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luis-taborda
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2. 1 Todos sabem que meus lbios nuncamurmuraram uma orao. No procurei nuncadissimular os meus pecados.Ignoro se existem realmente uma Justia e umaMisericrdia.Mas, se existem, nodesespero delas: fui sempre um homem sincero.2 Que vale mais?Fazer exame de conscincia sentado na taverna,ou prosternado na mesquita? No me interessa saber se tenho um Senhor e o destino que me reserva.3 Considera com indugncia os quebebem at embriaguez. Lembra-te de que tensdefeitos maiores. Se queres conhecer a paz e a serenidade, pensanos miserveis que padecemos piores infortnios, e... acabars por julgar-te feliz. 3. 4Que a tua sabedoria no seja uma humilhao para o teu prximo.Guarda domnio sobre ti mesmo e nunca teabandones clera. Se aspiras paz definitiva,sorri ao Destino que te fere; no firas ningum. 5Procura serfeliz ainda hoje, pois no sabes o que te reserva o dia de amanh.Toma uma urna cheia de vinho, senta-te ao claro do luar e monologa: "Talvezamanh a lua me procureem vo." 6Contenta-tecom poucos amigos. No busques prolongar asimpatia que algum te inspirou. Antes de apertares a mode um homem, considera se ela um dia no se erguera contra ti. 4. 7 O coro,chamado o Livro supremo,pode ser lido de vez em quando; mas ningum sedeleita na sua leitura,sempre que o l.Na taa cheia de vinho est gravado um texto, de to adorvel sabedoria, que aboca, falta dos olhos, l sempre com delcia. 8Este vasofoi, outrora, um amante, como eu, que sofria com aindiferena de uma mulher...A asa curva do vaso o brao que enlaava o pescoo da bem-amada.9 Como vil o corao que,incapaz de amar, no pode conhecer o delrio dapaixo!...Se no amas, s um indignodo sol que te ilumina da lua que te consola. 10Sinto quea minha mocidade refloresce.Desejo aquele vinho que me d calor e alegria... Quero vinho...Dizes que amargo?No importa.Tem o gosto da vida. 5. 11 Intil que te aflijas: nada podes acerca do teu destino.Se s prudente, aproveitao momento atual.O futuro? Sabes o que ele tereservar?... 12 Alm daTerra, alm do Infinito,eu procurava em vo o Cue o Inferno. Mas uma voz me disse: "O Cu e o Inferno esto emti mesmo." 13 Deixemo-nosde palavras vs.Levanta-te e d-meum pouco de vinho. Esta noite tua boca a maisbela rosa do mundo e basta para todos os meus desejos. D-me vinho. Que ele seja corado como as tuas faces, e o meu remorsoser leve como as tuas tranas. 6. 14 A brisa da primavera renova as rosas e, na sombra azul do jardim, acaricia o rosto de minha amada.A despeito da ventura quej gozei, sou to feliz hojeque no me lembro de ontem: esqueo o passado... to imperioso o prazer deste momento... 15Perdereiainda muito tempo, querendo encher o mar compedras?Desprezo igualmenteos libertinos e os devotos.Khyym, quem te poderassegurar que irs para o Cu ou para o Inferno?Que significam essas duaspalavras?... Conheces algum que j tenha visitadoesses pases misteriosos? 16Bebo, mas ignoro quem te fez, urna imensa! Sei apenas que podes contertrs medidas de vinho e que um dia a Morte te destruir.Mais tarde, indagarei por quem foste criada, por quefoste feliz, por que no s maisque poeira. 7. 17 Os diaspassam rpidoscomo as guas do rioou o vento do deserto.Dois h, em particular, que me so indiferentes: o que passou ontem,o que vir amanh.18Quando nasci?Quando morrerei? Nenhum homem pode evocar o dia do seu nascimentoou prever o de sua morte.Vem, minha deliciosa amada!Quero esquecer, na embriaguez, a nossa incurvelignorncia. 19 Khyym! Tecendo a tenda da sabedoria caste na fogueira da Dore ficaste reduzido a cinzas.O anjo Azrael cortou as cordas da tenda e a Mortevendeu-a por uma cano.20Khyym!No se aflijas por seres um grande pecador! intil a tua tristeza.Depois da morte vir oNada ou a Misericrdia. 8. 21 Nas igrejas, nas sinagogas e nasmesquitas buscam refgioos que temem o inferno.Mas o homem que conhece os segredos de Deus no cultiva no seu corao assementes do terror e da splica.22Na primavera, gosto de sentar-me orla de um campo florido.Bebo o vinho que meoferece uma linda rapariga eno cuido de minha salvao. Se tal pensamento me ocupasse, eu valeria menosque um pobre co.23 O imensomundo: um gro de areia perdido no espao.Toda a cinciados homens: palavras. Os povos, os animais e asflores dos sete climas: sombras.O resultado de tua meditao: nada. 9. 24Eu cambaleavade sono, e aSabedoria me disse: "Nunca,no sono, a rosa da felicidade floriu para ningum. Por que te abandonares a esse irmo da Morte?Bebe vinho?Tens muitossculos para dormir!" 25 Meu coraodiz: "Quero saber!Tenho um desejo ardente de cincia!Instrui-me, Khyym,tu que tanto estudaste!" Pronunciei a primeira letrado alfabeto, e o meu coraoretrucou: "Agora, sei. Um o primeiro algarismo do nmero que no acabanunca..."26 Ningum desvendaro que misterioso.Ningum poder ver o quese oculta debaixo das aparncias.Todas as nossas moradasso provisrias, salvo a ltima, no corao da terra. Bebe o vinho amigo!Basta de palavrassuprfluas. 10. 27Admito quetenhas resolvidoo enigma da criao. E o teu destino?...Convenho que tenhas despido a Verdadede todas as suas roupagens. E o teu destino?...Admito que tenhas vividocem anos felizes e ainda restem outros cem a viver. E o teu destino?...28 Convence-tebem do seguinte:Um dia tua alma abandonar o teu corpo e sers arrastado para trs do vu que flutua entre o universoe o incognoscvel. Enquanto esperas,cuida de ser feliz! No sabes de onde vens. No sabes para onde vais.29 Os sbiose os filsofos mais ilustres caminharam nas trevas da ignorncia.E eram os luzeirosdo seu tempo!...Em suma, que fizeram eles?Pronunciaram algumasfrases confusas e adormeceram fatigados. 11. 30 A vida um jogo montonoem que tens a certezade ganhar dois pontos:a dor e a morte.Feliz a criana que expirou no dia do nascimento!... Mais feliz ainda o que no veio a este mundo...31 Na feiraque atravessas, notentes encontrar nenhum amigo.No procures tampouco um abrigo seguro. Com alma serena, aceita a dor sem esperanade remdio, que no existe.Sorri ao infortnio e nopeas a ningum que tesorria: seria tempo perdido. 32 A rosagira descuidosados clculos dos sbios.Renuncia vaidade de contar os astros e medita antes sobre esta certeza:deves morrer, no sonhars mais e os vermes da terraou os ces vagabundos devoraro o teu cadver. 12. 33O criador do universo e das estrelas excedeu-se quando inventou a dor.Lbios vermelhos como rubi, cabeleiras embalsamadas,quantos sois neste mundo?...34 Nem sequerentrevejo o Cu...Meus olhos esto toldados de lgrimas. O fogo do Inferno umachama ligeira comparados labaredas que me devoram a alma. O Cu , para mim, um instante de paz.35Sono sobre a terra.Sono debaixo da terra.Sobre a terra, debaixoda terra, homens deitados.O nada em toda parte. Deserto do nada. Homens chegam.Outros partem.36Velho mundo que atravessa a galope o cavalo branco e negro do Dia e da Noite, s o palcio triste ondecem Djemchids sonharam coma glria e cem Bahrms sonharam com o amor,e todos despertaram chorando. 13. 37O ventodo Sul crestoua rosa a que o rouxinol entoava um hino. Devemos chorar o destino da rosa, ou o nosso?Quando a morte empalidecer nossas faces, outrasrosas desabrocharo... 38Esquece que ontemno lograste a recompensa que merecias.S feliz. No lamentes nada.No esperes nada. Tudo que deve acontecer est escrito no Livroque o vento da Eternidade folheia ao acaso.39 Sempre que ouo dissertarsobre os gozos reservados aos Eleitos, limito-mea dizer: "S tenho confianano vinho.Moeda sonante, e no promessas! O rudo dos tambores belo a grande distncia..." 14. 40 Bebe vinho! S ele te dar a mocidade, ele a vida eterna! Divina estao das rosas,do vinho e dos bons amigos!S feliz um instante,o instante fugitivoque a tua vida...41Bebe umpouco de vinhoporque dormirs muito tempodebaixo da terra, sem amigo.sem camarada, sem mulher. Confio-te um segredo: as tulipas murchas no reflorescem mais.42Baixinho,a argila segredou ao oleiro que a trabalhava: "No esqueasque j fui como tu...No me maltrates..." 43Oleiro,se tu s perspicaz,no mortifiques a argilaem que Ado foi modelado! Vejo no torno que movesa mo de Feridoun, o corao de Khorsrou...Que fizeste?... 15. 44A tuliparubra nasce no campo regado outrorapelo sangue de um rei.A violeta brota do sinalde beleza que palpitavano rosto de um adolescente. 45H mirades de sculos as aurorase os crepsculos sucedem. H sculos e sculosos astros fazema sua ronda de sempre.Pisa a terra com cautela...talvez o torro que vaisesmagar tenha sido o olhoterno de um belo adolescente.46 As razes do narciso, que balana beira do riacho, brotaram dos lbios de uma mulher. Pisa muito de levea relva macia! Quem sabe se ela nogerminou nas cinzas de rostos que eram belose brilhantes como tulipas vermelhas? 16. 47Vi ontem um oleiro sentado diante do seu torno,modelando as alas e os contornos de uma urna.O barro que ele amassavaera feito de crnios de sultes e de mos de mendigos. 48 O bem e o mal disputam a primazia neste mundo. O Cu no responsvelpela felicidade ou pela desventura que o destino nos reserva. No agradeas, pois, aoCu, no o acuses tambm. Ele indiferente s tuas alegrias, indiferente aos teus pesares.49Se enxertaste no teu corao a rosa do Amor,tua vida no foi intil,quer tenhas buscado ouvira voz de Deus, quer tenhas sorridente empunhadoa taa do prazer. 50 S prudente, viajante! Perigoso o caminhoque palmilhas! A espada do destino acerada. No colhas as amndoasdoces que encontrares:tm veneno. 17. 51 Um jardim, uma rapariga ondulosa,uma nfora de vinho,o meu desejo e minha amargura: eis o meuParaso e o meu Inferno!...Quem sabe, porm, o que o Cu, que o Inferno!?52 Tu, cujas faces tiverampor modelos as flores do campo, cujo rosto pareceo de um dolo chins,sabers acaso que o teu olhar de veludo fez o rei da Babilnia igual ao bispo do jogo de xadrezque foge da rainha?... 53A vida passa.Que resta de Bagdad e de Balk? O choque mais ligeiro fatal rosa completamentedesabrochada...Bebe vinho e contemplaa lua, evocando as civilizaesque ela j viu morrer 54 Escuta a voz daSabedoria, que te repete o dia inteiro: "A vida breve e tu no s como as plantas que reverdecemdepois de podadas." 18. 55Os professorese os sbios silenciososmorreram sem se entenderemno tocante ao ser e ao no-ser. Meus irmos! Ignorantes, continuemos a saborear o suco dos bons cachos e deixemosque os grandes homens se regalem com as passas.56Meu nascimento no trouxe nenhum proveito ao universo. MInha morte no lhe diminuir a imensidade,nem a beleza.Ningum pode explicar-me por que vim, por que me vou embora.57 No caminho do Amor nos perderemos e o Destinonos esmagar com o seu taco. rapariga, minha taa encantada, ergue-te e d-me de beber em teus lbios,antes que eu me transformeem poeira. 58S de nome conhecemosa felicidade... Nosso amigo mais velho o vinho novo. Acaricia com o olhare com a mo o nico bemque no falha: a urnacheia do sangue da vinha. 19. 59No busques a felicidadeA vida breve como um suspiro. As cinzas de Djemchid e de Kai-Kobao giram na poeira vermelha que tolda o ar.O universo uma miragem. A vida um sonho.60Senta-te e bebe, que sersmais feliz que Mahmud.Escuta as melodias queexalam as harpas dos amantes:so os verdadeiros salmos de David.No mergulhes no passado, no sondes o futuro. Que o teu pensamento no valm do momento presente:eis o segredo da paz!...61 Os homens estreitos e orgulhosos criaram diferenasentre alma e corpo. De mim, so afirmo uma coisa:o vinho destri os cuidadosque nos atormentam enos d a quietude perfeita.62Que enigma, os astrosque saltam no espao!Khyym, agarra-te firmemente corda da Sabedoria.Presta ateno vertigem,que faz cair, perto de ti,os teus companheiros! 20. 63 No temo a Morte: prefiro esse fato inelutvelao outro que me foi impostono dia do meu nascimento.Que a vida?Um bem que me confiaramsem me consultar e que restituirei com indiferena. 64A vida passa,qual rpida caravana! Toma as rdeas ao teucorcel, pra e surpreendeo minuto de alegria... Linda rapariga,por que te afliges?D-me um pouco de vinho.A noite j vai acabar...65 Ouo dizerque os amantes do vinho sero danados no Inferno. No h verdades, mas hmentiras evidentes.Se os que amam o vinhoe o amor vo para o infernoo Paraso deve estar vazio. 66 Estou velho,e a paixo que me inspirastearrastar-me- ao tmulo,pois no cesso de encher de vinho a grande taa. Minha paixo por ti tem razo contra mim mesmo... E o tempo desfolha a minha bela rosa... 21. 67Podes obcecar-me, miragemde uma outra ventura!Podeis modular vossasencantaes, vozes amorosas!Contemplo a que j escolhie s quero ouvir a voz que me seduziu.Algum me dir:"Deus te perdoar." Recuso o perdo que no pedi. 68 Um pouco de po, um pouco de gua fresca,a sombra de uma rvoree os teus olhos!Nenhum sulto mais feliz do que eu... Nenhum mendigo mais triste.... 69Por quetanta suavidade, tantaternura, no comeodo nosso amor? Por que tantos carinhos, tantas delcias, depois?E...por que, hoje, o teu nico prazer dilaceraro meu corao? Por qu? 22. 70 Vinho!Eis o remdio de que carece o meu corao doente! Vinho com perfumealmiscarado! Vinho cor de rosa! D-me vinho para apagaro incndio da minha tristeza!Vinho e o teu alade de cordas de seda, minha bem-amada! 71 Falas-me de um Criador...Pois ele s formouas criaturaspara destru-las?...Por que so feias? Por que so belas? A quem cabe a responsabilidade?No compreendo nada. 72Todos os homens pretendemcaminhar na estrada do Conhecimento.Essa estrada, uns aprocuram, outros afirmam t-la encontrado. Um dia, porm, uma vozproclamar: "No h caminho, nem atalho!" 23. 73Oferece s luzes da aurora o vinho de tua taa,semelhante tulipa primaveril! Dedica ao sorriso de umadolescente o vinho de tuataa, que vermelhocomo a tua boca!Bebe e esquece que opunho da dor breve tederribar. 74 Vinho! Vinho em torrentes! Que ele palpitenas minhas veias!Que ele borbulhena minha cabea!Taas!...Silncio!Tudo mentira...Taas... Depressa!Envelheci muito...75Um tal odor de vinho emanar do meu tmulo, queembriagar os viandantes. Uma serenidade talpairar sobre a minhasepultura, que os amantes no podero afastar-se dela. 24. 76 No turbilhoda vida s sofelizes os homens que,presumindo saber tudo,no buscam instruir-se.Inclinei-me na perscrutao de todos os segredos do Universo,e voltei minha solido, invejando os cegosque encontrei pelo caminho.77Dizem-me: "No bebas mais,Khyym!" E eu respondo:"Quandobebo, ouo o que dizem as rosas, tulipase os jasmins. Ouo mesmoo que no me podem dizer a minha bem-amada!" 78Em quepensas, amigo meu?Em teus antepassados?So o p no p.Pensas nas virtudes que tiveram?Deixa-me sorrir...Toma esta urna e bebamos,escutando sem inquietao ogrande silncio do Universo. 25. 79Amigo: no faas projeto algum para amanh. Sabes acaso se podersconcluir a fraseque vais comear?Amanh, estaremos talvez muito longe destahospedaria, como os que jse foram h sete mil anos.80 gladiador de coraes,toma uma urna e uma taa! Sentemos-nos beira da corrente cristalina.Esbelto adolescente de semblante luminoso, eu te contemplo e imaginoa urna e a taaque sers mais tarde!...81 H muitotempo a minha mocidade jaz entre as coisas mortas.Primavera da minha vida,ests hoje onde esto as primaveras que passaram. Mocidade minha! passastesem que eu me apercebesse! Partiste, como aos poucos se vo os melhores dias da primavera. 26. 82 Delicia-te, meu irmo, com todos os perfumes, todasas cores, todas as msicas.Envolve de carciastodas as mulheres.Lembra-te de que a vida fugaz e que brevevoltar ao p.83 loucuraaspirares paz neste mundo. Loucura creres numrepouso eterno: - depois de tua morte, teu sono serbreve e renascers num tufode ervas, que ser pisado, ounuma flor que o sol crestar.84 Pergunto a mim mesmo o que em verdade possuo. Considero o que subsistir de mim depoisde minha morte. Nossa vida breve como um incndio. Chama, que um leve sopro apaga; cinzas, que o ventodispersa: eis a existncia de um homem.85Convico e dvida, erro e verdade -so palavras to vazias como uma bolha de ar. Irisada ou opaca, essabolha a imagem de tua vida. 27. 86Mais vale uma urna de vinhoque o poder, a glria e as riquezas. Respeito o amante que geme de felicidade; detesto o hipcrita que murmura oraes. 87Escuta um grande segredo:quando a primeira aurora iluminou o mundo, Ado j era uma criatura dolorosa,que pedia a noite, que ansiava pela morte. 88 A Lua do Ramazamapareceu.Amanh o sol banhar de luz uma cidade silenciosa.E os vinhos dormiro nas suas urnas e as raparigas sombra dos bosques. 89 No pedia vida a ningum. Esforo-me por acolhersem espanto e sem cleratudo o que a vida me oferece. Partirei sem indagaro motivo da minha misteriosaestada neste mundo. 28. 90 Colhe todos os frutos da vida.Busca todas as alegrias eescolhe as taas maiores.No creias que Deus faaa conta dos teus vcios ou das tuas virtudes. No deixes escapar o que te pode dar felicidade. 91No me preocupa saberonde poderei comprar o manto da Mentira e do Ardil.Mas ando sempre procurado bom vinho. Meus cabelos esto brancos.Tenho setenta anos de idade.Agarro hoje o momento da felicidade, pois, amanh, talvez no me restem foras. 92 Que feitode todosos nossos amigos?Ser que a morte os derribou e pisou? Que feitodos nossos amigos?Ouo ainda suas cantigasna taverna... Morreram?Esto embriagados? 29. 93 Quando eu no viver mais, no haver mais rosas, nemciprestes, nem lbios vermelhos,nem vinhos perfumados.No haver mais auroras, nem crepsculos, nemalegrias, nem penas. O universo no existirmais, pois tudo existe emfuno do meu pensamento.94Eis a verdade nica: - somosos pees da misteriosa partida de xadrez, jogadapor Deus, que nos desloca,nos pra, nos pe mais adiante, e depois nos recolheum a um caixa do Nada.95A abbada celeste parece uma taa emborcada, debaixo da qual se agitamem vo os sbios.Que o teu amor bem-amada seja igual ao da urna pela taa. Olha bem: lbio colado a lbio, elas se do o prprio sangue. 30. 96Os sbios no te ensinaramcoisa alguma, mas a carciados longos clios de uma mulher poder revelar-te a felicidade. No esqueas que os teus dias esto contados e que sers em brevea presa da terra. Compra vinho e, recolhidoao teu canto, busca nele o consolo. 97O vinhodar-te- o calor que no possuis. Libertar-te-s das nvoas do passadoe das brumas do futuro. Inundar-te- de luz,livrando-te dos grilhesde prisioneiro.98 Outrora,quando eu freqentava as mesquitas, no fazia oraes, mas voltava casa rico de esperanas. Ainda hoje, gosto de sentar-me nas mesquitas. Nelas, a sombra propcia ao sono. 31. 99Na terramulticor, caminha um mortal, que no muulmano, nem infiel, no rico, nem pobre. Esse homem no veneraDeus, nem acata as leis;no acredita na verdade,nunca afirma coisa alguma... Na terra sarapintada,quem esse homem intrpido e triste?... 100Antes quepossas afagarum rosto macio como rosa,quantos espinhos tens queretirar de tua prpria carne!Olha este pente!Era um pedao de madeira.Quando o cortaram,que suplcios sofreu!Mas depois, mergulhounuma cabeleira profunda... 101Quando abrisa da manh entreabre as rosas e lhes segreda que as violetas j ostentam as suas vestes,s digno da vida o que contempla ao seu lado, adormecida, uma esbeltarapariga, e toma da taae a esvazia,e depois a atira ao cho. 32. 102Queres saber o que te acontecer amanh?... Erro!S confiante, senoo infortnio no deixar de justificaras tuas apreenses.No te apegues a nada, no interrogues nem os livros, nem as pessoas: o nossodestino insondvel. 103Um dia, numa taverna, pedi a um velho notciasdos que partiram. e ele me respondeu:"No voltaro.Eis tudo o que sei. Bebe vinho!"104 Olha!Escuta!Uma rosa treme ao sopro da brisa.E um rouxinol lhe entoa um canto apaixonado.Uma nuvem parou.Bebamos vinho. Esqueamos que a brisadesfolhou a rosa, e levar ocanto do rouxinol e a nuvemque nos d neste momento uma sombra to preciosa. 33. 105A abbadaceleste sob a qualvivemos comparvel a uma lanterna mgica,de que o sol a lmpada.E ns somos as figurinhasque se movem. 106 Uma rosa dizia:"Sou a maravilha do universo.Ser possvel que umperfumista tenha coragemde fazer-me sofrer?" Um rouxinol cantou:"Um dia de felicidadeprepara um ano de lgrimas."107 Logo noite,ou amanh, no existirs mais. tempo de pedires um vinho cor de rosa. Louco!Cuidas por acaso que s umtesouro e que os ladres jpremeditam violar o teusepulcroe roubar o teu cadver? 34. 108Sulto,o teu destino glorioso estava escritonas constelaes onde brilhao nome de Khosrou!Desde o comeo dos tempos, o teu cavalo de ferradurasde ouro galopava nos astros.Quando passas,um turbilho de centelhas te oculta de nossas vistas.109 O amor que no devasta no amor.Um tio espalhaacaso o mesmo calor que uma fogueira? Noite e dia, durante a vida inteira, o verdadeiroamante se consome na dor e no prazer. 110Podes sondara noite que nos cerca.Podes afundarpelo mistrio adentro. Em vo! Ado e Eva!Como deve ter sido amargoo vosso primeiro beijo, para que nos gersseis to desesperados!... 35. 111 As floresdo cu deixam cair as suas ptalas de ouro, e no sei por que o meu jardim ainda no est todo atapetado. Como o cu espalha as flores sobre a terra,eu encho a minha taade um vinho cor de rosa!... 112Bebo o vinho como a raizdo salgueiro bebe a gua da corrente.Deus s Deus, s Deus sabe tudo - dizes.Pois bem: quando ele me criou, sabia que eubeberia vinho. Se metornasse abstmio, a cincia de Deus estaria errada. 113 S o vinho te libertar decuidados, s ele te impedirde ficar hesitante entre as setenta e duas seitas. No abandones nunca o mgico que temo condo de conduzir-te aodoce pas do esquecimento. 36. 114Todas asmanhs, o orvalhopesa sobre as tulipas, osjacintos e as violetas, atque o sol venha alivi-los desse belo fardo.Todas as manhs, sinto ocorao mais pesado no meu peito, mas logo o teu olhar dissipa a minha tristeza. 115Se queres gozar a solidomagnifica das estrelas e dasflores, rompe com todos os homens, desliga-te de todas as mulheres.No busques a companhia de ningum. No te inclines sobre dor alguma. No participesde alegria alheia.116 O vinho tem a cor das rosas.O vinho no talvezo sangue das vinhas, mas dos rosais.Esta taa talvez no sejade cristal, mas do prprio azul do cu coagulado. A noite talveza plpebra do dia. 37. 117 O vinho proporciona aos sbios uma embriaguezsemelhante dos Eleitos;d-nos a mocidade,restitui-nos o que perdramos,pe ao nosso alcance tudo quanto desejamos.118 Fecha o teu Coro. Pensa livrementee livremente encarao Cu e a Terra.Ao pobre que passa,d a metade do que possuis.Perdoa a todos os culpados. No entristeas ningum. E esconde-te para sorrir...119Como ohomem fracoe o destino inelutvel!Fazemos juramentos que no cumprimos e nossaprpria humilhao nos indiferente. Eu mesmo procedo freqentemente como um desassisado. Mas tenho uma escusa: estou embriagado de amor. 38. 120 Homem, seeste mundo uma miragem, por que te desespera,por que pensas sem trguasna tua miservel condio? Abandona tua alma fantasia das horas.Teu destino est escrito. Nenhuma emenda adiantar. 121Aurora! Felicidade e pureza!Um imenso rubi cintila em cada taa. Toma estes doisramos de sndalo. Transforma o maior numa ctara e beija o outro, paraque o seu perfumete embalsame. 122Cansadode interrogarem vo os homens e os livros, interroguei a taa.Colei os meus lbios aosseus lbios e murmurei: "Para onde irei, depois de morto?"E a taa me respondeu: "Bebe na minha boca. Bebe longamente.No volvers jamais a este mundo." 39. 123 Se bebes um bom vinho, Khyym, s feliz.Se contemplas a tuafresca namorada, s feliz...Se sonhas que no existes mais, s feliz,pois a morte... o nada. 124Atravessavaeu um dia a oficina de um oleiroe havia duas mil urnasque falavam baixinho.De repente, uma delasgritou: "Silncio! Permiti que esse homem evoque os oleiros e os compradores de urnas que j fomos..."125 Dizes queo vinho o blsamo nico?Traze-me todo o vinhodo universo! Meu corao tem tantas feridas!...Todo o vinho do universo,e que meu coraoconserve as suas mgoas! 40. 126 uma calma delicada,a do vinho! Oleiro, para esta alma to fina, fazei urnas de paredes macias. Cinzeladores de taas,arredondai-as com amorpara que o vinho se sinta docemente acariciadona sua alma voluptuosa. 127Ignaro, que cuidas ser sbio,vejo-te sufocado entre o infinito do passado e o infinito do futuro. Bem quiseras pr um limite entre esses infinitose parar...Vai antes sentar-te sombra de uma rvore,perto de uma nfora de vinho,que esquecers a tuaimpotncia.128Contenta-te em saber que tudo mistrio: a criao do mundo e a tua, o destinodo mundo e o teu. Sorri a esses mistrioscomo a um perigoque desprezasses. No cuides que sabers alguma coisa mais quandotiveres transposto a porta da Morte.Paz ao homemno negro silncio do Alm! 41. 129 No meio do campo verde, a sombra desta rvoreparece uma ilha.Viandante, fica onde ests!Entre o caminho que segues e esta sombra que baloialentamente h talvez um abismo intransponvel. 130Que devo fazer hoje?Irei taverna? Irei sentar-me num jardim,ou passarei o dia curvado sobre um livro?Um pssaro voa. Aonde ir?Perdi-o j de vista. embriaguez de um pssarono azul morno do cu! melancolia de umhomem na sombra fresca de uma mesquita!... 131 Um pouco mais de vinho, minha amada. Tuas faces no tm ainda o brilho das rosas. Um pouco mais de tristeza,Khyym!...Tua amada vai olhar-te... vai sorrir... 42. 132Nosso universo um caminho de rosas.Nossos visitantesso as borboletas. Nossos msicos so os rouxinis. Quando no h mais rosas, nem folhas, as estrelas so as minhas rosas e a tua cabeleira a minha floresta.133Servidores, no mistertrazerder as lmpadas, queos meus convivas, extenuados, adormeceram. Vejo ainda claro paranotar-lhes a palidez. Hirtos e frios, assim seroeles na noite do tmulo. No mister trazerdesas lmpadas, servidores: os mortos no despertam. 134 Quando cambaleares ao peso da dor, quando os teus no tiverem mais lgrimas, pensa nos campos de verduraque brilham depois das chuvas. Quando o esplendor do diate exasperar, quando desejaresque uma noite eterna desa sobre o mundo,pensa no despertar de uma criana. 43. 135Dissimulo as minhas tristezas,como os pssaros feridos se encondem para morrer.D-me vinho!Escuta os meus gracejos. Quero vinho e rosase canto ao som da ctara,a tua indiferena pelaminha dor, bem-amada! 136 Senhor!Armaste mil ciladas invisveis no caminho que seguimos,e disseste: "Desgraadoo que no as evitar." Tu vs tudo. Tu sabes tudo.Nada acontece sem a tua permisso. Seremos, pois,responsveis por nossospecados? Fars um crimeda minha revolta?137 Tive mestres eminentes.Alegrei-me com os meus progressos e triunfos.Hoje, evocando o sbioque era, comparo-me naquele tempo gua que toma a forma do vaso e fumaaque o vento dissipa. 44. 138 Para o sbio, a tristeza e a alegria, o bem e o mal valem a mesma coisa. Para o sbio, tudo que comeou deve acabar. V, pois, se convm ficares alegre com a felicidadeque chega ou lamentares a desgraa que no esperavas. 139 Dervixe, despe-te dessasvestes coloridas de que tanto te orgulhas e que no tinhas ao nasceres.Enverga o manto da pobreza. Os viandantes no tecumprimentaro mais, mas todos os serafinsdo cu cantaro em teu peito.140 Bbado ou sedento,s quero dormir.Renunciei saber o que o bem, o que o mal. Para mim, o prazer e a dor so parecidos. Quando me chega uma felicidade, dou-lhe lugarmodesto, porque sei que umadesgraa vem no seu encalo. 45. 141No possvel incendiar o mar, nem convencer o homem de que a ventura frgil E o homem sabe que o mais leve choque fatal urna cheia e no causa dano urna vazia...142Olha em torno de ti. No vers seno aflies,angstias e desesperos. Morreram os teus melhores amigos.A tristeza a tuacompanheira nica.Ergue, porm, a cabea,abre as mos e agarra o quedesejas e podes atingir.O passado um cadverque deves enterrar. 143 Vejo um cavalheiroque se afasta na bruma da tarde.Ir ele atravessar florestas,ou plancies ridas? Aonde vai? No sei.Amanh estarei deitadosobre a terraou debaixo dela? No sei. 46. 144S vsas aparncias das coisas e dos seres. Sabes que ignorante, masno queres renunciar ao amor. Lembra-te de que Deus fez o amor como fezcertas plantas venenosas.145 Homem miservel, nunca sabers coisa alguma. No elucidars um sdos mistrios que te cercam. Posto que as religies te prometam o Paraso, cuida de criar um neste mundo,que o outro duvidoso.146 Lmpadas que se apagam,esperanasque se acendem: Aurora. Lmpadas que se acendem,esperanas que se apagam: Noite.147 Todos os reinos por umataa de vinho precioso. Todos os livros e toda a cincia dos homens por um perfume suave de vinho!Todos os hinos de amorpela cano do vinho que corre! Toda a glria de Feridounpelos reflexos do vinhona urna! 47. 148 Recebi o golpe que esperava.Abandonou-me a bem-amada.Quando eu a possua, era-me to fcil desprezar o amor e exaltar todasas renncias!... Junto de tua amada, Khyym, como estavas s!Sabes? Ela se foi para que tu possas refugiar-te nela... 149 Senhor!Despedaaste a minha alegria!Senhor, ergueste uma muralha entre o coraoda minha amada e o meu! Minha bela colheita,tu a destruste...Vou morrer...Tu cambaleias!...embriagado.150Silncio, dor da minha alma!Deixa-me procurar um remdio. preciso que eu viva. Os mortos no tm memria. E eu quero revera minha bem-amada...151 Ctaras, perfumes e taas,lbios, cabeleiras e olhos alongados - brinquedos que o tempo destri, brinquedos!Austeridade, solido e labor,meditao, splicas e renncias - cinzas que o tempo espalha,cinzas! 48. 152 A aurora encheu de rosas a taa do Cu.No ar de cristal ecoa o cantodo ltimo rouxinol.O perfume do vinho mais suave... delcia!... E dizer-se que em momentos tais h insensatos que sonham com a glria e cuidamde honrarias!Tua cabeleira, minhabem-amada, macia como a seda.153 Noite. Silncio. Imveisas folhas das rvores, imvel o meu pensamento. Uma rosa, ao meu lado, deixou cair a primeira ptala... Onde ests, tu que meofereceste a taa e por quemainda suspiro?!Certo, uma rosa nose desfolha perto daquelea quem tu, neste momento, sacias a sede: mas sentes certamente a faltado prazer amargo que sei proporcionar-tee que faz delirar. 49. 154Se soubessescomo me interessampouco os quatro elementos da natureza e as cinco faculdades do homem!... Dizes que certos filsofosgregos podiam propor aos seus auditores cem enigmas?Tudo isso me indiferente. Traze-me um pouco de vinho,e dedilha a ctara para queas suas modulaes mesugiram a brisa, que passa ligeira como ns todos!... 155 Quando a sombra da Morte se alongar sobre mim, quandoo feixe dos meus dias estiver atado, eu vos chamarei, meus amigos, e vs me transportareis para o meu tmulo.Tornado em p, fareis uma urna com as minhas cinzas ea enchereis de vinho. Talvez, ento, assistais ao milagre da minha ressureio. 50. 156Senhor, Senhor,responde-nos! Deste-nos olhos e permitiste que a beleza das tuascriaturas nos deslumbrasse!... Deste-nos a faculdade de sermos felizes e queres que renunciemos ao gozodos bens deste mundo!Impossvel!To impossvel como viraruma taa sem derramar o vinho que nela se contm! 157Toma a resoluode no mais contemplar o cu.Cerca-te de belas raparigase deixa que elas te acariciem. Hesitas ainda?Tens ainda a tentao de orar a Deus?Antes de ti, outros homens fizeram splicas ardentes. certo que eles jpartiram deste mundo, mas tu ignoras se Deus as escutou. 158Mais uma aurora! Como todas as manhs, descubro hoje o esplendordo mundo e me aflijo por no poder render graasao Criador dele...Mas, h tantas rosas, que me consolo, e tantos lbiosque se oferecem aos meus!... Deixa tua ctara, minha bem-amada:os pssaros esto cantando... 51. 159Aprendi muito e esqueci muito, voluntariamente.Na minha memria, cada coisa estava no seu lugar. Por exemplo: o que estava direita no podia passarpara a esquerda.S conheci a paz no diaem que rejeitei tudo comdesprezo: compreendera afinal que impossvelafirmar ou negar.160Visto que anossa sorte neste mundo sofrer e depois morrer,devemos desejar que o nosso corpo miservelvolte depressa terra?"E nossa alma?" - perguntais. "Deus a espera para julg-lasegundo seus mritos?..." Dar-vos-ei a resposta quando tiver notcias dealgum de volta do outro mundo. 52. 161"Deus grande!"Este grito do moueddinparece uma imensa queixa. Cinco vezes por dia aTerra geme inclinada para oseu Criador indiferente.Olha o riacho que brilhano teu jardim.Segue o meu exemplo,cuida que vs o Kaouthar e que ests no Paraso. Vai buscar tua amiga,fresca como uma rosa. 162s infeliz?No penses em tua dor, e no sofrers. Se o teu sofrimento muito violento, lembra-te de quetodos os homens tm sofrido inutilmente desde a criao do mundo.Escolhe uma mulher deseios de neve, mas...cautela!no ames essa mulher!...E que ela tambmseja incapaz de amar-te.