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1 Os perigosos: uma análise da construção do usuário de drogas como inimigos da ordem pública 1 Aknaton Toczek Souza 2 Pedro Rodolfo Bodê de Morais 3 Resumo: O artigo tem como tema o controle social e busca analisar se o seu exercício através da prisão tem servido como uma política pública aos usuários de drogas em situação de pobreza. Para tanto, foi realizado um estudo de caso em processos criminais, onde existe a prisão preventiva de pessoas envolvidas com o consumo de drogas, visando compreender o discurso que fundamenta a prisão. Artigo parte do pressuposto da existência de várias formas de controle social, que se encontram dispersas na sociedade em diversas formas. Desta maneira, o controle social não é algo inerente à sociedade ou natural, mas sim socialmente construído, sendo um efeito do processo de socialização que dentro de um tipo ideal pode ser normal, através de mecanismos de integração social que promovam coesão e solidariedade; ou perverso, através de mecanismos que buscam excluir os conflitos, diferenças e mascarar as desigualdades, reiterando estigmas e prenoções, resultando em um estado de anomia. Uma das formas de controle social perverso é a prisão, incentivado por programas de segurança pública e realizado através do sistema de justiça criminal, resultando em uma forma de política pública. É importante destacar que considero todas as ações do Estado para implementar e/ou ofertar serviços como política pública, nesse conceito a prisão é uma política pública. A genealógica foucaultiana da politica antidrogas, é peça chave para o entendimento das relações de saber/poder que fundamentam formas de controle social, onde não só as substâncias são valoradas socialmente de modo negativo e legalmente como “ilícitas”, mas também incidem diretamente sobre os corpos que passam a serem vistos como “classes perigosas”, como perigo à ordem pública. Este artigo é fruto do debate e da pesquisa de mestrado em sociologia política na UFPR. Palavras-chave: Controle social; drogas; representações. Introdução O tema deste artigo é o controle social e busca analisar se o seu exercício através da prisão tem servido como uma política pública aos usuários de drogas. Assim optou-se em dividir o artigo três pontos sequenciais e interligados. Sequenciais, pois a análise partirá do tema central controle social , para posteriormente pensar controle 1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN. 2 Aknaton Toczek Souza é aluno bolsista (CAPES) do mestrado em Sociologia Política pela Universidade Federal do Paraná, especialista em Sociologia Política, e em Direito Penal e Criminologia ambas pela Universidade Federal do Paraná, é bacharel em Direito. Participa do Centro de Estudos em Segurança Pública e Direitos Humanos da Universidade Federal do Paraná. 3 Professor Adjunto do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Paraná. Coordenador do Centro de Estudos em Segurança Pública e Direitos Humanos - UFPR

ordem pública1 Resumo - 29rba.abant.org.br · Federal do Paraná, especialista em Sociologia Política, e em Direito Penal e Criminologia ambas pela Universidade Federal do Paraná,

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Os perigosos: uma análise da construção do usuário de drogas como inimigos da

ordem pública1

Aknaton Toczek Souza2

Pedro Rodolfo Bodê de Morais3

Resumo: O artigo tem como tema o controle social e busca analisar se o seu exercício

através da prisão tem servido como uma política pública aos usuários de drogas em

situação de pobreza. Para tanto, foi realizado um estudo de caso em processos criminais,

onde existe a prisão preventiva de pessoas envolvidas com o consumo de drogas,

visando compreender o discurso que fundamenta a prisão. Artigo parte do pressuposto

da existência de várias formas de controle social, que se encontram dispersas na

sociedade em diversas formas. Desta maneira, o controle social não é algo inerente à

sociedade ou natural, mas sim socialmente construído, sendo um efeito do processo de

socialização que dentro de um tipo ideal pode ser normal, através de mecanismos de

integração social que promovam coesão e solidariedade; ou perverso, através de

mecanismos que buscam excluir os conflitos, diferenças e mascarar as desigualdades,

reiterando estigmas e prenoções, resultando em um estado de anomia. Uma das formas

de controle social perverso é a prisão, incentivado por programas de segurança pública e

realizado através do sistema de justiça criminal, resultando em uma forma de política

pública. É importante destacar que considero todas as ações do Estado para implementar

e/ou ofertar serviços como política pública, nesse conceito a prisão é uma política

pública. A genealógica foucaultiana da politica antidrogas, é peça chave para o

entendimento das relações de saber/poder que fundamentam formas de controle social,

onde não só as substâncias são valoradas socialmente de modo negativo e legalmente

como “ilícitas”, mas também incidem diretamente sobre os corpos que passam a serem

vistos como “classes perigosas”, como perigo à ordem pública. Este artigo é fruto do

debate e da pesquisa de mestrado em sociologia política na UFPR.

Palavras-chave: Controle social; drogas; representações.

Introdução

O tema deste artigo é o controle social e busca analisar se o seu exercício

através da prisão tem servido como uma política pública aos usuários de drogas. Assim

optou-se em dividir o artigo três pontos sequenciais e interligados. Sequenciais, pois a

análise partirá do tema central – controle social –, para posteriormente pensar controle

1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de

agosto de 2014, Natal/RN. 2 Aknaton Toczek Souza é aluno bolsista (CAPES) do mestrado em Sociologia Política pela Universidade

Federal do Paraná, especialista em Sociologia Política, e em Direito Penal e Criminologia ambas pela

Universidade Federal do Paraná, é bacharel em Direito. Participa do Centro de Estudos em Segurança

Pública e Direitos Humanos da Universidade Federal do Paraná. 3 Professor Adjunto do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Paraná.

Coordenador do Centro de Estudos em Segurança Pública e Direitos Humanos - UFPR

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social exercido sobre o que ou para o que – as drogas -, que ao fim interferem sobre as

vidas, sujeitos ou os corpos. O sujeito é quem carrega a canga, ou seja, o controle social

que é exercido através de políticas públicas que regulam ou controlam as ações

humanas relacionadas com determinadas substâncias. Por isso é interligado. Não teria

sentido, ao menos com a análise proposta neste artigo, discutir o controle social sem um

objeto concreto, real, - a droga –, e suas implicações aos sujeitos que de alguma forma

interagem com essa dinâmica.

Assim a primeira análise recai sobre o controle social. Como esta noção está na

gênese da sociologia, realizou-se uma pequena sociogênese da origem deste conceito.

Para tanto essa análise foi retomada a partir dos autores clássicos, sobretudo via

Durkheim, contudo pensou-se em tensionar com as teorias foucaultinas sobre

poder/saber e com a noção de empreendedores morais de Howard Becker. O controle

social foi analisado não abstratamente, mas sim concretamente através das drogas,

assim a noção de controle social vai se afunilando para o controle social exercido sobre

as drogas. Por isso se utilizou diversos autores, conceitos sociológicos e dados

etnográficos específicos desta forma de controle social, que no Brasil – e em boa parte

do mundo – é exercida através de políticas públicas, que aqui é chamada de políticas

antidrogas.

A política antidrogas agora tem necessidade de ser compreendida. Como e por

que se desenvolveu esta forma específica de controle – jurídico, criminal, relacionado à

segurança pública – social sobre a interação do homem com certas substâncias. Quais

foram os saberes que deram legitimidade e força – poder – ao empreendimento

proibicionista. Assim preocupou-se muito mais com uma análise genealógica no sentido

foucaultiano, do que propriamente com uma análise histórica, embora inegavelmente os

dados históricos foram fundamentais para compreender determinadas relações. Aqui

também se utilizou de dados etnográficos, sobretudo entrevistas realizadas com

operadores do sistema jurídico criminal – a saber, promotores, juízes e outros

serventuários – responsáveis pela aplicação das políticas criminais.

O controle social que resulta em uma política antidrogas que recai sobre

sujeitos. Esta forma de controle social acaba por classificar e categorizar sujeitos. Na

presente análise se optou uni-los sobre o conceito de “classes perigosas”. Assim, ao

final e como conclusão, se tentou analisar a interação dos sujeitos categorizados com

aqueles responsáveis por está categorização. Ou seja, a interação entre os sujeitos e o

controle social, que por sua vez é exercido através de instituições e institutos legais, que

3

são operados e empreendidos por outros sujeitos. Pela característica sequencial, este

último ponto, é a conclusão do artigo.

1 Controle Social

A origem do controle social como tema confunde-se com a origem das ciências

sociais, ocupando um lugar de importância dentro da sociologia. Por ser um tema há

muito presente, sendo foco de estudos de diversos autores no decorrer do séc. XIX e

XX, apresentando assim diversas minúcias, aplicações e noções que podem até mesmo

inutilizar o conceito pela sua total abrangência, cumpre fazer uma breve sociogênese do

conceito dentro da sociologia.

Todavia, após estabelecida à origem do conceito, suas aplicações e problemas, o

objetivo é analisar o controle social em Michel Foucault e Howard Becker, ou seja,

como pensar o controle social nesses autores, que contribuições e caraterísticas eles

oferecem para este conceito, sobretudo, quando aplicadas às políticas proibicionistas

antidrogas.

O termo controle social torna-se popular entre os anos de 1896 e 1898 após a

publicação de vários artigos escritos por E.A. Ross no American Journal of Sociology,

que posteriormente foram reunidos no livro Social Control: A Surveyof The Formation

of Order, publicado em 1901. Neste livro o autor aborda a manutenção da “ordem”,

entendida como a forma pela qual a sociedade se organiza, indagando-se sobre os

fundamentos e meios de controle que permitem a vida em comum, argumentando que

estes são sociais e estão distribuídos em diversas instituições, práticas e atributos,

formando-se à medida que os próprios indivíduos e a sociedade se constituem. Assim, o

controle social não é algo natural ou pré-existente aos indivíduos e à sociedade, mas

sim, algo socialmente construído (GURVITCH, 1965).

O controle social encontra-se disperso na sociedade, e não pode ser visto como

um elemento necessariamente negativo, pois ele é efeito do processo de socialização,

está presente da família à prisão. Neste ponto a teoria de Durkheim vem de encontro

com essa análise, pois ele ao investigar como as sociedades se mantém coesas,

considerou que o controle social é efeito do processo de socialização existente e

problematizou como é mantida a coesão social, através da chave explicativa da

integração social.

Emile Durkheim e sua escola dedicaram seus esforços no estudo dos

símbolos, valores, ideias e ideais sociais e o papel que estes

4

desempenham em vários tipos de sociedade. (...). A escola de Durkheim

promoveu amplamente o estudo do “controle social, contudo acentuou as

relações funcionais existentes entre as manifestações culturais estudas e

os tipos de sociedades. (GURVITCH, 1965, p. 244)

Durkheim (2010) reflete sobre o que gera coesão social, lançando as bases de

uma teoria da solidariedade, que se daria pela consciência coletiva, gerando integração e

coesão social. Durkheim ainda denomina de solidariedade mecânica aquelas presentes

nas sociedades tradicionais ou primitivas, onde o sujeito estaria ligado diretamente à

sociedade. Desta forma, prevaleceria em suas ações aquilo de mais adequado à

consciência coletiva. Essa forma de solidariedade é marcada pela religião como base da

estrutura social; por outro lado a solidariedade orgânica, típica das sociedades modernas

e complexas, onde existe uma divisão do trabalho social, requerendo-se cada vez mais

especialistas, aumentando as interações interpessoais, ampliaria ainda mais a divisão do

trabalho social.

Dentro dessa perspectiva, o controle social é um efeito do processo de

socialização, e portanto inerente as relações humanas, não trazendo em si a canga do

bom ou mau, assim como a noção de conflito social que não pode ser visto apenas como

opositor a ordem, mais sim como elemento de integração social. Desta forma contrário

ao funcionalismo de Talcott Parsons, é possível pensar em formas de controle social que

buscam internalizar o conflito, ou seja, que consideram os conflitos sociais como

elementos constitutivos da sociedade, seguindo assim a sugestão de Georg Simmel

(1983), para quem o conflito é uma das forças integradoras do grupo social.

Desta forma, não se pode aceitar noções de controle social que sejam reduzidas

apenas a coação ou a violência. Embora algumas formas do exercício do controle social

busquem incorporar o conflito como algo normal, reconhecendo diferenças e buscando

diminuir a desigualdade, há outras formas do exercício do controle social onde o

conflito é opositor a ordem social, devendo assim, ser excluído.

Pois bem, considerando o controle social como algo disperso na sociedade, não é

aceitável considerar seu exercício monopolizado ou centralizado no Estado, embora não

se possa negar que este seja responsável por algumas formas de controle social exercido

por políticas públicas4 que visam excluir conflitos sociais através, por exemplo, da

prisão.

4 Considera-se como política pública, todas as ações do Estado no sentido de ofertar e/ou implementar

serviços, assim, a prisão seria uma forma de política pública, seguindo deste modo, a orientação de Löic

Wacquant (2008).

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Michel Foucault colabora com o estudo do controle social ao ultrapassar uma

visão puramente instrumental do controle social, embora ele não utilize de modo

significativo este conceito. Foucault em suas obras utiliza uma perspectiva mais

complexa, analisando as práticas de poder, que ultrapassam uma visão instrumental ou

funcional do controle social, funcionando como produtoras de comportamentos, formas

de saber e de subjetividade (ALVAREZ, 2004)

A psiquiatria se instala com o discurso da verdade, da razão, afastada, portanto

da desrazão que representava a loucura. Assim a linguagem psiquiátrica cria-se como

monologo da razão sobre a loucura. A criação de um saber que propaga um discurso de

verdade (aqui como ciência), desenvolvendo um espaço, discurso e posições entre os

que dizem, classificam e os que são classificados, permite uma estrutura onde o

psiquiatra (ou o médico) assume uma posição onipotente, quase divina, sendo

propagador da verdade (FOUCAULT, 2013).

O importante, creio, é que a verdade não existe fora do poder ou sem

poder (...). A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a

múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada

sociedade tem seu regime de verdades, sua “política geral” de verdade:

isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como

verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os

enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e

outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a

obtenção de verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo d dizer o que

funciona como verdadeiro. (FOUCAULT, 2014: 10)

Assim, para Foucault (2014) existe uma “luta pela verdade”, ou no mínimo, “em

torno da verdade”, que é entendida não como uma coisa verdadeira a ser descoberta,

mas sim, um conjunto de regras que distingue o verdadeiro do falso, estabelecendo ao

verdadeiro, efeitos específicos de poder. Dessa forma existe uma certa “economia

política” sobre a verdade, portanto, a “verdade” centrada na forma do discurso

científico e nas instituições que o produzem está submetida a uma constante pressão

econômica e política. A criação de verdade torna-se necessária para a produção

econômica e para o poder político, sendo propagada através de uma imensa difusão

(educação, meios de comunicação). A verdade acaba por ser produzida e propagada sob

o controle, dominante (ainda que não exclusivo) de alguns grandes aparelhos políticos

ou econômicos (universidade, exército, meios de comunicação, etc), sendo alvo de

debates políticos e confronto.

(...) não se trata de um combate “em favor” da verdade, mas em torno do

estatuto da verdade e do papel econômico-político que ela desempenha. É

preciso pensar os problemas políticos dos intelectuais não em termo de

“ciência/ideologia”, mas em termos de “verdade/poder”. (FOUCAULT,

2014: 10)

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Desta forma o poder exercido através saberes que propagam verdades e

desenvolvem discursos (médico, legal, judiciário e etc.) acaba por criar o objeto. Assim

esses discursos ao falarem, por exemplo, da loucura, falam sem jamais se referir a

experiências ou objetos fixos, e ainda abordam como estivessem tratando de objetos

diferentes, porém, pode haver uma regularidade entre os discursos. Portanto, o

comportamento criminosos pode dar ocasião a toda uma série de objetos de

conhecimentos variados (personalidade criminosa, fatores genéticos, sociais,

ambientais), justamente por um conjunto de regras e condições estabelecidas entre as

instituições. Porém isso nada acrescenta à criminalidade, porém a suas relações e

diferenças permitem dizer algo sobre a criminalidade enquanto discurso.

É preciso esclarecer que para Foucault (2012a: 247) “(...) o poder não é nem a

fonte nem origem do discurso”. O poder é entendido como uma relação, não está

centrada em algo, assim como não pode ser entendido como um fenômeno de

dominação maciço e homogêneo. O poder em si não existe, o que existe são as práticas

e/ou relações de poder. Assim o poder é algo que circula, contrariando o que Foucault

(FOUCAULT, 1999a: 19-20) chama de teoria jurídica clássica do poder, onde este era

considerado um direito, podendo ser possuído como um bem, que eventualmente

poderia ser vender ou transferir a alguém, sendo algo concreto. Assim o poder se opera

através do discurso, é um dos elementos no dispositivo estratégico de relação de poder.

Não, o poder não é o sentido do discurso. O discurso é uma série de

elementos que operam no interior do mecanismo geral do poder.

Consequentemente, é preciso considerar o discurso como uma série de

acontecimentos, como acontecimentos políticos, através dos quais o poder

é vinculado e orientado. (FOUCAULT, 2012a: 248)

Como as relações de poder perpassam, caracterizam e constituem o corpo social,

se estabelecendo e operando através da produção, acumulação, circulação e

funcionamento de um discurso verdadeiro. Assim para Foucault (1999a) não há

exercício do poder sem uma economia dos discursos de verdade que funcionam em uma

determinada relação de poder, a partir e através dele. “Somos submetidos pelo poder à

produção da verdade e só podemos exercer o poder mediante a produção da verdade”

(FOUCAULT, 1999a: 29), essa talvez seja uma característica da nossa sociedade atual,

onde o poder só é exercido através da produção de verdades, e assim “somos forçados a

produzir a verdade pelo poder que exige essa verdade e que necessita dela para

funcionar; temos que dizer a verdade, somos coagidos, somos condenados a confessar a

verdade ou a encontrá-la” (FOUCAULT, 1999a: 29). Assim somos submetidos à

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verdade, justamente por ela ser a norma, desta forma somos registrados, regulados,

condenados, classificados, destinados a viver e morrer em função de discursos de

verdade que trazem consigo efeitos específicos de poder.

Pensar o controle social a partir dessa perspectiva é considera-lo como um dos

efeitos das relações de poder. Assim as diferentes formas de controle social na

sociedade, são efeitos de discursos de verdade que acabam por virarem práticas,

técnicas e instrumentos de controle. Esses feitos do poder são exercidos sobre cada

indivíduo, fabricando-o e impondo-lhe uma identidade, ou seja, a individualidade,

segundo Foucault (2012b: 22-23) ela é hoje completamente controlada pelo poder,

somos individualizados pelo próprio poder. Esses instrumentos de poder temem a força

e violência dos grupos, tentando neutralizá-las através de técnicas de individualização,

que começaram a ser empregadas desde o séc. XVII pela hierarquização da escola, no

século posterior pelo registro de descrições físicas, mudanças de endereço, controle das

operações de trabalho.

Pensar o controle social como técnica/instrumento de poder, implica considerar

que o controle social é resultado de um discurso de verdade, que por sua vez propõem

práticas, técnicas e é instrumentalizado através de políticas públicas. E no que tange as

políticas públicas relacionadas à prisão – como a política antidrogas –, o sistema de

direito e campo jurídico são as instituições e saberes que propagam e divulgam com

maior eficiência verdades, que por serem resultado de uma rede, perpassada por outros

discursos de verdade, que mesmo sendo diferentes mantêm uma regularidade em

relação ao objeto. Assim as drogas e as relações sociais que permeiam esse objeto, são

classificadas por diversos saberes – medicina, psicologia, pedagogia, religião – onde os

discursos de verdade acabaram por ser recepcionados no saber/poder jurídico, como

desvio. Portanto para compreender esses saberes que baseiam as políticas criminais,

Foucault sugere:

O direito, é preciso examiná-lo, creio eu, não sob o aspecto de uma

legitimidade a ser fixada, mas sob o aspecto dos procedimentos de

sujeição que ele põe em prática. Logo, a questão, para mim é curto-

circuitar ou evitar esse problema, central para o direito, da soberania e da

obediência dos indivíduos submetidos a essa soberania, e fazer que

apareça, no lugar da soberania e da obediência, o problema da dominação

e sujeição. (FOUCAULT, 1999a: 32)

Assim em uma perspectiva foucaultiana (1999a), o sistema de direito e o campo

jurídico são veículo permanente de relações de dominação, técnicas de sujeição

polimorfas. Todavia esses saberes que assumem o status de norma jurídica,

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fundamentando formas específicas de controle social são empreendimento de

indivíduos, o que Howard Becker (2009) chamou de empreendedorismo moral.

Howard Becker diferentemente de Michel Foucault dá atenção aos indivíduos e

suas interações, procurando compreender o sentido simbólico atribuído a essas

interações. Desta forma Foucault estaria preocupado na identificação dos jogos de poder

e técnicas utilizadas para regulamentar as ações dos indivíduos por meio de práticas

classificatórias que estabeleceriam normais e saudáveis dos demais, e Becker (2009)

auxiliaria pensar que quem determina os tipos de comportamentos são considerados

anormais e problemáticos, ou seja, quem acusa quem? De que estão acusando? E em

que circunstâncias essas acusações tem êxito?

Becker (2009) em célebre livro Outsiders estuda o desvio social sob a

perspectiva do interacionalismo simbólico, inspirado em seu estudo com Everett

Hughes de 1961, chamado Boys in White: Student Culture in a Medical School. Nesse

viés Becker conclui que o desvio é criado pela sociedade, criado por aqueles que

estabelecem normas, assim para que um ato seja desviado ou não, depende da forma que

os outros se relacionam perante ele. Assim para que um ato seja desviado dependerá

também de quem comete e de quem se sente prejudicado com o ato. Assim, nas palavras

de Becker (2009: 34): “la desviación no es una cualidad intrínseca al comportamiento

en sí, sino la interacción entre la persona que actúa y aquellos que responden a su

accionar.”

Desta forma os desviados, marginais, seriam aquelas pessoas que são julgadas

pelos demais como desviadas e estão a margem do circulo de membros “normais” de

um grupo. Todavia, pode-se pensar que do ponto de vista dos que são rotulados como

desviantes, os marginais podem ser as pessoas que ditam as regras, aquelas mesmas

pessoas que os acusam de quebrá-las. Isso porque a regras, assim, como o saber/poder

que as fundamenta, são desenvolvidas por grupos sociais específicos e é preciso

reconhecer que as sociedades modernas possui uma estrutura complexa, tsendo o

conflito elemento mais presente que o consenso. “Las sociedades actuales están

altamente diferenciadas en franjas de clase social y en franjas étnicas, ocupacionales y

culturales. Estos grupos no necesariamente comparten siempre las mismas reglas; de

hecho, no lo hacen (BECKER, 2009: 34)”.

Además de reconocer que la desviación es producto de la respuesta de la

gente a ciertos tipos de conducta, a las que etiqueta de desviadas,

tampoco, debemos perder de vista que las reglas que esos rótulos

generan y sostienen no responden a la opinión de todos. Por el contrario,

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son objeto de conflictos y desacuerdos: son parte del proceso político de

la sociedad. (BECKER, 2009: 37)

As normas para Becker (2009) são o resultado da iniciativa e do

empreendimento de pessoas que ele define como “empreendedores morais”, existindo

duas espécies: os que criam as regras e os que as aplicam. O protótipo do criador de

normas é o cruzado reformista, que opera através de uma ética absoluta, e considera que

as regras existentes ainda não o satisfaz, pois ainda existem outros males a serem

corrigidos, através de outras normas. “Lo que ve es malo, total y absolutamente malo,

sin matices, y cualquier medio que se emplee para eliminarlo está justificado. El

cruzado es ferviente y recto, y las más de las veces se siente moralmente superior”

(BECKER, 2009: 167).

O termo cruzado parece apropriado ao autor, uma vez que os reformistas creem

que sua missão é sagrada, que deve salvar a sociedade de um mal. Assim pode-se pensar

que os criadores das normas, as fazem partir de saberes/poderes, que proponham

verdades, estabelecendo políticas públicas, exercidas através de técnicas e instrumentos

de controle social, com o intuito de suprimir um mal social. E um bom exemplo desses

que promovem uma cruzada contra o “mal”, segundo BECKER (2009), são os

proibicionistas, que querem suprimir os vícios.

Os cruzados agem normalmente por um forte sentimento humanitário,

acreditando estar salvando os demais, mostrando o caminho correto, bom para aquelas

pessoas, que são então o alvo de sua cruzada. Assim não sentem que estão impondo sua

moral sobre os outros, mas sim que estão gerando melhores condições de vida para as

pessoas. Esse corte humanitário das ações dos empreendedores morais é importante na

medida em que há um intercambio de apoio entre as outras cruzadas humanitárias

(BECKER, 2009). E mesmo com intensões humanitárias o poder/saber que classifica,

estabelece padrões, normatizações, disciplinas através da promulgação de verdades. Ali

o poder disciplinar ainda é exercido, porém agora de forma mais sútil.

De fato Foucault (1999a, 1999b, 2008a, 2012b) demonstra a ampliação do poder

disciplinar através de mecanismos, procedimentos, técnicas e tecnologias, nas

sociedades modernas. Para ele esse poder disciplinar transcende o aparelho estatal,

sendo incluído no cotidiano, na rotina, ou seja, técnicas cotidianas de poder garantidos

pela verdade. Assim impondo-se sobre todos. Muito embora firmados em um caráter

humanitário, os empreendedores morais, ao estabelecer um padrão de vida que

consideram adequado, ainda estão dentro da biopolítica, ou seja, do exercício do poder

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para controle e subjugação dos corpos. Em um situação análoga, estaria a política de

redução de danos que, embora calcada em uma tentativa humanista e não repressiva ao

tratar o uso de drogas, ainda exercendo biopoder através da classificação, normalização,

e do exercício de tecnologias de poder fundadas em verdades desenvolvidas pela saúde

e segurança pública (ROSA, 2012).

Pensar na economia política do saber/poder faz pensar em que instituição, ou em

quais condições nasceram às verdades utilizadas pelos empreendedores morais e a

probabilidade de governamentalização das verdades.

Este tipo de reformismo moral sugiere el acercamiento de una clase

dominante a los menos favorecidos en la estrucutura económica y social.

Generalmente, los cruzados morales quieren ayudar a los que están por

debajo de ellos a alcanzar un estatus mejor. (BECKER, 2009: 169)

Assim as cruzadas promovidas pelos empreendedores morais estão dominadas

pelos níveis mais altos da estrutura social, significando que o poder, que deriva da

legitimidade de sua posição moral se soma ao poder que deriva de sua posição social

superior (BECKER, 2009). Assim, a produção de verdades soma-se a outros interesses e

não é de outra forma que os empreendedores morais conseguem largo apoio de outras

pessoas cujo o interesse é outro além da salvação. “Así, algunos industriales apoyaron

la Prohibición porque sintieron que les garantizaría una fuerza laboral más

manejable” (BECKER, 2009: 169). Desta forma os empreendedores morais, afim de

ampliar a verdade proposta, precisam aliar-se a outros saberes/poderes, como os de

juristas para desenvolverem leis admissíveis e assim dar legitimidade à cruzada. Bem

como, a utilização da ideologia psiquiátrica, que “em los últimos años, la influencia de

los psiquiatras em otros âmbitos de la ley penal se há ido incrementado” (BECKER,

2009:171). Todavia, o que importa não é a utilização dos saberes jurídicos ou

psiquiátricos, mas sim a necessidade que os cruzados tem de recorrer a serviços

profissionais para o desenvolvimento de normas apropriadas em uma forma apropriada.

Com a ampliação e força que os saberes/poderes vão sendo utilizados como

fontes de verdades, utilizadas para não só classificar, mas também para desenvolver

técnicas e instrumentos de controle social, cujo objetivo não é simplesmente expulsar,

ou eliminar os homens da vida social, ou impedir as suas atividades, justamente o

oposto, pois são utilizados para gerir a vida dos homens, controlar seus atos para utilizá-

los ao máximo, sendo assim um objetivo ao mesmo tempo econômico e político,

aumentando o efeito do trabalho, e diminuindo a capacidade de revolta e de resistência

11

contra as ordens do poder. Desta forma aumenta-se a utilidade econômica e diminui-se a

força política. (MACHADO, 1979)

Esse tipo específico de poder, Foucault chamou de poder disciplinar, que como

as demais formas de poder atua em rede, não sendo especificamente um instrumento ou

instituto. Portanto a diferença desse poder para os demais é a sua natureza, pois ela é

uma técnica, um dispositivo, um mecanismo, que permite o controle minuciosos das

operações do corpo, que garante a sujeição constante de suas forças e lhe impõem uma

relação de docilidade/utilidade. (MACHADO, 1979)

É importante compreender a disciplina aqui como um tipo de organização de

espaço, a inserção de corpos em um espaço individualizado, classificatório e

combinatório. Todavia a disciplina não precisa necessariamente do espaço fechado para

atuar. Outra característica do poder disciplinar é o controle do tempo, assim estabelece-

se uma sujeição do corpo ao tempo, com objetivo de produzir o máximo de eficiência.

Esse controle só é possível através da vigilância, vigilância essa que precisa ser exercida

de modo contínuo e perene, ocupando todos os espaços, “deve impregnar quem é

vigiado de tal modo que este adquira de si mesmo a visão de que o olha” (MACHADO,

1979: XVIII).

E por fim o poder disciplinar exige um registro contínuo de conhecimento,

assim o poder é exercido ao mesmo tempo em que se produz o saber.

É importante assinalar que estas características são aspectos inter-

relacionados. Assim, por exemplo, quando a medicina, com o nascimento

da psiquiatria, inicia um controle do louco, ela cria o hospital, ou hospital

psiquiátrico, como um espaço próprio para dar conta de sua

especificidade; institui a utilização ordenada e controlada do tempo; (...);

monta um esquema de vigilância total que, se não está inscrito na

organização espacial, se baseia na “pirâmide de olhares” formada por

médicos, enfermeiros, serventes; extrai da própria prática os

ensinamentos capazes de aprimorar seu exercício terapêutico.

(MACHADO, 1979: XVIII) Assim é possível pensar o controle social, como o exercício do poder/saber, que

propõem verdades que são exercidas através de técnicas e instrumentos. Todavia ao

tratar do problema das políticas proibicionistas antidrogas, pode-se pensa-lo como uma

forma de controle social exercido através do poder/saber que propõem verdades, que

são governamentalizadas e institucionalizadas, e geram tecnologias e instrumentos de

poder disciplinar. Essas verdades, antes de se misturarem aos demais saberes, são

levadas a diante por empreendedores morais, que se ocupam em estabelecer o padrão de

vida e moral dos demais, e levam a diante, com auxílio de demais saberes, a

12

institucionalização dos exercícios de poder disciplinar. Essa institucionalização se dá no

caso das drogas através de políticas de segurança pública.

O Estado como ente responsável pelas políticas de segurança pública passa a

ser alvo de análise, que embora superficial é relevante para a compreensão da política

antidrogas e um dos objetos de minha investigação. Eventualmente o Estado pode

oscilar entre uma política que proponha justiça social. Por exemplo, a política

antidrogas que após a alteração da lei 11.343/06 passa a tratar o usuário com menos

rigor, não podendo ser preso em nenhuma hipótese. Todavia, ao pensar quais critérios

utilizados para diferenciar traficantes de usuários, vê-se que são todos critérios

subjetivos, não havendo critério objetivo. A quantidade e a natureza da droga são

elementos avaliados, entretanto não determinantes, mas sim “o local e as condições em

que se desenvolveu a ação, as circunstâncias sociais e pessoais, bem como a conduta e

aos antecedentes do agente.”5 Assim abre-se a uma brecha, visto que a política de

segurança pública realizada através do sistema de justiça criminal é orientada pelo

controle social perverso que além de excluir o conflito e reproduzir preconceitos e

estigmas, serve como mantenedora de interesses das classes hegemônicas, gerando um

ciclo vicioso de criminalização da marginalidade e marginalização da criminalidade

(COELHO, 2005). Desta forma o determinante para configuração do uso de drogas e o

tráfico de drogas são as características socioeconômicas do agente, baseando-se em

estigmas.

(...) os estereótipos que os policiais têm do criminoso ou do infrator

contumaz das leis constituem referencias importantes para sua atuação; e,

como os indivíduos de status socioeconômico baixo são aqueles que mais

se ajustam a tais estereótipos, são eles que constituem os alvos por

excelência da repressão policial. (COELHO, 2005: 276)

E de fato, os dados colhidos demonstram isso. Todos os processos analisados a

prova determinante para diferenciar o usuário do traficante é o depoimento dos policiais

responsáveis pela prisão. Geralmente são policiais militares que realizam a apreensão,

muitas vezes em situações controversas, como durante a madrugada, com invasão de

casas, geralmente através de denúncias anônimas, em alguns casos feitos até mesmo por

transeuntes anônimos. Por isso nota-se no processo uma estratégia de argumentação do

ministério público e do juiz para legitimar a palavra dos policiais – afinal elas são as

5 Artigo 28 §2º da lei 11.343/06: Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz

atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se

desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do

agente.

13

únicas provas geralmente -, com argumentos como o depoimento dos policiais serem

uníssonos. Em uma entrevista com um membro do Ministério Público ele deixa clara a

importância da palavra policial: “No tráfico, nos crimes de tráfico como regra se dá 90

% dos casos com a prova feita pela polícia, então se eu desautorizar, se eu partir de um

pressuposto que o policial militar estiver mentindo por alguma razão, desarticula toda a

sistemática probatória do crime de tráfico.”

Todavia ao perguntar do perfil dos presos por tráfico, todos os entrevistados

tem a plena consciência que majoritariamente são pessoas pobres, sem escolaridade,

sem trabalho formal – normalmente autônomos –, afirmando até que em muitos casos

são usuários de drogas que realizam pequenos atos de traficância para manter o vicio.

Contudo, mesmo que perante o juiz ou mesmo na delegacia o acusado se declare

usuário – muitas vezes apreendido com pouca quantidade de droga -, a palavra do

policial contradizendo, por exemplo ao informar que no momento da abordagem ele

confessou a traficância foi suficiente para ensejar a condenação nos processos vistos.

Porém o usuário de drogas é visto como um doente pelos operadores do sistema

criminal, um doente que precisa de tratamento, sendo uma consequência do tráfico.

Todavia essa discussão toma sentido ao ver os dados dos que são presos pelo “crime” de

uso de drogas, quase todos com porte de maconha, e como disse um serventuário da

justiça: “crack é lá do outro lado”, se referindo ao justiça comum e assim ao crime

tráfico. Por mais que exista uma preocupação de saúde pública em relação ao usuário,

este é facilmente acusado – e na maioria dos casos – e condenado pelo crime tráfico de

drogas, mesmo por que a figura do traficante-usuário é reconhecida pelos operadores,

porém como informou um magistrado “o uso não exclui o tráfico”.

Assim política antidrogas enquadra-se dentro dessa dualidade, onde embora

existam políticas de redução de danos6, a orientação principal ainda é a repressão

policial. É importante deixar claro que considero as políticas antidrogas, realizadas

através do sistema de justiça criminal uma política pública, contrariando a ideia que esta

tem um caráter eminentemente social e positivo. Considero que todas as ações do

Estado para implementar e/ou ofertar serviços como políticas públicas, nesse conceito a

prisão é uma política pública, alinhando-se a reflexão de Löic Wacquant (2007, 2008)

para quem há uma relação direta entre o declínio do Estado Social e a emergência do

Estado Penal (MORAES & KULAITIS, 2013).

6 Política que procura uma abordagem mais humana e pragmática fundamentada na minimização dos

prejuízos causados pelo consumo de drogas.

14

Ao mesmo tempo causa e efeito da erosão do espaço público, o declínio

das instituições locais (comércio, igrejas, associações de bairro e serviços

públicos) chegou a um grau quase equivalente ao de um deserto

organizacional. A origem da espantosa degradação do tecido institucional

e associativo do gueto é encontrada, mais uma vez, no recuo repentino do

Estado de bem-estar social, o que solapou a infra-estrutura que permitia

às organizações públicas e privadas desenvolver-se e subsistir nos bairros

estigmatizados e marginalizados. (WACQUANT, 2008: 39)

Para analisar com mais detalhes essa forma do exercício do poder, será

necessário pensar a política criminal, e tencionar essa perspectiva com a genealogia das

políticas antidrogas.

2 Política antidrogas

Para compreender a política antidrogas atualmente no Brasil, é necessário

compreender o seu desenvolvimento histórico, isto é, perceber em que conjunturas se

desenvolveu um discurso unitário que propunha uma verdade, enquanto, todos os

demais saberes locais eram desqualificados, deslegitimados, chamados a intervirem

contra aquele discurso, que além de unitário, busca filtrá-los, hierarquizá-los em nome

de um conhecimento verdadeiro baseado na ciência que apenas alguns possuíam.

(ROSAS, 2012).

Para tanto, Michel Foucault colabora com essa análise através de seu projeto

genealógico, onde visava dar voz aos saberes sujeitados, ou seja, saberes nomeados

como não conceituais, insuficientes, hierarquicamente inferiores. Segundo Foucault

(1999a) esses saberes sepultados que forneceram a crítica aos discursos nos últimos

anos. Assim genealogia pode ser considerada como o acoplamento dos conhecimentos

eruditos e das memórias locais, permitindo a constituição de saber histórico das lutas e a

utilização desse saber nas táticas atuais.

(...) dizer genealógica, vocês vêem que, na verdade, não se trata de forma

alguma de opor à unidade abstrata da teoria a multiplicidade concreta dos

fatos; não se trata de forma alguma de desqualificar o especulativo para

lhe opor, na forma de um cientificismo qualquer, o rigor dos

conhecimentos bem estabelecidos. Portanto, não é um empirismo que

perpassa o projeto genealógico; não é tampouco um positivismo, no

sentido comum do termo, que o segue. Trata-se, na verdade, de fazer que

intervenham saberes locais, descontínuos, desqualificados, não

legitimados, contra a instância teórica unitária que pretenderia filtrá-los,

hierarquiza-los, ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiros,

em nome dos direitos de uma ciência que seria possuída por alguns. As

genealogias não são, portanto, retornos positivistas a uma forma de

ciência mais atenta ou exata. As genealogias são, muito exatamente,

anticiências. (...). Trata-se da insurreição dos saberes. Não tanto contra os

conteúdos, os métodos ou os conceitos de uma ciência, mas a insurreição

sobretudo e acima de tudo contra os efeitos centralizadores de poder que

são vinculados à instituição e ao funcionamento de um discurso científico

15

organizado no interior de uma sociedade como a nossa. (FOUCAULT,

1999a: 13-14)

Assim, a proposta foucaultiana busca travar um combate contra os efeitos do

poder, próprio de um discurso considerado científico, e é nesse conflito entre os fluxos

de poder que se instituem as normas, ritos, direitos, que visam regular a vida do

indivíduo. Portanto através desse embate surgem novos conceitos, tecnologias, saberes,

sujeitos e conhecimentos que podem estabelecer valores. Tais valores acabam por ser

cristalizados institucionalmente através de regras jurídicas, que além de agir e inscrever

nos corpos dos indivíduos, também são exercidos através de políticas públicas, que no

caso das drogas acontece através de medidas disciplinadoras.

Ao contrário do que é passado pelo discurso comum sobre a droga, a proibição

está muito mais relacionada com os aspectos morais do que com questões de segurança

pública e saúde. A moral é a fonte da verdade que acaba por influenciar outras fontes de

saber, que embora, tratem o objeto de forma diferente, permanecem com o teor moral

inabalável. Assim “trata-se de uma governamentalização das drogas, de uma biopolítica

que apresenta verdades que devem ser elucidadas a população e não mais reproduzidas

da forma com que ocorre hodiernamente” (ROSAS, 2012: 30).

Por esta palavra, governamentalidade, entendo o conjunto constituído

pelas instituições, os procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as

táticas que permitem exercer essa forma bem específica, embora muito

complexa, de poder que tem por alvo principal a população, por principal

forma de saber a economia política e por instrumento técnico essencial os

dispositivos de segurança. Em segundo lugar, por governamentalidade

entendo a tendência, a linha de força que, em todo o Ocidente, não parou

de conduzir, e desde há muito, para a preeminência desse tipo de poder

que podemos chamar de governo sobre todos os outros soberania,

disciplina e que trouxe, por um lado, o desenvolvimento de toda uma

série de aparelhos específicos de governo [e, por outro lado], o

desenvolvimento de toda uma série de saberes. Enfim, por

governamentalidade, creio que se deveria entender o processo, ou antes, o

resultado do processo pelo qual o Estado de justiça da Idade Média, que

nos séculos XV e XVI se tornou o Estado administrativo, viu-se pouco a

pouco governamentalizado. (FOUCAULT, 2008: 143-144)

Assim as classificações sobre algumas substâncias que passam a serem

valoradas socialmente de modo negativo como “drogas” e legalmente como “ilícitas”,

são construções relativamente recentes na história do homem. Muitas das substâncias

ilícitas consumidas no Brasil, são utilizadas pelos homens há séculos, sendo

criminalizadas apenas no século XX.

A história do controle internacional de drogas é bastante recente, mas não

menos intrigante. Apesar de haver hoje uma relação próxima entre uso de

drogas e proibição, o consumo e a circulação de substâncias como

cocaína, ópio e cannabis eram legais até o início do século XX, quando

16

eram comumente usadas sob a forma recreativa ou medicial. Nos

primeiros anos do século passado, Noé entanto, essas três drogas mais

consumidas foram banidas. (RODRIGUES,2006: 26.)

No período da idade média nota-se por sua vez a ausência da proibição,

entretanto havia alguns limites morais impostos pela religião católica, tais limites foram

flexibilizados ou endurecidos, no decorrer da história. Um exemplo é o ópio que

durante o XVIII e XIX tornou-se um produto de elevada importância, sendo

amplamente aceito pela sociedade, inclusive pela igreja, o que não foi um óbice para a

proibição de alucinógenos, estes fortemente ligados aos rituais pagãos. Assim pode-se

perceber que as primeiras proibições em relação às drogas são referentes à moral e à

religião, e não ao caráter terapêutico ou medicinal da droga, sendo assim, passa-se a

impor um padrão mundial de controle do uso, comércio e consumo baseado em um

padrão cultural hegemônico.(RODRIGUES, 2006).

Essas substâncias não eram apenas relacionadas às populações originárias, tal

qual a coca aos autóctones do planalto andino, mas também teve um amplo interesse

comercial e farmacológico, assim a coca, não só era vista como uma substância de

cunho religioso, mas para os espanhóis, ao perceberem as qualidades estimulantes,

passaram a estimular a produção visando estimular o trabalho dos camponeses e

mineiros da Bolívia e Peru. Bem como a cannabis, que embora no Brasil tivesse uma

importância relacionada à cultura popular, nos Estados Unidos tornou-se uma

mercadoria extremamente lucrativa do agronegócio, tendo entre seus produtores

Benjamin Franklin e Thomas Jefferson (ROSAS, 2012).

Com o desenvolvimento das ciências medicinais, farmacêuticas e químicas

diversas substâncias, tais como coca e ópio, passaram a ser legitimadas pelo

cientificismo médico. Assim era comum a prescrição de láudano, substância

desenvolvida no séc. XVII, composta por álcool e ópio, para tratar diversas patologias.

“Foi o medicamento, utilizado como instrumento técnico e científico, que possibilitou

ao discurso médico uma ação transformadora sobre o corpo doente, dando eficácia à

medicina” (ROSAS, 2012: 32). Assim, o interesse pelas substâncias, bem como a

utilização deliberada delas, fez como que elas fossem tratadas com maiores cuidados,

visto inúmeros problemas para a saúde gerados pelo consumo. A heroína surge em

1874, considerada o substituto sintético do ópio e da morfina, que não causava

dependência, nem males a saúde. E para combater os males causados pela heroína, que

não tardaram a ser descobertos, passaram a utilizar a cocaína, que havia sido sintetizada

em 1860. Prescrita por causar menos dependência, a cocaína passou a ser produzida por

17

grandes laboratórios, além de a coca ter sido exportada para diversos países, que

possuíam condições de aclimatação da planta.

Os problemas relatados decorrentes do uso de drogas chegam ao Brasil no

início do séc. XIX, e em 1912 intensificam-se nas mídias brasileiras matérias referentes

ao abuso de drogas, suicídios e crimes relacionados com essas substâncias. As matérias

eram mais frequentes nas seções policiais que influenciavam campanhas de denúncia e

moralização. Assim tematizou a elaboração de um plano internacional e outro nacional

para políticas sanitárias, que reformava e regulava o serviço sanitário, prevendo até

mesmo o surgimento de uma polícia sanitária, responsável por regular e controlar as

farmácias e drogarias, além, do cumprimento de leis relativas à prevenção e repressão

de tudo que pudesse comprometer a saúde pública. Todavia, demonstrando a força do

poder/saber medicinal, desde 18907, já se previa o controle sobre vendas de venenos em

geral, bem como o crime contra a saúde pública (ROSAS, 2012).

Portanto, o surgimento das primeiras políticas proibicionistas ocorreu de

forma mais intensa no momento em que o consumo de drogas passou a

ser reconhecido pela comunidade médica como algo perigoso à saúde

humana. Através da cruzada puritana que anunciava o aumento do uso

maléfico de determinadas substâncias em detrimento do importante lugar

de deus, resultando na intensificação da repressão e do controle sobre as

drogas pro meio de políticas que restringiam o consumo das drogas que

modificavam os estados de consciência. (ROSAS, 2012: 34)

Muito embora a atual política de controle de drogas tenha sua origem arraigada

em aspectos religiosos e morais, nota-se claramente um exacerbado discurso sanitarista

como argumento de proibição e repressão, o que não impede a coexistência entre

substâncias ilícitas e substâncias terapêuticas legais.

Não se deve esquecer que a definição de droga sempre foi um conceito

antes de tudo moral, que vai acarretar, posteriormente, seu conteúdo

ilícito e criminal. O novo Estado Moderno, portanto, une o poder

religioso ao poder médico para guardar um conjunto de normas

reguladoras da vida pessoal, em especial do consumo de drogas.

(RODRIGUES, 2006: 31)

Essa diferenciação entre as substâncias – lícitas e ilícitas – é dada por um

critério político-legal, mostrando-se muitas vezes controvertida, característica alias

muito comum dentro desse tema, pois mesmo a palavra “droga” tem sua definição

controversa, uma vez que não existe uma origem clara, Rodrigues (2006: 16), aponta

como provável origem do termo do holandês antigo “droog”, que significa folha seca,

provavelmente por ser a forma da imensa maioria dos medicamentos antigos. A

confusão aumenta na utilização frequente da palavra “droga” que nada define, sendo

7 Decreto nº 847 de 11 de outubro de 1890.

18

uma maneira genérica de incluir todas as substâncias que alteram ou modificam as

condições psíquicas ou físicas do homem, quase sempre associada a ilegalidade.

Algo sí parece estar claro: la palabra droga no puede definirse

correctamente porque se utiliza de manera génerica para incluir toda una

serie de sustancia muy distintas entre sí, incluso en “su capacidad de

alterar las condiciones psíquicas y/o físicas”, que tiene en común

exclusivamente el haber sido prohibidas. Por otra parte, la confusión

aumenta cuando se compara una serie de sustancias permitidas, con igual

capacidad de alterar esas condiciones psíquicas y/o físicas, pero que no se

incluyen en la definición de droga por razones ajenas a su capacidad de

alterar esas condiciones, como por ejemplo el caso del alcohol. (DEL

OLMO, 1998: 3)

A transformação das drogas em um problema social e a necessidade de

medidas de controle, foram levadas a diante através de empreendedores morais, como o

Anti-Saloon League, fundado em 1893, que apoiava ataques aos saloons para combater,

o que consideravam ser os maiores vícios da sociedade: jogos de azar, prostituição e o

consumo de álcool. Assim através da aprovação da Food and Drug Act (Lei Federal

sobre alimentos e drogas) em 1906, a situação começa a ser alterada, pois, embora não

proibisse qualquer droga, regulamentava, passando a permitir a intervenção e o controle,

o que se estendeu aos hábitos de uma parcela da população, alvo das corporações

policiais, teorias médicas e psicólogos. Assim o surgimento do termo” uso abusivo de

drogas”, passou a ser utilizadas com bastante frequência por esses profissionais,

geralmente relacionado com aspectos étnicos, como mexicanos consumidores

inveterados de maconha, chineses consumidores de ópio, irlandeses alcoolistas e por

fim a cocaína aos negros.

Assim o caráter ilícito da droga surge junto com o discurso médico sanitarista,

que permitia a intervenção na vida das pessoas, estabelecendo padrões de condutas,

classificação do normal e do desviante ou problemático segundo critérios subjetivos,

que apresentavam uma verdade que não é somente institucionalizada, mas também

governamentalizada (ROSAS, 2012).

(...); penso ainda na maneira como um conjunto tão prescritivo quanto o

sistema penal procurou seus suportes ou sua justificação, primeiro, é

certo, em uma teoria do direito, depois, a partir do século XIX, em um

saber sociológico, psicológico, médico, psiquiátrico: como se a própria

palavra da lei não pudesse mais ser autorizada, em nossa sociedade, senão

por um discurso de verdade. (FOUCAULT, 1999a: 19)

Durante a experiência etnográfica foi possível constatar o cruzamento do

discurso moral, religioso e medicinal. Em diversas entrevistas o usuário é visto como

um ser incompleto com falta de valores. Em outras entrevistas me foram indicados

como especialistas no tema pastores que possuem “clinicas” de tratamento ao usuário; a

19

importância de fé para o tratamento; em uma entrevista pedi ao magistrado uma

indicação de leitura sobre a questão do uso de drogas, e me foi indicado livros espiritas

que tratam do tema. A questão medicinal também é frequente nas entrevistas, um

promotor narrou: “Se essas autoridades sanitárias [ANVISA] entenderam que aquela

droga é proibida, eu tendo que tem que ser cumprida. Quem tem a competência para

determinar se aquilo faz mal ou não é a área médica.”

O discurso moral, religioso alia-se a outros saberes medicinais estabelecendo

uma verdade científica incontestável, que sujeita outros saberes ao escafandro utilizado

no mar dos discursos negados e rejeitados. Essa verdade do discurso científico dá forças

a implementação de todo o aparato legal proibicionista antidrogas que desenvolve-se

internacionalmente e localmente. Esse discurso implica controle dos corpos, que por

sua vez, sofrem graves e intensas consequências.

3 Classes perigosas

As consequências dos discursos de verdade sobre as drogas, exercidos nesse

âmbito, através políticas públicas que utilizam-se de uma lógica de controle social

realizado através do exercício de um poder disciplinador, acabam por atingir

intensamente os sujeitos que são alvo desses saberes. Naturalmente a criação de um

padrão normal, acaba por criar os anormais, e dependendo da econômica política que

envolve o poder, poderão ser vistos como loucos, doentes, criminosos, desviados,

outsiders, e independente da nomenclatura utilizada, um perigo.

Ao analisar o conceito de outsiders e estudar o desvio social, Howard Becker

(2009) refuta as análises simplistas como as oferecidas pelas estatísticas, que reduzem o

problema descartando muitas perguntas sobre a natureza do desvio. O ponto de vista

que considere o desviado é algo patológico, e assim releva a presença de uma

enfermidade, perspectiva ainda muito comum quando o assunto é uso de drogas, assim

o desvio é visto como uma desordem mental, e o uso de drogas é visto como um

sintoma de enfermidade mental.

Nessa perspectiva é natural que aquele que vende as substâncias consideradas

drogas, os traficantes, sejam vistos de forma extremamente depreciativa, pois se os

usuários são vistos como sintoma de enfermidade mental, ou seja, possíveis doentes,

incapazes de se auto regular, os que vendem passam a serem vistos como enganadores,

que utilizam a inocência ou a doença do outro para lucrarem. Essa imagem só se altera

por fim 1988 em uma convenção promovida pelas Nações Unidas, que estabelece um

comprometimento, por parte de governos internacionais, em participar, implementar e

20

ratificar os tratados propostos, chegando ao consenso entre as nações em considerar as

drogas ilícitas um desafio coletivo global, no qual a política utilizada deve ser a de

repressão, baseada na cooperação e corresponsabilidade entre os países, deixando claro

quem são os países consumidores – vítimas – e os produtores – narcoterroristas –,

criando nesse discurso estereótipos, nesse sentido Rosa Del Olmo (1998: 6-7) explica:

(…) el estereotipo delictivo, presente desde que existen legislaciones

sobre drogas; pero que en la actualidad se ha convertido en estereotipo

político-delictivo, al recurrir al discurso político para legitimarse como

discurso jurídico (producto de la difusión del modelo geopolítico). A la

droga se la ve como “enemigo”, y al traficante – objeto central de interés

de este discurso – como “invasor” “conqusitador”, o más

específicamente como “narcoterrorista” y “narcoguerrillero”, aunque el

traficante puede bien ser ya no un individuo sino un país.

As noções médicas de saúde de enfermidade foram utilizadas também na

sociologia, que procurava classificar, diferenciar os processos sociais que gerariam

estabilidade e assim seriam funcionais, dos processos que interrompiam a estabilidade e

portanto, seriam disfuncionais. Becker (2009) afirma que tais posições – vistas

sobretudo em Talcott Parsons – não são adequadas, pois, não é fácil discriminar o que é

funcional ou disfuncional para uma sociedade ou grupo social. Assim Becker (2009: 27)

afirma que “es más sábio partir de una definición que nos permita trabajar tanto con

situaciones ambiguas como no ambiguas.”

Para Howard Becker (2009) a análise do desvio social deve ser realizada

através da perspectiva da interação entre os sujeitos. O desvio nessa perspectiva não

seria uma qualidade intrínseca do comportamento, mas a interação entre a pessoa que

atua e aqueles que respondem a sua atuação.

A mi entender, dicha presunción ignora el hecho central: la desviación es

creada por la sociedad. (…). Me refiero más bien a que los grupos

sociales crean la desviación al establecer las normas cuya infracción

constituye una desviación y al aplicar esas normas a personas en

particular y etiquetarlas como marginales. Desde este punto de vista, la

desviación no es una cualidad del acto que la persona comete, sino una

consecuencia de la aplicación de reglas y sanciones sobre el “infractor”

a manos de terceros. Es desviado quien ha sido exitosamente etiquetado

como tal, y el comportamiento desviado es el comportamiento que la

gente etiqueta como tal. (BECKER, 2009: 28)

Desta forma os marginais – aqui usuários – são aqueles julgados pelos outros

como desviados e a margem do circulo das pessoas “normais” de um grupo. Porém essa

perspectiva interacionalista permite inverter essa lógica, onde os outsiders, desviados,

seriam aqueles que ditam as regras, aos olhos dos que são julgados por elas. Assim vê-

se que não existe uma aceitação uníssona sobre as regras sociais, pelo contrário, seria

inocente (ou ardiloso) considerar que com o nível de complexidade social que temos em

21

nossa sociedade, com diversos grupos sociais, haveria uma aceitação plena sobre as

normas. As normas são criadas por grupos sociais específicos, e a capacidade de impô-

las aos outros corresponde essencialmente à diferença de poder.

Esse olhar de Becker nasce de seu estudo com Everett Hughes e da perspectiva

do interacionismo simbólico – embora diferente da de outros autores da mesma escola

(BENZECRY, 2009). E entre as tradições sociológicas Becker (2009: 14), “(...) existía

un enfoque alternativo, cuyas raíces remontan a la famosa máxima de Willian I.

Thomas: „Las situaciones que los hombres definen como reales tienen consecuencias

reales‟.” Assim, uma das consequências de rotular alguém como desviado, ou seja,

quando a pessoa é identificada como alguém que quebrou as normas, assim será

identificada, antes de qualquer outra representação, pois o desvio se converte no traço

dominante.

Tratar um individuo como se fosse um desviado, e não uma pessoa que

cometeu um desvio específico, tem o efeito de produzir uma teoria auto realizável,

põem marcha a uma série de mecanismos para dar imagem a este sujeito conforme a

imagem que os outros tem dela. Uma vez identificado como um desviado o indivíduo

tende a ser exilado de outras atividades convencionais.

El drogadicto se ve forzado a involucrarse en outro tipo de actividades

ilegales, como el robo y el hurto, como consecuencia del rechazo de sus

empleadores.

(…) Al drogadicto, popularmente considerado como un individuo falto de

voluntad que no puede renunciar a los placeres indecentes que le

proporcionan los opiáceos, se lo reprime y se le prohíbe el consumo de

drogas. Como no puede conseguir sustancias legalmente, debe obtenerlas

de manera ilegal. Esto fomenta el mercado clandestino y hace subir el

precio de la droga muy por encima de su valor legítimo en el mercado, a

niveles inalcanzables para un asalariado común. (BECKER, 2009: 53-

54)

O interacionismo simbólico teve uma forte influência sobre a Escola de

Chicago onde o Howard Becker fez parte juntamente com Erving Goffman e Anselm L.

Strauss, onde realizaram uma guinada teórica “que devolvió a la investigación

sociológica a los carriles correctos” (Becker, 2009: 15). Pode-se dizer que o

interacionismo simbólico teve sua origens no pragmatismo de John Dewey, e

desenvolvido, posteriormente, principalmente por Georg Mead. Essa perspectiva

ressalta a natureza simbólica da vida social, ou seja, que as significações sociais devem

ser consideradas como produzidas pela interação entre os agentes (COULON, 1995).

Por isso, segundo a análise de Mead (MEAD, 1934) o “eu” e os outros são construídos a

partir da interação entre os sujeitos, e por tanto o estudo sociológico deveria analisar os

processos pelos quais os sujeitos determinam suas condutas.

22

The "I" is the response of the organism to the attitudes of the others; the

"me" is the organized set of attitudes of others which one himself

assumes. The attitudes of the others constitute the organized "me," and

then one reacts toward that as an "I." (MEAD, 1934: 80)

O ambiente em que vivemos, segundo essa perspectiva, é ao mesmo tempo

simbólico e físico, é assim que nós construímos as significações do mundo e de nossas

ações, e em uma cultura comum, o conjunto de significações e valores que orienta a

maior parte de nossas ações, possibilita prever o comportamento de outros indivíduos

(COULON, 1995). Não é de outro modo que Goffman (GOFFMAN, 1985: 11) ao

estudar as representações do “eu” na vida cotidiana – utilizando genialmente analogias

do teatro afirma: “A informação a respeito do indivíduo serve para definir a situação,

tornando os outros capazes de conhecer antecipadamente o que ele esperará deles e o

que dele podem esperar.” Por isso que se o indivíduo for desconhecido, os elementos

utilizados para informar sobre o sujeito poderão ser obtidos pela conduta e aparência.

Se o indivíduo lhe for desconhecido, os observadores, podem obter, a

partir da sua conduta e aparência, indicações que lhes permitam utilizar a

experiência anterior que tenham tido com indivíduos aproximadamente

parecidos com este que está diante deles ou, o que é mais importante,

aplicar-lhe estereótipos não comprovados. (GOFFMAN, 1985: 11)

Os meios utilizados para categorizar as pessoas em uma sociedade, no presente

caso: o usuário de drogas, passa pelo processo do saber/poder, que estabelecendo uma

padronização do que é normal e o que é indesejado, problemático, e assim que tomasse

conhecimento do comportamento tido como desviado, iniciasse um processo de

estigmatização, e ao confrontar o normal – ou seja aquele que não frustram

negativamente as expectativas que estão em discussão – com uma pessoa que possui um

estigma podem ocorrer diversas formas de discriminação.

Son bien conocidas las actitudes que nosotros, los normales, adoptamos

hacia una persona que posee un estigma, (…). Creemos, por definición,

desde luego, que la persona que tiene un estigma no es totalmente

humana. Valiéndonos de este supuesto practicamos diversos tipos de

discriminación, mediante la cual reducimos en la práctica, aunque a

menudo sin pensarlo, sus posibilidades de vida. Construimos una teoría

del estigma, una ideología para explicar su inferioridad y dar cuenta del

peligro que representa esa persona, racionalizando a veces una

animosidad que se basa en otras diferencias, como por ejemplo, la de

clase social. En nuestro discurso cotidiano utilizamos como fuente de

metáforas e imágenes términos específicamente referidos al estigma, tales

como inválido, bastardo y tarado, sin acordarnos, por lo general, de su

significado real. (GOFFMAN, 2008: 17)

Para a pessoa estigmatizada existe uma insegurança acerca do modo que os

outros vão identifica-los e recebê-los, assim o estigma que gera a insegurança relativa

ao status social, somada a insegurança laboral, acaba por prevalecer sobre uma grande

variedade de interações sociais. A incerteza do estigmatizado existe não só porque

23

desconhece em que categoria ele será classificado, mas também porque desconhece a

reação ao seu estigma, deste modo, pode defini-lo em função de seu estigma. Assim,

embora, estigmatizado possa em uma interação não ser discriminado pelo estigma, este

ainda pode acompanha-lo, pois ele ainda pode sentir em seu foro íntimo, que no fundo

os outros o vêm pelo estigma. Deste modo o estigmatizado pode exilar-se da sociedade,

passando a ser uma pessoa desacreditada frente a um mundo que não o aceita.

(GOFFMAN, 2008)

Frente à possibilidade do estigma, o usuário de drogas, vê-se obrigado a manter

em segredo o seu desvio (BECKER, 2009), e caso não consiga, e seja exposto e

consequentemente estigmatizado, enfrentará as diversas consequências decorrentes do

rótulo. Em ambos os casos, os integrantes de uma categoria comum de estigma, por

exemplo usuários de crack, tendem a se reunir em pequenos grupos sociais, com outros

membros estigmatizados que derivam da mesma categoria (GOFFMAN, 2008).

No caso dos usuários de crack, a situação é ainda pior, pois aqueles que são

foco das políticas públicas, do saber/poder, das verdades, das reportagens jornalísticas e

factoides, quase sempre estão relacionados a outras situações estigmatizantes

relacionadas a posição marginal que ocupam na sociedade, aspectos como pobreza,

situação de rua e ausência de emprego formal e baixa escolaridade. Assim essas pessoas

passam a serem vistas como um problema a ser resolvido. Passam a serem vistas como

um perigo a “ordem pública8”.

“A lógica do tráfico é que é um crime que tem o poder disseminar outros.

Então é uma semente do mau que gera tentáculos. Tráfico é uma semente

do mau, e os tentáculos vão para o roubo, o homicídio, furto, então tem

várias decorrências, não é um crime que acaba ali.” (Promotor de Justiça)

As diferenças, os outros saberes refutados, que ignoram ou desconsideram o

que é estabelecido como verdade através de um saber/poder, e que por isso geram

conflitos sociais que perdem o caráter positivo, civilizatório e político afirmado

incialmente por Simmel (1983) e através de sua influência na escola de Chicago

(VELHO, 2002), reafirmado por Becker (2009), tornando o conflito algo negativo, que

não só deve ser controlado, mas, eventualmente, excluído.

8 Esse é um termo muito comum na prática jurídica, sendo um dos argumentos legais utilizados para

manter uma pessoa presa preventivamente. Concorrentemente a feitura deste artigo, analisei 20 processos

criminais de tráfico de drogas onde exista a prisão em flagrante dos suspeitos. Em todas, existe o

argumento do perigo de ordem pública para fundamentar a prisão preventiva do acusado, mesmo em

casos onde a quantidade de droga apreendida era baixa (casos entre 2 até 10 gramas) e em um dos

processos não havia sequer a apreensão de droga, apenas denúncias anônimas e o testemunho dos

policiais militares.

24

These differences will be more or less tolerated in different social

systems. Societies or social groups vary in their ability to tolerate deviant

interpretations depending on the historical moment and the type of social

structure and organization. The idea of pluralism is intimately associated

with an ideological perspective which defines the co-existence of

differences as necessary and healthy. On the other hand, authoritarian

value systems reject the possibility of such co-existence. (VELHO, 1976:

270)

Assim as consequências do saber/poder que estabelece uma verdade sobre as

drogas, age diretamente sobre os usuários, desconsiderando qualquer eventual saber ou

posicionamento, uma vez que estes quando não são tidos como loucos e doentes, são

vistos como criminosos. Assim a biopolítica exercida sobre os corpos é realizada não só

através de discursos de verdades que acabam por estigmatizar, rotular e classificar os

sujeitos, mas através de um controle social que utiliza de instrumentos e técnicas de

poder disciplinar, seja através da prisão ou através comunidades terapêuticas que

clamam por disciplina, oração e trabalho9(http://www.apublica.org/).

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9–13, jun. 2013.

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(1970). São Paulo: Loyola, 1999b.

FOUCAULT, M. Segurança, Território, População: curso dado no Collège de

France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008.

GOFFMAN, E. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1985. p.

236

GOFFMAN, E. Estigma: la identidad deteriorada. 2a. ed. BUenos Aires: Amorrortu,

2008. p. 192

9 Transcrição da reportagem sobre as comunidades terapêuticas: “Aqui não tem luxo. Elas arrumam as

camas, lavam suas roupas, cuidam da roça e quando tem um trabalho mais pesado para fazer, como subir um

muro, a gente chama os internos da unidade masculina. A gente trata os desvios de caráter com oração,

disciplina e trabalho” diz Fernando de Oliveira Soares, diretor-presidente da instituição, que, em outubro,

passou a receber mil reais mensais por interno, da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD)

através do programa “Crack, é possível vencer” do governo federal.

25

GURVITCH, G. El control social. In: Sociología del siglo XX. 2a. ed. Barcelona: El

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