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OLIVIER CLÉMENT MEMÓRIAS DE ESPERANÇA

Olivier Clement - Memorias de Esperanca

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OLIVIER

CLÉMENT

MEMÓRIAS DE

ESPERANÇA

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MEMÓRIAS DE ESPERANÇA

A PESSOA

A noção de pessoa precisa ser redescoberta e entendida1. A pessoa

não é exatamente o que chamamos de indivíduo. O indivíduo é um fragmento

da humanidade, do cosmos. A pessoa é uma presença absolutamente única,

que engloba a humanidade, que lhe dá uma coloração particular: ela

transcende tudo – a história, o cosmos. Ela se afirma no que ela tem de único

porque, justamente, ela é o reflexo do Deus único. O que, no cristianismo,

poderia ser comparado ao “si mesmo” hindu, é a idéia de que o homem é

criado à imagem de Deus. Mas essa imagem é entendida como uma alteridade

e não uma identidade, com essa idéia do que o mais profundo é o aspecto

pessoal.

A PRESENÇA DO CRISTO

Quem é o Cristo?

No cristianismo, a conversão ou a experiência espiritual consiste

num encontro pessoal com Cristo, amigo próximo e ao mesmo tempo abertura

para o abismo da divindade, sem dúvida mais importante e mais decisiva do

que as próprias formulações da fé2. O Cristo quebra toda a física sobrenatural

do puro e do impuro, do sagrado e do profano, toda a hierarquia abarrotada de

exclusões que caracteriza as sociedades religiosas arcaicas para colocar em

primeiro plano a pessoa e a comunhão das pessoas. Pode se amar os próprios

inimigos quando, dentro de si, a morte e, primeiro, o ódio são substituídos pela

vida ressuscitada e que não se precisa mais de bode expiatório. É a única

ruptura possível, não somente no destino individual mas também na história,

das engrenagens inelutáveis da violência e da morte. Deus, em Cristo, se faz

próximo do homem para que o homem, por sua vez, faça se próximo dos seus

irmãos.

Qual o significado da “realeza” para Jesus? Jesus recusa ser rei, no

sentido dos reinados desse mundo. É preciso render a Deus o que é de Deus,

1 CLÉMENT, Olivier, Mémoires d’espérance, Paris, Desclée de Brouwer 2003, p.27s

2 Ibid., cap. 2

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quer dizer o homem imagem de Deus, o homem como segredo e como amor,

o homem ontologicamente amor. Jesus joga na história, como uma ferida e

como um fermento, a revelação da pessoa irredutível e da toda - humanidade

de cada pessoa. Ele pede que os seus transformem o poder em serviço.

A fé nas suas figuras

Como entender a noção de pecado original?3 Os padres gregos não

falam em pecado original mas em queda. Uma queda que introduziu a morte,

na vida cósmica e na condição humana. Portanto todo homem nasce num

mundo cercado pela morte. Ele não herda um pecado. Essa queda é

permanente porque somos constantemente confrontados ao mistério da morte,

por isso a ressurreição do Cristo é tão importante porque a morte vira uma

passagem e não o abismo do nada.

Por quê? Lá onde intervêm a idéia da liberdade do homem, o seu

desejo de se auto-deificar introduz uma ruptura da confiança original. Um limite

foi posto e não foi respeitado. A memória do paraíso, evocado também pelo

mito da idade de ouro, existe em quase todas as tradições humanas. Ele está

sempre presente, mas não conseguimos entrar nele de um modo estável. O

pressentimos sem cessar mas ele escapa sempre. Ele nos é devolvido em

Cristo.

Aparentemente estamos numa realidade cíclica. Na realidade

existem três modalidades da temporalidade: uma cíclica, cósmica. Uma outra

em tensão em direção para o que é último, que aparece com o judaísmo e a

Bíblia. Uma terceira segundo a qual o que é último já está presente

segredamente no Cristo e à qual temos acesso no instante.

Existe uma involução e, ao mesmo tempo, uma evolução, quer dizer

a presença de uma realidade escatológica que penetra nossa temporalidade.

Existe de um certo modo perda, esquecimento na medida onde existe uma

individuação em relação a um estado de quase fusão original. Essa

individuação é marcada em muito campos, sempre de modo negativo. Na

realidade essa individuação prepara o desabrochar da pessoa (antes da

pessoa existe o indivíduo). Através a experiência da alteridade e da comunhão,

3 Ibid. p 41 s.

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a pessoa vai abrir-se a Àquele que vem e não somente Àquele que veio. Existe

ao mesmo tempo queda e escatologia positiva. Sempre haverá um elemento

de morte e um elemento de ressurreição. O ritmo morte-ressurreição marca,

desde a vinda do Cristo, toda temporalidade.

A kénose de Deus: um poder de amor

O “poder” de Deus é tal que Ele pode ultrapassar a própria

transcendência para vir até nos e tomar-nos na Sua misericórdia e Sua alegria.

Contudo, a criação de seres pessoais exige uma espécie de retirada de Deus.

Na criação, existe a afirmação de uma plenitude e de uma retirada voluntária.

Se Deus cria seres livres, Ele lhes dá o espaço de sua liberdade. Portanto,

existe uma kénose (ou esvaziamento voluntário de Deus) poderíamos dizer no

próprio ato da criação. A onipotência de Deus não é poder exterior: é a

irradiação de paz, de alegria, de amor que só podemos receber se a

acolhemos. É onipotente porque terá a última palavra. É preciso quebrar a

espiral do mal pela confiança, a fé pessoal e transformadora que permite ao

poder de Deus de irradiar na história e no cosmos.

A ressurreição

O cristianismo anuncia no Ressuscitado a união sem separação nem

confusão da terra e do céu, a humanidade e do Deus vivo. A recepção da

ressurreição é inteiramente dependente da nossa liberdade. Temos em nos

essa semente de vida eterna e é preciso deixar lugar para que ela cresça: é

todo o trabalho da vida espiritual. Isso quer dizer que precisamos nos

interiorizar e exteriorizar em direção ao sacramento do irmão. Deus olha para

ver se existem, no meio dos homens, corações abertos e que Lhe permitem

entrar na história e agir. Ele não pode fazer nada se os homens não se abrirem

livremente para Ele.

Chave da metanóia

A paixão fundamental é a morte que, ao mesmo tempo, fascina o

homem e o enche de angústia4. A chave da metanóia, essa reviravolta de toda

nossa apreensão da realidade, é, portanto, a “memória da morte”, quando o

4 Ibid. p. 220

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homem percebendo nele mesmo esse abismo, descobre aí o Cristo que não

cessa de descer no inferno para nos ressuscitar. A paixão fundamental que é a

morte é mascarada pelas paixões. Duas paixões, a avidez e o orgulho, seriam

as “mães” de todas as outras porque expressam o dobramento do mundo ao

redor do ego. A vida “ressuscitada” metamorfoseia as paixões em virtudes.

Sucessão apostólica e comunhão dos santos

Existe a sucessão apostólica que diz respeito à sucessão da

mensagem atestado pelos bispos. Ela pode se manifestar também nos homens

que, independentemente do lugar que eles ocupam na hierarquia eclesial,

testemunham do que conhecem e vêem. Existem portanto duas formas de

sucessão apostólica: uma institucional e uma carismática, que é essa

capacidade que todo cristão tem de conseguir contemplar o Cristo

ressuscitado, de ver a Deus.

A comunhão dos santos é fundada no fato de que o Cristo é o

homem máximo, sendo portanto separado de ninguém nem de nada. Enquanto

somos indivíduos separados que se agarram aos nossos fragmentos de

humanidade, nossos fragmentos de cosmos, o Cristo, por sua vez, engloba a

humanidade inteira. Existe uma unidade ontológica de todos os homens em

Cristo. É isso que expressa a comunhão dos santos. Um santo é alguém que

se torna consciente dessa unidade em Cristo e do fato de que, nEle, não

somos mais separados.