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    Nota do Autor

    Neste livro esforcei-me por expressar os meus pensamentos esentimentos com a maior exactido possvel. Procurei faz-lo tam-bm quando se tratou de pessoas, lugares e acontecimentos, emboraisso seja por vezes mais difcil. Quando escrevo acerca da minhainfncia, evidente que no tenho maneira de recordar as pala-

    vras exactas das conversas. Mas tenho a experincia de toda umavida quanto forma como os meus pais falavam e agiam, comoeu falo e como interagi com as outras pessoas ao longo dos anos.Munido desse conhecimento, reconstru cenas e conversas que des-crevem com preciso a maneira como pensei, senti e procedi em

    momentos-chave.A memria imperfeita, mesmo para aqueles que sofrem

    da sndrome de Asperger, e pode muito bem haver passagensem que eu tenha misturado pessoas ou cronologias. No entanto,esta no uma histria com componentes susceptveis de seremalterados pelo tempo. Na maioria dos casos usei os nomes ver-dadeiros das pessoas, mas, quando no quis embaraar algum

    ou no me lembrei de um nome, usei pseudnimos. No caso depersonagens que surgem no primeiro livro de memrias do meuirmo Augusten Burroughs, Correr com Tesouras, usei os mesmospseudnimos que ele.

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    Espero que todas as pessoas que aparecem no meu livro se sin-tam bem com a forma como as tratei. Algumas podero no sesentir bem, mas espero que, pelo menos, sintam que eu fui justo.

    Todos os retratos que fao foram cuidadosamente ponderados etentei tratar as cenas mais duras com sensibilidade e compaixo.Acima de tudo, espero que este livro venha demonstrar de uma

    vez por todas que, por muito robticos que ns, os que sofremde Asperger, pareamos ser, sentimos de facto emoes profundas.

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    Prefcio

    por Augusten Burroughs

    O meu irmo mais velho e eu fomos criados por um casal em duas

    pocas do seu casamento, poder-se-ia dizer que somos filhos de paisdistintos. A me e o pai dele eram um jovem casal optimista com vintee poucos anos, no incio do casamento e a comear a construir uma vidanova em conjunto. Ele era um jovem professor, ela uma dona de casacom dotes artsticos. O meu irmo chamava-lhes pap e mam.

    Eu nasci oito anos mais tarde. Fui um acidente que ocorreudurante o naufrgio do casamento deles. Quando eu nasci, a doena

    mental da nossa me j se enraizara e o nosso pai era um alcolicoperigoso e inveterado. Os pais do meu irmo sentiam-se esperanadose entusiasmados com a perspectiva do seu futuro a dois. Os meus paisdesprezavam-se mutuamente e sentiam-se infelizes juntos.

    Mas o meu irmo e eu tnhamo-nos um ao outro.Ele modelou a minha jovem vida. Primeiro, ensinou-me a

    andar. Depois, armado com paus e cobras mortas, perseguiu-me

    e eu aprendi a correr.Eu amava-o e odiava-o, em igual medida.

    Tinha oito anos quando ele me abandonou. Com dezasseis, eleera um jovem gnio, indisciplinado e sem orientao, deriva no

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    mundo. Os nossos pais no tentaram impedi-lo de partir. Sabiamque no podiam dar-lhe o que quer que fosse de que ele precisava.Mas eu fiquei arrasado.

    Ele ausentava-se de casa durante semanas e depois aparecia derepente. E no chegava apenas com a roupa suja, trazia histriasacerca da sua vida l por fora. Histrias to chocantes e bizarras,to indescritveis e perigosas, que tinham de ser verdade. Almdisso, ele trazia como prova as cicatrizes, o nariz partido e a carteirarecheada.

    Quando ele regressava de uma das suas aventuras, a tenso lem casa evaporava-se. De sbito, todos estavam a rir. O que acon-teceu a seguir?, queramos ns saber. Entretinha-nos durante diascom histrias da sua vida fantstica e eu detestava sempre v-lopartir, deix-lo escapar-se de novo para o mundo.

    Era um contador de histrias nato e dotado. Mas, quando cres-ceu, tornou-se um homem de negcios e no um escritor. E issosempre me pareceu algo errado. Ele tinha xito, mas nenhum dosseus empregados ou clientes sabia ou acreditaria sequer nas hist-

    rias que aquele homem trazia consigo.No meu livro de memrias, Correr com Tesouras 1, dedico apenas

    um captulo ao meu irmo mais velho, porque o vi ainda com menorfrequncia durante os anos em que esses acontecimentos decorrem.No captulo Ele foi criado sem um diagnstico correcto, des-crevo alguns dos comportamentos fascinantes de um jovem a quemmais tarde viria a ser diagnosticada a sndrome de Asperger, uma

    forma moderada de autismo. Com grande surpresa minha, duranteuma digresso efectuada para promover o livro, apareceram pessoascom a sndrome de Asperger que fizeram questo de se apresentar.Correr com Tesourascontm (entre muitas indignidades) uma melouca, um psiquiatra que se veste de Pai Natal, leituras na sanita,uma mulher que confundi com um lobo e uma rvore de Natal querecusava desaparecer. E no entanto, infalivelmente, em cada sesso

    algum me abordava e dizia: Eu tenho a sndrome de Asperger,como o seu irmo. Obrigado por ter escrito acerca disso. s vezes,

    1Editora Bico de Pena, Lisboa, 2007.

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    havia pais que faziam perguntas sobre os seus filhos portadores deAsperger. Vendo-os atentos, senti-me tentado a dar-lhes conselhosclnicos, mas resisti.

    No haver livros adequados para estas pessoas?, perguntei-me.Admirado, descobri que existia muito pouca coisa sobre o assunto.Alguns trabalhos eruditos e alguns textos mais simples, emboraainda clnicos, que levavam uma pessoa a sentir que o melhor afazer por uma criana com Asperger era comprar-lhe um compu-tador central e no se preocupar em lhe ensinar boas maneiras mesa. Mas no havia nada que pudesse, nem de longe, descrevero meu irmo.

    Falei novamente dele num ensaio da minha coleco MagicalThinking. E surgiram mais pessoas. Comecei a acalentar a ideiade escrever um livro acerca dele. Seria fascinante, ele adoraria oprocesso e tudo o que eu teria de fazer era p-lo a falar e a teclarmuito, muito depressa. Podia manter o ttulo afectuoso do ensaio(Ass Burger) e acrescentar o subttulo Memrias do MeuIrmo. Embora me comprazesse a planear mentalmente a capa,

    to depressa no estaria livre para escrever o livro que lhe poriadentro.

    Em 2005, o nosso pai adoeceu de forma terminal e o meuirmo tornou-se agitado, confuso e completamente humano. Pelaprimeira vez na minha vida, vi-o chorar abertamente enquantoafagava a cabea do pai, sentado cabeceira do seu leito no hos-

    pital.Exteriormente, aquilo tinha todo o aspecto de um momento

    comovedor entre pai e filho. Mas eu nunca vira o meu irmo com-portar-se assim. As pessoas com Asperger no experimentam nemdemonstram sentimentos, muito menos a esse ponto. Eu nuncatinha visto uma exibio to desenfreada de pura emoo.

    Os meus sentimentos eram contraditrios. Por um lado, aquilo

    representava um avano. Por outro, dizer que existe uma histria dedoena mental na nossa famlia colocar as coisas moderadamente,por isso preocupava-me que no fosse tanto um avano mas simum colapso.

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    Aps a morte do nosso pai, o meu irmo, normalmente ani-mado e pronto para tudo, ficou depauperado e triste. Comeoua preocupar-se com a sade e considerou, qui pela primeira

    vez, a sua prpria mortalidade.Sem saber o que mais fazer, enviei-lhe um e-mail acerca damorte do nosso pai com a indicao Escreve sobre o assunto. Elerespondeu com uma pergunta. O que hei-de escrever? Expliquei--lhe que talvez isso libertasse alguns dos sentimentos de desnimoque o dominavam e indiquei-lhe a mais velha regra da escrita: nocontes, mostra.

    Alguns dias depois, ele enviou-me um ensaio acerca do nossopai, das visitas que lhe fizera ao hospital quando ele se encontravamoribundo e das memrias negras, na sua maioria que sehaviam erguido do passado. Estava assombrosamente sincero e ine-gavelmente bem escrito.

    Eu sabia que ele tinha uma histria para contar, pensei, mas deonde diabo que isto surgiu?

    Coloquei o ensaio no meu website e depressa se tornou na pea

    mais popular. Comeou a chegar tanto correio electrnico a respeitodele como a meu respeito, o que me encheu de satisfao mas tam-bm de humildade. Vai publicar mais trabalhos dele on-line? Eleescreveu mais alguma coisa? Como se sente agora o seu irmo?

    Portanto, em Maro de 2006, disse-lhe: Devias escrever as tuasmemrias. Falar da sndrome de Asperger, de crescer sem saber oque tinhas. Umas memrias em que contes todas as tuas histrias.

    Conta tudo.Cerca de cinco minutos depois enviou-me por e-mail um cap-

    tulo como amostra. Assim? era o ttulo do assunto do e-mail.Sim. Assim.Uma vez mais, o meu brilhante irmo encontrara uma maneira

    de canalizar a sua imparvel energia e talento de aspie. Quandoresolveu pesquisar a histria da nossa famlia e elaborar uma rvore

    genealgica, o documento acabou por atingir mais de duas mil pgi-nas. Assim, uma vez implantada na sua cabea a ideia de escreveras memrias, mergulhou nela com uma intensidade que mandariaa maior parte das pessoas direitinhas para um hospital psiquitrico.

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    Num brevssimo perodo de tempo tinha completado o manus-crito. Nem preciso dizer que o resultado me deixou cheio deorgulho. Naturalmente que brilhante; foi escrito pelo meu irmo

    mais velho. Mas, mesmo que no fosse uma criao desse homemdas cavernas grande, desajeitado, amigo de soltar palavres e deno se barbear que meu irmo, este um livro de memrias domais enternecedor, triste, verdadeiro e sentido que se pode encon-trar sem qualquer deteriorao ou influncia e totalmente ori-ginal.

    Aps trinta anos de silncio, o meu irmo novamente umcontador de histrias.

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    Prlogo

    Olha-me a direito, meu rapaz!Nem sei dizer-lhes quantas vezes ouvi esse refro estridente,

    queixoso. Comeou pela altura em que entrei para o primeiro ano.

    Ouvia-o de pais, familiares, professores, directores e de todo o tipode pessoas. Ouvi-o tantas vezes que comecei a esperar ouvi-lo.

    Por vezes era acentuado pela espetadela de uma rgua ou deum daqueles ponteiros com a extremidade de borracha que osprofessores usavam nesse tempo. Os professores diziam: Olhapara mim quando falo contigo! Eu contraa-me e continuava aolhar para o cho, o que s os enfurecia mais. Deitava um olhar

    de relance aos seus rostos hostis e sentia-me ainda mais contrado,mais desconfortvel e incapaz de formar palavras, e desviava rapi-damente o olhar.

    O meu pai ordenava: Olha para mim! O que ests tu a esconder? Nada.Se tivesse bebido, ele podia interpretar nada como uma res-

    posta evasiva e castigar-me. Quando entrei para a primria, o meupai comprava o seu vinho Gallo em garrafes de quase quatro litrose todas as noites antes de eu ir para a cama j dera um bom avanono garrafo. E depois continuava a beber pela noite fora.

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    Dizia-me: Olha para mim, e eu fitava a composio abstractaformada pelas garrafas de vinho vazias, alinhadas por detrs da cadeirae debaixo da mesa. Olhava para tudo menos para ele. Quando era

    pequeno, corria a esconder-me e s vezes ele perseguia-me bran-dindo o cinto. Umas vezes a minha me salvava-me, outras vezesno. Quando fiquei maior e mais forte e reuni uma temvel colecode facas (a pelos doze anos), ele percebeu que eu me estava a tornarperigoso e desistiu antes de ter um triste fim por causa do Olha--me a direito.

    Toda a gente pensava que compreendia o meu comportamento.Pensavam que era simples: eu no prestava.

    Ningum confia num homem que no olha a direito. Ficas com ar de criminoso. Ests a tramar alguma. Sei perfeitamente!A maior parte das vezes, no estava. No sabia por que ficavam

    to agitados. Nem sequer percebia o que queria dizer olhar alguma direito. E no entanto sentia-me envergonhado, porque as pessoasesperavam que eu o fizesse, e eu sabia disso e no fazia. Ento o que

    havia de errado comigo?Sociopata e psico eram dois dos mais comuns diagnsticos

    prticos para o meu olhar e expresso. Ouvia-os constantemente:J li coisas sobre pessoas como tu. No tm expresso porque notm sentimentos. Alguns dos mais famosos assassinos da Histriaeram sociopatas.

    Acabei por acreditar no que as pessoas diziam a meu respeito,

    porque eram muitas a dizer a mesma coisa, e magoou-me perce-ber que era deficiente. Tornei-me mais tmido e mais introvertido.Comecei a ler artigos sobre personalidades desviantes e a inter-rogar-me sobre se viria a dar para o torto. Quando crescessetransformar-me-ia num assassino em srie? Lera que eles so eva-sivos e no olham a direito.

    Ponderei incessantemente sobre o assunto. Eu no atacava as

    pessoas. No ateava incndios. No torturava animais. No sentiavontade de matar ningum. Por enquanto. Talvez isso viesse maistarde. Passei muito tempo a perguntar-me se acabaria na priso. Liartigos acerca de prises e decidi que as melhores eram as federais.

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    Se alguma vez fosse encarcerado, esperava que me calhasse umapriso federal de segurana mdia e no uma violenta priso estatalcomo Attica.

    Ia j avanado na adolescncia quando percebi que no eraum assassino ou pior ainda. Nessa altura, j sabia que no era poruma questo de manha ou de ambiguidade que no conseguiacruzar o olhar com o de outra pessoa e comeara a perguntar-mepor que que tantos adultos relacionavam esse comportamentocom manhas e ambiguidade. Por essa poca, tambm j tinhaencontrado pessoas manhosas e desprezveis que me olhavama direito,levando-me a considerar hipcritas aqueles que se quei-

    xavam de mim.Ainda hoje, ao escrever isto, acho o contacto visual perturbador.

    Quando era mais novo, se via alguma coisa interessante era capazde comear a observ-la e parava de falar. Agora, j adulto, nochego a interromper-me completamente, mas ainda posso fazeruma pausa se algo me desperta a ateno. por isso que, ao falarcom outra pessoa, em geral olho para qualquer coisa neutra o

    cho ou a distncia. Devido ao facto de sempre ter tido dificuldadeem falar enquanto observo coisas, aprender a conduzir um auto-mvel e falar ao mesmo tempo foi complicado, mas consegui.

    E agora sei que, para mim, perfeitamente natural no olharpara uma pessoa enquanto falo. Os portadores da sndrome deAsperger no se sentem vontade fazendo-o. Na realidade, nocompreendo muito bem por que que fitar o globo ocular de

    algum considerado normal.Foi um enorme alvio perceber finalmente a razo por que no

    olho as pessoas a direito. Se a conhecesse quando era mais novo,talvez tivesse sido poupado a muito sofrimento.

    H sessenta anos, Hans Asperger, psiquiatra austraco, escreveuacerca de crianas que eram inteligentes e possuam um vocabulrio

    acima da mdia, mas que exibiam um certo nmero de compor-tamentos comuns a pessoas com autismo, tais como importantesdeficincias na interaco social e uso da linguagem para comuni-cao. Em 1981, esse comportamento passou a ser designado por

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    sndrome de Asperger. Em 1984 foi acrescentada ao Diagnosticand Statistical Manual of Mental Disorders2, utilizado pelos profis-sionais de sade mental.

    A sndrome de Asperger existiu sempre entre ns, mas umacondio que no foi detectada at muito recentemente. Quando euera garoto, os profissionais de sade mental diagnosticavam incorrec-tamente a maior parte dos portadores de Asperger como sofrendo dedepresso, esquizofrenia e uma srie de outros distrbios.

    A sndrome de Asperger no uma coisa totalmente m. Podeconceder dons raros. Alguns portadores de Asperger possuemuma percepo natural verdadeiramente extraordinria sobre pro-blemas complexos. Uma criana com Asperger pode vir a ser umengenheiro ou um cientista brilhante. Algumas tm um diapasoperfeito e outras capacidades musicais extraordinrias. Muitas pos-suem capacidades verbais to excepcionais que h quem se refira aisto como a sndrome do pequeno professor. Mas no se iludam:a maioria dos garotos aspies3no vir a ser professor universitrioquando crescer. Crescer pode ser duro.

    A sndrome de Asperger existe como um continuum h pes-soas com um grau de sintomas to elevado que a sua capacidadede funcionarem sozinhas em sociedade fica gravemente reduzida.Outras, como eu, so afectadas de forma moderada, o que lhes per-mite desembaraarem-se, at certo ponto. Alguns portadores deAsperger tm mesmo obtido xito notvel encontrando trabalhosque realam as suas capacidades nicas.

    E a sndrome de Asperger tem vindo a revelar-se surpreenden-temente comum: um relatrio de Fevereiro de 2007 do Centers forDisease Control and Prevention diz que uma em cada 150 pessoastem Asperger ou qualquer outra perturbao do mbito do autismo.So quase dois milhes de pessoas s nos Estados Unidos.

    A sndrome de Asperger algo com que se nasce e no umacoisa que acontea ao longo da vida. Em mim, evidenciou-se muito

    2Manual de Diagnstico e Estatstico de Transtornos Mentais.(NT)

    3Termo carinhoso usado em vez de portadores de Asperger para designar osportadores da sndrome de Asperger. (NT)

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    cedo, mas, infelizmente, ningum sabia o que procurar. A nicacoisa que os meus pais sabiam que eu era diferente dos outros mi-dos. Mesmo quando comecei a dar os primeiros passos, um obser-

    vador pensaria que havia algo de errado comigo. Caminhava compasso mecnico, robtico. Movia-me desajeitadamente. A minhaexpresso facial era rgida e raramente sorria. Frequentemente, noreagia de todo s outras pessoas. Agia como se elas nem sequerse achassem presentes. Uma grande parte do tempo mantinha-mesozinho no meu pequeno mundo privado, afastado dos meus pares.Era capaz de ignorar por completo o que me rodeava, totalmenteabsorto numa pilha de Tinkertoys 4. Quando interagia com outrosgarotos, as interaces eram em geral desajeitadas. Raramente cru-zava o olhar com o de outrem.

    E tambm nunca estava quieto; balanava, dava voltas, salti-tava. Mas, apesar de toda essa movimentao, nunca consegui apa-nhar uma bola nem fazer nada de atltico. Na faculdade, o meu avfora uma estrela da pista de corridas, posicionando-se em segundolugar na equipa olmpica dos Estados Unidos. Mas eu no!

    Se eu fosse criana hoje, possvel que um observador atentotivesse detectado estas coisas e recomendasse uma avaliao, pou-pando-me assim ao pior das experincias que descrevo neste livro.Mas, como disse o meu irmo, fui criado sem um diagnstico.

    Foi uma forma de crescer solitria e dolorosa.A sndrome de Asperger no uma doena. uma maneira

    de ser. No tem cura, nem h necessidade disso. H, no entanto,

    necessidade de conhecimento e de adaptao por parte das crianasaspiese das suas famlias e amigos. Espero que os leitores espe-cialmente os que se esforam por crescer ou viver com a sndromede Asperger vejam que as minhas voltas e reviravoltas, bemcomo as opes pouco convencionais que fiz, conduziram a uma

    vida bastante boa e aprendam com a minha histria.Levei muito tempo a chegar at aqui, a descobrir quem sou.

    Acabaram-se os dias de me esconder pelos cantos ou enfiar debaixode uma pedra. Sinto orgulho em ser aspie.

    4Marca de brinquedos didcticos. (NT)