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cultura de 7 a 13 de julho de 2011 12 Rafaela Tasca do Rio de Janeiro (RJ) “QUAL É O SEU sonho?”. Se extraída de uma conversa qualquer poderia ser so- mente uma pergunta, mas nas mãos de um artista esta interrogação pode susci- tar outros questionamentos e modos de ver a vida, a cidade e a própria arte. Foi assim, com olhos voltados para as ruas, que o artista Rubens Pileggi Sá perguntou do sonho para aqueles cida- dãos que aparentemente perderam tu- do, até o direito de sonhar. Surgia Cro- mo Sapiens: mais um projeto do artis- ta relacionando arte, vida, estratégias de visibilidade e ativismo. O projeto te- ve início em 2009, a partir de 30 entre- vistas com andarilhos e moradores de rua que transitam pelo centro uminen- se, Lapa e Largo da Carioca. Nestas en- trevistas, registradas em vídeo e fotos, as perguntas giraram em torno de lem- branças e sonhos na vida. “Com esse material em mãos, desen- volvi o protótipo de um álbum de gu- rinhas intitulado Nowhereman, onde as páginas do álbum são ilustradas com detalhes de apartamentos e moradias, preços de imóveis e espaços culturais e de lazer do centro da cidade. E as gu- rinhas a serem coladas nessas páginas são as fotos das pessoas entrevistadas. Da experiência com esse álbum foram surgindo outros trabalhos e peças artís- ticas que, no conjunto, formam a expo- sição que dei o nome de Só sonha quem dorme”, explica o artista. De temática sobre a questão do aces- so à moradia nas grandes cidades, No- whereman assume o formato clássi- co de um álbum de gurinhas. Con- tém 27 páginas impressas com lugares, equipamentos urbanos e anúncios pu- blicitários de venda e aluguel de apar- tamentos do centro da cidade do Rio de Janeiro, a serem preenchidas com exatas 42 fotograas de moradores de rua. A cada retratado é dada a referên- cia de nome, idade, procedência, tem- po como morador, dia e local da entre- vista. Em alguns casos, são acrescenta- das às legendas frases retiradas das in- cursões lingúisticas que aparecem nas entrevistas e que auxiliam na constru- ção do universo poético, mítico e urba- no do projeto. É assim com a expressão-título da mostra Só sonha quem dorme, cunhada por Cícero Soares. Ou com a reexão de Luiz Carlos Marques da Silva, “No fun- do do poço, 3 mil metros abaixo, a gen- te não ‘veve’, a gente vegeta”. Ou ainda, com Clara Nunes Pereira dos Santos, a senhora da videoinstalação Olhos rou- bados que aparece na capa dos envelo- pes de Nowhereman. Ao descrever sua procedência, Clara aponta o dedo para o alto e diz que vem do “Estado do Céu” e declama “Esses olhos são roubados. É azul. É de uma mulher que trabalha ali. Por isso que eu não posso trabalhar.” “Invisíveis funcionais” Para o artista, o álbum tem a inten- ção de promover uma espécie de refor- ma urbana simbólica. “Oferecer um es- paço de visibilidade a ‘invisíveis funcio- nais’ que, por sua própria condição mi- serável, não contam nas estatísticas se- não como problema. Que não são vistos senão como lixo, incomodando, impe- dindo a passagem, sujando a cidade.”, escreve Pileggi Sá na apresentação de sua proposta. Desde seu lançamento, Nowhereman encenou discussões, críticas, apoios e leituras bastante sensíveis. Como o de- poimento dado pela artista Juliana Ka- se no blog de Cromo Sapiens. “Quando Rubens propõe a tarefa de colar as gu- rinhas, o espectador deve empregar um certo tempo para realizá-la e, conse- tes da competição mundial. Posto que o futebol é febre nacional, as gurinhas igualmente assim foram. A segunda é que a ousadia de Nowhe- reman sedimenta um trabalho de arte que opera na fusão de mercadoria e arte, com ênfase na distribuição de um obje- to artístico que evoca a participação ati- va do espectador, condição essencial pa- ra o projeto se completar. Deste modo, o artista cria, por meio de um impres- so industrial de reprodução e circulação massiva, uma estratégia de visibilidade que usa da noção de circuito e comparti- lhamento de informações para dar ma- terialidade e sentido a seu trabalho. Esta proposição artística de Pileggi Sá segue moldes adotados por outros artis- tas brasileiros. A exemplo de Cildo Mei- reles, artista referência nestas práticas, com trabalhos como Inserções em Cir- cuitos Ideológicos I – Projeto Coca-Co- la, exposto pela primeira vez na Mostra Information no Museu de Arte Moder- na de Nova Iorque, em 1970. A proposta de Cildo consistia em propor ao público a ação de imprimir mensagens nas gar- rafas retornáveis de Coca-Cola e a devo- lução ao fabricante. Na ocasião da expo- sição Information, Cildo adesivou a fra- se “Yankees, Go Home” em uma garrafa do refrigerante. Em outro projeto de Inserções em Circuitos Ideológicos II - Projeto Cédu- la (1970), Cildo utilizou a serigraa ou o carimbo de frases em cédulas de dinhei- ro como “Quem matou Herzog?” ou ins- truções de ação como “gravar informa- ções e opiniões criticas nas cédulas e devolvê-las à circulação”. Propostas de uma arte de vanguarda que se lançava a criar ruídos no campo ordinário da cir- culação das mercadorias; além de ques- tionar o lugar adequado para a exposi- ção de um trabalho artístico. Longe dos cânones mais tradicionais da obra de arte e de suas formas exposi- tivas, circunscritas aos espaços consenti- dos e consagrados dos museus e galerias, Pileggi Sá também articula ações artísti- cas em diversos espaços e suportes. E or- ganiza um aparato de distribuição para Nowhereman possível de ser adquirido em localidades da capital uminense ou solicitados por email, através de seu blog (veja o box). Muito além da esfera do colecionismo e do jogo interativo aberto à participação de todos, Nowhereman segue pelo tenso curto-circuito das fronteiras entre arte, vida e proposição política. É livro-objeto sagaz que ao expor os “cães sem plumas” da cidade adere arte ao mundo, sem cair na estetização da pobreza. olhares da rua ARTE O novo trabalho do artista Rubens Pileggi Sá traz moradores em situação de rua para dentro de um álbum de figurinhas quentemente, ler as sucintas informa- ções das legendas. É aí, na legenda, que para mim está o ponto fundamental do trabalho. Enquanto muitos artistas in- tentaram dar visibilidade à população de rua, Nowhereman resgata os nomes desses desconhecidos. Penso que o re- conhecimento dessas pessoas como in- divíduos, a sua singularidade, é mais ecaz que mantê-los apenas como uma massa indiferenciada.”, escreve Kase. Inserções ideológicas Embora utilize um formato tradicio- nal de colecionismo, a tática de Nowhe- reman atua em uma vertente de con- tra-informação, realizando representa- ções sociais às avessas dos ideários de heróis, celebridades e objetos venerá- veis do consumo, comumente utiliza- das nestes álbuns de gurinhas. Esta experiência de Nowhereman se relaciona a duas importantes situações brasileiras históricas. A primeira ab- sorve a forma utilizada por um fenô- meno editorial brasileiro recente, ocor- rido durante a Copa de 2010, quando o conglomerado multinacional Pani- ni lançou um álbum de gurinhas com os jogadores das seleções participan- “Oferecer um espaço de visibilidade a ‘invisíveis funcionais’ que, por sua própria condição miserável, não contam nas estatísticas senão como problema” “Muitos artistas intentaram dar visibilidade à população de rua, Nowhereman resgata os nomes desses desconhecidos” “Depois do homo sapiens vem o cromo sapiens. e Nowhereman surge no sentido de que essas pessoas retratadas no álbum continuam excluídas da globalização” Onde adquirir o álbum: No Rio de Janeiro Atelier DEZENOVE Travessa do Oriente, 16A – Santa Teresa Telefone: (21) 2232-6572 Site: www.estudiodezenove.carbonmade.com MUSEU DO MUNDO Rua Visconde de Pirajá, 111 – Ipanema Telefone: (21) 7207-0326 Outros Estados Blog: http://figurinhasnowhereman.blogspot.com Email: [email protected] Telefone: (21) 2135-6928 / (21) 7207-0326 PARA ENTENDER Em uma livre tradução dos nomes criados pelo projeto para os títulos, Nowhereman po- deria ser traduzido como “homem de nenhum lugar” ou “homem do aqui e agora”; Cromo Sapiens algo como “Fotos com Sabedoria” ou “Figura Inteligente” . “É que em um mundo onde tudo se trans- forma em imagem, depois do Homo Sapiens vem o Cromo Sapiens. E Nowhereman surge no sentido de que essas pessoas retratadas no álbum continuam excluídas da globalização” , pondera o artista sobre a criação dos títulos. Obra propõe reforma urbana simbólica, um espaço para os “invisíveis funcionais” Divulgação Divulgação

Olhares da Rua

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Matéria para o Brasil de Fato sobre Nowhereman, trabalho de arte de Rubens Pileggi Sá.

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Page 1: Olhares da Rua

culturade 7 a 13 de julho de 201112

Rafaela Tascado Rio de Janeiro (RJ)

“QUAL É O SEU sonho?”. Se extraída de uma conversa qualquer poderia ser so-mente uma pergunta, mas nas mãos de um artista esta interrogação pode susci-tar outros questionamentos e modos de ver a vida, a cidade e a própria arte.

Foi assim, com olhos voltados para as ruas, que o artista Rubens Pileggi Sá perguntou do sonho para aqueles cida-dãos que aparentemente perderam tu-do, até o direito de sonhar. Surgia Cro-mo Sapiens: mais um projeto do artis-ta relacionando arte, vida, estratégias de visibilidade e ativismo. O projeto te-ve início em 2009, a partir de 30 entre-vistas com andarilhos e moradores de rua que transitam pelo centro fl uminen-se, Lapa e Largo da Carioca. Nestas en-trevistas, registradas em vídeo e fotos, as perguntas giraram em torno de lem-branças e sonhos na vida.

“Com esse material em mãos, desen-volvi o protótipo de um álbum de fi gu-rinhas intitulado Nowhereman, onde as páginas do álbum são ilustradas com detalhes de apartamentos e moradias, preços de imóveis e espaços culturais e de lazer do centro da cidade. E as fi gu-rinhas a serem coladas nessas páginas são as fotos das pessoas entrevistadas. Da experiência com esse álbum foram surgindo outros trabalhos e peças artís-ticas que, no conjunto, formam a expo-sição que dei o nome de Só sonha quem dorme”, explica o artista.

De temática sobre a questão do aces-so à moradia nas grandes cidades, No-whereman assume o formato clássi-co de um álbum de fi gurinhas. Con-tém 27 páginas impressas com lugares, equipamentos urbanos e anúncios pu-blicitários de venda e aluguel de apar-tamentos do centro da cidade do Rio de Janeiro, a serem preenchidas com exatas 42 fotografi as de moradores de rua. A cada retratado é dada a referên-cia de nome, idade, procedência, tem-po como morador, dia e local da entre-vista. Em alguns casos, são acrescenta-das às legendas frases retiradas das in-cursões lingúisticas que aparecem nas entrevistas e que auxiliam na constru-ção do universo poético, mítico e urba-no do projeto.

É assim com a expressão-título da mostra Só sonha quem dorme, cunhada por Cícero Soares. Ou com a refl exão de Luiz Carlos Marques da Silva, “No fun-do do poço, 3 mil metros abaixo, a gen-te não ‘veve’, a gente vegeta”. Ou ainda, com Clara Nunes Pereira dos Santos, a senhora da videoinstalação Olhos rou-bados que aparece na capa dos envelo-pes de Nowhereman. Ao descrever sua procedência, Clara aponta o dedo para o alto e diz que vem do “Estado do Céu” e declama “Esses olhos são roubados. É azul. É de uma mulher que trabalha ali. Por isso que eu não posso trabalhar.”

“Invisíveis funcionais”Para o artista, o álbum tem a inten-

ção de promover uma espécie de refor-ma urbana simbólica. “Oferecer um es-paço de visibilidade a ‘invisíveis funcio-nais’ que, por sua própria condição mi-serável, não contam nas estatísticas se-não como problema. Que não são vistos senão como lixo, incomodando, impe-dindo a passagem, sujando a cidade.”, escreve Pileggi Sá na apresentação de sua proposta.

Desde seu lançamento, Nowhereman encenou discussões, críticas, apoios e leituras bastante sensíveis. Como o de-poimento dado pela artista Juliana Ka-se no blog de Cromo Sapiens. “Quando Rubens propõe a tarefa de colar as fi gu-rinhas, o espectador deve empregar um certo tempo para realizá-la e, conse-

tes da competição mundial. Posto queo futebol é febre nacional, as fi gurinhasigualmente assim foram.

A segunda é que a ousadia de Nowhe-reman sedimenta um trabalho de arte que opera na fusão de mercadoria e arte,com ênfase na distribuição de um obje-to artístico que evoca a participação ati-va do espectador, condição essencial pa-ra o projeto se completar. Deste modo, o artista cria, por meio de um impres-so industrial de reprodução e circulação massiva, uma estratégia de visibilidadeque usa da noção de circuito e comparti-lhamento de informações para dar ma-terialidade e sentido a seu trabalho.

Esta proposição artística de Pileggi Sásegue moldes adotados por outros artis-tas brasileiros. A exemplo de Cildo Mei-reles, artista referência nestas práticas,com trabalhos como Inserções em Cir-cuitos Ideológicos I – Projeto Coca-Co-la, exposto pela primeira vez na MostraInformation no Museu de Arte Moder-na de Nova Iorque, em 1970. A propostade Cildo consistia em propor ao públicoa ação de imprimir mensagens nas gar-rafas retornáveis de Coca-Cola e a devo-lução ao fabricante. Na ocasião da expo-sição Information, Cildo adesivou a fra-se “Yankees, Go Home” em uma garrafa do refrigerante.

Em outro projeto de Inserções em Circuitos Ideológicos II - Projeto Cédu-la (1970), Cildo utilizou a serigrafi a ou o carimbo de frases em cédulas de dinhei-ro como “Quem matou Herzog?” ou ins-truções de ação como “gravar informa-ções e opiniões criticas nas cédulas e devolvê-las à circulação”. Propostas deuma arte de vanguarda que se lançava a criar ruídos no campo ordinário da cir-culação das mercadorias; além de ques-tionar o lugar adequado para a exposi-ção de um trabalho artístico.

Longe dos cânones mais tradicionais da obra de arte e de suas formas exposi-tivas, circunscritas aos espaços consenti-dos e consagrados dos museus e galerias, Pileggi Sá também articula ações artísti-cas em diversos espaços e suportes. E or-ganiza um aparato de distribuição para Nowhereman possível de ser adquirido em localidades da capital fl uminense ou solicitados por email, através de seu blog (veja o box).

Muito além da esfera do colecionismo e do jogo interativo aberto à participação de todos, Nowhereman segue pelo tenso curto-circuito das fronteiras entre arte, vida e proposição política. É livro-objeto sagaz que ao expor os “cães sem plumas” da cidade adere arte ao mundo, sem cair na estetização da pobreza.

olhares da ruaARTE O novo trabalho do artista Rubens Pileggi Sá traz moradores em situação de rua para dentro de um álbum de fi gurinhas

quentemente, ler as sucintas informa-ções das legendas. É aí, na legenda, que para mim está o ponto fundamental do trabalho. Enquanto muitos artistas in-tentaram dar visibilidade à população de rua, Nowhereman resgata os nomes desses desconhecidos. Penso que o re-conhecimento dessas pessoas como in-divíduos, a sua singularidade, é mais efi caz que mantê-los apenas como uma massa indiferenciada.”, escreve Kase.

Inserções ideológicasEmbora utilize um formato tradicio-

nal de colecionismo, a tática de Nowhe-

reman atua em uma vertente de con-tra-informação, realizando representa-ções sociais às avessas dos ideários de heróis, celebridades e objetos venerá-veis do consumo, comumente utiliza-das nestes álbuns de fi gurinhas.

Esta experiência de Nowhereman se relaciona a duas importantes situações brasileiras históricas. A primeira ab-sorve a forma utilizada por um fenô-meno editorial brasileiro recente, ocor-rido durante a Copa de 2010, quando o conglomerado multinacional Pani-ni lançou um álbum de fi gurinhas com os jogadores das seleções participan-

“Oferecer um espaço de visibilidade a ‘invisíveis funcionais’ que, por sua própria condição miserável, não contam nas estatísticas senão como problema”

“Muitos artistas intentaram dar visibilidade à população de rua, Nowhereman resgata os nomes desses desconhecidos”

“Depois do homo sapiens vem o cromo sapiens. e Nowhereman surge no sentido de que essas pessoas retratadas no álbum continuam excluídas da globalização”

Onde adquirir o álbum:No Rio de Janeiro Atelier DEZENOVETravessa do Oriente, 16A – Santa Teresa Telefone: (21) 2232-6572Site: www.estudiodezenove.carbonmade.com

MUSEU DO MUNDORua Visconde de Pirajá, 111 – Ipanema Telefone: (21) 7207-0326

Outros EstadosBlog: http://fi gurinhasnowhereman.blogspot.com

Email: [email protected]

Telefone: (21) 2135-6928 / (21) 7207-0326

PARA ENTENDEREm uma livre tradução dos nomes criados

pelo projeto para os títulos, Nowhereman po-

deria ser traduzido como “homem de nenhum

lugar” ou “homem do aqui e agora”; Cromo

Sapiens algo como “Fotos com Sabedoria” ou

“Figura Inteligente”.

“É que em um mundo onde tudo se trans-

forma em imagem, depois do Homo Sapiens

vem o Cromo Sapiens. E Nowhereman surge

no sentido de que essas pessoas retratadas no

álbum continuam excluídas da globalização”,

pondera o artista sobre a criação dos títulos.

Obra propõe reforma urbana simbólica, um espaço para os “invisíveis funcionais”

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