomada de posse do aristotelismo pela civilização
ocidental é um processo que começa a partir desta época, entre os anos 1000 e 1300,
que é justamente o que chamamos período de formação do pensamento escolástico, e
que na verdade não alcançou sua plenitude até hoje.
O último grande escolástico citado na nossa lista é Duns Scot, nascido em 1266, que já
não era propriamente um escolástico. Entre sua morte e o nascimento do sujeito que
foi a grande expressão do aristotelismo renascentista - Pietro Pomponazzi - decorrem
200 anos: tempo da história inteira do Brasil como nação.
Pensamento e Atualidade de Aristóteles
62
A História
é feita
de previsões errôneas
Nosso senso do tempo tem de sofrer alguns reajustes para estudarmos a história das
idéias, onde as coisas transcorrem com uma lentidão terrível. Dizia Homero: "Os
moinhos dos deuses moem lentamente". São eles que produzem a farinha para o pão
da história humana. As decisões dos deuses são tomadas lentamente, lentamente
entram em vigor e produzem consequências que se desenrolam ao longo dos milênios.
Para acompanhá-las temos de entrar numa espécie de câmara lenta. Nosso Congresso
toma "decisões históricas" toda semana, mas é claro que esta impressão é baseada
numa imagem falsa do que seja História. Não cabe ao próprio personagem da cena
dizer qual a importância que suas ações de hoje vão ter no futuro. Estas "decisões
históricas" são todas irrelevantes. Mas Weber diz que, com os eventos que parecem
importantes no momento, costumam acontecer duas coisas - a primeira é que esses
acontecimentos se fundem na massa acinzentada do historicamente indiferente; a
segunda hipótese, é que o sentido dos eventos acaba sendo tão alterado que vira às
vezes o seu contrário. Weber também diz, em outro lugar, que a História é o conjunto
dos resultados impremeditados das nossas ações.
Os políticos que tomam decisões segundo uma interpretação simplista e esquemática
do momento, caindo no engodo da retórica, arriscam-se a que suas decisões tenham
efeitos inversos aos desejados. Quando Luiz XVI manda convocar os Estados Gerais, é
para dar um fim ao clima de insatisfação. Ou quando o Czar da Rússia liberta os
escravos, é para eliminar uma situação de insatisfação causada pela injustiça. Como
resultado, Luiz XVI é guilhotinado e o Czar morre na explosão de uma bomba. Aqueles
atos que, no entender dos personagens ( e segundo a retórica dos intelectuais do
momento ), levariam à restauração do seu poder, causam em vez disto a sua extinção.
É difícil o caso de um evento histórico que tenha efetivamente o sentido que seu
personagem desejou ver nele. Como os mil anos do Reich, que se esgotaram em doze.
Aquilo que parecia ser a culminação de um movimento nazifascista foi na verdade o
seu fim. Imaginem se os autores da Revolução, ao guilhotinarem metade da França,
soubessem que o resultado de tudo aquilo seria um império, um imperador que
restauraria tudo e criaria uma nova dinastia, que depois cairia para dar lugar à volta da
velha dinastia, e que em 1848 seria preciso fazer uma segunda revolução para morrer
um bocado de gente novamente e que só por volta de 1870 haveria paz liberdade e
prosperidade? Robespierre acreditaria nisso? Acreditaria que viria a entrar para a
História como o protótipo do tirano sanguinário, em vez de como um libertador do
povo?
O sentido do evento histórico é sutil, é melhor consultar os deuses e tentar ver as
coisas a uma distância muito grande. Para isto, precisamos ter aquela neutralidade
Olavo de Carvalho
63
compassiva que nos permita querer ver o sentido das coisas como ele realmente é e
não como o desejamos. Mas se já aderi a esta ou àquela causa, com todo o empenho,
desejo evidentemente que ela seja vencedora e isto me faz apostar nela e ver as coisas
de uma certa maneira. Não que todo militante seja um sonhador. Há muitos que são
realistas, pessimistas ou cínicos. Mas é impossível que o militante não veja a situação
em termos de vitória ou derrota da sua causa, e nem de longe imagine que outras
contradições, alheias ao tema do seu interesse, venham a decidir o curso das coisas.
Então, se imaginarmos o que os contemporâneos de Aristóteles pensava dele, veremos
que estavam todos enganados. E o próprio Aristóteles só não se enganou nisso porque
não fez a menor previsão sobre o que aconteceria com o seu pensamento. Isto é outra
coisa que nos parece assombrosa. Aristóteles não parece ter deixado para os seus
discípulos nenhuma indicação sobre o que fazer. Não deixou uma orientação que
pudesse de certo modo permitir a continuação do seu trabalho, como tinha feito
Platão. Na Academia havia uma série de valores, de critérios tão bem estabelecidos
que era só continuar como o mestre tinha começado que daria tudo certo. Mas
Aristóteles não fez nada disso. Seu testamento é meramente pessoal, como os que se
fazem hoje - o destino dos seus bens. É incrível a total despreocupação de Aristóteles
com um trabalho que não tinha sido apenas pessoal - um trabalho coletivo, com
centenas de pessoas contratadas graças a Alexandre para trazer informação para o
Liceu. Como este trabalho imenso é deixado, quando ele morre - pelo menos ao que se
sabe - sem continuidade? Explico isto em parte pelo fato de que quando Aristóteles
morreu, este trabalho, para ele, estava praticamente encerrado; nos seus dois últimos
anos de vida, ele estava no exílio e provavelmente prevendo que ia morrer, pois já
partira doente, e sem comunicação com o pessoal do Liceu em Atenas. Em segundo
lugar, ele não era um reformador do mundo. Não fazia planos para a vida alheia, que
são a principal ocupação dos reformadores do mundo. Fez o que pode, e deixou os
discípulos à vontade para fazerem o que quisessem. Em terceiro lugar, duvido que o
próprio Aristóteles tivesse uma visão muito exata da revolução que havia começado.
Não poderia, a não ser que fosse um profeta, imaginar o que ia acontecer com sua
obra: o destino mais extravagante que se possa imaginar. Primeiro vai sumir tudo,
todo mundo vai esquecer e quem ler não vai entender. Depois, tudo em torno vai
acabar; esta polis, este regime; a Grécia será dominada pelos romanos; em seguida, vai
erguer-se no mundo oriental um povo, o povo judeu, e do meio dele aparecerá um tal
de Jesus Cristo que vai fundar uma nova religião sem importância, mas que trezentos
anos depois vai dominar tudo isto; então vai aparecer algo chamado Igreja, que
reconstruirá o mundo em novas bases; depois disto, mais a Oriente ainda, vai aparecer
outro maluco, chamado Maomé, que vai trazer outra religião que dominará as Arábias
e o Iran. Por lá é que vão ser reencontrados os manuscritos gregos, que serão passados
para o árabe, depois para o latim, e isto vai cair nas mãos de um tal de Sto. Alberto
Magno, que transmitirá a coisa a seu aluno Tomás de Aquino, o qual fará um
estardalhaço a respeito - e então, finalmente, todo mundo vai ser aristotélico durante
Pensamento e Atualidade de Aristóteles
64
quatrocentos anos. Que história mirabolante! Poderia Aristóteles imaginar, mesmo de
longe, esse destino póstumo das suas obras? Isto é absolutamente impossível.
Portanto, Aristóteles não tinha a mais mínima idéia do que viria a acontecer.
Causas do desaparecimento
do aristotelismo
após a morte do mestre.
As visões iniciais que temos de um assunto às vezes determinam todo o restante das
relações que teremos com ele. Por isso achei muito importante corrigir e explicar esta
noção de Aristóteles como fenômeno grego. Pode ser grego nas suas causas, mas não
nos seus efeitos.
Na aula passada mencionei que entre outras causas desta evolução anormal do
aristotelismo, houve o fato de Aristóteles ter sido exilado em circunstâncias um pouco
suspeitas por causa de suas ligações com Alexandre, o Grande. Relações que estavam
estremecidas porque, numa crise política, Alexandre tinha mandado matar um
sobrinho de Aristóteles, motivo pelo qual, apesar da amizade, todas as relações
cessaram. Não chegaram a entrar em hostilidade mas não se procuraram mais para
evitar de ter de acertar este ponto doloroso. Apesar deste distanciamento, quando
surge uma guerra contra a Macedônia, todos os que tinham relações com o governo
macedônico tornaram-se automaticamente suspeitos e Aristóteles teve de fugir. Não
há indício do que aconteceu no Liceu em seguida, mas podemos supor que quem é
amigo de suspeito, suspeito é. Portanto, deve ter havido uma correria geral para
apagar indícios de relações com Aristóteles. Imagino que os textos dele foram-se
tornando raros exatamente por isso. A história dos textos escondidos na caverna pode
ser fictícia, mas a lenda deve ter sido inventada para explicar algo que aconteceu
efetivamente. O fato é que os manuscritos sumiram e só dois séculos e meio depois
reaparece a coleção nas mãos de Andrônico de Rodes. Mas não podemos explicar de
maneira alguma pelo sumiço dos manuscritos a ausência de um aristotelismo grego.
Primeiro porque não é possível que tenham sumido todos os manuscritos; segundo
porque o Liceu continua funcionando. Acho que havia mesmo uma incompatibilidade
da mente grega para absorver esta nova atitude intelectual, tão isenta daquele fundo
profético-religioso que o grego estava acostumado a encontrar nos seus pensadores.
Sobretudo nos séculos seguintes, a crise político-social da Grécia, inclusive com a
extinção da chamada democracia grega e sua substituição por governos ditatoriais, vai
fazendo com que os indivíduos, já não podendo participar da política, se sintam
isolados e percam o sentido de participação na história e comecem a se preocupar
cada vez mais com problemas de ordem psicológica e particular. Daí o sucesso das
novas escolas filosóficas, das chamadas neo-socráticas -- cínicos, megáricos --, dos
estóicos e sobretudo dos epicuristas, porque estes todos transferiam o eixo das
preocupações filosóficas desde as grandes questões teoréticas para problemas
Olavo de Carvalho
65
psicológicos. Tirando o estoicismo, não são propriamente escolas filosóficas, são como
se fossem terapias tentando oferecer um alívio mais ou menos fictício, postiço, para os
sofrimentos humanos, mediante disciplinas mentais. A proposta epicúrea, por
exemplo, é nitidamente de nunca pensar na realidade, mas concentrar-se na
recordação dos momentos agradáveis e só pensar neles, como se o presente não
estivesse acontecendo. Tudo isto acompanhado de uma retirada da vida civil, para
você se fechar dentro de uma espécie de ashram. O famoso "Jardim de Epicuro" é
um ashram, para onde as pessoas iam para não sair mais, e onde ficavam curtindo as
coisas simples da vida: comer, dormir, conversar com os amigos, só falar de assuntos
agradáveis e nunca tocar nos males do presente. Uma espécie de sistematização da
evasão. Como chamar a isto de filosofia? Não só o epicurismo como outras escolas
deste tipo é o que estava em demanda - era o que as pessoas queriam, pois buscavam
alívio urgentemente. Quem está em busca de alívio não está em busca do
conhecimento da realidade. O conhecimento é um encargo, uma responsabilidade a
carregar e supõe um certo equilíbrio das faculdades, que as pessoas não estavam
absolutamente em condições de oferecer. Então, o aristotelismo desaparece não só
por causa do fator material, da ausência dos textos, mas também por um fator
psicológico- histórico, que o tornava desnecessário, do ponto de vista grego, naquele
momento.
A gnoseologia
de Aristóteles é organicista
como sua cosmologia
Voltando às características básicas do pensamento aristotélico, que foram perdidas na
geração seguinte do Liceu, vemos que desta visão inicial do real como organismo e
como hierarquia, Aristóteles tira uma conclusão que é das mais importantes até hoje.
A de que se a realidade que se oferece a nós tem uma forma de existência que se
assemelha à do organismo - isto é, de ser uma unidade múltipla, vivente, temporal - o
conhecimento humano devia ser exatamente a mesma coisa. Ou seja, não somente o
ser tem esta forma orgânica de existência - a unidade de uma diversidade imersa no
tempo e num processo evolutivo --, mas o conhecimento humano também deve ser
uma unidade muito complexa de elementos diversos, coeridos sob uma forma
orgânica, e existentes no tempo através de uma sucessão de transformações.
Além do mais, tal como o organismo humano é uma coleção, uma unidade composta
de estratos hierárquicos diferenciados, o conhecimento também deve ter vários
estratos diferenciados que vão emergindo uns dos outros e que estão intrinsecamente
ligados uns aos outros, de maneira a poderem ser distinguidos, mas não separados.
Estes estratos, tal como a própria hierarquia dos seres viventes, se dispunham desde
aquilo que é mais simples e pouco coeso até aquilo que é mais complexo e mais coeso.
As formas de vida mais simples que conhecemos, as mais elementares, têm uma
Pensamento e Atualidade de Aristóteles
66
coesão muito deficiente. Por exemplo, uma ameba pode ser cortada ao meio e resiste
a esta divisão. Se você cotuca uma ameba, ela se move, tem notícia de que algo de
ruim se aproxima, e foge da agressão. Mas se você a cortar ao meio, diante do fato
consumado, cada parte vai para um lado e trata de viver separadamente. Se uma
minhoca é partida ao meio, as duas partes continuam se agitando. Têm uma forma de
unidade deficiente. Conforme os animais vão manifestando funções mais
diferenciadas, mais abrangentes e superiores, ao mesmo tempo a coesão destes
animais é maior. Se você corta um pedaço de uma planta, ela pode continuar vivendo.
O pedaço cortado pode morrer, mas o resto continua vivendo. Um animal já não pode
ser seccionado da mesma maneira. E o princípio da coesão vai-se tornando mais
firmemente uno para proporcionar uma abrangência maior das funções. Nesta escala,
onde à maior complexidade corresponde uma unidade mais coesa, o homem estava
evidentemente colocado no topo. O homem é o mais complexo e, ao mesmo tempo, o
mais coeso dos seres terrestres.Aristóteles via o processo do conhecimento
exatamente nos mesmos termos em que via esta escala dos seres viventes, da qual
mais tarde sairá, por uma aplicação óbvia de um preceito aristotélico, a teoria da
evolução. Esta, pois, se encontra pressuposta nesta escala dos seres viventes proposta
por ele. É só temporalizar -- coisa que Aristóteles também não falou, mas é uma
decorrência óbvia de sua filosofia --, e você terá aí um esboço da teoria da evolução.
Darwin reconhecia sua imensa dívida para com Aristóleles, e dizia: "Lineu e Cuvier
foram as minhas duas divindades, mas não passam de colegiais quando comparados
ao velho Aristóteles."
A esta unidade diversa da visão do real corresponde então a unidade diversa como
visão do processo cognitivo.
l. A sensação. -- O conhecimento começa para Aristóteles com as simples percepções
sensíveis. Estas são pequenas alterações que um organismo sofre devido à entrada de
uma informação que vem do exterior. Nem todos os seres têm a capacidade de
receber estas informações. Os minerais, por exemplo, não a têm. Esta capacidade já
marca a diferença entre seres mais simples e mais complexos.
2. A memória. -- Porém, diz Aristóteles, entre os seres capazes de receber informações
sensíveis, há alguns capazes de retê-las, e outros não. Por exemplo, a ameba não tem
memória, mas o mosquito já tem. Então, a memória significa a capacidade de você
repetir a mesma informação na ausência do estímulo. Ou seja, se na primeira vez o
estímulo veio de fora do organismo, da segunda vez o organismo mesmo o produz, de
maneira atenuada. Entre os animais que não têm memória e os que têm existe um
salto de complexidade e qualidade, similar àquele que existe entre os seres que não
têm percepções sensíveis e aqueles que as têm. Já temos um duplo salto: os
insensíveis e os sensíveis, e dentre estes, os que são dotados de memória.
Olavo de Carvalho
67
3. A experiência. -- Dentre os seres dotados de memória, alguns são capazes do
conhecimento por experiência. O que é isto? É um princípio de generalização em que,
de várias experiências iguais, você conclui uma regra mais ou menos comum. Vemos
que um gato tem memória. Você o vê repetir certos circuitos de ações; porém ele não
tem a mesma capacidade de aprender por experiência que tem um cachorro. Quem já
tentou ensinar aos dois, verá que no caso do gato isto é quase impossível. O gato não
consegue generalizar - fazer dos casos individuais uma regra -- com a mesma facilidade
do cachorro. E dentre os animais dotados de experiência, o que a tem em maior grau é
o homem.
Resumindo os vários saltos até agora: insensível ® sensível ® memória ® experiência.
4. A técnica. -- Porém, a experiência e o conhecimento por experiência se dão
exclusivamente dentro de um organismo individual. Eu tenho as minhas sensações,
tenho a memória e, a partir desta, concebo a minha experiência e crio uma série de
circuitos repetíveis que me permitem reagir de maneira similar em situações similares.
No entanto, o homem tem algo mais do que isto. Ele não apenas tem a experiência,
mas ele pode resumi-la e transmiti-la a quem não a teve. Isto já é o que se
chama técnica. Bismarck diz que só os imbecis aprendem com a experiência. "Eu
aprendo com a experiência alheia". Técnica é exatamente isto: um conjunto de
preceitos que permite aprender com a experiência alheia e transmiti-la a outros, sem
que você tenha de passar por ela. É obviamente isto que já caracteriza o homem.
Depois da experiência, vem então a técnica que é experiência condensada, resumida e
distribuída socialmente. O indivíduo que pode aprender pela técnica tem um salto de
velocidade e eficácia imenso em relação àquele que só tem a experiência. Com a
técnica, começa o mundo da cultura e começa o mundo propriamente humano.
5. A ciência. -- Depois da técnica, ainda há mais um salto. A técnica é apenas uma
codificação das experiências repetidas. Além disso, temos uma forma mais
condensada, mais eficiente e mais profunda de conhecimento. É o que Aristóteles
chamaepistemê, que traduzimos normalmente por "ciência". É onde não somente se
conhece e sistematiza o circuito das experiências repetíveis, mas se encontram
os princípios que fundamentam a repetição das experiências. Desde o conhecimento
pelos sentidos até a epistemê, no topo da pirâmide, existe um processo de
simplificação e coerenciação cada vez mais abrangente. Ou seja: as experiências
sensíveis são muitas, mas nos dão relativamente pouco conhecimento útil; a memória
já resume isto e repete umas quantas informações significativas; destas, a experiência
abole as repetições e conserva apenas os esquemas úteis; estes, na técnica, são
simplificados e codificados de maneira a poder ser transmitidos, o que aumenta
barbaramente a eficácia da ação humana. Finalmente, na episteme ou ciência, dois ou
três princípios científicos que sejam encontrados permitem abarcar uma multidão de
conhecimentos organizada, coesa e eficientemente. De modo que o conhecimento se
Pensamento e Atualidade de Aristóteles
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escalona numa pirâmide cujos vários estratos são inseparáveis. Se saltar um, não tem
o seguinte. Não se pode dizer: "Este conhecimento aqui é superior, podemos
abandonar o inferior". Não - ele é superiorporque tem inferior por baixo. O tijolo de
cima cai, se você tirar o tijolo de baixo. Esta hierarquia tem um sentido orgânico
insecável.Os vários estratos são logicamente distinguíveis, mas não são realmente
separáveis.
6. A sabedoria. -- A escalada poderia parar por aí, e já teríamos dado conta da inteireza
da esfera cognitiva no homem em geral. No entanto, Aristóteles admite que o homem
ainda possa subir mais um degrau, elevando-se do conhecimento dos princípios que
estruturam o mundo da experiência ao conhecimento dos princípios universais,
princípios de todos os princípios. A isto corresponde um novo "órgão cognitivo",
onúus, "espírito", órgão da sabedoria.
Porém, Aristóteles insiste que a sabedoria é própria somente de Deus, e que para o
homem ela é antes um ideal realizado de maneira precária e parcial do que uma posse
efetiva. Por isto, ele hesitará muitas vezes ao assinalar uma denominação para a
ciência correspondente a este estrato. A denominação "metafísica" é de Andrônico de
Rodes, e embora ela seja adequada sob muitos pontos de vista, Aristóteles não usa
esse nome em parte alguma. Às vezes ele usa "filosofia primeira", às vezes "teologia",
e às vezes -- olhem que coisa significativa -- "a ciência que buscamos". Que buscamos,
precisamente, porque não a possuímos. Por isto, no esquema da escala do
conhecimento segundo Aristóteles, é justo incluir ou excluir o sexto estrato, a
sabedoria, porque ela pertence à estrutura do homem como um ideal, mas não lhe
pertence como posse efetiva.
Olavo de Carvalho
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Pensamento e Atualidade de Aristóteles
QUARTA AULA
5 de abril de 1994
Transcrição de:
Heloísa Madeira,
João Carlos Madeira
e Kátia Torres Ribeiro.
1a parte
A intuição básica de Aristóteles é a idéia de totalidade - a esta idéia voltaremos muitas
vezes, aprofundando mais e reconstruindo tudo a partir dela, que me parece a chave
da obra.
O item que se segue - a estrutura da obra de Aristóteles segundo a tradição - nos dá a
divisão que vamos usar como ponto de partida hipotético. Não quer dizer que eu
aceite esta divisão e que ache que a organização a ser compreendida na obra de
Aristóteles seja exatamente esta. Apenas, como esta estrutura é tomada como ponto
de referência desde o começo da era cristã, vamos usá-la como ponto de partida de
nossas investigações. Esta divisão foi mencionada também de passagem na primeira
aula. Vamos aprofundá-la ao longo das aulas, e assim iremos estruturando este tema
em torno de alguns pólos de atração aos quais retornaremos de tempos em tempos. A
questão da intuição básica é um deles, a da estrutura da obra é outro.
O primeiro editor da obra de Aristóteles, que foi Andrônico de Rodes, fez um divisão
de suas obras partindo da idéia de que ela deveria acompanhar rigorosamente as
divisões que Aristóteles estabelecia no sistema das ciências, de modo que a divisão em
volumes seria um reflexo da divisão ideal ou da divisão lógica das ciências. Esta divisão
feita por Andrônico, embora muito criticada ao longo dos tempos, jamais foi alterada.
A crítica principal que se pode fazer a ela é que a divisão do sistema das ciências é
sempre do tipo ideal. Quando você estrutura o sistema das ciências, está definindo
como esta divisão deveriaser, ou seja, quais os setores da realidade que estas ciências
deveriam idealmente abordar e quais os critérios da divisão ideal. Enquanto isto, a
divisão dos textos em volumes é uma divisão real e acidental. Porque, uma vez
definido o sistema das ciências, primeiro: daí não decorre que o sujeito deva escrever
um livro sobre cada ciência que ele tenha citado na divisão; segundo: mesmo que
idealmente o indivíduo queira escrever um volume para cada ciência, não está dito
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que ele vá conseguir fazê-lo. Pode, por exemplo, morrer antes. Ou seja, divisão de
textos é uma divisão de objetos, enquanto divisão do sistema das ciências é uma
divisão de conceitos. Nem sempre uma coisa terá de acompanhar a outra. No conjunto
da história da filosofia é raro que um filósofo escreva um volume para cada ciência de
acordo com a divisão exata que ele fez dos vários assuntos. Um exemplo disto seria
Kant. Ele divide os assuntos e escreve um volume para cada um. Outro exemplo, os
escolásticos. Depois que a Escolástica foi-se consolidando - não ainda em Santo Tomás
de Aquino -, firmou-se com ela uma divisão ideal das ciências que por sua vez se
projetou numa divisão em volumes. Na obra do cardeal Mercier, por exemplo, há um
rigoroso paralelismo entre as divisões do sistema e a repartição dos volumes, mas
acho que esse paralelismo só pode se realizar perfeitamente em obras que expõem
uma filosofia velha e consagrada, não naquelas que expõem a doutrina que o filósofo
está criando naquele mesmo momento. A filosofia em estado nascente tem
geralmente uma exposição improvisada e assimétrica. O neotomismo é por isto mais
organizado, editorialmente, do que o tomismo. Se você tomar os escolásticos
menores, sobretudo os mais recentes, por exemplo, Maritain ou André Marc, verá que
eles fazem um volume de lógica, um de psicologia, um de metafísica, acompanhando a
divisão das ciências.
Nesta divisão feita por Andrônico, não fica muito claro se ele está falando de
idealidades ou de realidades, de conceitos ou de textos efetivamente existentes. O
pior de tudo é que, se só havia sobrado, com as perdas, um terço da obra aristotélica,
como este terço poderia acompanhar a divisão global do sistema das ciências? Mesmo
que Aristóteles tivesse escrito os volumes rigorosamente de acordo com as divisões do
sistema, se dois terços da sua obra foram perdidos seria muito pouco provável que
sobrasse exatamente um pouco de texto para cada divisão, sem deixar nenhuma em
branco.
A divisão de Andrônico é a seguinte: primeiro, haveria um setor consagrado ao método
de todas as ciências; é isto que Aristóteles chama de Organon, que quer dizer
"instrumento". Aí estão os modos de esquematizar o pensamento que são comuns a
todas as ciências, a todos os setores do conhecimento, os tratados de lógica, em suma,
os tratados que se referem aos discursos de modo geral. Para se orientar no mundo de
Aristóteles, há uma série de nomes que é preciso decorar, assim como nomes de ruas,
para você saber aonde está entrando.
As Categorias:
o primeiro livro da
série "Lógica"
Olavo de Carvalho
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A primeira obra do Organon chama-se "As Categorias".Categorias são as formas
básicas sob as quais a realidade chega até nós. Você percebe alguma coisa e esta coisa
que você percebe é ou um ente real - como por exemplo percebo vocês neste
momento -, ou então é uma qualidade - quando você percebe que está com calor; ou é
uma relação entre as duas coisas - quando digo que a caneta está em cima da mesa;
ou é uma ação que está sendo praticada por algum ente - o cachorro mordeu o
menino. Todas as coisas que posso perceber no mundo estão colocadas numa destas
categorias. Elas são a divisão máxima da realidade. E seriam, equivalentemente, os
vários tipos de conceitos possíveis.
Voltando à frase "o cachorro mordeu o menino"- pergunto: mas isso é real? Sim. A
ação do cachorro morder o menino é real, mas uma ação pressupõe um sujeito que a
pratique. No entanto o sujeito não pressupunha esta ação. O cachorro poderia ser
perfeitamente real sem morder menino algum. Para que ele mordesse o menino seria
preciso que ele já fosse real antes disto e que o menino também o fosse. Entendemos
assim que a realidade da ação não é do mesmo tipo que a realidade do ente, daquilo
que Aristóteles denomina substância. No entanto, ela é real e não poderíamos reduzir
a realidade da ação à do sujeito. Não basta que o cachorro exista para que ele morda.
Entendemos que a ação tem um tipo de realidade própria que não se reduz à realidade
do sujeito, embora não exista sem ela.
Estas várias modalidades de realidade é que são as categorias. Isto do ponto de vista
ontológico. Do ponto de vista lógico, dizemos que elas são as espécies de conceitos
que existem. Ou seja, conforme as várias espécies de realidade, teremos outros tantos
tipos de conceitos. As Categorias são o primeiro livro da lógica.
Os predicáveis:
definição, gênero,
propriedade e acidente
O livro trata também de uma outra distinção. Quando faço uma afirmação qualquer a
respeito de um ente, ela pode referir-se àquilo que o ente é essencialmente; a algo
que ele fez acidentalmente, ou seja, que não faz parte da definição dele; e pode
referir-se a algo que não é nem parte de sua essência, nem acidente.
Se digo: "O homem é um animal racional" - estou dando uma definição do homem.
Porém se digo: "O homem é capaz de aprender aritmética" - isto não faz parte da
definição, mas decorre dela logicamente. A isto chamamos propriedade, aquilo que é
próprio do ente. Agora, se digo: "Fulano aprendeu aritmética" isto é um acidente,
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porque não é necessário que ele aprenda aritmética de fato. Toda e qualquer sentença
que você diga a respeito de qualquer coisa vai cair numa destas modalidades.
Ou vai estar dando a definição do ser, ou vai estar dizendo um acidente ou uma
propriedade dele, ou ainda pode estar dizendo o gênero a que ele pertence. Por
exemplo: "o cachorro é um animal" não é uma definição de cachorro, nem um
acidente nem uma propriedade. Digo apenas o gênero. A definição se faz indicando o
gênero a que um ente pertence e qual a diferença que ele tem em relação aos outros
do mesmo gênero. Vocês podem testar isto com quaisquer pensamentos e quaisquer
frases. Isto continua sendo rigorosamente assim.
Esta divisão em quatro é a dos predicáveis. Por que este nome? Predicar quer dizer
atribuir alguma coisa a algum ente. Tudo o que se afirma é uma predicação, é atribuir
um predicado a um sujeito. Tudo o que se fala pode ser colocado ou na tábua das
categorias ou na tábua dos quatro predicáveis. Quanto às categorias o próprio
Aristóteles mostra dúvida quanto ao seu número. Numa lista dá sete, e outra dá oito,
em outra dez. Isto significa que esta parte da teoria não está pronta. Quanto às sete
categorias básicas não parece haver dúvida, porque ele as repete sempre. Além disso
verifiquei que este número é o mesmo em todos os sistemas de categorias conhecidas
nas outras lógicas do mundo (chinesa, hindu etc.).
Quando existe uma coincidência muito grande entre indivíduos de muitas civilizações
sem contato entre si e com milênios de distância, muito provavelmente estes
indivíduos estão captando estruturas básicas do pensamento humano ou da realidade
mesma. Então podemos fechar negócio em torno das seguintes categorias: 1-
substância, 2- quantidade, 3- qualidade, 4- relação, 5- ação, 6- paixão, 7-
espaço/tempo.
O segundo livro da série da lógica chama-se "Da Interpretação" ( Peri Hermeneias ).
Quando Dante fala: "No meio do caminho desta vida, eu me encontrei por um selva
escura, onde a correta via era perdida", classifique isto nas categorias, se puder: de
que Dante está falando? De um acidente, teoricamente. Nem todo mundo se
encontra, em determinada etapa da vida, perdido em uma selva escura. Porém, num
outro sentido,podemos dizer: isto é uma imagem de um processo essencial à vida
humana, segundo Dante. A vida humana é perder-se do caminho reto, porque vivemos
no tempo, entre os acidentes, e perdemos o sentido da nossa caminhada. E isto é um
processo essencial à vida humana. Se é essencial, como pode ser um acidente?
Vemos que antes de classificar pelos predicáveis e pelas categorias é
necessário interpretar a sentença. Conforme o sentido, a mesma sentença poderá
equivaler a uma definição, a uma propriedade, um acontecimento etc.
Não podemos identificar a sentença gramaticalmente considerada, materialmente
falada, com a proposição lógica correspondente. Por exemplo, se se trata de uma obra
Olavo de Carvalho
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poética, a mesma sentença equivale a quatro, cinco, dez proposições lógicas. A
interpretação correta da frase e de seu desdobramento nas proposições ou juízos
lógicos formais é uma operação preliminar. É por isso que a gramática não funciona
nem funcionaria jamais. Na gramática, o cachorro, por exemplo, é substantivo, mas o
azul também é substantivo, embora às vezes também seja adjetivo. Ou seja, estes
conceitos lógicos das categorias não correspondem rigorosamente aos conceitos
gramaticais que depois foram forjados com base neles. Houve alguns espertinhos, a
começar por um dos fundadores da lógica matemática - Rudolph Carnap - que dizem
que as categorias de Aristóteles são apenas uma extrapolação das categorias
gramaticais. Ele as teria tomado, dando-lhes um sentido lógico. Isto é pura ignorância,
pois ninguém havia pensado em categorias gramaticais até então, não existia
nenhuma gramática da língua grega e as primeiras especulações gramaticais dos
gregos são do século I a.C., e baseadas em Aristóteles.
Carnap pertence à escola neopositivista. Para os neopositivistas, as categorias
aristotélicas seriam apenas tipos de palavras, quando o que se deu foi o contrário: a
gramática é que surge com base na lógica de Aristóteles. Surge, e já faz uma confusão
medonha, porque evidentemente os tipos de palavras não correspondem a estes tipos
de conceitos. Porque as palavras são apenas signos que indicam sons que por sua vez
indica idéias. São representações indiretas de conceitos. A uma mesma palavra podem
corresponder três, quatro, dez conceitos diferentes. É evidente que se temos sete
tipos de conceitos, não vamos poder ter sete tipos de palavras. Assim como a um
mesmo ser correspondem incontáveis maneiras de representá-lo. Você pode ser
representado pelo seu nome, ou por uma fotografia ( num outro sentido da palavra
representar ), e ainda em outro sentido, por um procurador, ou por um objeto de sua
propriedade ( marcando um lugar etc. ). Entre o conceito e a palavra a relação é esta.
Nossos educadores, o Ministério da Educação, acham que o ensino do pensamento, o
ensinar a raciocinar - incumbe aos professores de português. Ao ensinar a redigir,
estariam ensinando a pensar. E é evidente que uma coisa nada tem a ver com a outra.
Isto é admitir que ninguém pensa nada antes da escrever a primeira palavra. Existe um
hiato de pelo menos sete anos entre aprender a pensar e aprender a escrever. E
segundo lugar, os processos que estruturam a gramática não são processos lógicos.
Uma gramática se forma por usos e acidentes. Se as pessoas decidem chamar gato de
abóbora, ao fim de umas duas ou três gerações o gato fica abóbora definitivamente.
A gramática se faz empiricamente, isto é, ao sabor de fatos reais. E esperar que ela
tenha uma estrutura lógica é como esperar que os resultados da loteria esportiva
funcionem com um rigoroso padrão lógico repetitivo. As estruturas da gramática não
são lógicas - são estruturas de sons e grafismos que são sedimentadas pelo uso, uso
este que está submetido a milhões de influências casuais. Por exemplo, antes e depois
do sujeito comprar televisão, sua linguagem não será a mesma. Se dois povos entram
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em contato mais estreito, o povo mais forte, mais antigo, mais civilizado, exercerá
sobre o outro uma influência terrível. É o que acontece hoje com a língua inglesa que
está comendo a nossa língua, não no sentido de exportar palavras, processo normal,
mas no exportar estruturas de frases: estamos falando português com estrutura de
frase inglesa. Isto é muito comum em jornais, televisão etc. Os brasileiros também
começam a dar um valor semântico diferente às suas próprias palavras, similar ao
valor semântico de palavras vagamente parecidas da língua inglesa. Isto é a estrutura
mental de um povo sendo implantada sobre outro. O resultado disto será maior ou
menor conforme o apego maior ou menor que cada população tenha aos seus
costumes linguísticos anteriores.
É uma trama estabelecida pelo desenrolar dos fatos, e então não obedece a uma regra
lógica, mas ao puro empirismo. O serviço da gramática consiste e descrever o estado
da língua e cada momento, mais ou menos como ela se encontra. E por uma decisão
de ordem estética, estabelecer certos usos como preferenciais. Mas é uma decisão
estética. Quando dizemos que tal frase ou tal outra é errada, ela é errada em função
de determinado padrão que num certo momento foi adotado, às vezes por uma
conveniência sociológica, ou política. Quando uma província é mais adiantada do que
as outras, a linguagem dela se torna padrão para que as pessoas possa entender-se,
como aconteceu na Itália, quando o dialeto da província toscana foi adotado como
língua italiana. O que chamamos língua italiana hoje é na verdade um dos dialetos, que
se tornou dominante. Então o italiano aprende em casa o seu próprio dialeto e na
escola o toscano. É um processo de unificação da língua. Isto não quer dizer que a
língua toscana seja em si melhor do que as outras. Os processos de uniformização da
língua obedece a fatores casuais. Hoje em dia no Brasil, a linguagem-padrão é a da
Rede Globo. Podemos questionar a autoridade da Rede Globo em matéria gramatical,
mas não podemos questionar o seu poder, e a gramática não é feita pela autoridade,
ela é feita pelo poder. Quem fala mais alto acaba sendo imitado.
A tentativa de estruturar a gramática segundo conceitos rigorosamente lógicos leva a
perversões. Um exemplo comum é a diferença que existe entre sujeito lógico e sujeito
gramatical. Se digo: "João matou Pedro", o sujeito é João. Agora digo: "Pedro foi morto
por João". O sujeito gramatical é Pedro, mas o sujeito lógico continua sendo João. Isto
é para verem o abismo que existe entre lógica e gramática. E também deve dar para
entender a que desastre deve levar a idéia de quem tem de ensinar a pensar é o
professor de português.
Além de levar em conta as categorias e os predicáveis, para poder aplicar estes
conceitos à classificação dos demais conceitos, é necessário que a frase seja
interpretada e que da sentença gramatical considerada nós retiremos os juízos ou
proposições formais. Se pegamos esta primeira sentença daDivina Comédia, ela é uma
sentença só, mas poderá ter um ou mais sentidos que constituirão as suas proposições
Olavo de Carvalho
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formais, que estão materialmente todas na mesma frase. Jamais confundir a sentença
real com as proposições formais. A sentença pode ser ambígua, ter dois sentidos, duas
proposições formais. É disto que trata o livro da interpretação.
A frase de Dante, conforme seja interpretada como acidental ou própria do destino
humano, já tem duas proposições formais que teriam de ser analisadas
separadamente. É próprio da linguagem poética corresponder a várias proposições
formais possíveis e é por isso mesmo que ela é sintética. Se desmembrássemos, para
cada sentença, uma proposição formal, teríamos uma linguagem logicalizada. Ora,
nem a língua corrente do dia-a-dia. nem a língua literária, nem a de comunicação
social ou jornalística ou da televisão - nada disto é linguagem logicalizada. Tudo isto é
linguagem ambígua.
A diferença da linguagem poética é que ela é um tratamento técnico dado a esta
linguagem ambígua. O poeta é ambíguo porque quer, porque quer fazer sentenças que
contenham o máximo de proposições formais possíveis. O máximo de sentidos no
mínimo de palavras - isto é a poesia. A linguagem do dia-a-dia não é ambígua por
escolha; ela não consegue ser outra coisa. O poeta é ambíguo por suficiência, e nós por
deficiência - mas há ambiguidade nos dois casos.
A terceira obra de lógica seria os "Tópicos", que tratam da ciência da dialética, que
leva este nome por tratar da confrontação de dois discursos simultâneos (dois ou
mais). Segundo Aristóteles, a dialética é a arte de raciocinar onde não temos premissas
firmes, ou seja, onde não conhecemos os princípios do assunto. Aí não temos base
para raciocinar sobre os casos particulares. Imagine que você é Charles Darwin
estudando a evolução animal. Você encontra o esqueleto de um determinado bicho e
quer referi-lo a uma evolução. Você vai ter primeiro de situa-lo num certo momento,
depois da espécie que o antecedeu e antes da que o sucedeu. Para isto você precisa
ter a noção pronta da escala. Se você não tem a escala pronta ao menos como
hipótese, não pode situar o bicho. É evidente que Charles Darwin não encontrou a
doutrina da evolução pronta. Ele encontrava fatos biológicos, mas na hora de
compreendê-los, lhe faltavam os princípios explicativos e mesmo os princípios
classificatórios pelos quais pudesse situar cada fato. Então, como raciocinar? Tinha de
fazer várias hipóteses. Por exemplo, você faz duas hipóteses a respeito do mesmo fato
- encontra um determinado bicho e diz: "Isto aqui parece ser parente da lagartixa, mas
por outro lado parece ser parente do hipopótamo". É difícil ter acontecido isto a
qualquer esqueleto real, mas suponhamos que você tivesse estas duas hipóteses.
Quando Darwin associou o elefante ao cavalo, como o fez? À luz das aparências, não
seria mais lógico procurar um parentesco com o rinoceronte, com alguma coisa mais
parecida fisicamente? Por que ele achou o parentesco com o cavalo? Porque não usou
o critério de aparência macroscópica, mas o da conformação dos ossos. Talvez, se
tivesse encontrado outro critério, teria feito outras associações. Pela estrutura dos
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ossos, viu que se tratava de espécies contíguas ou parentes. Para cada um destes
casos, ele tinha várias hipóteses possíveis. Ora, duas hipóteses contrárias se sustentam
em duas séries contrárias de razões. Há argumentos a favor desta, que formam uma
linha de raciocínio, e argumentos em favor daquela, que formam outra linha de
raciocínio. Esta comparação é que se chama dialética. Quando você não tem princípios
para explicar o caso determinado que você está averiguando, só lhe resta procurar
estes princípios. E como encontrá-los? Seguindo as várias linhas de hipóteses
contrárias, ao mesmo tempo. Não pode ser uma depois da outra. Porque cada
hipótese é validada pelo confronto com a sua contrária. Entre duas hipóteses, uma
parece mais válida. Então a que sobrou você compara com uma terceira e assim por
diante. Por isso se chama dialética, porque é sempre uma operação dupla.
A arte da dialética serve, segundo Aristóteles, para três coisas:
1) Para investigações nas quais não existam ainda princípios científicos assentados.
2) Para o treinamento da mente. A dialética servirá ao longo de mais de mil anos como
a prática escolar central do aprendizado de filosofia. Porque é pela dialética que
aprendemos a confrontar as diversas possibilidades e deixar que elas se desenvolvam
até que uma delas saia vencendo.
A importância escolar disto é incalculável. Se houvesse um treino dialético hoje em dia,
a maior parte das idéias que estão em curso público desapareceriam, porque não
suportam o mais leve exame dialético. Sustentam-se exclusivamente em argumentos
retóricos. A argumentação retórica é baseada na verossimilhança, na impressão de
veracidade. Quando discutimos retoricamente, temos uma crença e produzimos
verossimilhança para sustentar esta crença. Produzimos exemplos em profusão.
O exemplo é o tipo mais característico de argumento retórico. Exemplo não prova
nada, mas dá verossimilhança; faz parecer verídico, dá vida ao assunto. Quando
argumentamos mediante exemplos, estamos tentando tornar nosso raciocínio
verossímil para quem nos ouve, tentando fazê-lo ver as coisas como as vemos. Se
soubermos produzir exemplos vívidos, interessantes, o sujeito acaba vendo as coisas
como queremos. Mas isto só serve para persuadi-lo, não serve para testar a veracidade
do argumento. Então, como já foi explicado, a dialética serve para fazer uma triagem
dos argumentos retóricos. Você confronta os vários "prós" e "contras" e desenvolve
cada um de acordo com a melhor argumentação lógica possível, dando igual chance a
todos os argumentos, para ver qual deles fica de pé no fim. Ou seja, na dialética você
faz uma arbitragem, não toma partido. O argumento retórico é um advogado
defendendo uma causa. O dialético é um juiz julgando a causa. Se houvesse este
treinamento nas escolas de filosofia, política, ciências sociais etc, 99% das crenças
iriam embora, porque elas não suportam o exame dialético. Nele devemos conferir
igual chance aos dois argumentos. Se isto não é possível, entendemos também que
não é possível uma decisão correta do assunto e que esta irá para o lado volitivo ou
Olavo de Carvalho
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irracional. Se isto fosse levado em consideração não teríamos discussões como o
confronto entre o capitalismo e o socialismo. O homem que defende o capitalismo,
refere-se ao capitalismo como existe historicamente. O que defende o socialismo não
se refere a nenhum socialismo histórico, que tenha acontecido em algum lugar, mas a
um vago ideal futuro. Ora, o capitalismo também tem ideais - mas a discussão retórica
compara os ideais de um com a realidade de outro, em vez de comparar ideais com
ideais, realidades com realidades. Então é evidente que esta questão não pode ser
resolvida. Se você compara os ideais de um com as realidades do outro, a discussão
está viciada. Se você compara as suas qualidades com os meus defeitos, você sai
ganhando automaticamente. Por outro lado, os defensores do socialismo - todos, sem
exceção - hoje em dia já não podem fazer assim, porque temos uma experiência
socialista de cem anos no mundo. Mas dizem que não é representativo, porque não
corresponde ao seu ideal... Isto é o mesmo que julgar um indivíduo levando em conta
somente os atos que correspondem aos seus ideais, e considerando como falsos todos
aqueles que estão abaixo do ideal. Vejo que um sujeito é um bêbado, ms como tem o
ideal de deixar de beber, tenho de apagar a realidade da sua bebedeira, e encará-lo
como se ele não bebesse. Isto é o tipo da discussão viciada. Tenho um belíssimo livro
que se chama Ideals and Realities of Islam, escrito por um homem por quem tenho o
máximo respeito, Seyed Hossein Nasr, onde ele confronta civilizações tradicionais,
particularmente a islâmica, com a moderna sociedade industrial, e chega à conclusão
que a sociedade industrial é um horror e que as civilizações tradicionais é que são
bonitas. Só que ele faz isto: compara os ideais islâmicos com as realidades do
Ocidente, e nunca o contrário. O que é representativo do ocidente? A crise ecológica,
esta sujeira toda, a alienação do trabalho. O que é característico do Islã? Os ideais
maravilhosos que estão no Corão. Esta comparação não é possível, está viciada. Teria
de comparar bens com bens e males com males; ideais com ideais e realidades com
realidades.
Isto é uma regra dialética elementar. Quando você faz isto, é obrigado a engolir muitas
coisas que retoricamente não desejaria. Toda esta revisão de ideais socialistas que
existe hoje começou com a queda do muro de Berlim - ex post facto. Também fui
socialista aos 20 anos, mas mudei sozinho muito antes que caísse o muro - por exame,
confrontando. Levou quinze anos este processo; eu sei o trabalho que me deu. E as
pessoas hoje mudam do dia para a noite, com a maior facilidade. Isto indica que não
querem chegar a uma conclusão real. A solução não é fácil, do tipo pró ou contra. A
dialética tem, então, entre outros usos, esta utilidade de formar a mente para o exame
objetivo das questões.
3) A terceira utilidade assinalada por Aristóteles é a utilidade científica. Quando você
está discutindo um assunto cujos princípios você desconhece, tem de remontar das
questões até os princípios. Como se faz isto? Pela discussão dialética. O confronto
crítico das várias possibilidades acaba fechando as alternativas até que num certo
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momento você tem uma espécie de intelecção ou intuição dos princípios que
governam aquele assunto. Pode ser uma falsa intuição. Porém é claro que onde você
não conhece os princípios, não tem as premissas, você não pode fazer um raciocínio
inteiramente lógico. Vai partir do que? Todo raciocínio lógico parte de uma premissa.
Se não tem premissa você tem de fazer uma espécie de raciocínio lógico ao contrário,
das consequências para as premissas possíveis - sem esquecer que as mesmas
consequências podem derivar de vinte premissas diferentes e até contrárias. Então os
processos de exame dialético podem ser infinitamente complicados e estão todos
descritos com bastante sutileza não só no livro dosTópicos mas também em todos os
tratados de dialética que depois foram escritos, desde então até a Idade Média e
depois. Este é um material pelo qual a maior parte dos filósofos modernos não tem o
menor interesse.
Vimos então os três usos da dialética:
1º) Para discussões onde você pretende alcançar um resultado meramente provável
(uma retórica aperfeiçoada).
2º) Para utilização escolar - treinamento da mente.
3º) Uso científico - princípio de investigação científica. Guardem isto porque mais tarde
é a esta sentença de Aristóteles, de que "a dialética é o meio de encontrar os
princípios" que vamos recorrer para propor uma remontagem da nossa visão do
sistema aristotélico, onde se coloca a dialética como a ciência principal.
As Analíticas
e a teoria
do silogismo
Depois do livro dos Tópicos, vêm dois livros que se chamam asAnalíticas e tratam do
raciocínio lógico - o sistema dos silogismos. Silogismo é uma sequência de três
proposições, onde das duas primeiras decorre necessariamente a terceira. Existem
várias maneiras de montar um silogismo, algumas válidas, outras não. Aristóteles
distingue 64 caminhos pelos quais o raciocínio silogístico pode chegar a uma
conclusão. As premissas, por sua vez, segundo ele se dividem em dois tipos: universais
ou gerais e particulares. Universais são as que se referem a toda uma espécie de
seres; particulares, as que se referem a um em particular.
No famoso exemplo - Todo homem é mortal, Sócrates é homem, logo Sócrates é
mortal - a primeira premissa é universal ( Todo homem... ) e a segunda particular.
Conforme o jogo de premissas universais e particulares, você terá conclusões que
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serão válidas para um indivíduo em particular ou para vários. No exemplo citado a
conclusão se refere especificamente a Sócrates - a um indivíduo em particular e não a
todos. Seguindo o jogo de premissas universais e particulares, temos um ciclo de 64
etapas possíveis - exatamente a estrutura do I Ching. O conceito de universal-
particular em grande parte coincide com o conceito de Yang-Yin, respectivamente.
Se você pegar os silogismos válidos e os inválidos e fizer um raciocínio completo, terá
64 etapas, das quais somente dezoito são efetivas, probantes, as outras não. Por
exemplo: Algum homem é careca, Sócrates é um homem. Posso concluir queSócrates é
careca? Não. Mas posso fazer o silogismo. Tem uma estrutura silogística, porém não é
válido. Se você pegar cada etapa do raciocínio, pode tomar como nova premissa uma
conclusão para um segundo raciocínio, desde que a some com uma outra premissa.
A = Premissa universal D = Nova sentença (
premissa universal ou
particular )
B = Premissa particular E = Conclusão.
C = Conclusão particular,
premissa ( particular ) do
novo silogismo
Rodando com todas as combinações possíveis, você verá que algumas são válidas,
outras não. E a totalidade destes arranjos dá 64.
A combinação é entre as palavras todos e algum; conformetodos ou algum estejam na
1ª, ou na 2ª premissa ou na conclusão, você terá 64 combinações.
Existe uma clara analogia aí, porque o yang evidentemente se refere sempre ao
universal e o yin ao particular, -- o grande e o pequeno. Isto é bastante claro. O yin é
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um princípio de particularização, de segmentação, por isso mesmo é representado por
um traço dividido ( — — ). A divisão, a distinção entre os seres é um princípio yin; a
unidade do universo é um princípio yang. É o contrário do que diz o Fithjof Capra. Para
ele, o yang representa a razão que é analítica e divide, e o yin representa a intuição
que unifica. Mas se é assim, por que o chinês representou o yang com um traço
contínuo ( —— ) e o yin com um traço dividido ( — — )? É porque o chinês não tinha
lido o Capra...
Como se divide o I Ching? Não é um jogo de 3 e 2? Aqui também temos um jogo de 3 e
2. São três sentenças e duas possibilidades ( todos e algum - universal e particular). Se
você tiver paciência, vai combinando e vai chegar nos 64. A silogística é um jogo
exclusivamente matemático. Na verdade, um joguinho para crianças. É algo que
qualquer pessoa aprende com a maior facilidade, é algo totalmente mecanizado, que é
possível ensinar a um computador mediante um circuito em que você tem um jogo de
2 e 3 igualzinho.
Isto seria a Analítica. Aristóteles nunca usou a palavra "lógica", que será mais tarde
inventada pelos estóicos. Ele chama-aAnalítica ou ciência demonstrativa. Esta é a
ciência que, partindo de uma premissa admitida como certa, chegará a um resultado
que terá de ser admitido como certo, queiram ou não queiram, exatamente como na
aritmética elementar. Se você tem a premissa certa, chegar à conclusão certa é mera
questão de ajeitar formalmente o raciocínio correto. Um computador faz isto. Dada a
premissa, se você der a conclusão errada, ele corrige, porque é mero ajuste formal.
Este é o raciocínio mais certo que existe, uma vez que você tenha a premissa certa. O
problema é este: onde encontrar as premissas? Se tudo fosse uma questão de
raciocinar logicamente, já estava tudo resolvido há muito tempo. Porém, é claro que a
lógica não pode encontrar premissas, e sem premissas nada se pode fazer. Para
encontrar a premissa certa, é preciso partir de um grande número delas - meramente
prováveis, premissas hipotéticas. Portanto, a coisa decisiva passa a ser a dialética
2a parte
O mito da lógica
nas interpretações
de Aristóteles
É à luz desta observação que vamos ver que parece ter havido um enorme equívoco na
interpretação de Aristóteles ao longo de muitos séculos. Porque sempre se considerou
que a dialética, sendo uma ciência do raciocínio meramente provável, seria inferior à
lógica, que tem exatidão matemática. E que, portanto, quando Aristóteles criou a
Olavo de Carvalho
81
lógica, superou e abandonou a dialética. Existe um grande historiador da filosofia
grega - Solmsen - que é um dos grandes responsáveis pela consolidação desta
interpretação. Segundo ele, a analítica anula a tópica (dialética). Como numa evolução,
Aristóteles teria vindo por um caminho e chegado a um fim - primeiro foi professor de
retórica; depois, desenvolveu a dialética, e finalmente se dedicou à lógica. Solmsen
partiu também da premissa de que a ordem temporal deve representar uma ordem
hierárquica. Aristóteles teria concedido atenção, no fim, à coisa mais importante, num
sentido evolutivo. Ao que há uma objeção feita por um dos grandes intérpretes de
Aristóteles, que é Éric Weil. Este escreveu pouco - não chegou a dez livros. Era um
judeu alemão que quando viu o avanço do nazismo, fugiu da Alemanha para a França,
adotou a língua francesa e nunca mais escreveu uma única palavra em alemão. Para o
meu gosto, é o maior filósofo francês do século. Éric Weil faz uma observação mortal.
Diz ele: "Se a lógica é tão mais importante que a dialética, por que Aristóteles nunca
fez uma demonstração lógica de nenhuma tese?" Nenhum livro de Aristóteles é escrito
logicamente, todos dialeticamente. Se Aristóteles descobriu uma coisa tão importante
assim, por que nunca a usou? Depois de ter descoberto a técnica mais perfeita, por
que continua usando a imperfeita até morrer?
Um exemplo de demonstração lógica se encontra na Ética de Spinoza - assenta as
premissas e vai tirando conclusões, como numa demonstração matemática. Outro é o
livro de Wittgenstein. Tractatus Logico- Philosophicus - coloca as premissas, axiomas, e
continua em linha reta a dedução lógica. Aristóteles nunca faz isto, em momento
algum. Ora, tendo descoberto uma técnica mais profunda, mais exata que a anterior,
como iria ele resistir à tentação de usar a nova? Hoje em dia, qualquer garoto que
aprenda um programa de computador mais sofisticado que o anterior, vai logo testar o
novo. E Aristóteles nunca usou a nova técnica em nenhum dos textos conhecidos.
Acontece, que dos textos conhecidos, acredita-se que temos - neste um terço que
sobrou de sua obra - aproximadamente setenta por cento das obras filosóficas
importantes de Aristóteles. Existem sérias razões filológicas para crer que, das obras
filosoficamente decisivas, sobrou quase tudo. Pode ter faltado uma coisinha ou outra.
De tudo o que se encontrou de Aristóteles depois de Andrônico, nada se achou que
pudesse mudar gravemente as bases conhecidas do sistema aristotélico. Até no século
passado se encontrou um novo texto. Uma obra conhecida como "A constituição de
Atenas", hoje incluída nas obras completas. Isto foi achado em 1890. É importante
porque é de Aristóteles; mas trata só da constituição de Atenas, não é nada decisivo
filosoficamente. Claro que se você achar uma receita de cozinha assinada "Aristóteles",
é um documento histórico, mas não vai abalar a interpretação do sistema.
Historicamente importante é uma coisa, filosoficamente importante é outra. Não riam
quando falo de receitas de cozinha, porque Aristóteles escreveu até um "Tratado de
Economia Doméstica" - não há assunto que esteja para ele fora do mundo do
conhecimento.
Pensamento e Atualidade de Aristóteles
82
Então, os livros de lógica abarcaram as categorias, a interpretação, os tópicos, as duas
analíticas. Existe um outro livrinho que se chama Das Refutações Sofísticas, que pode
ser considerado ou como livro independente ou como capítulo final dos Tópicos. É
mais fácil incluí-lo aí - menos um nome para decorar. É uma aplicação dos critérios
dialéticos à refutação de determinadas argumentações sofísticas - ou erísticas. Erístico
é um argumento que você lança para fins de combate. Não é argumento sério, a ele
você recorre no calor da polêmica, só para criar dificuldades para o adversário. Uma
discussão política na maior parte dos casos não chega a ser retórica, é apenas erística.
As obras teoréticas:
Física
e Metafísica
Depois das obras lógicas, vem a série das ciências teoréticas (aquelas cuja finalidade é
tratar do real e dizer alguma coisa a seu respeito). A obra teorética esgota sua
finalidade quando consegue pronunciar uma proposição ou juízo no sentido de que
algo é alguma coisa ou é outra coisa. Responde à pergunta "o que é?" A lógica não
pode responder a esta pergunta de jeito nenhum. Ela não trata de nada, não tem
assunto. Mostra apenas os esquemas de pensamento possíveis. A série das obras
lógicas pega o conjunto de tipos esquemáticos de raciocínios que fazemos sobre a
realidade e os considera independentemente da realidade a respeito da qual eles
versam. Portanto, a lógica só existe como ciência distinta por uma distinção mental,
não real.
Vamos pegar uma ciência real qualquer - a física, por exemplo. Física para Aristóteles é
a ciência da natureza e trata de algo real - o cosmos existente, que chega a nós através
dos sentidos. Em seguida, você vê como raciocinamos - ou deveríamos raciocinar - a
respeito da natureza, e isola o raciocínio de seu assunto. Ora, este isolamento só é
feito por um truque mental, não real. Portanto, a lógica não tem um objeto real, tem
apenas um objeto formal, definido idealmente. E isto é que a diferencia da ciência
teorética. Ela não é uma ciência teorética porquetheoréin quer dizer olhar,
contemplar. A lógica não tem um objeto para o qual possa olhar. Seu objeto é
totalmente inventado. A separação entre o raciocínio e seu conteúdo é, por sua vez,
uma distinção simplesmente lógica, não uma distinção real.
Seguem-se os tratados de física. Tal como Aristóteles e o mundo grego a entendem, a
física é o mundo dos fenômenos - o mundo que se apresenta diante de nós,
considerado na sua totalidade. O sentido moderno da palavra "física" é muito mais
restrito. Aquilo que hoje chamaríamos de biologia, e também a química se tivesse
ocorrido uma química a Aristóteles, entrariam nos tratados de física. A física se divide
Olavo de Carvalho
83
basicamente em duas partes: primeiro, aquilo que se refere aos processos cósmicos;
segundo, o que se refere aos seres vivos. Mais tarde, receberam os nomes de
cosmologia e biologia, respectivamente.
A biologia, por sua vez, não se destaca do que hoje chamamos psicologia. Aristóteles
jamais conceberia um estudo da psique que não tivesse uma raiz no corpo vivente. A
alma é para ele como se fosse um aperfeiçoamento, um escalão superior da vida e não
um fenômeno distinto. Vamos ver que esta inseparabilidade dos fenômenos psíquicos
e orgânicos é uma das intuições centrais de Aristóteles, e que o tornará um filósofo
particularmente apto a ser aceito no mundo cristão, porque o cristianismo é a religião
da encarnação, da união inseparável entre alma e corpo.
Em seguida, deveriam vir os objetos matemáticos. E aí vemos que a divisão das
ciências feita por Andrônico não coincide inteiramente com a divisão dos textos.
Aristóteles não escreveu uma linha sobre matemática. E na divisão das ciências, a
ordem seria esta: em primeiro lugar, os objetos físicos; em segundo, os matemáticos;
em terceiro, a metafísica.
Aqui precisamos fazer um parêntese no seguinte sentido: quando dizemos que um
objeto é um "objeto da natureza", nós o estamos distinguindo de outros objetos
possíveis. Entendemos que um triângulo não existe na natureza. E também
entendemos que um tatu não existe matematicamente. Porém, a diferença entre o
triângulo e o tatu é uma diferença de plano ou modo de existência. Porque na verdade
os dois são existentes, os dois são reais. Mas estes objetos - o tatu e o triângulo - do
ponto de vista de Aristóteles, são ambos abstratos, embora sejam reais. Abstratos
porque o geométrico e o biológico são aspectos da realidade; aspectos que, na
verdade, coexistem, mas que nós separamos por maior facilidade de examiná-los.
Quando dizemos que 2 + 2 = 4, isto é um fato bruto, ao qual porém só chegamos
através de raciocínio. Mas também entendemos que não fomos nós que fizemos dar 4,
entendemos que este resultado nos é imposto pela estrutura mesma dos números.
Entendemos que as propriedades das figuras geométricas também nos são impostas.
Entendemos que se dividirmos um quadrado pela diagonal, vamos encontrar dois
triângulos isósceles e quantas vezes fizermos esta operação, encontraremos o mesmo
resultado. Isto nos é imposto de maneira dura e implacável. Esta resistência, esta
consistência própria dos objetos matemáticos faz com que não somente Aristóteles,
mas os gregos em geral os considerem reais. No entanto, o tipo de realidade deles não
é o mesmo que tem um tatu. O tatu pode ser visto - ele nos é imposto aos sentidos. A
divisão do quadrado em dois triângulos isósceles não nos é imposta aos sentidos, mas
tão logo raciocinamos, percebemos que isto não é montado por nós, mas também nos
é imposto. As duas coisas são reais. Triângulos, quadrados, números e suas
propriedades - existem efetivamente, são relações perfeitamente reais. Tatus e
elefantes também são reais. Se decidimos separar uns dos outros, é porque, além de
Pensamento e Atualidade de Aristóteles
84
sabermos que são reais, introduzimos uma divisão na realidade, de acordo com um
interesse que é nosso. Decidimos encarar alguns como fenômenos naturais, e outros
como não naturais. Ou seja, o tatu e o triângulo se distinguem não pela sua realidade,
mas por uma segunda qualidade que abre esta divisão no "natural" e no "não natural".
É por isso que Aristóteles os considera abstratos. Só são percebidos como distintos
mediante uma abstração mental que separa o natural do não natural, embora ambos
sejam igualmente reais.
O que é mais real? 2 + 2 = 4, isto é real. Não, você diz, real é o tatu que eu vejo com os
olhos. Mas o tatu antes de nascer não existia e quando morrer não vai existir mais.
Então ele é menos real que os números. O que eles são não diz respeito à sua maior ou
menor realidade. Ambos são reais. Só que o sentido da palavra realidade, aí, se divide.
Um é real de um jeito, outro de outro. Mas na realidade eles não são distintos, não
podemos graduar a realidade em função deles. Representam distinçõesdentro da
mesma realidade.
Ora, somente a realidade como tal e independentemente das suas distinções é que
pode ser considerada concreta e real objetivamente. E isto é que é o conceito de
Aristóteles do ser enquanto ser, a realidade enquanto tal. Para entender mais
claramente isto, você pode imaginar o "tatu voador". Ele não faz parte da realidade. E
a conta 2 + 2 = 5 também não faz parte da realidade. Mas também entendemos que é
mais fácil haver um tatu voador do que 2 + 2 dar 5. Se a evolução animal tivesse
tomado um outro rumo, poderia haver um tatu voador, ou talvez o tatu pudesse falar
sânscrito - nada impede. A impossibilidade do tatu voador é relativa e condicionada a
determinadas condições do universo físico. Num outro planeta pode ser que existam
tatus voadores, ou tatus filólogos. No filme "Guerra nas Estrelas" há um tatu filósofo -
o guru do Luke Skywalker. Estas coisas não são inconcebíveis. Mas é inconcebível que 2
+ 2 dêem 5. O tatu filólogo ou o tatu voador são idéias com as quais os nossos sentidos
se revoltam. Mas somente os sentidos - a inteligência não. Ela admite esta hipótese,
embora como remotíssima. Agora, existe a hipótese remotíssima de que 2 + 2 dê 5?
Existe a hipótese de que em algum outro planeta 2 + 2 possam dar 5? Existe a hipótese
de que em outro universo 2 + 2 dê 5? É inconcebível e seria auto-contraditório. Então
você entende que há gradações de impossibilidade. O estudo do real só se esclarece
quando se confronta o real com o irreal, e você vê estas distintas gradações de
irrealidade. Este estudo faz parte de alguma ciência? Não, nenhuma ciência pode
estudar isto, porque toda ciência já subentende estas distinções. Então Aristóteles se
viu na contingência de ter de inventar outra ciência. Todas as ciências se fundavam em
distinções deste tipo - real, irreal, possível, contingente, necessário. Todas elas se
baseavam nisto e estas distinções não eram estudadas por ciência alguma. Este estudo
das condições que definem o real, que o delimitam, que o separam do irreal, e
também o possível do impossível, é o que se chama ontologia ou metafísica,
ou filosofia primeira, ou como Aristóteles também a chamava, teologia. Por um
Olavo de Carvalho
85
curioso paradoxo, somente o objeto da metafísica é perfeitamente concreto, pois o
real como tal não pode ser abstrato. Neste sentido é que triângulos e tatus são
abstratos, em face da realidade como tal, do ser como tal.
As ciências
práticas
e técnicas
Em seguida vinham as ciências práticas que dizem respeito à ação humana, ou mais
genericamente, à conduta humana, que Aristóteles dividia em duas partes: conduta do
indivíduo enquanto tal e a conduta dele enquanto membro de uma sociedade em
particular. Esta a distinção entre a ética (ou moral) e a política. Entre as ciências
práticas Aristóteles inclui a economia, seja doméstica, seja política: a economia do
cidadão e a da polis.
E finalmente as ciências que chamaríamos artísticas ou técnicas ou poéticas
ou poiêticas. Estas estudam, não a conduta humana, mas o meio de produzir alguma
coisa, algum objeto. Para entender a diferença entre ciências práticas e ciências
poiêticas, é preciso entender a diferença entre ação imanente e ação transitiva. A
primeira é a que esgota sua finalidade no próprio sujeito que faz a ação; a segunda, a
que se define pelo resultado que ela produz num objeto. Por exemplo, respirar é típica
ação imanente, quem respira é você mesmo e quem sofre o efeito da respiração é
você mesmo. Pintar é uma ação transitiva. Se a pintura se esgotasse no gesto do
pintor, independentemente do quadro, não a poderíamos chamar pintura de maneira
alguma. Toda produção, todas as artes produtivas, pertencem à ação transitiva.
Nesta última divisão, Andrônico colocou a Poética, que ensina a fazer obras literárias e
a Retórica, que ensina a fazer discursos para o foro, os tribunais, as assembléias
populares. O discurso, peça escrita, é um objeto, embora um pouco abstrato. Ao passo
que a conduta pessoal ou política não é uma coisa, mas uma ação. As ciências práticas
visam à ação humana e as ciências poéticas visam ao objeto da produção humana. Esta
divisão das obras está rigorosamente de acordo com a divisão das ciências feita por
Aristóteles, com um senão que é aquele das matemáticas. Falta um tratado
consagrado às matemáticas - coisa que Aristóteles não fez em parte por ojeriza
pessoal: ele devia estar farto de vinte anos de estudos matemáticos na Academia. Na
Academia só se falava em matemática, e o que irritava muito a Aristóteles era a
tendência platônica de tirar conclusões filosóficas direto da matemática. As pessoas na
Academia achavam que triângulos existiam como tatus... Aristóteles tem uma mente
muito concretista, orgânica. A materialização de conceitos abstratos é muito irritante
para ele.
Pensamento e Atualidade de Aristóteles
86
Introdução
ao texto
de Tertuliano
A propósito do texto que vamos ler na próxima aula: Tertuliano é um dos apologetas
cristãos. Temos aqui mais uma imagem do que pensaram sobre Aristóteles. O ano é
213. O texto está no livro de Tertuliano, De Anima. Não fala de Aristóteles em parte
alguma. Dificilmente encontraremos alguma menção exclusiva a Aristóteles em todos
os primeiros padres apologistas cristãos. Não houve uma discussão com Aristóteles,
houve com a Academia platônica, o que incluía Aristóteles. Nos escritos dos
apologetas, praticamente todos os filósofos eram englobados neste conceito, com
exceção dos que pertencessem declaradamente a uma escola adversária. Como este
não é o caso de Aristóteles, ele fica englobado dentro da Academia. E o curioso é que
as objeções lançadas por Tertuliano contra a Academia são objeções aristotélicas, que
Aristóteles poderia subscrever em gênero, número e grau. O texto é do ano 200 -
seiscentos anos depois de Aristóteles e 263 anos após a edição dos textos por
Andrônico. E o autor do texto, discutindo com a Academia e lançando contra ela
objeções de conteúdo aristotélico, não tem disto a menor suspeita e imagina estar
discutindo com a Academia como um todo. Isto prova que nos primeiros anos do
mundo europeu e no final da civilização grega, a Aristóteles se aplica a famosa frase de
Stanislaw Ponte Preta: "Sua ausência preencheu uma lacuna". É uma ausência tão
notável que ocupa um espaço. Uma espécie de Aristóteles está subentendido,
pairando no ar. Não houve uma consciência de que havia uma obra aristotélica e que
seria necessário se posicionar perante ela. Tanto que este indivíduo, discutindo com a
Academia, se dirige coletivamente aos seus membros, sem ter a menor idéia de que
um deles, Aristóteles, já havia dito coisas do mesmo teor. Também selecionei este
texto porque ele mostra uma espécie de sentido da organicidade, da integridade do
real, que é profundamente aristotélica. Só que Tertuliano não conhecia Aristóteles ou,
se conhecia, não lhe tinha dado importância. Então, de onde tirou este espírito da
organicidade do real? Ele obtém isto de uma inspiração cristã. O cristianismo inaugura
uma nova forma de abordagem do real, que enfatiza também este sentido da
organicidade, costurando os dois mundos que o platonismo havia separado, na pessoa
do Cristo. O cristianismo não deve nada a Aristóteles, vem de uma fonte
completamente diferente - a fonte judaica. Mas como o cristianismo tem esta idéia da
Encarnação, isto é, de que Deus nasceu como gente, já não é possível considerar que
existem dois mundos, um profano, aqui, outro, divino, lá; ou um semi-real, aqui, outro
real lá para cima. Se este aqui é irreal, dizer que Deus virou homem é o mesmo que
dizer que Deus sumiu, entrou na ilusão. Se existe uma gradação de setores da
Olavo de Carvalho
87
realidade ou de planos da realidade, nenhum deles pode ser considerado mais real do
que o outro. É o que mais tarde estará no verso de um poeta do século XX, aliás ateu e
comunista, Paul Éluard: "Há outros mundos, mas estão neste". É tudo um mundo só.
Este senso profundo da unidade do real está de fato subentendido, mas muito
ocultamente e em germe, no próprio platonismo. Este só pode ter validade se a
distinção dos dois mundos emana de uma unidade prévia; se a distinção for
absolutizada, vira demência. O senso da unidade e organicidade do real é a inspiração
aristotélica mais característica e ela aparece neste Tertuliano que pega este mesmo
senso, não de fonte aristotélica, mas de uma fonte judaico-cristã.
Pergunta: -- Mas o cristianismo não enfatiza a separação entre mente e corpo? Pelo
menos é o que todo mundo diz.
-- O cristianismo é uma das doutrinas a respeito das quais circulam mais mentiras. O
combate ao cristianismo no Ocidente foi muito intenso, é muito intenso ainda. Como
acontece com quaisquer tradições espirituais, em volta das quais sempre existem
incontáveis grupos interessados não em discutir as doutrinas cara-a-cara, mas em
deformá-las, para lhes atribuir absurdos. No cristianismo a doutrina da separação
entre corpo e alma é anátema. Esta separação que os inimigos atuais do cristianismo
lhe atribuem foi proposta por inimigos antigos, e o cristianismo paga assim pelo mal
que lhe fizeram.
Um dos grandes segredos da história do Ocidente é a gnose. Quem entender isto,
entenderá em conseqüência tanta, tanta coisa! Entre os vários inimigos do
cristianismo, desde o começo, há um setor chamado gnose. Ela defende uma série de
doutrinas que, quando expostas à luz do dia, se mostram realmente escandalosas. Em
parte sabendo disto, ela mesma atribui suas doutrinas ao adversário.
Estudando a evolução da doutrina cristã, você verá que ela é realmente muito
diferente nos textos, nas falas dos papas, em toda a realidade na evolução do dogma,
e na versão que dela os intelectuais anticristãos apresentam ao público. Esta
separação de alma e corpo é anátema. Tertuliano é uma das primeiras grandes
expressões de doutrina cristã, e ele se bate precisamente por este ponto.
Do mesmo modo que existe uma história de dois mil anos da Igreja, existe uma história
de dois mil anos da gnose. A Igreja é uma entidade única, cuja história se acompanha
facilmente graças aos textos básicos reunidos numa coleção chamada "Patrística". A
grega tem mais ou menos 400 volumes e a latina 300, de mil páginas cada uma, está
tudo lá documentado. Quem quer saber qual é a doutrina da Igreja vai lá e lê. Como
ninguém o faz, pode-se atribuir qualquer coisa ao cristianismo. O cristianismo não é
uma religião feita para ser compreendida por pessoas de baixa qualificação intelectual.
É difícil. Então, é muito fácil entendê-lo pela versão popular inventada por intelectuais
anticristãos e combatê-lo por aí mesmo. Quantos teóricos não falam que o
Pensamento e Atualidade de Aristóteles
88
cristianismo separa a alma do corpo, quando na verdade é o contrário. Isto é o mesmo
que atribuir ao cristianismo a idéia de que Deus não existe.
As pessoas formam uma idéia do cristianismo a partir do que é divulgado por não-
cristãos. Para saber o que é uma religião, deve-se perguntar a quem a conhece e a
pratica, não ao seu adversário. Para saber sobre o judaísmo pergunta-se a um rabino,
não a um nazista. Do mesmo modo, para saber o que é o comunismo não vou
perguntar à CIA, tenho de ler Marx, Lênin etc. Só o cristianismo é que não merece este
privilégio. As pessoas divulgam o cristianismo já propositadamente distorcido e
tornado absurdo para ser mais fácil combatê-lo. As grandes obras de doutrina cristã
ninguém lê.
Qualquer idéia tem o direito de ser defendida por ela mesma. Não se concede este
privilégio ao cristianismo. As pessoas não têm idéia do que é a guerra pró e contra o
cristianismo há dois mil anos. É uma coisa terrível. Ao mesmo tempo, não se pode
identificar o cristianismo com a horda de padres e pastores que podem falar o que lhes
dá na cabeça. O que a Igreja em si pensa está nas sentenças dos papas e nos chamados
"doutores da Igreja", um grupo seleto dentre os santos, cuja fala foi incorporada como
parte do dogma - como por exemplo Sto Tomás de Aquino, Sta. Teresa de Ávila ou Sto.
Afonso de Ligório. Não é o que qualquer pensador cristão fala que vale. Somente
aquilo é pensamento da Igreja. Agora, um certo estado de espírito difuso que as
pessoas chamam de cristianismo nada tem a ver com isto.
Aristóteles foi incorporado mais tarde ao cristianismo por Sto. Tomás de Aquino
precisamente por aqui; este era o ponto de união: a unidade entre corpo e alma. Não
havia uma contradição muito profunda entre o aristotelismo e o dogma cristão da
encarnação. Ao passo que no platonismo essa conciliação já ficava mais difícil, o que
não quer dizer que seja impossível.
Onde aparece uma tradição espiritual, uma revelação, uma eclosão de inteligência,
surge necessariamente em seguida uma sombra e às vezes esta sombra tenta agir por
conta própria, como se o rabo abanasse o cachorro. Do mesmo modo que existe um
esforço humano em direção à verdade, existe um esforço no sentido contrário, no
sentido do erro. A paixão pelo erro é incoercível, e certas pessoas, quando ouvem falar
a verdade, isto lhes provoca raiva. Por exemplo, na Índia você tem o hinduísmo, a
tradição vedântica, uma coisa maravilhosa - só que lá está cheio também de
Rajneeshs, sociedades teosóficas etc, etc. - são parasitas. Do mesmo modo, você tem a
Escola Platônica, um florescimento de inteligência, e logo em seguida, epicurismo,
socráticos menores, um monte de parasitas que não entendem aquilo por falta de
qualificação intelectual; então pegam um pedacinho da doutrina e o deformam. Isto é
uma tendência humana - o homem é um bicho fraco e tende incoercivelmente ao erro.
Olavo de Carvalho
89
Do mesmo modo, em relação ao cristianismo. É mais fácil inventar um cristianismo do
que procurar o que realmente existe. Por exemplo, para falar de repressão sexual -
"esta nossa velha desconhecida" - e provar que o cristianismo só tem repressão sexual,
essa dona Marilena Chauí pega a estátua de Santa Teresa, por Bernini, e mostra que o
êxtase de Santa Teresa, na estátua de Bernini, tem a fisionomia de um orgasmo
corporal; de onde ela conclui que os êxtases místicos de Santa Teresa eram meros
orgasmos disfarçados por muita repressão. Ora, em primeiro lugar, Bernini, que fez a
estátua, nunca viu Santa Teresa. Em segundo lugar, como seria possível representar
materialmente um êxtase espiritual senão sob a feição de um orgasmo físico? Agora,
dona Marilena começa por atribuir à santa as características da estátua - o que é
inteiramente absurdo. No século passado, um grande historiador - Michelet - pegou
um quadro de Franz Hals e descreveu a psicologia do personagem -- René Descartes --
pelo quadro -, só que que Hals nunca tinha visto Descartes mais gordo. O caso ficou
célebre como rateada de um grande historiador. Dona Marilena faz a mesma coisa, só
que movida por uma intenção de "desmascarar", e na verdade ela só se desmascara a
si mesma. A necessidade que certas pessoas têm de depreciar os que lhes são
espiritualmente superiores é o que se chama inveja espiritual, e é um dos sentimentos
mais baixos que podem existir. Há pessoas que não gostam de Cristianismo porque um
padre as suspendeu da aula ou lhes botou medo da masturbação. E fica aquela raiva
de padre, que depois, travestindo-se de filosofia, é projetada sobre dois mil anos de
Cristianismo. Mas não é filosofia, é rancor pessoal mesquinho. É querer medir a
civilização com o tamanho das suas dorezinhas pessoais. Não se pode fazer isto. E
condenar o Cristianismo é praticamente condenar a humanidade. Condenar qualquer
destas grandes tradições - Judaísmo, Cristianismo, Islamismo, Budismo - é condenar a
humanidade. É preciso confiar um pouco no bom senso da espécie humana.
Muitas religiões nos parecem esquisitas quando vistas de fora, mas na realidade somos
nós que não as estamos entendendo. O sujeito diz: "Olha, o cristianismo condenou o
corpo humano". Se fizeram isto, são uns animais. Mas vamos ver se fizeram mesmo.
Não, não faziam; mas seu adversário, a escola gnóstica, fazia. Baseados no preceito de
que o mundo foi criado não por Deus, mas por um deus rebelde que violando
instruções do Todo Poderoso criou o mundo, que é portanto necessariamente mau, os
gnósticos concluiam que a nós cabe destruir esse mundo mau. Para isto existem dois
meios - ou pelo ascetismo total, ou pela gandaia cósmica. Existem vários evangelhos
gnósticos. A escola tem uma característica. Não há uma palavra que ela use que não
tenha sentido ambíguo. Por exemplo - a curtição do "todo". Existem duas maneiras de
perverter o sentido do real. Uma é isolando uma parte; outra, empastelando tudo no
"todo". Então, de um lado temos o Panteísmo. A idéia de que tudo é Deus, sem
distinção, é gnóstica. E a idéia da separação absoluta também é gnóstica. Porque no
organismo humano, na vida biológica, na vida real, não existe separação absoluta nem
indistinção absoluta. Tudo funciona harmoniosamente segundo um jogo de todo e
parte, no qual os dois são inseparáveis. E é este o sentido profundo do aristotelismo. E
Pensamento e Atualidade de Aristóteles
90
é o que lhe permitirá mais tarde ser harmonizado com o Cristianismo, como poderia
ser harmonizado com o hinduísmo, ou o judaísmo ou qualquer das grandes tradições,
porque isto é a linha mestra do pensamento humano, que no fundo é o nosso senso-
comum, o senso do homem são. Quando você faz a idealização do "todo cósmico", da
integração na consciência cósmica - isto só serve para o indivíduo perder o senso da
sua distinção, da sua limitação. Se por outro lado você enfatiza a total separação -
coloca um Deus inatingível, numa esfera tão remota que não dá para saber o que é -,
isto também deixa você meio maluco. O esforço das grandes tradições é para manter o
verdadeiro equilíbrio orgânico, o verdadeiro equilíbrio ecológico da alma. E esta é a
grande contribuição aristotélica.
Este texto de Tertuliano documenta isto que a maioria das pessoas ignora: que a
unidade indissolúvel de corpo e alma é um dogma cristão. E o que quer que sirva ou
para cortar esta distinção ou para empastelar uma coisa na outra, não é cristão. Nem
judaico ou islâmico. É gnostico. Estas questões são muito graves. Mas quando se
estuda filosofia é para estudar questões graves, atuais e urgentes, não uma coisa
remota e boba que aconteceu na Grécia. É para estudar as coisas mais fundamentais
da nossa decisão nesta vida. Aqui e agora. Importa muito para a condução da nossa
vida termos uma idéia exata do que é dimensão corporal, espiritual, anímica no
homem. O unir e o distinguir são as operações fundamentais da razão humana. O
isolar e o empastelar são as duas operações fundamentais da ignorância, a qual
também é organizada e sistêmica a seu modo. Existem sistemas inteiros que são feitos
só para isto. O epicurismo, por exemplo, é um sistema premeditado de confusões, não
é um mero engano acidental. O engano, a partir de certo ponto, se torna maldade. Do
mesmo modo que existe gente se empenhando há milênios para que a humanidade se
coloque numa direção luminosa, inteligível, equilibrada, tem gente fazendo força no
sentido contrário. Existem representantes das duas coisas. Estamos num momento
dificílimo. O papa há dias falou: "Parece que junto com a nossa civilização está-se
desenvolvendo uma civilização do Anticristo". Agora é que ele descobriu? Isto já está aí
há uns cinquenta anos. Mas os papas têm isto, sempre falam as coisas muito tarde. A
Igreja Católica tem um aspecto paquidérmico. Leva tempo para se mexer, e por isto
mesmo os inimigos acabam com ela. Mas todas as grandes religiões têm isto. São
lentas. "Os moinhos dos deuses moem lentamente..." E o nosso grande poeta Murilo
Mendes fala das "lentas sandálias do bem" e das "velozes hélices do mal"...