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1 OLHANDO O PRESENTE COM AS LENTES DO PASSADO: UMA ANÁLISE DO MARCO REGULATÓRIO DE SANEAMENTO A PARTIR DA ÓTICA DE "PATH DEPENDENCE" Autoria: Celso Florêncio de Souza, Alketa Peci Resumo: O presente trabalho busca mostrar, utilizando-se da literatura de “path dependence”, a influência da trajetória histórica do saneamento básico na atual configuração de seu marco regulatório, de acordo com a lei 11.445 de 2007. As tensões existentes entre atores políticos que atuam no saneamento e as características incrementais da reforma, são vistas como consequência da coexistência dos modelos anteriores com os atuais, mesmo diante de eventos contingências e da entrada de novos atores de interesse no setor. Contudo, exatamente graças a sua característica incremental e natureza abrangente, a lei 11.445/07 teve sua aprovação exitosa, após várias tentativas anteriores fracassadas.

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OLHANDO O PRESENTE COM AS LENTES DO PASSADO: UMA ANÁLISE DO MARCO REGULATÓRIO DE SANEAMENTO A PARTIR DA ÓTICA DE "PATH DEPENDENCE"

Autoria: Celso Florêncio de Souza, Alketa Peci

Resumo: O presente trabalho busca mostrar, utilizando-se da literatura de “path dependence”, a influência da trajetória histórica do saneamento básico na atual configuração de seu marco regulatório, de acordo com a lei 11.445 de 2007. As tensões existentes entre atores políticos que atuam no saneamento e as características incrementais da reforma, são vistas como consequência da coexistência dos modelos anteriores com os atuais, mesmo diante de eventos contingências e da entrada de novos atores de interesse no setor. Contudo, exatamente graças a sua característica incremental e natureza abrangente, a lei 11.445/07 teve sua aprovação exitosa, após várias tentativas anteriores fracassadas.

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1. Introdução A importância do saneamento básico para a qualidade de vida da população é algo

amplamente difundido. A água é um recurso essencial à vida e o esgoto gerado, quando não destinado de maneira correta, causa além de poluição hídrica e contaminação de solos, a proliferação de doenças, como a diarreia, que levam milhões de pessoas, sobretudo, as crianças, a morte nas áreas menos desenvolvidas. Diante da importância deste setor para a sociedade, muito se discute sobre as melhores formas de aumentar a qualidade dos serviços de saneamento prestados à população.

Nesta direção, uma questão que tem se destacado, nos últimos anos, sobretudo após a lei 11.445 de 2007, é a regulação do saneamento básico através de órgãos independentes e autônomos (agências reguladoras). Esta se faz necessária na tentativa de assegurar a permanente expansão da infraestrutura, aliada a boa prestação de serviços, os quais deverão ser remunerados por tarifas tecnicamente definidas. A regulação ainda possui a função social de garantir o acesso ao saneamento às pessoas sem condições financeiras, além de ter um papel institucional, o qual visa oferecer maior credibilidade aos contratos realizados entre o poder concedente e as concessionárias, estimulando, assim, os investimentos na área.

No entanto, a inserção da regulação do saneamento básico no âmbito legal não foi um fato isolado. Ela foi, na verdade, um reflexo de uma trajetória deste setor, a qual foi criada a partir de eventos e decisões que ocorreram ao longo do tempo. No campo teórico, a literatura de “path dependence” ou dependência de trajetória, como o termo pode ser traduzido, aponta que as decisões tomadas no passado irão ter forte influência sobre os rumos futuros, sendo esta trajetória também influenciada por mecanismos de auto-reforço, os quais tornam os caminhos cada vez mais difíceis de serem redirecionados, levando a uma lentidão institucional e tornando as reformas muito custosas.

Partindo desta premissa de que os acontecimentos passados têm forte interferência no contexto atual, torna-se impossível entender a situação do saneamento básico no Brasil sem levar em consideração o processo histórico pelo qual este setor passou ao longo das últimas décadas. Desde a implantação do PLANASA, durante o regime militar, o saneamento rompeu com sua trajetória majoritariamente municipalista e foram inseridos novos atores de poder em sua dinâmica. Também houve uma série de eventos que impactaram diretamente sobre a atividade de saneamento básico, tais como a crise do Estado, que levou a um desmonte do PLANASA; e a aprovação da lei de concessões, em 1995, que inseriu outro ator na dinâmica do setor: o capital privado.

Sendo assim, a dependência de trajetória do setor de saneamento básico dá-se através dos eventos contingencias e dos mecanismos de auto-reforço, os quais são influenciados pelos interesses dos atores do setor, com destaque para as empresas municipais remanescentes, as companhias estaduais e, mais recentemente, o capital privado. A própria estrutura destas empresas pode ser considerada um mecanismo de auto-reforço, uma vez que, quando o poder público realiza investimentos nestas empresas, ele também espera, em algum momento, ter o retorno com os lucros destas. Estas companhias ainda podem ser utilizadas pelos seus mandatários para fins eleitorais, devido à sensibilidade que o setor possui diante da sociedade e para acomodação de aliados. Sendo assim, manter a companhia sobre sua alçada poder significa assegurar benefícios políticos, pelos quais os mandatários destas empresas estão fortemente mobilizados em defendê-los.

Utilizando-se do modelo analítico de “path de dependece”, o qual tem como variáveis os atores de interesse, os eventos contingencias e os mecanismos de auto-reforço; este trabalho busca compreender como se deu o desenvolvimento da trajetória deste setor até a aprovação da lei 11.445 de 2007, que inseriu, no âmbito legal, a regulação da atividade de saneamento básico no país.

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2. Referencial teórico Os primeiros estudos que abordaram a questão do “path dependence” ou dependência de trajetória, como o termo pode ser traduzido para o português, foram realizados no campo tecnológico. Em um trabalho de grande relevância para esta linha analítica, Arthur (1994) apresentou, com base nos processos de retroalimentação, o porquê algumas tecnologias possuem vantagens sobre seus concorrentes sem que estas sejam, necessariamente, mais eficientes. Uma questão chave do “path dependence” presente nos modelos de Arthur e seguido por boa parte das demais pesquisas refere-se a grande importância que os acontecimentos iniciais possuem na definição do rumo futuro. Estes fatos, por sua vez, vão direcionar um caminho particular a ser seguido e que através dos mecanismos de auto-reforço, chegaram a uma dependência de trajetória, sendo que, uma alteração neste rumo já estabelecido torna-se cada vez mais improvável e extremamente custosa (Martin, 2012).

Apesar de inicialmente estar ligado às pesquisas em tecnologia, o “path dependence” está presente em outras áreas que vão desde a ciência política até a economia regional. Nesta última, muitos autores tentam explicar o desenvolvimento de certas regiões e atividades econômicas sobre ponto de vista da dependência de trajetória. Segundo Martin (2010), a geografia econômica é um processo de “path dependence”, sendo impossível entender completamente a evolução da trajetória das indústrias e econômicas locais sem levar em conta os seus aspectos históricos. Dentro do neoinstitucionalismo, boa parte dos trabalhos aborda o “path dependence” como um processo de ineficiência, a qual tem como resultado a rigidez institucional (Vergne & Durand, 2010).

No campo da ciência política, a dependência de trajetória é mais recente, contudo, não menos pujante. A partir do livro “Politics in Time: History, Institutions, and Social Analysis”, de Paul Pierson, houve um boom de pesquisas que buscam explicações através da teoria de “path dependence”. Para este autor, assim como na economia, os processos políticos também são influenciados pelos mecanismos de auto-reforço, os quais são ações e estruturas que robustecem o status quo inicial. Pierson (2004) mostra que estes mecanismos são condição necessária para a dependência de trajetória e que, ao longo do tempo, estes criam fortes empecilhos para adoção de um caminho alternativo ao vigente.

A análise dos modelos de “path dependence” também enfatiza os atores políticos, os quais podem exercer uma forte influência na dependência de trajetória. Pierson (2004) destaca o papel destes atores, os quais, quando podem impor às regras que serão vigentes no futuro, farão de forma a criar instrumentos que os favoreçam, ou seja, fortalecendo o poder político vigente, fato que dificulta uma alternância de poder, pois existe um aumento das desigualdades entre os grupos em questão na disputa política. Como veremos mais a frente, no caso do saneamento básico, alguns importantes atores de interesse (estados, municípios e governo Federal) também possuem grande poder de agenda na arena política, o que dificulta o consenso para qualquer alteração que modifique o equilíbrio vigente, uma vez que estes atores podem estar em posições opostas.

Dado este cenário de engessamento institucional devido à dependência de trajetória, as mudanças, quando ocorrem, tendem a acontecer de forma incremental. Alguns autores já trabalhavam com este tema anteriormente ao trabalho de 2004 de Paul Pierson. Hannan e Freeman (1984) acreditam que a maioria das organizações apresentam estruturas inertes, tendo o passado como um fator de forte influência sobre o presente. Para Scott (1995), existe uma tendência de evolução das instituições de forma incremental, fazendo com que as regras anteriormente vigentes sejam muito próximas das atuais, sendo que uma mudança abrupta dificilmente ocorre. Entretanto, estas pequenas modificações no status quo têm sua relevância na dinâmica política. Boas (2007) afirma que alterações contínuas realizadas no quadro

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institucional de forma incremental refletem, ao mesmo tempo, dependência de trajetória e caminho evolutivo.

Diante de tamanha abrangência dos modelos de “path dependence”, muitos pesquisadores tem usado o termo de forma inadequada. Para que a dependência de trajetória não se torne uma categoria guarda-chuva para explicar o porquê às instituições ou padrões tendem a persistir ao longo do tempo, Vergne e Durand (2010) sugerem que o uso deste instrumento de análise seja realizado com parcimônia desde os dados até as evidências empíricas. A falta de rigor metodológico é uma crítica recorrente, uma vez que existe uma dificuldade relativamente grande de apontar e apresentar empiricamente as bases desta linha analítica (Greener, 2005).

Na tentativa de melhorar a clareza dos modelos de “path dependence”, Vergne e Durand (2010) apresentam duas condições essenciais para a ocorrência da dependência de trajetória. A primeira seria os eventos contingenciais, os quais teriam uma capacidade de influenciar a trajetória maior até mesmo que o próprio evento inicial. Já a segunda condição diz respeito aos mecanismos de auto-reforço. Um exemplo clássico apresentado pelos autores para demonstrar esta última condição foi o teclado QWERTY. Esta tecnologia pioneira, depois de ter sido adotada, teve como mecanismo de auto-reforço, além os ganhos de escala produtiva, as barreiras de uso criadas aos seus concorrentes, uma vez que o usuário já habituado com este equipamento, dificilmente o trocará por outro que lhe incorrerá num custo de aprendizagem.

Com base no modelo teórico proposto por Vergne e Durand (2010) e utilizando-se das variáveis por estes autores apresentadas (eventos contingenciais e mecanismos de auto-reforço), bem como a análise dos atores políticos e econômicos diretamente envolvidos no setor; procura-se traçar a trajetória do saneamento básico no Brasil, para, assim, compreender sua atual estrutura institucional e, consequentemente, os fatores envolvidos na aprovação da lei 11.445 de 2007, que regulamentou o setor e inseriu, no âmbito legal, a regulação desta atividade através de órgãos independentes e autônomos.

3. Metodologia

Vergne e Durand (2010) recomendam que, para manter certo rigor metodológico, os estudos em “path dependence” tornem claro quais foram às contingências cruciais para a trajetória e quando elas ocorreram, além de especificar os componentes de auto-reforço que estão em jogo. Diante destas recomendações, buscou-se entender o saneamento básico no Brasil, com base em seu contexto histórico, identificando os que eventos influenciaram na trajetória do setor, além dos mecanismos de auto-reforço que atuaram até a aprovação do seu marco regulatório, lei 11.445 de 2007.

Para tanto, o trabalho contou com basicamente quatro categorias de dados distintos: Legislações: análises de leis e projetos lei que tramitaram no Congresso Nacional sobre o assunto. Esta análise não se restringiu a apenas a redação final das leis, mas também dos projetos de leis que foram elaborados anteriores a estas e que puderam, de alguma forma, influenciá-las. Revisão de literatura: nesta etapa buscou-se verificar tanto a contextualização histórica, quanto pesquisas anteriores que abordaram o mesmo tema. Inclui-se também na revisão da literatura a análise de pareceres jurídicos sobre as leis em questão. Entrevistas: para entender os fatores contextuais envolvidos na aprovação da lei, foram realizadas algumas entrevistas com pessoas que tiveram forte contribuição e atuação na elaboração da lei 11.445 e na sua tramitação no Congresso Nacional. Destacam-se: (i) um deputado que atuou na redação final da lei 11.445/2007, marco regulatório do setor, (ii) um

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chefe de gabinete de um Senador da República que também teve atuação no processo e (iii) um consultor jurídico da Câmara dos Deputados. Outros: também foram usadas outras fontes de informação, tais como sites de associações de empresas e artigos de jornal da época. Durante toda a análise, procurou-se confrontar os diferentes dados para, assim, chegar num resultado sólido e correspondente à realidade.

4. O setor diante de sua trajetória

A provisão de saneamento básico urbano no Brasil não é nova. Os arcos da Lapa, no Rio de Janeiro, primeiro aqueduto do país, foram inaugurados em 1723. Anteriormente, as questões de saneamento se restringiam a drenagem de terrenos e instalação de chafarizes nas principais cidades da colônia. A primeira grande mudança no setor ocorreu quando D. Pedro II autorizou, em 1867, a contratação de uma empresa privada de serviços de limpeza e esgoto para a capital do Império por causa das péssimas condições de higiene, além da inexistência de um planejamento urbano na cidade. O Rio de Janeiro foi um dos pioneiros no mundo em termos de serviços de rede de esgoto, precedida apenas por Londres e Hamburgo (Silva, 2002).

Desde então até a década de 30, os serviços de saneamento não tinham um caráter majoritariamente público, sendo estes também prestados por empresas privadas. Como os investimentos estatais no setor eram baixos, sobressaiam-se apenas os investimentos privados nos núcleos urbanos mais privilegiados. As constantes transformações ocorridas no país, nos anos seguintes, levaram o poder público a ter de interferir de forma mais incisiva nesta questão, ampliando sua presença nesta área (IPEA, 1995). Contudo, segundo Sanchez (2001), até o final dos anos 50, não havia uma organização setorial no campo de saneamento básico, demonstrado pela inexistência de uma estrutura burocrática voltada para este fim. A estruturação do setor iniciou na década de 60 com a expansão da escala para investimentos e planejamento no abastecimento de água devido a fatores como a intensificação da industrialização, crescimento populacional e, sobretudo, urbanização. Nesta época, o país já registrava uma realidade vergonhosa em saneamento, aquém até mesmo de muitos de seus vizinhos sul-americanos.

Neste contexto de grandes transformações demográficas pela qual a sociedade brasileira estava passando foi criado, por iniciativa do governo federal, no ano de 1968 e implementado na década seguinte, o Sistema Nacional de Saneamento. Neste estava inserido o Plano Nacional de Saneamento (PLANASA), executado com recursos do Banco Nacional da Habitação (BNH), o qual geria o montante arrecadado com o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). O BNH, extinto em 1986, foi o responsável pelo financiamento da política de saneamento durante grande parte do regime militar. Quanto as competências, o decreto número 82.587, de 6 de novembro de 1978, estipulava que cabia ao Ministério do Interior a proposição de políticas públicas para o setor e a destinação dos recursos para investimento pelo PLANASA. Já Companhias Estaduais de Saneamento Básico cabia à execução do programa estadual de saneamento básico de acordo com as diretrizes impostas de Brasília.

A União, a época, utilizou-se de seu poder autoritário para concentrar as atividades estratégicas de planejamento, financiamento e tributação na esfera federal, ao mesmo tempo em que garantia aos estados a gestão dos serviços. Para tanto, era necessário que os municípios cedessem às empresas estaduais a prestação dos serviços de saneamento. Deste modo, foram criadas, à época, as 26 companhias estaduais de saneamento básico, tal qual conhecemos hoje, e a CAESB (Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal). Esta estrutura ainda mantém-se sólida, sendo que, atualmente, segundo a Associação

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Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento, as empresas estaduais estão presentes em 3.943 municípios, atendendo mais de três quartos da população urbana brasileira em abastecimento de água.

Entretanto, nem todos os municípios aderiram às diretrizes do PLANASA, sendo que cerca de mil e oitocentas cidades brasileiras permaneceram autônomas, principalmente, nas regiões mais ricas, particularmente, Minas Gerais e São Paulo. Estas cidades de maior poder econômico aceitaram a possibilidade de não receber os investimentos federais para assegurar, na esfera local, a prestação de serviços em saneamento (Vargas &, Lima; 2004).

Esta intervenção do governo central, à época, através do seu plano de saneamento, criou uma estrutura dual entre cidades e estados sobre a prestação destes serviços. Estes dois atores estiveram, e ainda estão, em trincheiras políticas oposta no que diz respeitos a pontos polêmicos sobre este assunto, como é o caso de sua titularidade que será abordada a diante. Além disso, durante todo o tempo que seguiu a criação das empresas, estas se tornaram mecanismo auto-reforço da trajetória vigente, uma vez que garantiam poder para seus mandatários, os quais não desejam perdê-lo e atuavam de forma enfática para defendê-los. Este poder era oriundo: (i) do uso eleitoral destas empresas, ou seja, os governantes realizam investimentos em saneamento básico com recursos destas a fim de conseguir maior capital eleitoral; (ii) dos retornos financeiros das companhias, uma vez que elas tem grande capacidade de gerar lucro e (ii) da utilização destas empresas como instrumento de barganha política junto a base aliada. A Figura 1 ilustra a estrutura do setor de saneamento básico durante todo o período em que o PLANASA este em vigor.

Figura 1: Estrutura do setor de saneamento durante o PLANASA Fonte: Elaboração Própria

O colapso do PLANASA com a crise do Estado, o fim do BNH e, consequentemente, dos recursos por este destinados ao financiamento das atividades do setor, levou a iniciativas pontuais e desarticuladas no decorrer dos anos 90 (Vargas & Lima, 2004). O saneamento ficou, no Brasil, durante muito tempo sem regulamentação, prevalecendo a estrutura de prestação de serviços anteriormente montada, embora o papel do governo federal sobre o planejamento e, principalmente, sobre o financiamento do setor tenha sido drasticamente reduzido. Assim, as companhias tanto municipais, quanto estaduais passaram a ter que buscar recursos de forma independente e os investimentos em expansão da rede de água e esgoto

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ficaram comprometidos. A Figura 2 demonstra a dinâmica de prestação de serviços do setor que prevaleceram até meado da década de 90.

Figura 2. Estrutura do setor de saneamento após o colapso do PLANASA Fonte: Elaboração Própria

Ainda na década de 90, algumas leis tiveram fortes impactos diretos ou indiretos no setor. A lei de 8.987 de 1995 (lei de Concessões) foi um marco importante para a inserção do setor privado na área de infraestrutura, sendo esta a base legal para a concessão de serviços públicos, inclusive de saneamento. A partir de 1995, o capital privado tornou-se um ator relevante na prestaçãode serviços de saneamento, passando também a atuar no jogo político e econômico do setor, influenciando, inclusive, a elaboração e a aprovação da lei 11.445/07, a qual regulamenta o saneamento.

Outra legislação importante foi a Lei nº 9.433 de 1997, que visou criar um arranjo para gestão dos sistemas hídricos brasileiros. Para Turolla (2002), a década de 90 foi marcada por dois grandes tipos de programas na área. O primeiro era uma tentativa de reduzir as disparidades socioeconômicas com projetos como, por exemplo, o Programa de Saneamento para Núcleos Urbanos (PRONURB), o Pró-Saneamento – incluído na estratégia do Programa Brasil em Ação, o Programa de Ação Social em Saneamento (PASS), Programa Social de Emergência (PROSEGE) e a Geração de Empregos em Obras de Saneamento (PROSEGE). Já a segunda linha tinha por objetivo criar apoio técnico para a área, destacando projetos como o Programa de Modernização do Setor Saneamento (PMSS), o Programa de Pesquisa em Saneamento Básico (PROSAB), etc. Contudo, nenhuma destas medidas, a exceção da lei de concessões, foi capaz de romper com a dependência de trajetória deste setor. A Figura 3 demonstra as modificações da estrutura do saneamento básico após a lei de concessões.

Figura 3. Estrutura do setor de saneamento após a lei de concessões Fonte: Elaboração Própria

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Mesmo diante dos eventos acima citados, a trajetória do setor se manteve com a

convivência de antigos e novos atores. Também se verificou que, com o fim do PLANASA e as alterações no contexto político e socioeconômico, cresceu a demanda por regulação de saneamento básico, uma vez que, para atrair o capital privado para o setor, era necessária certa seguridade institucional, a qual tem na regulação um de seus pilares. Contudo, a regulação, no âmbito legal para o setor de saneamento básico, só veio a ocorrer na década seguinte com a aprovação da lei número 11.445, de 5 de janeiro de 2007.

5. Marco regulatório

A Constituição Federal de 1988 é o marco de um período de grandes transformações política e institucionais. Com esta, houve uma maior descentralização do poder entre os entes federados, o que, segundo O’Neill (2004), possibilitou aos municípios uma série de instrumentos tanto administrativos quanto políticos que proporcionaram uma redistribuição não apenas de recursos, mas também de direitos e de responsabilidades que, até então, estavam centralizados nas mãos do executivo federal. Os poderes da União também foram delegados as demais esferas de poder como o legislativo e o judiciário.

Diante redistribuição de direitos e obrigações com a Constituição de 1988, ficou estabelecido que é de competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios a promoção de programas de construção de infraestrutura e melhorias no saneamento básico no país (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988/2001). Entretanto, o marco regulatório para o setor só veio ocorrer anos mais tarde com a lei Nr° 11.445, de 5 de janeiro de 2007.

Anteriormente a esta lei, alguns outros projetos se prepuseram a traçar as diretrizes do saneamento, muito embora, nenhum destes foi bem sucedido. O projeto de Lei nº 53 de 1991, que criava Sistema Nacional de Saneamento, o Plano Nacional de Saneamento e o Fundo Nacional de Saneamento chegou a ser aprovado no Congresso, mas foi vetado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. Anos mais tarde, outros projetos de lei também abordaram a questão, tais como o Projeto de Lei nº 2.763/2000 e Projeto de Lei nº 4.147/2001. Todavia, nenhum destes projetos conseguiu um consenso entre os atores políticos envolvidos. Em 2003, uma nova proposta para o setor foi apresentada ao Congresso Nacional (PL 1.144/2003) e também não obteve sucesso. Um dos fatores apontados como empecilho à aprovação de uma legislação para o setor foi a tensão existente entre estados e municípios, devido à falta de definição sobre a titularidade dos serviços.

A indefinição da titularidade do setor, não explicitada pela Constituição, se transformou em um grande empecilho para avanços institucionais na área de saneamento. De acordo com o artigo 30 da Constituição Federal, compete aos municípios legislar sobre assuntos de interesse local, contudo, é permitido aos estados criarem regiões metropolitanas e nelas atuarem. Em março de 2013, o Supremo Tribunal Federal julgou as ADIs (Ações Diretas de Inconstitucionalidade) número 1842 e 2077 que estavam no Tribunal desde 1998. No entendimento do STF, as regiões urbanas, microrregiões e aglomerados urbanos terão a gestão dos serviços de saneamento básico compartilhada entre os estados e os municípios.

A lei 11.445/2007, a qual obteve êxito na aprovação diante do parlamento foi oriunda de dois projetos de lei distintos, o Projeto de Lei do Senado 155/2005, que tinha forte apoio dos governos estaduais, e do Projeto de Lei 5.296/2005 apresentado pelo governo federal diante de um grande levantamento realizado pelo Ministério das Cidades e que possuía um viés municipalista. Este marco regulatório estabelece as diretrizes nacionais para o saneamento básico e explicita como um de seus princípios fundamentais a universalização de acesso aos serviços de saneamento, o que se torna um grande desafio de política pública, uma

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vez que ainda existe uma vasta proporção da população brasileira sem acesso, em suas residências, a serviços como água potável encanada e coleta de esgoto.

O capítulo V desta lei trata exclusivamente sobre a questão da regulação dos serviços de saneamento básico. Segundo este, a regulação deve atender os seguintes princípios: “[...] I - independência decisória, incluindo autonomia administrativa, orçamentária e financeira da entidade reguladora; II - transparência, tecnicidade, celeridade e objetividade das decisões” (Lei n. 11.445, 2007). Ainda segundo a mesma lei, os objetivos da atividade reguladora residem em: (i) estabelecer padrões e normas para atender adequadamente os usuários; (ii) garantir o cumprimento das condições previamente estabelecidas; (iii) prevenir e reprimir o abuso de poder de uma determinada parte; (iv) definir tarifas adequadas para viabilizar investimento e que sejam justas aos consumidores. Também cabe ao órgão regulador especificar as normas técnicas e econômicas da prestação de serviços de saneamento básico como, por exemplo, padrões de qualidade, atividades operacionais, estabelecimento de metas de expansão e de qualidade dos serviços, regimes tarifários, subsídios, etc (Lei n. 11.445, 2007).

Contudo, a estrutura reguladora pode ser custosa e algumas localidades podem possuir problemas para conseguir corpo técnico qualificado para exercer estas atividades. Diante desta realidade, a lei garante que a regulação de saneamento pode ser delegada a qualquer entidade reguladora constituída dentro dos limites do respectivo estado. Assim, tornam-se possíveis vários arranjos regulatórios, ou seja, a regulação de empresas municipais, estaduais ou concessionárias privadas pode ser feita por agências reguladoras estaduais, municipais ou regionais. A aprovação deste marco regulatório deu uma nova cara ao setor de saneamento básico no país que já vinha passando por algumas modificações ao longo dos anos, sobretudo, devido aos acontecimentos políticos que interferiram de certa forma sobre esta atividade. A Figura 4 busca sintetizar a atual estrutura do setor diante da inserção de um ente regulatório (agência reguladora) na dinâmica do saneamento.

Figura 4. Estrutura atual do setor de saneamento básico Fonte: Elaboração Própria

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6. A aprovação da lei diante da trajetória do setor

A política de saneamento básico até a aprovação da lei 11.445/07 teve sua trajetória marcada por eventos que redirecionaram o setor sem que houvesse um rompimento com as estruturas previamente traçadas. Sendo assim, sempre que um novo ator entrava no setor e modificava sua trajetória, verificava-se um aumento das tensões entre os interesses, ainda que houvesse uma coexistência entre os modelos mais antigos com os mais recentes. Dos eventos contingencias que interferiram na política pública de saneamento, sobretudo, na regulação econômica do setor, merecem destaque: (i) a Constituição Federal de 1988, que redistribui poderes aos entes federados, mesmo tratando com ambiguidade a questão da titularidade; (ii) a crise financeira e fiscal da década de 80, que levou um desmonte nos financiamentos federais; (iii) a mudança para um regime político democrático e mais descentralizado que o anterior e (vi) a busca por novas formas de financiamento com participação da iniciativa privada.

Quantos aos atores que tencionavam a trajetória do setor, estes não se restringem apenas aos entes federativos. Outros atores também atuam fortemente no jogo político do setor a exemplo das associações de empresas prestadoras de serviços e grupos econômicos. Alguns destes grupos de interesses atuaram fortemente na elaboração da lei 11.445, propondo emendas e pressionando o parlamento. Pode-se se destacar a atuação das associações das empresas de saneamento tanto municipal (ASSEMAE – Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento), quanto estadual (AESB – Associação das Empresas Estaduais de Saneamento Básico), além de grupos econômicos organizados, tais como: ABDIB (Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base), CBIC (Câmara Brasileira da Indústria da Construção), FIESP (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) e a CNI (Confederação Nacional das Indústrias). O capital privado representava a nova “contingencia” do saneamento, uma vez que vinha atuando de forma a pressionar as instituições para, além de defender os interesses da sua participação já instalada, aumentar o seu espaço dentro do setor. Espaço este que vai desde a concessão direta dos serviços até o fornecimento de equipamentos para empresas públicas.

Diante deste quadro de certa rigidez institucional devido ao número elevado de atores com capacidade de influenciar a política de saneamento em lados opostos, parecia quase impossível que um projeto de lei fosse bem sucedido na arena política, a qual contava com forte atuação de lobbies de todos estes grupos interessados. Como foi visto anteriormente, muitos outros projetos tentaram sem êxito regulamentar o saneamento básico no Brasil. Um dos pontos que podem justificar o sucesso da lei 11.445 sobre as tentativas anteriores de regulamentar o setor de saneamento básico é o fato desta lei ter sido realizada de forma incremental, sem grandes rompimentos com a trajetória já traçada, contentando, assim, grande parte dos atores que tinham interesse nesta questão. A própria literatura de “path dependence” aponta a necessidade de que as mudanças sejam incrementais, uma vez que um rompimento maior, que redirecione de maneira drástica os rumos já estabelecidos dificilmente é alcançado.

Outro ponto relevante na que possibilitou a aprovação do marco regulatório foi a falta de especificação da titularidade dos serviços de saneamento básico na pauta de discussões. Na época esta questão já estava sendo debatida pelos ministros do Supremo Tribunal Federal e qualquer tendência que a redação final da lei tomasse em prol de uma das partes impossibilitaria sua aprovação. A redação da lei tomou o cuidado de consultar o STF para que o texto não tivesse nenhum ponto que pudesse, posteriormente, estar em desacordo com a decisão do Supremo.

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Com tamanha complexidade na dinâmica do setor, a redação da lei se desenvolveu de uma forma não muito usual na política brasileira: elaboração via comissão mista entre a Câmara dos Deputados e o Senado Federal. Havia, no período, dois projetos em discussão no Congresso Nacional. O Projeto de lei 5.296 de 2005, elaborado pelo Ministério das Cidades com ampla consulta popular e de forte viés municipalista, foi levado a Câmara dos Deputados pela Casa Civil. Em contraposição, entrou em discussão no Senado, o projeto de lei 155 de 2005, o qual foi elaborado, em grande parte, no Fórum dos Secretários Estaduais de Saneamento. Este, por sua vez, tinha como intuito não mexer na titularidade e era fortemente apoiado pelos governos estaduais, além de buscar criar maior segurança institucional para atrair investimentos privados para o saneamento.

A comissão mista criada foi responsável de, no prazo de 30 dias, redigir um marco regulatório para o setor. O presidente do Senado Federal à época, Renan Calheiros, escolheu o senador César Borges (PFL-BA) para presidi-la e o deputado Darcísio Perondi (PMDB-RS) para a vice-presidência. Para a relatoria foi designado o deputado do PP do Rio de Janeiro, Júlio Lopes. Também integram a comissão os senadores Tião Viana (PT-AC), Fernando Bezerra (PTB-RN), Eduardo Azeredo (PSDB-MG) e Luiz Octávio (PMDB-PA), além dos deputados Custódio Matos (PSDB-MG), Eduardo Sciarra (PFL-PR) e Maria do Carmo Lara (PT-MG).

A comissão proporcionou ao projeto um tramite mais fácil entre a Câmara dos Deputados e o Senado Federal, além de dar a este uma característica mais consensual entre os interesses dos atores, uma vez que se fossem votadas separadamente as duas propostas que deram origem ao texto final, as chances de aprovação seriam pequenas, pois estas possuíam alguns pontos em desacordo.

A proposta apresentada pelo governo federal à Câmara era muito mais extensa e contemplativa, sobretudo, em aspectos sociais, devido à forma com que foi redigida, na qual buscou incluir muitos grupos sociais e políticos. Até mesmo na definição de saneamento básico o projeto era mais contemplativo, já que a proposta em discussão no Senado considerava apenas os serviços de água e esgoto, excluindo os resíduos sólidos e o manejo de águas pluviais. No que diz respeito aos contratos, esta proposta gerava uma maior insegurança jurídica, uma vez que condiciona a adequação dos contratos aos pareceres do Ministério das Cidades sempre que os prestadores dos serviços requererem aos recursos federais.

Até o marco regulatório de 2007, a regulação dos serviços de saneamento básico no Brasil, quando era realizado, acontecia via a autorregulação, ou seja, as tarifas eram reajustadas pelo poder concedente e a fiscalização era realizada pelas próprias empresas. Poucos são os casos de regulação independente antes da lei 11.445. Uma das exceções à regra está a agência reguladora de Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo, a qual foi fundada, no final da década de noventa, em função de pressões populares após a concessão dos serviços de água e esgoto do município à iniciativa privada.

No que diz respeito à regulação, o projeto que tramitava na Câmara caminhava em desacordo com os objetivos do PL que estava no Senado, isso porque ele criava uma subordinação regulatória, pois submetia o reajuste das tarifas à aprovação dos conselhos populares. Esta situação geraria grande insegurança ao capital privado que já atuava no setor ou que poderia vir a ser investido, uma vez que dificilmente os conselhos reajustariam as tarifas em conformidade com o setor privado. Possivelmente, a remuneração destes investimentos, que tem caráter de longo prazo, estaria fortemente comprometida.

Projeto de Lei do Senado número 155 de 2005 foi à base da regulação que consta na lei 11.445. Esta proposta era um texto mais sucinto e tinha um caráter de manter os status quo estrutural do saneamento, já que uma alteração brusca poderia gerar certa instabilidade institucional e, por consequência, afastar ainda mais os investimentos no setor. Da proposta feita pelo Ministério das Cidades, foram inseridas na redação final, basicamente, questões

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referentes às informações que as prestadoras de serviços deveriam fornecer as entidades reguladoras, além da realização da publicidade dos relatórios e dos estudos que tratem da regulação ou da fiscalização dos serviços de saneamento. Também é oriundo da proposta da Câmara o acesso a informações para os usuários, como, por exemplo, manuais e relatórios referentes à prestação de serviços.

Para os formuladores do projeto do Senado, a importância da regulação era algo muito claro, uma vez que esta era fundamental para defender os principais objetivos dos grupos que a elaboraram: a manutenção da questão da titularidade e também a atração do capital privado para o setor. O trecho abaixo extraído de uma entrevista realizado com um parlamentar de forte atuação na elaboração desta lei mostra a clareza com a qual a regulação era entendida.

“Não há hipótese de se ter um serviço concedido que não seja regulado e como nos visávamos à parceria com a iniciativa privada no setor, obviamente que sempre se teve em mente a regulação.”

A questão da regulação encontrou certa resistência no governo federal, que não era

simpático às parcerias com a iniciativa privada na área. A ideia de regulação ainda era muito associada às privatizações e, consequentemente, ao governo anterior de Fernando Henrique Cardoso. O presidente Lula vetou alguns pontos desta lei, com destaque para o artigo 32 que afirmava que as tarifas deveriam ser fixadas pelas entidades reguladoras. O veto foi justificado alegando que o artigo era contestável, uma vez que não seria de competência do órgão regulador tratar dos reajustes.

Outro veto polêmico do presidente Lula diz respeito à utilização de créditos perante a COFINS (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social) e ao PIS/PASEP (Contribuição para o Programa de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público) oriundos de investimentos feitos em ativos permanentes de saneamento básico com recursos próprios dos titulares. A medida foi vetada, já que representava uma renuncia fiscal por parte da união, que poderia vir a comprometer sua política tributária. Entretanto, esta proposta ainda não foi esquecida e alguns grupos políticos estão tentando trazê-la de volta as discussões políticas.

Apesar da lei 11.445 representar um grande avanço para o setor, ela só foi possível devido ao fato de não ter se modificado a trajetória do setor de saneamento básico. Mesmo a questão da regulação que até então não era tratada no âmbito legal, não representou uma mudança de rumo no saneamento. Pelo contrário, o estabelecimento legal da regulação significa preservar os contratos já firmados e melhorar a interação entre concessionária, poder concedente e usuário. Assim, cria-se mais um mecanismos de auto-reforço para uma trajetória voltada à intensificação da participação do capital privado no setor, seja via concessão de serviços, capitalização em bolsa de valores ou fornecimento de equipamentos. A Figura 5 resume a dependência de trajetória do setor de saneamento básico no Brasil com seus eventos, mecanismos de auto-reforço e resultados.

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Figura 5. Trajetória do setor Fonte: Elaboração Própria 7. Discussões e conclusões

A teoria sobre “path dependence” mostra que os acontecimentos iniciais associados aos mecanismos de auto-reforço e eventos contingentes criam uma dependência de trajetória, que no contexto institucional, acaba por provocar certa rigidez, a qual leva a uma consolidação de um determinado status quo. A atividade de saneamento básico não possui uma trajetória distinta. Mesmo com as mudanças ocorridas no setor, verifica-se que há uma coexistência das estruturas antigas do setor com seus novos modelos. Estes são, sobretudo, provenientes da entrada de novos atores que ocorreram via interesses políticos ou econômicos, ou os dois simultaneamente.

Um exemplo destas estruturas que perduram no setor são as empresas remanescentes, tanto estaduais quanto municipais. Estas realizaram grandes investimentos, ao longo dos anos, nas localidades em que atuavam, sendo que estes recursos investidos configuraram-se em mecanismos de auto-reforço, pois são esperados retornos a estes investimentos, já que a maioria das empresas de saneamento se não são lucrativas, tem capacidade de ser. Este fato que intensificava a estrutura vigente, uma vez que abrir mão da prestação de serviços em uma determinada localidade significava perder parte dos resultados futuros destas empresas. Estas companhias também atuam, como dito anteriormente, como parte da base de apoio dos governos municipais ou estaduais, devido a sua capacidade de acomodar, através de cargos, os aliados e gerar capital político para os mandatários destas, pois as prestadoras de serviços de água e esgoto são um instrumento de grande valia na execução de políticas públicas com forte resposta eleitoral.

Perante tamanha complexidade, a aprovação da lei 11.445/07 só foi possível devido ao fato desta ter sido amplamente negociada na arena política e ter se buscado um consenso entre os diversos grupos de interesses, além de não ter a pretensão de ser ambicioso demais, buscando não romper com as estruturas vigentes. Ficou claro que o grupo que apoiou incisivamente o projeto de lei do Senado, o qual foi base da regulação da atividade, tinha duas grandes preocupações: (i) garantir segurança jurídica para as empresas que já atuavam no setor e (ii) criar condições para atrair investimentos privados no saneamento básico. Estas duas preocupações acabam por ser complementares, uma vez que o capital privado não irá

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investir no setor sem certa segurança jurídica. Diante deste cenário, a regulação se faz fundamental, pois aumenta a credibilidade do setor como um todo. Uma atividade bem regulada e de forma autônoma, possui, aos olhos do mercado, menor incerteza para investimentos que darão retornos de longo prazo.

Contudo, a lei por si só não é capaz de criar boas práticas de regulação. Em muitas localidades a regulação é inexistente, sobretudo, onde o prestador de serviços é uma empresa pública. Dificilmente, ao menos que haja interesses de mercado sobre as empresas, a regulação se faz presente, ainda que à legislação tenha entrado em vigor a alguns anos. Isto ocorre, pois a ação regulatória é vista, muitas vezes, como um limitante do poder do político, desestimulando a criação e a atuação de agências reguladoras em muitos municípios.

Entretanto, conforme Boas (2007) argumenta, as alterações contínuas realizadas no quadro institucional de forma incremental, tal qual a regulação proposta na lei 11.445/07, são ao mesmo tempo dependência de trajetória e caminho evolutivo. O marco regulatório não representou uma mudança na trajetória, mas sim um evento contingencial que atuou na trajetória evolutiva do setor e criou novos mecanismos de auto-reforço para a expansão dos investimentos privados no saneamento básico brasileiro.

Por fim, uma das limitações mais visível deste artigo é o fato deste ter se restringido ao enfoque regulatório, não abordando demais pontos desta lei, tais como os aspectos sociais Estes podem ser estudados, utilizando-se do mesmo referencial teórico aqui apresentado ou de outro que proporcione maior diálogo com os resultados empíricos encontrados. 8. Referências bibliográficas Arthur, Brian. (1994). Increasing Returns and Path Dependence in the Economy. Ann Arbor, Michigan: University of Michigan Press. Boas, T.C. (2007). Conceptualising Continuity And Change: The Composite-Standard Model Of Path Dependence. Journal Of Theoretical Political Science, 19, 33-54. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. (2001). [Coleção Saraiva de Legislação]. (21a ed.). São Paulo: Saraiva. Greener, I. (2005). State of the Art The Potential of Path Dependence in Introduction : historical institutionalism and path. Political Studies Association, 25 (1), 62-72. Hannan, M. T. & Freeman, J. (1984). Structural inertia and organizational change. American Sociological Review, 49, 149–64. IPEA (1995). Série Modernização do Setor. Brasília: Ministério do Planejamento e Orçamento. Lei n. 11.445, de 05 de janeiro de 2007 (2007). Estabelece diretrizes nacionais para o saneamento básico. Diário Oficial da União. Brasília, DF, n. 5, 8 jan. 2007. Seção 1, p. 3-7. Marquis, C. (2003). ‘The pressure of the past: network imprinting in intercorporate communities’. Administrative Science Quarterly, 48, 655–89. Martin, R. (2012). (Re)Placing Path Dependence: A Response to the Debate. International Journal of Urban and Regional Research, 36 (1), 179-192.

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