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OMestreEMargarita-iMac4(PDF2).indd 3 12/9/14 5:20 PM · conhaque, petiscos, danças, Johann Strauss a dirigir a orquestra que toca as valsas, uma banda que toca jazz. O elemento sobrenatural

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FICHA TÉCNICA

Título original: Máster i MargaritaAutor: Mikhaíl BulgákovTradução © Editorial Presença, Lisboa, 2015Tradução do russo e notas: Nina Guerra e Filipe GuerraComposição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.1.a edição, Lisboa, Janeiro, 2015Depósito legal n.o 384 345/14

Reservados todos os direitosdesta edição à

EDITORIAL PRESENÇAEstrada das Palmeiras, 59Queluz de Baixo2730 ‑132 [email protected]

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Índice

Prefácio .................................................................................................. 9

Primeira Parte

1 Nunca Dêem Conversa a Desconhecidos ...................................... 23

2 Pôncio Pilatos .................................................................................. 36

3 A Sétima Prova ............................................................................... 60

4 A Perseguição .................................................................................. 65

5 A Batalha na Griboiédov ................................................................ 72

6 Esquizofrenia, como Foi Dito acima .............................................. 84

7 O Apartamento Maligno ................................................................ 93

8 Duelo entre o Professor-Doutor e o Poeta ..................................... 104

9 As Travessuras de Koróviev ............................................................ 113

10 Notícias de Ialta .............................................................................. 123

11 O Desdobramento de Ivan ............................................................. 135

12 A Magia Negra e o Seu Desmascaramento ................................... 139

13 O Aparecimento do Herói ............................................................. 154

14 Viva o Galo! .................................................................................... 173

15 Um Sonho de Nikanor Ivánovitch ................................................. 182

16 A Execução ..................................................................................... 194

17 O Dia Inquieto ............................................................................... 206

18 Os Visitantes Azarados ................................................................... 219

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Segunda Parte

19 Margarita ........................................................................................ 241

20 O Creme de Azazello ..................................................................... 254

21 O Voo .............................................................................................. 259

22 À Luz das Velas .............................................................................. 272

23 O Grande Baile de Satanás ............................................................ 285

24 O Resgate do Mestre ...................................................................... 301

25 Como o Procurador Tentou Salvar Judas de Kiryat ..................... 324

26 O Enterro ........................................................................................ 335

27 O Fim do Apartamento n.º 50 ....................................................... 356

28 As Últimas Aventuras de Koróviev e Behemoth ............................ 372

29 É Definido o Destino do Mestre e Margarita ................................ 385

30 Está na Hora! Está na Hora! .......................................................... 390

31 Nos Montes Vorobióvi .................................................................... 402

32 O Perdão e o Abrigo Eterno .......................................................... 405

Epílogo ................................................................................................... 411

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Prefácio

O título definitivo de O Mestre e Margarita só surgiu na segunda metade de 1937, quase dez anos depois do início da redacção do livro, datado de 1928. Desde o início do trabalho, com efeito, Bulgákov atribuíra-lhe outros títulos, que foi mudando: Mágico Negro, O Casco do Consultor, O Grande Chan-celer, Eis-me aqui, Chapéu com Pena, O Teólogo Negro, A Ferra-dura de Um Estrangeiro, Evangelho segundo Woland, O Príncipe das Trevas, etc.

É a última obra de Mikhaíl Bulgákov. Dizem dela (repetindo palavras do próprio Bulgákov): o seu «romance do ocaso» — uma vez que o escritor trabalhou neste livro até aos últimos dias da sua vida. Na verdade, as primeiras ideias da futura obra surgiram ainda na primeira metade da década de 1920. Depois de concebido, nasceu, foi queimado pelas mãos do próprio autor em 1930, sobrevi-vendo só dois cadernos de rascunhos do primeiro período do trabalho no livro ideado como «um romance sobre o Diabo». Renasceu das cinzas: passado um ano, o escritor recomeça a criação do seu livro. A seguir, com pequenos intervalos em que escreve peças e guiões, Bulgákov continua a trabalhar no romance até pouco antes da sua morte.

No romance que será escrito de novo a partir de 1931, muda tudo: nomes de personagens, cenas, acentos, efabulação. O romance dentro do romance deixa de ser o Evangelho segundo Woland, ou, segundo Bulgákov, deixa definitivamente de ser Evangelho. Em primeiro lugar, porque já não é o Príncipe do Mal, «testemunha ocular», o narrador desta história — a coerência e o mesmo estilo nas quatro partes da história levam-nos a crer que foram escritas, todas, pelo mestre; em segundo, porque não é a figura de Jesus-Yeshua a central nesta história, mas a de Pôncio Pilatos; além disso, Bulgákov não opta pela construção da imagem de Jesus Cristo, filho de Deus, mas de Yeshua Ha-Notzri, ser humano, cuja essência divina é mostrada apenas por ligeiras insinuações. Alterou cenas e personagens, passou

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por sete ou talvez oito redacções, foi revisto vezes sem fim. Em 1938, o enredo já é definitivo, o manuscrito foi dactilografado. Depois, Bulgákov emenda o texto até à frase «Quer isso dizer que as pessoas que vão agora a acompanhar o funeral são os literatos?» (aproximadamente a meio do livro), quatro semanas antes de morrer. O texto foi completado depois da morte do escritor, de acordo com as suas indica-ções, pela sua viúva Elena Bulgákova. Esperou ainda vinte e seis anos pela publicação: em 1966-1967, mutilado pela censura, saiu a lume na revista lite-rária soviética Moskvá. A seguir, no mesmo ano de 1967, foi editado sem cortes em Paris, pela YMCA-Press.

Mikhaíl Bulgákov legou à sua mulher os direitos exclusivos de autoria e de redacção final do seu livro. Contudo, em 1973, saiu na Rússia uma edição com-pleta do romance na qual os peritos encontraram mais de três mil diferenças relativamente ao texto preparado pela viúva do escritor — os editores, introduzindo no texto fragmentos de rascunhos de acordo com o seu próprio critério, não respei-taram a vontade do escritor. Mais uma variante, combinando a de Elena Bulgá-kova e a da edição de 1973, foi publicada em 1989 em Kíev. O certo é que apenas Elena Bulgákova conhecia todas as numerosas emendas feitas à mão pelo próprio escritor ou que ele lhe ditava durante a sua doença. Uma parte destas emendas não foi encontrada. Dentro do texto persistem algumas contradições. Os especialistas supõem que, também de futuro, vão aparecer mais edições de O Mes-tre e Margarita com diferentes variantes do texto.

Pela sua composição, o livro é um «romance dentro do romance». A ligação entre os dois é intrínseca. O espaço e o ambiente do primeiro (Jerusalém, festa da Pás-coa, crucificação de Jesus) e do segundo (Moscovo do fim da década de 1920) interpenetram-se naturalmente, contendo o primeiro o núcleo de significados e, o segundo, a sua repercussão. Os motivos — do bem e do mal, da cobardia como «o maior pecado», da traição e da fidelidade, da implacável tirania —, que no romance interior comportam um significado universal, abrangente e eterno, repro-duzem-se na realidade da grande capital russa do romance «de moldura». As duas histórias desenrolam-se nas mesmas datas do calendário, sob o mesmo calor insu-portável, e a tempestade que ameaça arrasar ambas as cidades pecaminosas, distanciadas por um tempo e um espaço enormes, parece ser a mesma. E o mestre, homem que «adivinhou» e recriou no seu livro a tragédia do romance interior, vive e sofre no romance «de moldura». É evidente o paralelismo das vidas martirizadas nestas duas histórias — a do filósofo vagabundo Yeshua e a do mestre.

Se o romance sobre Pilatos está escrito numa rigorosa maneira realista, todos os milagres e tudo o que é sobrenatural acontece no romance «de moldura». O Sata-nás Woland e comitiva aparecem em Moscovo para criar um caos perigoso e escarnecedor e, para algumas das vítimas, mortal — a vingança pela verdade espezinhada. O bem e a misericórdia estão demasiado indefesos no mundo cruel,

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e as forças do mal encarregam-se do trabalho sujo. O elemento carnavalesco, pagão, das lendas populares sobre a bruxaria e a feitiçaria, criando um ambiente fantás-tico, harmoniza-se, de certo modo paradoxal, com a maneira realista do escritor; a sátira realista e o humorismo das imagens fantásticas constituem um quadro único, natural e credível.

Construindo a sua narração como realismo fantástico, Bulgákov atribui aos seus diabos traços e fraquezas humanas, e neste sentido segue a tradição do grande Nikolai Gógol (1809-1852). O seu Satanás é velho, doente e desleixado no quotidiano; os demónios da sua comitiva são gulosos, invejosos, irritadiços, vaido-sos, irónicos, capazes de se fascinarem, de serem condescendentes. O misticismo das forças sobrenaturais cede lugar à fantasia ingénua, sábia e muito terrena da lenda popular. Mas se nos contos de Gógol os diabos, inimigos do bem, são ridiculari-zados, combatidos e vencidos pela boa gente, no romance de Bulgákov a corja demoníaca cumpre uma missão de vingança, ataca, humilha e achincalha a men-tira, a traição, a cobiça, a maldade dos homens, em defesa do bem e da verdade.

Se, em Gógol, as forças do mal provêm do imaginário folclórico eslavo, os demónios de Bulgákov são «estrangeiros», vindos da tradição folclórica e literária ocidental. Bruxas de Brocken, vampiros que não lançam sombra, alquimistas, astrólogos e feiticeiros, o demónio da gula Behemoth, toda uma série de nomes germânicos de personagens. Outros demónios, como Azazello e Abadon, têm raízes na tradição bíblica. Os convidados ao baile de Satanás são de todas as partes do mundo, de todas as épocas. Esta aglomeração internacional de pecadores entrega--se aos prazeres luxuosos, mas absolutamente materiais, terrenos: champanhe, conhaque, petiscos, danças, Johann Strauss a dirigir a orquestra que toca as valsas, uma banda que toca jazz. O elemento sobrenatural não é apresentado como um misticismo enigmático e incompreensível, mas em forma de um espectáculo teatra-lizado, carnavalesco.

Entre as numerosas referências históricas e literárias que os investigadores encontram neste romance, as conotações com o Fausto de Goethe são as mais evidentes. O poema do grande escritor alemão é efectivamente uma das fontes de inspiração de Bulgákov, e a epígrafe do seu romance é a primeira indicação deste facto. O nome de Satanás «Woland» é tirado de Fausto, onde se menciona só uma vez. O nome Margarita, a heroína central, também nos remete para este poema (além das ligações que o autor estabelece com as rainhas francesas Margarita de Navarra e Margarita Valois). Numerosas alusões e ligações a Fausto são, muitas vezes, indirectas, veladas: o mestre, no início da sua história, leva uma vida fechada, no meio de livros, tal como Fausto; o encontro de Fausto com Mefistófe-les acontece na noite de Páscoa — no romance de Bulgákov, os acontecimentos desenrolam-se na mesma altura; o cão-d’água negro, aparência de Mefistófeles no primeiro encontro, está no medalhão que penduram no pescoço de Margarita no

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baile de Satanás; Mefistófeles apresenta-se a Fausto como estudante errante — e o Woland de Bulgákov é viajante, turista; Mefistófeles é coxo, Woland sofre de dores no joelho; os motivos do envenenamento e do infanticídio surgem em ambas as obras; a Margarita de Bulgákov vai ao baile de Satanás, ao qual, no poema de Goethe, o doutor Fausto assistiu no Brocken; os títulos falsos que Mefistófeles vende à população transformam-se jocosamente nas notas de dez rublos ilusórias que Koróviev-Fagote espalha durante a sessão de magia negra no Teatro de Varie-dades. No entanto, o essencial nesta referência ao poema de Goethe é, pelos vistos, a filosofia da interligação entre o bem e o mal.

Como em outras obras suas, como Apontamentos de Um Jovem Médico (1925-1926) e Romance Teatral (1937), a história dramática do próprio escritor transparece nas entrelinhas do livro de Bulgákov. Embora não haja nada mais incorrecto do que pôr o sinal de igualdade entre o autor e a sua personagem, o romance lê-se inevitavelmente como a história do escritor Bulgákov, em que o amargo caminho do seu herói, o mestre, reproduz indirectamente a via-sacra do escritor e da sua obra.

Nas décadas de 1920 e de 1930, apareceram na imprensa, pelos cálculos do próprio Bulgákov, 298 artigos de crítica negativa das suas peças teatrais. Não esqueçamos: os artigos de crítica «literária» faziam papel, em muitos casos, de denúncias. Em fins de 1928, na imprensa e nas instituições burocráticas desen-volveu-se uma monstruosa e insultuosa perseguição a Bulgákov por causa da sua peça A Fuga. O escritor foi chamado a interrogatórios na GPU (Direcção Política Estatal), foram confiscados os seus diários e manuscritos. Em 1930 deixaram de publicar as suas obras e retiraram as suas peças dos repertórios dos teatros. Foram proibidas as peças O Apartamento de Zoika (escrita em 1925) e Os Dias de Turbin (escrita em 1926) — a última foi reposta, por ordem de Stálin, em 1932. Os tormentos por que o escritor passou com a sua peça Sob o Jugo dos Santarrões (Molière), encenada depois de cinco anos de ensaios e proibida depois do sétimo espectáculo, foram descritos no seu Romance Teatral (1937).

Toda esta situação não o alquebrou, antes se tornou mais um estímulo para a criação do novo «romance fantástico» que já estava a preparar havia alguns anos. Nesta altura, os temas que inspiravam o escritor eram o desencadeamento de uma primitiva, mas eficaz, campanha anti-religiosa e a repressão do livre trabalho criador na Rússia soviética. «Jesus Cristo está a ser apresentado como um cana-lha e vigarista», escreve Bulgákov no seu diário. A perseguição de escritores e dramaturgos acusados de serem «reaccionários», alvos de que também ele fazia parte, indignava Bulgákov: será que a capital da Rússia, escreveu ele, se trans-formou numa espécie de Jerusalém que extermina os seus melhores filhos? Assim, estabelece semelhanças entre os grandes acontecimentos da Antiguidade e a reali-

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dade da Moscovo do seu tempo. E cria, em poucos meses, duas variantes do romance sobre a visita de Satanás à «capital vermelha» com o seu relato «Evan-gelho segundo Woland». A primeira redacção do romance foi queimada pelo escritor depois de ter recebido a notícia da proibição da sua peça Sob o Jugo dos Santarrões (lembremo-nos da queima pelo desesperado mestre do seu romance sofredor).

Trabalhando no seu último e mais importante livro, Bulgákov estava muito pessimista em relação à possibilidade de o publicar. Da carta de Mikhaíl Bulgá-kov à mulher, datada de 15 de Junho de 1938: «Tenho 327 páginas dactilogra-fadas, cerca de 22 capítulos. […] Falta o mais importante, a revisão [do autor], grande, complicada, atenta, provavelmente refazendo algumas páginas. Perguntas o que vai acontecer a seguir? Não sei. Pelos vistos, guardas o livro na gaveta da escrivaninha ou no armário onde jazem as minhas peças assassinadas e vais recordá-lo de vez em quando. […] Se conseguir melhorar o final, vou considerar que a obra merece uma revisão para, depois, ser sepultada nas trevas da gaveta. Agora, interessa-me a tua opinião pessoal, mas ninguém sabe se chegarei a conhe-cer a opinião dos leitores...»

No entanto, se o destino do mestre reflecte a vida do seu criador, esta persona-gem está longe de ser um retrato de Bulgákov, tanto no seu aspecto físico como pelo seu carácter. O mestre é uma figura sem nome, desenhada com poucos e indefinidos traços, um homem doente, fraco, esmagado, com um discurso enfado-nho, repetitivo e até banal sobre o medo de estragar a vida à amada; está exausto, todo o seu valor humano, todo o seu sangue quente foi entregue até à última gota ao romance por ele escrito (é por isso que se recusa a ter nome próprio, é só «mes-tre», criador do romance, a sua única essência), a sua vontade de viver foi des-truída pela crueldade humana, está tão magoado que quer esquecer o seu livro. Ao lado dele, Margarita é uma figura grandiosa, uma verdadeira rainha, guerreira destemida, pronta a sacrificar tudo, nem que seja vender a alma ao Diabo, pelo seu amor — pelo mestre e a sua obra.

Margarita é um daqueles casos raros na literatura em que a personagem tem um único, directo e incontestável protótipo.

Elena Serguéevna Bulgákova (1893-1970), a terceira mulher de Mikhaíl Bulgákov. Conheceram-se em Fevereiro de 1929, apaixonaram-se («O amor sur-giu de chofre à nossa frente, como um assassino surge numa viela […] e atingiu--nos a ambos de um golpe») e juntaram-se para sempre em Setembro de 1932. Elena Serguéevna era para Bulgákov a mulher amada, a amiga fiel, a ajudante, o anjo-da-guarda que, nas horas mais difíceis, nunca mostrou cansaço, nunca deixou de o apoiar com a sua admiração, com a fé incondicional no seu talento. Quase todas as obras de Bulgákov na década de 1930 foram dactilografadas por ela. Quando o escritor, antes da morte, já não tinha forças para escrever, era ela

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que apontava as suas ideias e emendas para o livro, era ela que não se afastava da cama do marido moribundo, fazendo tudo para aliviar o seu sofrimento. No início da sua vida conjunta, quando Bulgákov estava ainda forte e saudável, fez a Elena Serguéevna um pedido estranho: «Dá-me a tua palavra de que vou mor-rer nas tuas mãos.» Rindo, ela deu-lhe a sua palavra. E cumpriu-a. Nos últimos dias de vida do marido, Elena Serguéevna jurou-lhe que o seu romance seria publicado. Cumpriu a sua jura, tendo lutado por isso durante longos anos.

«Minha rainha adorada, minha czarina, estrela que sempre luziu para mim na minha vida terrena», sussurrava o escritor no leito da morte. Dignidade e paciência, abnegação e misericórdia, capacidade de suportar todos os sofrimentos e nunca pedir nada para si própria — era assim a rainha Margot, a Margarita do romance. E era assim Elena Serguéevna Bulgákova. Nas recordações das pes-soas que a conheceram, nos últimos anos da sua vida, numa idade já muito avançada e com uma grave doença de coração, iludia as pessoas, parecendo-lhes jovem e saudável. Nunca se queixou. Só ao seu diário confessava os acessos de desespero que a atingiam. Na presença dos outros, mantinha um porte orgulhoso, um ar calmo, uns olhos brilhantes. Sabia vestir-se com bom gosto e servir a mesa com elegância — e isto com o pouco dinheiro de que dispunha até aos últimos três anos da sua vida, com o trabalho grandioso que fazia, juntando, sistematizando e preparando os manuscritos, apontamentos, diários, cartas do seu Mestre, fazendo todo o possível e impossível para publicar as suas obras, e ainda trabalhando como dactilógrafa e tradutora, seu ganha-pão. Sabia suportar as desgraças com uma calma imperturbável, pelo menos aparente: quando a revista Moskvá publicou a primeira parte de O Mestre e Margarita, uma parte dos cortes nem era da censura, fora feita para deixar espaço para uma novela medíocre de um dos direc-tores da revista — e Elena Serguéevna, com um incrível sangue-frio, aproveitou este facto revoltante para a sua luta pela publicação do texto completo, afirmando que todos os cortes foram feitos por razões não ideológicas, que o livro podia ser editado sem eles, na íntegra.

Depois da publicação do romance, tornou-se conhecida por todo o mundo como Margarita. Criaram-se lendas sobre a bruxa Elena Bulgákova. Lídia Ianóvs-kaia, investigadora da obra de Bulgákov e amiga de Elena Serguéevna, escreve que esta se aconselhava com o falecido marido em sonhos. O crítico literário Vladímir Lakchin, no seu livro Bulgakíade, conta que uma vez ela apareceu numa editora, tendo feito em cinco ou sete minutos o caminho que devia levar uma hora, e explicou, rindo, que viajara de vassoura. Que tinha um cão grande, de intelecto nada canino, com quem tinha conversas longas e secretas. Que predisse a hora da sua própria morte. Que ela mesma recordava uma tarde de 1929 em que Bulgákov a levou à casa de um velho misterioso, e este, ao espreitar para os olhos dela, disse: «Bruxa.»

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A Mikhaíl e Elena Bulgákov não foi destinado o final feliz do romance — morrerem juntos e obterem o sossego eterno numa casa com janela veneziana, ao som da música de Schubert e onde a videira trepa até ao telhado, onde o mestre escreve com pena de ganso e a sua amada lhe protege o sono. Cumprida a sua promessa ao marido, Elena Bulgákova morreu em 1970, trinta anos depois de Mikhaíl.

O Mestre e Margarita foi reeditado na Rússia não menos de quinze vezes e foi traduzido para 180 línguas do mundo. Os manuscritos não ardem.

Nina Guerra

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… quem és, afinal?— Sou parte daquela força que deseja eternamente

o Mal e faz eternamente o Bem.

Goethe, Fausto

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Capítulo 1

Nunca Dêem Conversa a Desconhecidos

Por um cálido fim de tarde primaveril, dois senhores apareceram no Bulevar Patriárchie Prudi1. O primeiro, quarentão em fato estival cinzento, baixote, bem nutrido, com uma calva no cabelo escuro, levava o distinto chapéu borsalino na mão e adornavam-lhe a cara meticulosamente escanhoada uns óculos de tamanho sobrenatural com armação de chifre. O segundo, jovem espadaúdo, arruivado e de topete galhardo, com boné de xadrez puxado para a nuca, estava de camisa à vaqueiro, calças brancas amarrotadas e sapatilhas pretas.

O primeiro não era outro senão Mikhaíl Aleksândrovitch Berlioz em pessoa, chefe de redacção de uma revista literária e presidente de uma das maiores associações de escritores moscovitas, denominada abrevia-damente MASSOLIT2; o seu jovem acompanhante era o poeta Ivan Nikoláevitch Poniriov, aliás Bezdómni, seu pseudónimo literário.

Ao entrarem na sombra das tílias com a escassa folhagem nova, os escritores precipitaram-se antes de mais para o quiosque colorido identificado pela tabuleta «Cerveja e Águas».

A propósito, é de assinalar a primeira estranheza desta pavorosa tarde de Maio. Não só perto do quiosque, mas por toda a alameda paralela à Rua Málaia Brónnaia, não se descortina vivalma. À hora em que parece já não haver forças para respirar, em que o Sol, depois

1 «Lagos do Patriarca», situados no centro de Moscovo. No século xvii, encontrava--se aqui a residência do patriarca Filaret. Em tempos ainda mais remotos, este sítio era pantanoso e levava o nome de «Pântano das Cabras». Nas crenças populares, o pântano é lugar de habitação de forças diabólicas.

2 Esta abreviatura da organização dos escritores é uma invenção de Bulgákov e pode ser decifrada de maneiras diferentes: como Associação dos Literatos de Moscovo ou como Literatura das Massas Populares.

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de abrasar Moscovo, se envolve em neblina seca e vai tombando algures para trás da Sadóvoe Koltsó, ninguém se abriga ao fresco das tílias, ninguém se senta no banco, a alameda está deserta.

— Água de Narzan — pediu Berlioz.— Não há — respondeu a mulher do quiosque e, por qualquer

razão, ofendeu-se. — E cerveja, tem? — perguntou Bezdómni em voz roufenha. — A cerveja só vem à noite — respondeu a mulher. — Então, o que é que tem? — quis saber Berlioz. — Refresco de alperce, mas morno — disse a mulher. — Dê cá o refresco, mas avie-se, rápido!Uma abundante espuma amarela sobrepujava o refresco de

alperce, e o ar cheirou de imediato a barbearia. Morta a sede, logo um ataque de soluços acometeu os literatos. Pagaram e foram sentar--se num banco, de frente para o lago e de costas para a Rua Brónnaia.

Nisto ocorreu a segunda estranheza, mas desta vez atingiu só Ber-lioz. Num átimo pararam-lhe os soluços, o coração deu-lhe um baque e, por um instante, levou sumiço, depois voltou, mas como se tivesse ali cravada uma agulha romba. Para além disto tudo, entranhou-se em Berlioz um medo infundado, mas tão forte que a sua vontade era fugir à cavalgada daquele Patriárchie Prudi.

Aflito, olhou para trás, sem perceber o que tanto o assustava. Lívido, limpou a testa com o lenço, pensou: «O que é que eu tenho? Nunca antes me aconteceu… é o coração… trabalhei de mais… Tenho de mandar tudo prò diabo e abalar para Kislovodsk…»

Foi então que o ar tórrido se condensou à frente dele, e um indi-víduo transparente de estranhíssimo aspecto se teceu deste mesmo ar. Boné de jóquei na cabeça minúscula, casaquinho curto axadre-zado, também etéreo… A estatura do indivíduo era de uma braça, mas de ombros estreitos e uma magreza inverosímil, e a fisionomia, note-se, escarninha.

A vida de Berlioz fluía numa costumeira tal que fenómenos destes, tão invulgares, não se lhe ajustavam. Ainda mais pálido, esbugalhou os olhos e considerou, atarantado: «Isto não pode ser!…»

Infelizmente podia, era mesmo isto, e o sujeito esgrouviado, através do qual se via tudo à transparência, baloiçava-se de um lado ao outro em frente dele sem tocar o chão.

Berlioz estarreceu a tal ponto que fechou os olhos. Quando os abriu não viu nada, miragem nenhuma, o axadrezado volatilizara-se, e a agulha romba, a propósito, também se lhe descravara do coração.

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— Que diabo de coisa! — exclamou o redactor. — Olha, Ivan, com esta caloraça, por pouco não me deu uma apoplexia! Até tive uma espécie de alucinação… — Tentou uma risada, mas a inquie-tude ainda lhe bruxuleava nos olhos e as mãos tremiam-lhe. Lá se acalmou a pouco e pouco, abanou a cara com o lenço e, com um «ora bem…» bastante animado, reatou a dissertação interrompida pelo refresco de alperce.

Como se viria a averiguar posteriormente, a prelecção era sobre Jesus Cristo. Saiba-se que o redactor encomendara ao poeta, para o número seguinte da sua revista, um grande poema anti-religioso. Ivan Nikoláevitch escreveu o poema, num prazo assaz curto, mas o redactor, infelizmente, não ficou nada satisfeito. Bez dómni pin-tou o Nazareno, protagonista do poema, com a mais negra das cores e, mesmo assim, era necessário, na opinião do redactor, reescrever tudo. Portanto, ministrava agora ao poeta uma espécie de aula sobre Jesus, com o intuito de pôr em relevo o seu erro principal.

É difícil dizer o que prejudicou exactamente o trabalho de Ivan Nikoláevitch — se a força artística do seu talento, se a completa ignorância do tema em que obrava —, mas o seu Jesus Cristo saiu-lhe inteiramente vivo, um Jesus de facto existente em tempos, embora provido de todas as características negativas.

No entanto, Berlioz tencionava provar ao poeta que o essencial não era o carácter de Jesus, fosse bom ou mau, mas que esse Jesus, como personalidade, em geral nunca existiu e todas as histórias que se con-tavam sobre ele eram puras invenções, mera lenda.

Repare-se que o redactor era homem de muitas leituras e grande habilidade em juncar o seu discurso de historiadores antigos, por exemplo o célebre Fílon de Alexandria e Josefo Flávio3, de tão bri-lhante cultura, que nunca mencionaram, com uma palavrinha que fosse, a existência de Jesus. Manifestando uma sólida erudição, Mikhaíl Aleksândrovitch informou também o poeta, a este respeito, que no capítulo 44 dos famosos Anais de Tácito o fragmento do décimo quinto livro, em que se falava da execução de Jesus, não pas-sava de uma falsificação, de um acréscimo ulterior.

3 Fílon de Alexandria (c. de 25 a. C.-50 d. C.) — filósofo helénico-judaico que tentava conciliar a visão filosófica do mundo judaísta com a da filosofia grega.

Josefo Flávio (37-100 d. C.) — autor de obras da história do povo judaico desde os tempos bíblicos até à destruição do segundo Templo.

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Tudo aquilo era novidade para o poeta. Ouvia com atenção o que Mikhaíl Aleksândrovitch lhe leccionava, cravando nele os seus ágeis olhos verdes, e apenas soluçava de vez em quando, injuriando em sussurro o refresco de alperce.

— Não existe religião oriental em que uma moça virgem não desse à luz um deus — dizia Berlioz. — Ora, os cristãos, na mesma senda, sem inventarem nada de novo, criaram o seu Jesus, uma figura que nunca existiu na realidade. É precisamente este ponto que deve ser realçado em primeiro lugar…

O tenor alto de Berlioz propagava-se pela alameda deserta e, à medida que Mikhaíl Aleksândrovitch se aprofundava na brenha em que só uma pessoa muito culta pode entrar sem risco de partir o pescoço, o poeta tomava conhecimento de coisas a cada passo mais curiosas e úteis sobre o Osíris egípcio, deus misericordioso, filho do Céu e da Terra, sobre o deus fenício Tamuz, sobre Marduque e, até, sobre o menos conhecido Huitzilopochtli, deus terrível, muito vene-rado outrora pelos astecas no México.

Então, no momento exacto de Mikhaíl Aleksândrovitch instruir o poeta sobre o modo como os astecas esculpiam de massa a figurinha de Huitzilopochtli, surgiu na alameda uma pessoa, a primeira.

Posteriormente, por sinal quando já era tarde, várias instituições apresentaram os seus relatórios com a descrição deste homem. A comparação dos depoimentos não deixa de provocar espanto. Assim, no primeiro dos relatórios constava que o dito homem era de pequena estatura, tinha dentes de ouro e coxeava da perna direita. No segundo, que era de estatura gigantesca, tinha coroas de platina e coxeava da perna esquerda. O terceiro comunicava laconicamente que o homem não tinha sinais particulares.

Todos esses relatórios, há que frisá-lo, de nada servem.Antes de mais: o indivíduo aqui descrito não coxeava de perna

nenhuma, a estatura não era pequena nem enorme, mas alta, sim-plesmente. Quanto aos dentes, notavam-se-lhe do lado esquerdo umas coroas de platina e, do direito, coroas de ouro. Usava fato cin-zento caro e sapatos estrangeiros de tom a condizer. Levava boina cinzenta galhardamente à banda e o castão da bengala era uma cabecinha de cão-d’água4. Pelo aspecto, teria quarenta e tal anos.

4 … o castão da bengala era uma cabecinha de cão-d’água… — um pormenor que é alusão a Mefistófeles, que, no livro de Goethe, aparece a Fausto, pela primeira vez, como cão-d’água negro.

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A boca parecia torta. Cuidadosamente barbeado. Cabelo escuro. O olho direito negro, o esquerdo verde, vá lá saber-se porquê. Sobrancelhas pretas, uma mais acima do que a outra. Numa palavra, um estrangeiro.

Ao passar ao lado do banco onde se acolhiam o redactor e o poeta, o estrangeiro olhou-os de esguelha, parou e de repente sentou-se no banco vizinho, a dois passos.

«Alemão…», pensou Berlioz.«Inglês…», pensou Bezdómni. «Como é que não tem calor de

luvas?»O estrangeiro, ao passar os olhos pelos prédios altos orlando o

quadrilátero do lago, mostrava bem que via pela primeira vez o sítio e que este lhe despertava a curiosidade.

Parou o olhar nos andares superiores, onde se reflectiam e quebra-vam os raios ofuscantes do Sol que Mikhaíl Aleksândrovitch iria abandonar para sempre, depois desviou os olhos para baixo, onde os vidros começavam a tingir-se da penumbra vesperal, esboçou um sorriso condescendente, estreitou os olhos, apoiou as mãos no castão e o queixo nas mãos.

— Por exemplo, Ivan — estava a dizer Berlioz —, descreveste muito bem, e com veia satírica, o nascimento do Filho de Deus, mas o cerne da questão é que, ainda antes de Jesus, já tinham nascido uma série de filhos divinos, tais como, digamos, o Adónis fenício, o Átis frígio, o Mitras persa5. Ora bem, para abreviar, digo-te que nenhum deles alguma vez nasceu ou existiu, incluindo Jesus, e é necessário que, em vez do suposto nascimento dele ou, digamos, da chegada dos Reis Magos, descrevas os boatos absurdos sobre essa che-gada. Senão, do modo como apresentas as coisas, depreende-se que ele nasceu de facto!...

Entretanto, no mesmo momento em que Bezdómni retinha a res-piração numa tentativa de parar os soluços aflitivos, o que o fazia soluçar ainda mais alto e com mais aflição, Berlioz interrompeu a lição porque o estrangeiro, de repente, se levantou e foi ter com os escritores.

5 Adónis fenício — na antiga mitologia fenícia, deus da fecundidade, ligado à morte e à ressuscitação da natureza.

Átis frígio — deus da fecundidade na mitologia da Frígia (na Ásia Menor), divindade que morre e ressuscita.

Mitras persa — deus do Sol, uma das principais divindades indo-iranianas, deus da concórdia.

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Olharam-no com espanto.— Peço imensa desculpa — disse o homem com sotaque estran-

geiro, mas sem deturpar as palavras — por me permitir a liberdade, sem ser apresentado… mas a matéria da vossa douta conversa é tão empolgante que…

Tirou de súbito a boina, num gesto educado, e os amigos não viram outra saída que não soerguerem-se e curvarem-se numa vénia.

«Não, é antes francês…», pensou Berlioz.«Polaco?...», alvitrou Bezdómni.Deve acrescentar-se que o estrangeiro, mal abriu a boca, causou

no poeta uma impressão abominável; já quanto a Berlioz, quase gos-tou dele, ou seja, não tanto isso, mas… como direi… o estrangeiro despertou-lhe o interesse, ou algo do género.

— Não se importam que me sente aqui? — continuou polida-mente o estrangeiro, e os companheiros, num impulso reflexo, abri-ram-lhe espaço entre eles; o estranho, com habilidade, acomodou-se e logo a seguir entrou na conversa.

— Se ouvi bem, o senhor teve a bondade de dizer que Jesus não existiu? — perguntou o estrangeiro, virando para Berlioz o seu olho esquerdo, o verde.

— Sim, ouviu bem — respondeu Berlioz com cortesia —, era exactamente isso que eu estava a dizer.

— Ah, mas que fascinante! — exclamou o outro.«Mas que diabo quer o homem?», pensou Bezdómni e carregou o

sobrolho. — E o senhor está de acordo com ele? — quis saber o desconhe-

cido, virando-se para Bezdómni, à sua direita. — Cem por cem de acordo! — confirmou este, mostrando gosto

pelas expressões rebuscadas e figuradas. — É admirável! — exclamou o importuno interlocutor e, lançando

para trás um olhar incompreensivelmente furtivo e abafando a sua voz de baixo, perguntou: — Desculpem a minha impertinência, mas, se bem compreendi, os senhores, além do mais, não acreditam em Deus? — Fez uns olhos assustados e acrescentou: — Juro que não o digo a ninguém.

— Sim, não acreditamos em Deus — respondeu Berlioz, sorrindo ligeiramente ao susto do turista forasteiro —, mas pode-se falar disso sem qualquer impedimento.

O estrangeiro recostou-se ao espaldar do banco e perguntou com tanta curiosidade que a voz lhe saiu guinchada:

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— São ateus?! — Sim, ateus — respondeu Berlioz, sorrindo, enquanto Bezdómni

se arrenegava e considerava: «Mas que agarradiço, este bicho estran-geiro!»

— Ah, lindo! — gritou o esquisito alóctone e pôs-se a virar a cabeça, olhando ora para um, ora para o outro literato.

— No nosso país, o ateísmo não surpreende ninguém — disse Berlioz com polidez diplomática —, a maioria da nossa população, conscientemente, há muito que deixou de acreditar nas fantasias sobre Deus.

Ao ouvir isto, o estrangeiro executou então o seguinte: levantou-se e apertou a mão ao redactor aturdido, pronunciando estas palavras:

— Permita que lhe agradeça do fundo da alma! — Está a agradecer-lhe porquê? — pestanejou Bezdómni. — Pela informação tão valiosa que, sendo eu viajante, me interessa

muitíssimo — esclareceu o excêntrico estrangeiro, levantando signi-ficativamente o dedo.

Pelos vistos, a informação valiosa causou no viajante uma impres-são deveras forte porque os seus olhos assustados percorreram os prédios à volta como se temesse ver um ateu em cada janela.

«Não, não é inglês…», conjecturou Berlioz, enquanto Bezdómni pensou: «Onde aprendeu ele a falar um russo tão escorreito, isto é que é interessante!», e voltou a carregar o cenho.

— Mas permita que lhe pergunte — voltou a falar o turista após uma ansiosa reflexão —, o que se faz com as provas da existência de Deus, as cinco provas, como é sabido?

— Infelizmente — lamentou Berlioz —, nenhuma dessas provas é válida e há muito que a humanidade as mandou para o arquivo morto. Isto porque, tem de concordar, racionalmente não pode haver qualquer prova da existência de Deus.

— Bravo! — exclamou o estrangeiro. — Bravo! O senhor acaba de repetir letra por letra a ideia do velho e inquieto Immanuel. O curioso é que ele arrasou todas as cinco provas, é verdade, mas a seguir, como que a zombar de si próprio, concebeu a sexta prova, a dele6!

6 … a sexta prova… — Immanuel Kant (1724-1804), na sua obra filosófica Crítica da Razão Pura, refutou as provas da existência de Deus, que eram cinco: cosmológica, teleo-lógica, ontológica, ética e histórica. Depois da morte do filósofo, foi-lhe atribuída, errada-mente, a criação da sexta prova da existência divina.

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— A prova de Kant — objectou o letrado redactor com um sorriso fino — também não é convincente. Não foi por acaso que Schiller considerou os raciocínios de Kant sobre esta matéria satisfatórios para os escravos apenas, enquanto Strauss, simplesmente, se riu da dita prova.

Berlioz falava e, ao mesmo tempo, matutava: «Mas quem é, afinal, este sujeito? E porque fala um russo tão perfeito?»

— Por mim, agarrava nesse Kant e espetava com ele por três anos em Solovki7! — disparou de súbito o poeta Ivan Nikoláevitch.

— Ivan! — sussurrou-lhe Berlioz, envergonhado. Contudo, a proposta de deportar Kant para Solovki não espantou

minimamente o estrangeiro, antes o entusiasmou. — Exactamente, exactamente — gritou, e o seu olho verde, virado

para Berlioz, cintilou. — É o lugar ideal para ele! Eu bem lhe disse uma vez, ao pequeno-almoço: «Francamente, professor, inventou uma coisa destrambelhada! É capaz de ser espirituosa, mas saiu-lhe dema-siado incompreensível. Olhe que vão gozar consigo.»

Berlioz esbugalhou os olhos. «Ao pequeno-almoço… disse ele ao Kant...? Mas o que é que ele está para aqui a disparatar?», pensou.

— Todavia — continuou o estrangeiro sem se embaraçar com o espanto de Berlioz e dirigindo-se ao poeta —, é impossível mandá-lo para Solovki pela simples razão de que, há já mais de cem anos, se encontra em paragens muito mais longínquas do que Solovki, e não há maneira de o tirar de lá, acredite em mim!

— Que pena! — retrucou o chibante poeta. — Também o lamento — anuiu o desconhecido, a chispar do olho,

e prosseguiu: — Mas preocupa-me uma questão: se Deus não existe, quem é que rege então a vida humana e, em geral, toda a ordem na terra?

— O próprio homem é que governa tudo — apressou-se Bezdómni a responder à pergunta, no fundo pouco perspícua.

— Peço desculpa, mas, seja como for — objectou com amenidade o desconhecido —, para governar é preciso haver um plano exacto a um prazo razoavelmente longo. Permita-me então a pergunta: como é que o homem pode governar se está privado da possibilidade não só de traçar um qualquer plano, mesmo a prazo ridiculamente curto, digamos de mil anos, mas também nem do seu próprio dia de ama-

7 Solovki — trata-se do campo correccional que as autoridades soviéticas organizaram no mosteiro situado numa das ilhas de Solovki, no mar Branco.

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nhã pode ter a certeza? É verdade — aqui, o desconhecido virou-se para Berlioz —, imagine que o senhor, por exemplo, começa a gover-nar, a mandar nos outros e em si próprio, começa a ganhar gosto ao mando, por assim dizer, mas de repente… ghê… ghê… ghê... aparece--lhe um sarcoma no pulmão… — O estrangeiro sorriu-se, deliciado, como se a ideia do sarcoma pulmonar lhe desse prazer. — Pois é, o sarcoma — repetiu a palavra sonora, semicerrando os olhos como um gato —, e é o fim da sua governação! A partir daí já não lhe interessa qualquer outro destino a não ser o seu próprio. Os familia-res começam a mentir-lhe. Sente que há qualquer coisa que não está bem, corre aos médicos, depois aos charlatães, até vai à bruxa, tam-bém acontece. Mas é tudo inútil: a primeira coisa, a segunda, a ter-ceira. É óbvio, não é? E a história acaba em tragédia: ao sujeito que ainda há tão pouco tempo supunha reger alguma coisa, os seus próximos dão por ele, inerte, numa caixa de madeira e, vendo que o indivíduo ali prostrado já não tem proveito algum, acham por bem queimá-lo no forno. Mas acontecem coisas piores: uma pessoa pla-neia uma viagem a Kislovodsk… — O estrangeiro fitou em Berlioz os olhos semicerrados. — Supostamente, nada mais fácil; mas nem isso pode concretizar porque, sem razão aparente, escorrega de repente e cai sob as rodas de um eléctrico! Vai dizer-me que foi ele próprio que se regeu assim? Não será mais correcto pensar que foi um outro qualquer que o despachou? — E o desconhecido soltou um risinho muito impróprio.

Berlioz ouvia com supina atenção o desagradável elóquio sobre o sarcoma e o eléctrico, e pensamentos de certo modo alarmantes começaram a atormentá-lo. «Não é estrangeiro… não é estran-geiro…», pensou, «é um homem estranhíssimo… mas, francamente, quem é ele afinal?...»

— Apetece-lhe fumar, não? — dirigiu-se subitamente o desconhe-cido a Bezdómni. — Que tabaco prefere?

— Tem vários ou quê? — perguntou o carrancudo poeta, que tinha o maço vazio.

— Que tabaco prefere? — repetiu o desconhecido. — O Marcanossa, e depois? — resmungou o poeta com raiva.O desconhecido tirou imediatamente do bolso uma cigarreira e

estendeu-a a Bezdómni: — O Marcanossa.Redactor e poeta pasmaram, nem tanto por a cigarreira conter

Marcanossa, precisamente, mas pela cigarreira em si. Era enorme, de

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ouro fino e, no momento de a abrir, faiscou na tampa um triângulo adamantino de fulgor azul e branco8.

No instante, os literatos pensaram coisas diferentes. Berlioz: «Não, é estrangeiro!»; Bezdómni: «Porra, c’os diabos!…»

O poeta e o proprietário da cigarreira acenderam os cigarros; Berlioz, que não era fumador, escusou-se.

«Tenho de objectar, e é assim», resolveu Berlioz, «certo, o homem é mortal, ninguém o pretende contestar. Mas o problema é que…»

Contudo, não chegou a pronunciar estas palavras porque o estran-geiro se antecipou:

— Sim, o homem é mortal, mas isto seria um mal menor. O pro-blema é que, por vezes, é imprevisivelmente mortal, a tramóia é essa! Em geral, ele não pode garantir o que fará esta mesma noite.

«Que modo absurdo de colocar o problema…», cogitou Berlioz e retorquiu:

— Bem, isso é um exagero. Pessoalmente, tenho uma ideia bas-tante clara quanto a esta noite. A não ser que um tijolo me caia em cima da cabeça na Rua Brónnaia…

— Um tijolo — interrompeu-o gravemente o desconhecido — não cai em cima da cabeça de ninguém por mero acaso. Em particular, posso garantir que para o senhor, pessoalmente, não há qualquer risco implicando o tijolo. A sua morte vai ser diferente.

— Talvez saiba, especificamente, qual vai ser então a minha morte? — quis saber Berlioz, com uma ironia pouco natural, envolvendo-se naquela conversa de todo absurda. — Talvez mo queira dizer, não?

— Com todo o gosto — respondeu o desconhecido. Avaliou Ber-lioz com os olhos, como se lhe tirasse as medidas para um fato, mur-murou entre dentes qualquer coisa do género «um, dois… Mercúrio na segunda casa… a Lua foi-se… seis — uma desgraça… noite — sete…»9 e anunciou em voz alta e alegre: — Vão cortar-lhe a cabeça!

Bezdómni esbugalhou os olhos loucos e raivosos para o insolente, mas Berlioz ainda perguntou com um sorriso amarelo:

— E quem o fará, exactamente? Inimigos? Agentes estrangeiros? — Não — respondeu-lhe o interlocutor —, uma mulher russa,

jovem comunista.

8 … triângulo adamantino… — o triângulo é um elemento de rituais mágicos, sim-bolizando o poder sobre as almas.

9 … «um, dois… Mercúrio na segunda casa…» — Woland faz um cálculo astrológico da morte de Berlioz. «… noite — sete» — a sétima casa é a casa da morte.

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— Humm… — fez Berlioz, irritado com a chalaça do desconhe-cido —, desculpe, mas é pouco provável.

— Também peço desculpa — respondeu o estrangeiro —, mas é a verdade. A propósito, gostaria de lhe perguntar o que planeia fazer hoje à noite, se não for segredo.

— Não é segredo. Agora vou passar pela minha casa na Rua Sadó-vaia e depois, às dez da noite, vou presidir a uma reunião na MAS-SOLIT.

— Não, isso é absolutamente impossível — replicou o estrangeiro com firmeza.

— Impossível porquê?— Porque — respondeu o estrangeiro e levantou os olhos semicer-

rados para o céu riscado silenciosamente pelo voo das aves negras que pressentiam a frescura nocturna —, porque a Ánnuchka já com-prou óleo de girassol, e não só o comprou, mas também o derramou. Sendo assim, a tal reunião não se irá realizar.

É compreensível que, depois disto, se instalasse o silêncio debaixo das tílias.

— Desculpe — voltou à carga Berlioz depois da pausa, lançando miradas ao destrambelhado estrangeiro —, o que tem o óleo a ver com isso… e que Ánnuchka é essa?

— O óleo tem a ver com o seguinte — intrometeu-se bruscamente Bezdómni, decidindo por certo declarar guerra ao indesejado inter-locutor —: o senhor, por acaso, nunca passou por uma clínica de doenças mentais?

— Ivan!... — exclamou baixinho Mikhaíl Aleksândrovitch.Mas o estrangeiro não se ofendeu e até se riu com muito júbilo. — Passei, passei, e por mais de uma vez! — exclamou, rindo, mas

sem desviar o olho sisudo da cara do poeta. — Por onde eu já não passei! Lamento apenas não me ter lembrado de perguntar lá ao professor doutor o que é a esquizofrenia. Portanto, pergunte-lhe você o que é isso, Ivan Nikoláevitch!

— Como é que sabe o meu nome? — Por amor de Deus, Ivan Nikoláevitch, quem não o conhece?

— O estrangeiro extraiu do bolso o número do Literatúrnaia Gazeta10 do dia anterior, e Ivan Nikoláevitch viu, logo na primeira página, o

10 Literatúrnaia Gazeta (Jornal Literário) — editado desde 1929, este jornal era órgão da Federação das Uniões de Escritores Soviéticos e, desde 1934, da direcção da União de Escritores da URSS.

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próprio retrato e as suas poesias por baixo. Aquela prova de fama e popularidade, tão agradável ainda na véspera, desta vez não deu qualquer prazer ao poeta.

— Com licença — disse ele, e a sua fisionomia ensombreceu —, dê-me um minutinho, se não se importa. Quero dizer duas palavras aqui ao camarada.

— Oh, com muito prazer! — exclamou o desconhecido. — Está-se tão bem aqui, debaixo das tílias, e, além disso, não tenho pressa nenhuma.

— Ouve lá, Micha — cochichou o poeta, arrastando Berlioz para o lado —, este sujeito não é turista nenhum, é um espião. Um emi-grado russo que penetrou no nosso país. Pede-lhe os papéis, senão ele foge…

— Achas? — respondeu em sussurro o alarmado Berlioz e pensou: «Olha que ele tem razão…»

— Acredita em mim — fanhoseou-lhe o poeta ao ouvido —, ele finge-se de parvinho para nos arrancar uma informação qualquer. Ouviste como fala russo? — O poeta falava, mas não deixava de vigiar de esguelha o desconhecido, que não se escapulisse. — Vamos filá-lo, senão foge…

E o poeta puxou Berlioz pela mão até ao banco.O desconhecido não estava sentado, mas de pé ao lado do banco,

tendo na mão um livrete com encadernação cinzento-escura, um sólido envelope de bom papel e um cartão-de-visita.

— Peço desculpa, no ardor do nosso debate esqueci por completo de me apresentar. Aqui está o meu cartão, o passaporte e o convite para dar consultas em Moscovo — pronunciou o desconhecido com imponência, cravando nos literatos uns olhos penetrantes.

Os amigos embaraçaram-se. «C’os diabos, ouviu tudo…», pensou Berlioz e esboçou um gesto educado, mostrando que não havia neces-sidade de apresentar os documentos. Enquanto o estrangeiro os estendia ao redactor, o poeta ainda teve tempo de enxergar no cartão a palavra «professor» impressa em caracteres estrangeiros e a pri-meira letra do nome — «W».

— Muito prazer — murmurou entretanto o redactor, e o estran-geiro guardou os papéis no bolso.

Portanto, a relação fora restabelecida, e todos os três voltaram a sentar-se no banco.

— O professor foi convidado na qualidade de consultor? — per-guntou Berlioz.

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— Sim, de consultor. — O senhor é alemão? — quis saber Bezdómni. — Eu?... — disse o professor e, de repente, quedou-se pensativo.

— Sim, provavelmente sou alemão… — anuiu. — Fala russo lindamente — observou Bezdómni. — Oh, sou poliglota, falo um número considerável de línguas —

respondeu o professor. — Mas qual é a sua profissão? — quis saber Berlioz. — Sou especialista em magia negra.«Esta agora!...», tamborilou na cabeça de Mikhaíl Aleksândrovitch. — Quer o senhor dizer que… foi convidado para dar aqui consul-

tas nesta área? — titubeou. — Sim, nesta área — confirmou o professor e especificou: — Aqui,

na Biblioteca Pública, foram descobertos manuscritos autênticos de Gerbert d’Aurillac, mestre em magia negra do século x11. Então, precisam que os interprete. Sou o único especialista no mundo.

— Compreendo! O senhor é historiador, então? — perguntou Berlioz com grande alívio e respeito.

— Sou historiador — asseverou o cientista e acrescentou sem qualquer propósito: — Hoje à noite, no Patriárchie Prudi vai acon-tecer uma história curiosa!

De novo o redactor e o poeta ficaram pasmados, mas o professor fez-lhes sinal para se aproximarem e, quando se inclinaram para ele, segredou-lhes:

— Tenham em conta que Jesus Cristo existiu. — Desculpe, professor — retorquiu Berlioz com um sorriso for-

çado —, temos muito respeito pela sua grande erudição, mas neste aspecto continuamos a acatar outro ponto de vista.

— Os pontos de vista são desnecessários — respondeu o estranho professor —, existiu e pronto, está tudo dito.

— Mas é preciso ter alguma prova… — começou Berlioz. — As provas também não são precisas — respondeu o professor e

falou a seguir em voz baixinha, e o sotaque, por qualquer razão, desapareceu-lhe: — É simples: de capa alva com forro sangrento, em passo arrastado de cavaleiro apeado, de manhã bem cedo a 14 de Nissan, mês primaveril…

11 Gerbert d’Aurillac (938-1003) — grande erudito do século x, teólogo, papa de Roma com o nome de Silvestre II desde 999, tinha fama de alquimista, mágico negro e feiticeiro.

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