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7/23/2019 Olga Roriz - Dif Magazine (PT) http://slidepdf.com/reader/full/olga-roriz-dif-magazine-pt 1/2 A tarde estava a descer e a temperatura subia em despique com as gotas que me caiam da testa, ansiedade e pé no pedal, faltam sete minutos para a hora marcada da entrevista e estou dentro do carro caminho ao Rossio, onde vive a coreógrafa que vou entrevistar. Ainda tento ligar à Vanessa, uma amiga, que é um furor em comunicação e esperava ouvir um eco de força, mas do vazio só aparece a sombra em forma de vulto a dar sinal à voz fantasma do voice mail. Uns dias antes, apaguei as mensagens do telemóvel, incluíndo a mensagem com a morada da entrevistada, sem saber qual o número da porta, envio um sms a informar que chegarei ligeiramente depois da hora combinada e aproveito para confirmar o local de destino - a residência de Olga Roriz (O.R.). Dois segundos após o envio da mensagem, recebo outra e era exactamente a mesma que tinha enviado. Weird... tinha gravado o meu número no nome de O. R., o stress sobe e o calor não ajuda e a ansiedade só complica, o telefone toca, não sei onde está o auricular, não posso atender porque conduzo, recebo mensagem e o telemóvel volta a tocar, não atendo, estaciono o carro, saio do parque a correr, o telefone toca, é de um numero que não tenho registado, acredito que seja a O.R., atendo, Bingo!!! É ela, peço desculpa, confirmo a morada e informo que estou em cinco minutos em sua casa. Toco na campainha, olho ao meu redor para tentar enquadrar o ambiente que envolve a casa de O.R., a porta abre, tento conter a respiração ofegante, dou um beijo, dois beijos ou um aperto de mão, as gotas escorrem, não tenho lenço para as enxugar, dou um beijo ou dou dois? Não fiz a barba, as mãos estão escorregadias, a barba pica, uma mochila pesadíssima e uma mala com o Kit fotográfico a pesar-me o ombro direito, as costas quentes, a porta fecha- se e saem instintivamente dois beijos e um sorriso e uma paz que acalma o meu olhar curioso, o ambiente é acolhedor, um odor a incenso que adoro, do piso superior o som acolhe qualquer alma que se aproxime. Subimos em silêncio, comento que o som é muito bom e pergunto quem é, Térez Montcalm, álbum Voodoo, e assim ao som de um ritual de palavras e com movimentos contidos surge a nossa conversa, protegida pela muralha fernandina que dá vida à sala, sinto uma onda fresca, que bom, há uma ventoinha enorme ao fundo da sala, sento-me de costas para o ar que alivia… O.R. é uma mulher com um carácter forte, define-se como dramática, romântica, dura e analítica, consciente, tem a estética à flôr da pele, e o corpo é muita pele e o seu sentir tem uma enorme dimensão, «Sou muito instintiva, dramática, intuitiva, muito apaixonada. Estes últimos anos aprendi uma coisa que é o lado de humor que tinha só na minha intimidade». Muitos não a conhecem nem à sua obra, outros devoram-na com críticas que orgulham Portugal por a ver dançar ou dirigir a sua companhia que já conta com treze anos de existência. Tem um charme incalculável e o seu mérito tem sido premiado pelo mundo fora. Subiu todos os degraus sem sobressaltos, fez dança clássica na Escola do T.N.S.Carlos e no conservatório, passou pela dança moderna, dançou no Ballet Gulbenkian, foi directora da Companhia de Dança de Lisboa, e por mais (des)conhecimento que se possa ter na área da Dança, PAG 062 / DANÇA PORTUGAL DORME ENQUANTO DANÇA  / / Texto Hugo Israel Olga Roriz, da Inspiração à matéria 

Olga Roriz - Dif Magazine (PT)

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7/23/2019 Olga Roriz - Dif Magazine (PT)

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A tarde estava a descer e a temperaturasubia em despique com as gotas queme caiam da testa, ansiedade e pé nopedal, faltam sete minutos para a horamarcada da entrevista e estou dentrodo carro caminho ao Rossio, onde vivea coreógrafa que vou entrevistar. Aindatento ligar à Vanessa, uma amiga, queé um furor em comunicação e esperavaouvir um eco de força, mas do vazio sóaparece a sombra em forma de vulto a

dar sinal à voz fantasma do voice mail.

Uns dias antes, apaguei as mensagensdo telemóvel, incluíndo a mensagem coma morada da entrevistada, sem saberqual o número da porta, envio um smsa informar que chegarei ligeiramentedepois da hora combinada e aproveitopara confirmar o local de destino - aresidência de Olga Roriz (O.R.).

Dois segundos após o envio damensagem, recebo outra e eraexactamente a mesma que tinha enviado.Weird... tinha gravado o meu número nonome de O. R., o stress sobe e o calornão ajuda e a ansiedade só complica,o telefone toca, não sei onde está oauricular, não posso atender porqueconduzo, recebo mensagem e o telemóvelvolta a tocar, não atendo, estaciono ocarro, saio do parque a correr, o telefonetoca, é de um numero que não tenhoregistado, acredito que seja a O.R.,atendo, Bingo!!! É ela, peço desculpa,confirmo a morada e informo que estouem cinco minutos em sua casa.

Toco na campainha, olho ao meu redor

para tentar enquadrar o ambiente queenvolve a casa de O.R., a porta abre,tento conter a respiração ofegante,dou um beijo, dois beijos ou um apertode mão, as gotas escorrem, não tenholenço para as enxugar, dou um beijoou dou dois? Não fiz a barba, as mãosestão escorregadias, a barba pica, umamochila pesadíssima e uma mala como Kit fotográfico a pesar-me o ombrodireito, as costas quentes, a porta fecha-

se e saem instintivamente dois beijos eum sorriso e uma paz que acalma o meuolhar curioso, o ambiente é acolhedor,um odor a incenso que adoro, do pisosuperior o som acolhe qualquer almaque se aproxime.

Subimos em silêncio, comento queo som é muito bom e pergunto quemé, Térez Montcalm, álbum Voodoo, eassim ao som de um ritual de palavrase com movimentos contidos surge anossa conversa, protegida pela muralhafernandina que dá vida à sala, sinto umaonda fresca, que bom, há uma ventoinhaenorme ao fundo da sala, sento-me decostas para o ar que alivia…

O.R. é uma mulher com um carácterforte, define-se como dramática,romântica, dura e analítica, consciente,tem a estética à flôr da pele, e o corpoé muita pele e o seu sentir tem umaenorme dimensão, «Sou muito instintiva,dramática, intuitiva, muito apaixonada.Estes últimos anos aprendi uma coisaque é o lado de humor que tinha só na

minha intimidade».

Muitos não a conhecem nem à sua obra,outros devoram-na com críticas queorgulham Portugal por a ver dançar oudirigir a sua companhia que já contacom treze anos de existência. Tem umcharme incalculável e o seu mérito temsido premiado pelo mundo fora. Subiutodos os degraus sem sobressaltos, fezdança clássica na Escola do T.N.S.Carlose no conservatório, passou pela dançamoderna, dançou no Ballet Gulbenkian,foi directora da Companhia de Dança deLisboa, e por mais (des)conhecimento

que se possa ter na área da Dança,

PAG 062 / DANÇA

PORTUGAL DORMEENQUANTO DANÇA / / Texto Hugo IsraelOlga Roriz, da Inspiração

à matéria 

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7/23/2019 Olga Roriz - Dif Magazine (PT)

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a Coreógrafa e Bailarina tem e muito justamente o nome bem sólido comoum fresco romântico, que nem o tempoapaga, o tempo apagará apenas a ideiaque a coreógrafa tem relativamente

à insegurança, «Sou uma pessoa muitoinsegura cada vez mais insegura, quando me

faltar a insegurança eu acho que acabei.»

Colheu de perto, desde que nasceu,influências artísticas, primeiro coma sua mãe, que era actriz amadora, emais tarde na sua adolescência quandoesteve no T.N.S. Carlos, no Ratinho da

Ópera dos 8 aos 18 anos, onde respiroutodo o universo das temporadas deÓpera e Bailado. Desenvolveu relaçõescom actores, cantores e bailarinos quelhe ofereceram uma visão ampliadae mais completa do campo das artes,o facto de estar no meio de grandesconstruções cénicas, figurinos, corpo,voz e movimento, acredito que tenhamcontribuído para a inovação que seassistiu na dança, criando em Portugal omovimento “dança teatro”.

Apesar de se considerar uma criança e

de viver num mundo de ilusão, no seupróprio mundo, tem um elevado sentidode profissionalismo e esse sentidoacompanha-a em todos os movimentosda sua vida, dos amigos que são também

pessoas com quem trabalha, aos discosque ouve que são sempre uma pesquisapara trabalho, aos livros que lê comoinfluência para a dramaturgia da suaobra, é uma vida dedicada à beleza dosgestos, é a oferta de uma vida a umpúblico que a venera.

Talento tem de sobra e usa-o muito

bem na forma como o articula no seutrabalho. A sua obra é sempre umaespécie de desafio, é fragmentada,como afirma, apesar de ter sempre umprincípio, meio e fim, «eu procuro-me a

mim, a minha maneira de estar, a minha

maneira de ser, às vezes encontro-me, muitas

 vezes sem me procurar, muitas vezes as coisas

acontecem, e são maiores do que eu. »

Comparada recorrentemente à directorado Tanztheater Wuppertal, a nossa

dama de movimentos revela que já tinha

iniciado a sua carreira como coreógrafaquando descobriu a Pina Bausch, coma qual ainda hoje mantém uma relaçãode amizade, «Já me tinha lançado como

coreógrafa e não sabia quem era a Pina

Baush, e quando fui à Holanda fazer umtrabalho tive contacto com a Sagração da

Primavera, e nessa altura pensei desisto, mas

isto é o que quero fazer, isto é maravilhoso, é

um rejeitar e ficar presa, a Pina Bausch deu-

me força, é possível fazer coisas assim.»

Com grande entusiasmo fiquei a saberque a peça INFERNO marca a nova faseda coreógrafa, onde o seu trabalhoestá repleto de bom humor, «Descobria matéria do absurdo, começou a seruma matéria de trabalho, que encontreipassado não sei quanto tempo, e é peloabsurdo que aparece o humor.», poroutro lado marca a sua estética sendoeste trabalho reflexo de uma exaustivae exigente temporada de ensaios, novemeses, onde todos os movimentos foramesculpidos pela bailarina e coreógrafae onde injectou a sua linguagem naforma como expressa as suas emoçõese sentimentos. «Para que eles procurem os

movimentos na minha linguagem, tenho que

injectar, o inferno é quase todo coreografado

por mim, não posso recuar do que gosto».

O trabalho irá entrar em digressão estemês. Pena não estar num espaço físicoresidente, é uma matéria que indignabastante a O.R. e a todos nós também,não existir um espaço dedicado àdança contemporânea e com subsídiosajustados, e não haver a disparidadefinanceira existente entre o teatroe a dança, sendo duas artes que secomplementam, afirma.

Abençoada pelo Padre Cruz, que éseu ascendente familiar, a coreógrafarecebeu uma ilustre encomenda queé produzir um espectáculo com umadimensão imensa, coreografar paraViana do Castelo, cidade onde nasceu,uma peça em homenagem à N.ª Sr.ª daAgonia.

A força revela-se ainda maior quando asua humildade dispara «Acho sempre que

podia chegar (sempre) mais longe … ».