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orelhas - Visionvox_a_Humani... · menino e não pelo olhar inquiridor de um mestre-escola. A salvação que Ele trouxe tem coração. Por isso no Natal devemos abrir o coração

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orelhas:

Não pode haver tristeza

quando nasce a vida, dizia

um papa do século V. O Natal

celebra o nascimento da

Criança Divina. É pura

alegria. O coração estremece.

Nenhuma palavra humana

pode dizer o que sentimos.

Por isso os anjos anunciam e

cantam por nós. O Deus que

ai nasce é tão frágil que a

ninguém ameaça. Antes, ele

quer ser abraçado e beijado

como o fazemos com nossas

crianças. Assim é o Deus que

se revela no Natal, pequeno,

de bracinhos enfaixados,

entregue à nossa ternura.

Saibamos: somos visitados

por uma criança e não por

um juiz. Somos olhados com

o enternecimento de um

menino e não pelo olhar

inquiridor de um mestre-

escola.

A salvação que Ele trouxe

tem coração. Por isso no

Natal devemos abrir o

coração em generosidade e

em gentileza. Demo-nos

presentes uns aos outros,

porque Deus mesmo se fez

presente na forma de uma

criança que choraminga

entre o boi e o asno. Nesse

dia, esqueçamos as agruras

da vida, pois Deus está

conosco, Ele entrou em

nossa casa e quer nos

acompanhar passo a passo

pelos caminhos da vida.

Não estamos mais sós em

nossas buscas. Temos uma

estrela e ela nos guia pelos

caminhos melhores.

E ninguém nunca mais a

tirará de nossa vida. Uma

vez acontecido, o Natal será

para sempre.

***********************************************************

Um dia, numa virgem se concretizou o projeto de Deus.

Uma noite, numa gruta nasceu aquele no qual Deus se fez,

finalmente, humano.

Os anjos contemplam a glória de um Deus-criança que é

inocência, candura, ternura e amor.

Quando a Palavra de Deus desceu à terra, de noite, no

silêncio, tudo ficou parado por um momento e alheio ao

próprio curso.

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NATAL

A HUMANIDADE E A JOVIALIDADE

DE NOSSO DEUS

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Boff, Leonardo

Natal : a humanidade e a jovialidade de nosso

Deus / Leonardo Boff. 8. ed. — Petrópolis, RJ :

Vozes, 2009.

1SBN 978-85-326-2417-8

1. Encarnação 2. Espiritualidade 3. Jesus Cristo -

Divindade 4. Jesus Cristo – Humanidade 5. Natal -

Celebrações 6. Natal - Meditações 1. Título.

00-3413

CDD-242.335

Índices para catálogo sistemático:

1. Natal : Reflexões : Cristianismo 242.335

Digitalização: LAVRo

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Leonardo Boff

NATAL

A HUMANIDADE E A

JOVIALIDADE DE

NOSSO DEUS

EDITORA VOZES

Petrópolis

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© 1976, Editora Vozes Ltda.

by Animus / Anima Produções, 2003

Caixa Postal 92.144 - Itaipava

25741-970 Petrópolis, RJ

www.leonardoboff.com

Direitos de publicação em língua portuguesa:

Editora Vozes Ltda.

Rua Frei Luís, 100

25689-900 Petrópolis, RJ

Internet: http://www.vozes.com.br

Brasil

Assessoria Jurídica e Agenciamento Literário:

Cristiano Monteiro de Miranda

(21) 9385-5335

[email protected]

Natal, a humanidade e a jovialidade de nosso Deus (título

atual) é uma reedição, com pequenas alterações, do livro

Encarnação: a humanidade e a jovialidade de nosso Deus

(título das quatro primeiras edições).

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra

poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma

e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo

fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou

banco de dados sem permissão escrita da Editora.

Capa: Monique Rodrigues

ISBN 978-85-326-2417-8

Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda.

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Sumário

I - O projeto de Deus: fazer-se pessoa humana

Não pode haver tristeza quando nasce a vida

O Filho assumiu um homem concreto, Jesus de Nazaré

Que significa a humanidade de Deus para nós?

O Filho assumiu de alguma forma todos os seres humanos

O Filho assumiu de certo modo todas as coisas

II - O projeto do ser humano: fazer-se Deus

O ser humano à procura de Deus

O cosmos em movimento para Deus

Jesus Cristo: o Deus encontrado na carne

III - Jesus Cristo: encontro de Deus e do ser humano

O divino do ser humano

O humano de Deus

Jesus Cristo: sacramento do encontro de Deus e do ser

humano

Um novo tipo de poesia e de lirismo divino

IV - Para-liturgia para bênção do presépio

Mensagem em nome dos anjos

Mensagem em nome dos seres humanos (pastores)

Mensagem em nome das criaturas da natureza

O celebrante incensa o presépio

Oração do celebrante

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O projeto de Deus:

fazer-se pessoa humana

Natal! A esta palavra está ligado todo um universo de

símbolos: a vela, as estrelas, as bolas resplendentes, o

pinheirinho, o presépio, o boi e o asno, os pastores, o bom

José e a Virgem, o Menino repousando sobre palhas. Eles

constituem o eco do maior evento da história: a encarnação

de Deus. Nasceram da fé e falam ao coração. Hoje,

entretanto, estes símbolos foram capturados pelo comércio

e apelam para o nosso bolso. Apesar de toda a

profanização, o Natal guarda ainda sua sacralidade

inviolável, sacralidade que é aquela da própria vida. Toda

vida é sagrada e remete para um mistério sacrossanto. Por

isso todo atentado contra a vida é uma agressão ao próprio

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Deus. Na vida do Menino a fé celebra a manifestação da

própria Vida e a comunicação do próprio Mistério. A

intuição desta profundidade não foi perdida na nossa

sociedade secularizada. Em razão disso o Natal é mais do

que todos os seus símbolos manipuláveis; é mais rico do

que todos os mecanismos do consumo.

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Natività - Lorenzo Lotto

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Não pode haver tristeza

quando nasce a vida

Para que se possa verdadeiramente celebrar o Natal

faz-se mister recriar a atmosfera sagrada de suas origens

religiosas. Para isso não é suficiente professar a fé

ortodoxa: neste Menino está a Pessoa do Filho eterno do

Pai, subsistindo em duas naturezas, uma humana e outra

divina, sem confusão, sem mutação, sem divisão e sem

separação. Celebrar implica mais do que saber e refletir.

Importa abrir o coração e se alegrar. Podemos pensar diante

de uma criança? Podemos fazer doutrinas diante de uma

vida que se abre em flor? "Alegremo-nos: não pode haver

tristeza quando nasce a vida!" (S. Leão Magno, 1° Sermão

sobre o Natal, 1). Celebremos: não pode reinar indiferença

quando a noite, de repente, se ilumina!

Para celebrar cumpre exorcizar o medo inibidor. Ó

criatura humana, por que temes com a vinda do Senhor? Ele

não veio para julgar ninguém. Não nasceu para condenar.

Por isso ele apareceu como criancinha. Seu chorinho é doce,

não afugenta ninguém. Sua mãe enfaixou seus bracinhos

frágeis: por que ainda temes? Ele não veio armado para

punir. Ele está aí franzino para ficar junto de nós e nos

libertar. Celebra a chegada do maior amigo! Canta aquele

que foi sempre, no sono e na vigília, esperado e ansiado.

Ele chegou! Enfim!

Cabe a cada um criar a festividade da festa, fazer

silêncio no seu coração, preparar a alma e reconciliar-se

com todas as coisas. Só assim a festa se deixa saborear.

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A nossa meditação visa aprofundar os motivos da alegria.

Não ternos a alegria dos bobos-alegres que são alegres sem

saber por quê. Temos motivos para o júbilo radiante, para a

alegria plena e para a festa solene: Deus se fez pessoa

humana e veio morar em nossa casa. Que significa isto?

Celebrar esta alviçareira notícia supõe mostrar os motivos

da alegria e dar as razões da festa.

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O Filho assumiu um homem concreto,

Jesus de Nazaré

O Natal revela o projeto que Deus se propusera a si

mesmo. Deus quis comunicar-se de forma completa a um

outro ser diferente dele. Dignou-se dar-se de presente a

alguém. Deus não quis ficar unicamente Deus. O Criador

dispôs-se fazer-se também criatura. Não entendeu

comunicar somente o seu Bem, a sua Verdade e a sua

Beleza. Ele nos presenteou também com isso. Por

conseguinte, sempre que radicalmente amamos o Bem,

pensamos a Verdade e apreciamos a Beleza, estamos

apreciando, pensando e amando Deus. Mas ele pretendeu

muito mais. Quis dar-se: Deus dá Deus mesmo. Para se dar,

precisa existir alguém diferente que o possa receber. E esse

alguém foi criado, capaz de receber Deus. É o ser humano.

E, dentre os seres humanos, o olhar divino repousou sobre

o judeu Jesus de Nazaré. Nele Deus será absolutamente

presente. O ser humano, portanto, só tem sentido pleno

enquanto receptáculo de Deus! É como o copo: só tem

sentido completo se receber o vinho precioso. Pois foi feito

para isso. No seu irmão Jesus de Nazaré o ser humano

encontra o sentido e a realização plena de sua existência,

pensada, querida e criada para hospedar Deus. Quando,

pois, Deus se autodoa totalmente a alguém, estamos diante

da encarnação divina. Quando?

Certo dia, na plenitude dos tempos, quando o prazo da

espera expirou, Deus se aproximou de uma Virgem toda

pura. Bateu mansamente à sua porta. Pediu para morar e

viver na casa dos seres humanos. E Maria disse que sim.

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Porque havia lugar para ele em sua hospedagem, o Verbo se

fez carne no seio da Virgem. E a vida divina começou a

crescer no mundo. E eis que numa noite completou-se o

tempo. No silêncio da gruta, porque não havia lugar para

ele na estalagem dos seres humanos, entre o arfar do asno e

o mugir do boi, Deus nasceu. Aquele que ninguém jamais

viu, aquele a quem os seres humanos suplicavam: Senhor,

mostra-nos o Teu rosto, se mostrou assim como é.

Permanecendo o Deus que sempre era, assumiu o ser

humano que nem sempre era. E o mistério da noite

abençoada do Natal!

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Madonna col Bambino - B.E. Murillo

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Atendamos bem para a forma desta assunção: Deus

não ficou no seu mistério indecifrável; ele saiu de sua luz

inacessível e veio para as trevas humanas. Não

permaneceu na sua onipotência eterna; ele penetrou na

fragilidade da criatura. Não atraiu para dentro de si a

humanidade; ele se deixou atrair para dentro da

humanidade. Ele veio para o diferente dele; se fez aquilo

que eternamente não era.

Passei por Belém de Judá e ouvi um sussurro terno. Era

a voz de Maria embalando o filhinho: "Sol, meu filho, como

vou cobrir-te de panos? Como vou amamentar-te, tu, que

nutres toda criatura? Como vou ver-te nas minhas mãos, tu,

que conténs todas as coisas?" (Analecta Sacra 1,229). E

José, perplexo, exclamava: Como pode? Como pode ter

forma de criança aquele que deu forma a todos os seres?

Como pode fazer-se pequeno na terra aquele que é grande

no céu? Como pode o estábulo conter aquele que contém

todo o universo? Como podem seus bracinhos estarem

envoltos em panos, se seu braço governa a terra e o céu?

Como pode?

Eis que apareceu no presépio "a bondade e o amor

humanitário de Deus, nosso Salvador" (Tt 3,4). Deus se

abaixa, se faz mundo, torna-se pessoa humana. Ele não é

somente o Deus de quem se cantava: Grande é o nosso

Deus, sem limites o seu poder. Agora ele se mostrou assim

como é: Pequeno é o nosso Deus, infinito é o seu amor!

Porque é infinito o seu amor, se aproximou de nós. Não

temeu a matéria, não receou acolher a condição humana,

por vezes trágica e, em muitos aspectos, absurda. Quem

poderia imaginar que Deus se fizesse pessoa humana

assim? A ninguém é desconhecida a condição humana.

Apesar de sua bondade fundamental, o ser humano não

deixa de ser também um fracassado na história. Ele pode

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ser um lobo para o outro e uma máquina autodestruidora

para consigo mesmo. Cada qual sabe por experiência

própria: é difícil suportar-se a si mesmo com hombridade;

mais difícil ainda é abrir-se aos demais, auscultá-los e

tentar amá-los assim como são em suas estreitezas e

limitações. E contudo Deus quis ser pessoa humana.

A gente está tão cansado de ouvir e de dizer — o Verbo

se fez carne — que nem chega a refletir o que isto significa.

Ele quis realmente ser como um de nós, como eu e como tu,

menos no pecado: um homem limitado que cresce, que

aprende e que pergunta; um homem que sabe ouvir e pode

responder. Deus não assumiu uma humanidade abstrata,

animal racional. Ele assumiu, desde o seu primeiro

momento de concepção, um ser histórico, Jesus de Nazaré,

um judeu de raça e de religião, que se formou na estreiteza

do seio materno, que cresceu na estreiteza de uma pátria

insignificante, que amadureceu na estreiteza de um

povinho de vila interiorana, que trabalhou num meio

limitado e pouco inteligente, que não sabia grego nem

latim, as línguas da época, que falava um dialeto, o

aramaico, com sotaque galilaico, que sentiu a opressão das

forças de ocupação de seu país, que conheceu a fome, a

sede, a saudade, as lágrimas pela morte do amigo, a alegria

da amizade, a tristeza, o temor, as tentações e o pavor da

morte e que passou pela noite escura do abandono de Deus.

Tudo isso Deus assumiu em Jesus Cristo. A nada foi

poupado. Assumiu tudo o que é autenticamente humano e

pertence à nossa condição como a ira justa e a alegria sã, a

bondade e a dureza, a amizade e o conflito, a vida e a

morte. Tudo isto está presente na figura franzina do

Menino que começa a choramingar no presépio entre o boi e

o asno.

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O Natal nos mostra a que Deus é capaz. Ele pode fazer-

se realmente outro, um homem como um de nós, sem

deixar de ser Deus.

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Que significa a humanidade de

Deus para nós?

Poderá Deus fazer-se? Não nos diz a fé que ele é

imutável, que possui o ser em plenitude, a felicidade sem

nenhuma possibilidade de ameaça? Pertence a todo

verdadeiro monoteísmo e também ao conteúdo essencial de

nossa fé cristã afirmar: Deus é imutável e não está entregue

à angústia, expressão da carência de uma absoluta

realização.

Apesar disto é verdade que Deus se fez homem.

Somente assim podemos ser verdadeiramente cristãos e não

meros monoteístas e nos é permitido celebrar o Natal como

a festa do Deus feito carne quente e mortal.

Não basta dizer: a mutação se encontra somente na

parte do ser humano assumido por Deus e não em Deus

mesmo. Assim se corre o risco de eliminar, por impossível,

a encarnação. A mensagem da fé nos assegura: a encarnação

é um fato e constitui um acontecimento de Deus. Deus se

fez verdadeiramente homem. Deus é o sujeito da mutação.

Deve ser possível, então, a coexistência da imutabilidade

com a mutabilidade, como é possível a humanidade com a

divindade no mesmo e único Jesus Cristo. Com efeito,

Deus, imutável em si mesmo, é mutável em Jesus de

Nazaré. Deus é o Amor tão absoluto que pode realizar em si

todas as possibilidades, também esta de tornar-se homem

finito. Se não pudesse se encarnar não seria o Absoluto. Se

não pudesse fazer-se outro, sem perder o que sempre é,

não seria o Amor pleno e total.

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Para vislumbrarmos alguma luz neste mistério

escondido no presépio precisamos começar de longe.

Tentemos penetrar no insondável do processo divino, pois

aí surge a possibilidade da encarnação, afetando a Deus

mesmo e não somente o ser humano assumido.

A fé cristã em sua experiência com o absoluto Mistério

nos testemunha: Deus é Amor, Amor em plenitude

originária e eterna. Por isso é um Amor sem origem de

outrem e origem de todo outro. Esse Amor se comunica, sai

de si, se entrega sem reservas.

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Simeão reconhece o Salvador (detalhe) - Filipe de Champaigne

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Ao entregar-se em plenitude, surge o Verbo como

expressão absoluta do Mistério do Amor. O Mistério do

Amor se chama Pai e sua expressão absoluta, Filho. Deus

não tem nada a dar senão a si mesmo. Quando Deus se dá é

Pai. O que surge desta doação é o Filho. No Filho a verdade,

a bondade, a beleza e toda a riqueza infinita de ser do Pai

se extrojeta, expressa e concretiza. Aqui tudo é infinito e

eterno.

No Filho o Pai expressa também toda a riqueza, a

beleza, a bondade, a verdade finitas e temporais que podem

ser criadas. O Pai se espelha em toda a criação. Porque tudo

foi criado no Filho, tudo também começa a espelhar o Filho.

Assim todas as coisas da criação, O mínimo átomo que

começou a vibrar, a pequenina célula que iniciou a pulsar, o

infinitamente grande do macrocosmos, o infinitamente

pequeno do micro-cosmos e o infinitamente complexo do

espírito trazem traços do Pai e do Filho. Todas as coisas

possuem uma característica paternal e filial. Todos são

filhos e filhas, irmãos e irmãs junto com o Irmão maior, o

Filho eterno, na casa do Pai.

Dentre todos os seres filiais há uma espécie que é, por

excelência, a imagem do Pai e do Filho: é a espécie homem

com seus inumeráveis indivíduos pessoais, o João e a

Maria, o Ciro e a Débora, a Kátia e o Francisco e cada um

desde o início do mundo até o último nascido. Cada um

espelha a seu modo o Pai e o Filho. Mas dentre todos estes

há um que Deus pre-destinou para ser a sua Imagem total

na criação, a revelação absoluta do Pai e do Filho na

história: Jesus de Nazaré. O Filho eterno quis unir-se a ele

para que pudesse amar a Deus, fora de Deus, como Deus

ama, para que ele pudesse ser Infinito, permanecendo

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finito, para que pudesse ser Deus no mundo sem deixar de

ser criatura. O Filho, expressão eterna e infinita do Pai, quis

encarnar-se em Jesus de Nazaré, expressão temporal e

finita do Pai e do Filho. Esta vontade de encarnação e de

comunicação para fora e para dentro do tempo constitui

eternamente o homem Jesus de Nazaré.

Ele foi o primeiro na intenção de Deus, embora não

tenha sido o primeiro na execução. Adão já era imagem de

Cristo, pois foi pensando em Cristo que Deus moldou Adão.

O projeto de Deus é, pois, fazer-se homem. Um dia no

tempo, numa Virgem se concretizou. Numa noite, numa

gruta nasceu e hoje, no Natal, celebramos e, celebrando,

atualizamos este evento de doçura humana e divina.

Deus possui, portanto, uma humanidade que é, no

desígnio divino, eterna. A humanidade é a expressão

temporal do Filho eterno. A humanidade expressa algo de

Deus para nós. Dizer que o Filho se fez homem não

significa: O Filho deixou de ser Filho. Não significa também:

O Filho permanece Filho e a humanidade lhe é

acrescentada, servindo-lhe de mero instrumento de

aparição e atuação. Não! A humanidade de Deus não é um

disfarce pelo qual Deus nos dá a impressão de assumir a

nossa condição, mas, no fundo, continua a permanecer na

sua Luz inacessível sem se comunicar. O fato de que Deus

se fez homem diz algo de Deus mesmo. Diz que Ele se

aproximou de nós e se deu de forma plena na criação e no

tempo.

Não devemos pensar a unidade do humano e de Deus

em Jesus Cristo como se fosse uma unificação absorvedora

de um no outro ou como uma separação de puro

paralelismo do humano e de Deus. Mas cumpre pensá-la

como uma unidade tão forte que, apesar de toda a diferença

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e distinção, jamais se veja comprometida, de tal forma que

a humanidade de Jesus é verdadeiramente a humanidade de

Deus, e a divindade de Jesus é de fato a divindade do ser

humano.

Quem falava com Jesus se encontrava com Deus. Quem

compreendia Jesus entendia Deus mesmo.

Não nos cansamos de repetir: a humanidade de Deus

significa a presença total de Deus no mundo; significa a

entrega plena do Amor do Pai ao ser humano- Isto é o Filho;

significa a concretização do projeto de Deus: no tempo

fazer-se outro, na história tornar-se homem sem deixar de

ser o Deus de sempre e da eternidade.

Agora vislumbramos: Grande coisa deve ser a criatura

humana para que Deus quisesse ser uma delas. Se o ser

humano é a comunicação maior de Deus na criação, então

Jesus-homem é a máxima comunicação de Deus na história.

Foi para possibilitar a realização do projeto de Deus que o

ser humano foi ex-cogitado e querido na eternidade e

criado e lançado • no tempo: Jesus Cristo, Deus e homem, é

o projeto divino totalmente realizado.

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O Filho assumiu de alguma forma todos os seres

humanos

Desta meditação se depreende que o Filho ao encarnar-

se não atingiu somente a santa humanidade de Jesus de

Nazaré. Ele tocou, de alguma forma, todas as pessoas. Cada

um de nós, no desígnio eterno, foi feito por, para, com e no

Filho. Todos somos filhos no Filho. Ao entrar na história e

ao assumir a humanidade concreta de Jesus, Ele assumiu de

certo modo a todos que participamos desta humanidade. O

Concílio Vaticano II, ligando-se à grande Tradição da fé,

podia ensinar: "Por sua encarnação, o Filho de Deus uniu-se

de algum modo a cada pessoa. Trabalhou com mãos

humanas, pensou com inteligência humana, agiu com

vontade humana, amou com coração humano. Nascido da

Virgem Maria, tornou-se verdadeiramente um de nós,

semelhante a nós em tudo, exceto no pecado" (Gaudium et

Spes, 22).

Somos assim todos irmãos de Cristo. Cada um é seu

representante; cada pessoa humana concretiza facetas

próprias do Filho eterno. Res sacra homo: verdadeiramente,

o ser humano é uma realidade sagrada. Quem a viola, viola

o Filho de Deus. Quem a acolhe, acolhe Deus mesmo. E foi

assim desde o princípio da hominização e será assim até a

parusia final. O Filho enche com sua presença toda a

história: "Ele é a luz verdadeira que ilumina todo ser

humano que vem a este mundo... Ele estava no mundo...

Veio para o que era seu" Go 1,9-11). O Natal começou a

preparar-se e o Filho encetou seu processo de encarnação

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com a criação do mundo e de forma decisiva com a criação

do ser humano. A história está, por isso, grávida de Cristo.

Ele veio crescendo até romper o véu da invisibilidade e

aparecer em toda a sua patência.

Em sua terceira homilia sobre o Natal ensinava São

Leão Magno († 461): "Desde a criação do mundo, Deus

constituiu um só princípio de salvação para todos. A graça

de Deus pela qual todos os santos sempre foram

justificados aumentou, mas não teve início com o

Nascimento de Cristo; e esse mistério de grande

misericórdia que enche agora o mundo inteiro já foi eficaz

em seus símbolos: tanto o alcançaram os que acolheram sua

promessa como os que o receberam quando nos foi dado...

Cessem pois suas queixas aqueles que, numa ímpia

murmuração, criticam o plano divino, tomando como

pretexto a demora para o Nascimento do Senhor, como se

não fosse concedido aos tempos passados o que se realizou

na última idade do mundo" (Sermão terceiro, 4). Cristo

possui um alcance cósmico. A festa do Natal não é

unicamente a festa de nossa história, mas de toda a

história, não só dos cristãos, mas de todas as pessoas. Em

todos os filhos e filhas continua nascendo o Filho eterno de

Deus e nosso irmão Jesus Cristo.

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Presépio de Oberammergau (Alemanha)

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O Filho assumiu de certo modo

todas as coisas

Acreditamos e agora sabemos com S. João: "Todas as

coisas foram criadas pelo Verbo e sem Ele nada se fez de

quanto foi feito... Ele estava no mundo, pois o mundo foi

feito por Ele" (Jo 1,3.10). Não só a humanidade vem

penetrada pelo Filho. Também o cosmos inteiro é, de

alguma forma, o seu corpo. Pela encarnação, "a carne não é

mais terrestre; ela é verbificada (feita Verbo)" nos assevera

ousadamente Santo Atanásio (Contra Arianos, 3,34). Com o

Filho, a filiação invadiu o mundo. O mesmo Santo Atanásio

(† 373) ensina mais: pela encarnação "o Filho enobrece toda

a criação.., fazendo-a divina e tornando-a filho e assim a

conduz ao Pai" (Ad Serapionem, 1,25). Há, pois, um caráter

filial e fraternal em toda a criação, não somente na esfera

humana. Vigora uma cristificação na matéria. As pedras, os

ciscos dos caminhos, as plantas todas, os animais das

selvas e do nosso convívio, tudo o que existe, se move,

sente, vive e pensa tem a ver com o Menino que hoje nasce.

Porquanto somos todos irmãos do Filho Primogênito. São

João Damasceno († 749) pregava: "Aprouve ao Pai realizar a

união de todos os seres em seu Filho único. De fato, o ser

humano, sendo um microcosmos, une em si todas as

realidades visíveis e invisíveis; agradou ao Senhor, que

criou e governa todas as coisas, unir em seu Filho único e

consubstancia! a divindade à humanidade e por esta ao

conjunto de todas as criaturas, a fim de que Deus estivesse

todo em tudo" (PG 96,572-573).

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Por causa desta visão cósmica da encarnação de Deus, a

liturgia antiga da Igreja cantava: "Alegres pelo Nascimento

de Cristo, as montanhas e as colinas se inclinam e os

elementos do mundo, num inefável gozo, executam neste

dia uma melodia sublime" (PL 86,118). Celebra-se uma

liturgia cósmica que escapa aos olhos e ouvidos sensíveis,

que é vista e ouvida, porém, pelos olhos da fé. Sabemos: o

mundo foi visitado definitivamente por Deus. A criação se

alegra, canta e se extasia com o Hóspede divino.

Demos, neste dia santo, água às nossas flores.

Tratemos bem nossos animaizinhos. Saudemos a natureza

de nossas janelas. Pisemos com cuidado o chão dos nossos

caminhos para não atropelarmos nenhuma vida. Todos

somos cristificados. Somos irmãos. E os irmãos se tratam

bem e com carinho. São Francisco o entendeu bem: queria,

neste dia em que o Verbo se fez carne, que todos comessem

carne fartamente. Que se jogassem sementes pelas estradas

para que as aves tivessem o que comer. Que aqueles que

possuíssem um asno e um boi lhes dessem muita forragem,

porque na noite santa do Natal a Virgem colocou seu

gracioso Menino entre o asno e o boi. Que todos se

lembrassem de que somos irmãos uns dos outros e que se

presenteassem mutuamente. Demo-nos presentes porque

Deus nos deu um Presente sem preço: deu-se a si mesmo

num Menino!

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2

O Projeto do ser humano:

fazer-se Deus

O Natal proclama e celebra o maior acontecimento

da história: o Verbo se fez carne e armou tenda entre nós

(Jo 1, 14). Temos refletido suficientemente o que significa

Deus fazer-se pessoa humana? Deus, o nome que a

linguagem humana cunhou para exprimir o absoluto

Sentido do mundo, o definitivamente Importante da

existência, a suprema Realização de todo o bem que

imaginar se possa, a eternidade do amor e a perenidade da

Felicidade, exatamente este e não qualquer outra coisa se

fez pessoa humana. O alcance de semelhante afirmação nos

escapa; só nos resta a admiração e a estupefação.

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Poderíamos refletir — para celebrar bem e gozar

melhor — como é esse Deus que nutre semelhante simpatia

pelo ser humano. Agora, entretanto, queremos nos volver

para o outro pólo e perguntar: Quem é o ser humano para

que Deus tivesse gostado de ser um deles? Que grandeza

possui o ser humano para fascinar o Supremo?

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O ser humano à procura de Deus

Ó ser humano, quem és tu? Em cada existência palpita

esta pergunta. A resposta não se encontra em nenhum livro.

Cada pessoa tem que respondê-la por si mesma. Nisso se

decide tudo, o sentido absoluto ou o eterno fracasso.

Hoje, mais do que em outros tempos, possuímos

informações minuciosas sobre o ser humano. Apesar de

todo o nosso saber, não sabemos quem é o ser humano.

Parece-nos que sabemos menos do que nossos antepassados

sobre o sentido da alegria e da tristeza, da vida e da morte.

Ó ser humano, quem és tu? Os últimos séculos infligiram à

humanidade três penosas humilhações: a cosmológica, a

biológica e a psicológica (Freud). Nós cristãos

acrescentaríamos uma quarta, a mais antiga de todas, a

humilhação religiosa.

O ser humano julgava-se o centro do universo físico,

porque tudo girava em torno da terra. Desde Copérnico

sabemos que a terra é um grãozinho de areia perdido no

espaço cósmico, tão pequena que se Deus dissesse a um

anjo: "vai procurar-me a terra", este não a acharia de tão

minúscula. Mas Deus sim, porque somente Ele sente pulsar

o coração humano. E mesmo dentro da terra o ser humano

representa apenas os últimos segundos de uma hora. Ela

possui cerca de 18 bilhões de anos; ele talvez 8 milhões de

anos. É a primeira humilhação, a cosmológica.

O ser humano se apreciava como único no reino dos

viventes, rei de todas as coisas, mais próximo de Deus do

que dos animais. Desde que começamos a pensar em termos

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de evolução, passamos a compreender o ser humano como

alguém que se libertou lentamente do reino animal e

penosamente acedeu à n.00sfera. Biologicamente é mais

produto de um longo processo evolutivo do que criação

imediata de Deus. Na verdade, ele é enquadrado como uma

pequena província dentro do reino animal.

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O dia da alegria - Nélson Porto

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É a segunda humilhação, a biológica.

Pensava-se ao menos que o espírito e a consciência

garantiam a especificidade do ser humano! A psicologia das

profundezas mostrou, não sem razão, que a consciência

humana também provém de um processo evolutivo. Não só

dentro do corpo, mas também na psique sobrevive o

animal. O consciente vem alimentado e comandado pelo

inconsciente pessoal e coletivo, o eu consciente sustentado

por um eu profundo e inconsciente. A liberdade, a

responsabilidade e a natureza do espírito devem ser

interpretados dentro deste novo marco. A supremacia da

consciência é desbancada. É a terceira humilhação, a

psicológica.

O ser humano se acreditava o mais perfeito ser da

criação: imagem de Deus, filho do Pai, irmão de todos e

senhor do universo. Porém não se contentou em ser filho de

Deus. Quis, por própria conta, ser Deus mesmo. Quis mais

do que pôde. Pecou e contaminou até hoje a atmosfera

salvífica a ponto de ser, diante de Deus, rebelde; face ao

irmão, escravizador e frente ao mundo, escravo. Agora faz a

penosa experiência: "Está em mim o querer, mas não o

fazer. Não faço o bem que quero e sim o mal que não

quero" (Rm 7,18-19). Por isso se lamente com S. Paulo:

"Infeliz de mim! Quem me libertará deste corpo de morte?"

(Rm 7,24). É a quarta humilhação, a religiosa.

Estas quatro humilhações nos dão conta da pequenez

humana, da dimensão das trevas que povoam seu mundo,

da carga de negatividades que se emaranham em sua

história.

E, contudo, estas humilhações propiciam a chance de

maior grandeza do ser humano. Bem dizia Pascal: o ser

humano é um caniço pensante, frágil, tão frágil que basta

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uma gota d'água para matá-lo. Mas ele é o único ser da

criação a saber que é frágil. Aqui reside a sua grandeza.

O cosmos pode ser infinitamente maior do que o ser

humano; mas um único ato de amor vale mais do que toda a

massa do universo (Pascal). Só ele pode ser o infinitamente

complexo da criação. A Lua, Marte, Júpiter, as galáxias mais

distantes podem nos ofuscar com suas quantidades

inimagináveis. Mas somente o ser humano pode animá-las,

pode pôr-se à janela e ouvir estrelas e amá-las; só ele pode

conscientizar o passado, o presente e o futuro do universo

e oferecê-los a Deus. Ele não é um anão insignificante no

cosmos. E aquele centro que pode sintetizar as grandezas e

cantá-las.

O ser humano pode provir do reino animal. Porém, à

diferença do animal, ele não está preso ao mundo

circundante. Está aberto à totalidade do mundo, precisando

criar sempre o seu mundo. Só ele pode criar e transformar,

projetar e produzir cultura. Ele não é somente aquilo que

dele a natureza fez; muito mais aquilo que ele fez de si

mesmo. Por isso nunca se encontra pronto. O ser humano

só pode ser pensado adequadamente como um ser utópico:

nunca é aquilo que deveria ser; não se sente identificado

com nenhuma definição que se lhe possa dar. Ele surge

simplesmente como uma abertura total. Até onde alcança? É

o seu mistério, a sua grandeza.

Pode encontrar-se condicionado por forças atávicas.

Pode sentir os demônios e os anjos que habitam os porões

de sua psique. Mas não se apresenta como um robô

mecânico que só tem reações a ações prévias. Ele reage a

seu modo, assimila, contesta, supera, totaliza e pode,

somente ele, dizer eu. Ao dizer eu assume uma posição

excêntrica face a todos os demais seres; vale dizer, ele se

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liberta de centros e se constitui ele mesmo um centro a

partir donde elabora sínteses pessoais. Por isso, mais do

que a natureza, a liberdade é determinante no ser humano.

É o seu mistério e a sua grandeza.

A história do pecado, do ódio, do crime, do desamor,

da opressão humilha realmente o ser humano. Mesmo assim

não se desfaz sua grandeza inarredável. De humilhado, ele

pode fazer-se humilde: acolhe sua pequenez, perdoa e

suplica o perdão, entrega-se a um Maior que pode libertar

sua liberdade cativa. Senhor de tudo, pode fazer-se servo

na liberdade e no amor. É o seu mistério e sua grandeza.

Que é o ser humano? É miséria e é grandeza. E sua

grandeza é tanto mais excelente quanto mais nasce de sua

própria miséria. Fundamentalmente ele surge como uma

interrogação em aberto. É ânsia de plenitude, uma saudade

infinita e um grito lançado aos imensos espaços vazios.

Quem responderá? Busca o Infinito e só encontra finitos.

Procura um Amor absoluto e só depara com ensaios que

exasperam ainda mais a busca. No fundo, qual é o projeto

do ser humano? Ser como Deus: pleno, absoluto, eterno,

infinitamente realizado. Vai se realizar esta utopia?

Aquietar-se-á o coração incansado?

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O cosmos em movimento para Deus

Não só o ser humano anda em busca de sua plenitude

ansiada. A criação toda vem caminhando pelos séculos em

fora, passando de formas imperfeitas para mais perfeitas,

ascendendo sempre, movida por uma força secreta que a

faz procurar caminhos de superação e de convergência. O

pólo a atrai? Que mola a faz andar? Paulo nos recorda: "A

criação geme e sofre dores de parto até o presente" (Rm

8,22), pois quer ser ela também libertada da servidão da

corrupção para participar, livremente, da glória dos filhos

de Deus" (Rm 8,21). O cosmos se sente sem cabeça, numa

plenitude fundamental. Até quando, Senhor, até quando?

E eis que Deus ouviu a voz de todos os séculos e de

todos os seres. Chegou o tempo: tudo se completou! O

corpo de tudo o que há no céu e na terra ganhou a sua

verdadeira cabeça (Ef 1,10). Neste momento sagrado o

cosmos em seu movimento se deteve e se reteve qual

grande e profundo suspiro:

Page 39: orelhas - Visionvox_a_Humani... · menino e não pelo olhar inquiridor de um mestre-escola. A salvação que Ele trouxe tem coração. Por isso no Natal devemos abrir o coração

Nuvens de nascimento de estrelas — fotografia do telescópio Hubble (NASA)

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"Levantei os olhos para o ar e vi o ar parado e pasmo.

Ergui o olhar para o céu e vi que tudo estava imóvel, as

aves quedas. E olhei para a terra e vi uma mesa posta e as

pessoas reclinadas para a refeição. Mas os que deviam

mastigar não mastigavam. Os que bebiam não erguiam a

mão e os que tinham a mão erguida não a levavam à boca,

todos petrificados olhando para o alto. E eis que vinham

ovelhas. Mas não avançavam. Estavam imobilizadas. O

pastor ergueu a mão para tangê-las. E sua mão ficou imóvel

no ar. As águas do riacho corriam e os cabritos que as

tocavam não as bebiam. Tudo, por um momento, ficou

parado, alheio ao próprio curso" (Proto-evangelho de S.

Tomé, 17,2). Foi neste momento, no "annus tri-umphalis

Romae et Augusti", na "imensa romanae pacis maiestas",

que nasceu o Verbo da vida no qual tudo foi feito, para o

qual tudo marchara e em quem todos esperavam. Chegou o

momento dos supremos esponsais de Deus com toda a

criação.

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Jesus Cristo: o Deus encontrado na carne

Quando professamos, na noite santa do Natal, o Verbo

se fez carne e habitou entre nós, cremos: Deus assumiu a

miséria e a glória humana, encarnou as interrogações do

coração para responder definitivamente Sim e Amém a elas

(cf. 2Cor 1,19). O grito humano — agora podemos sabê-lo

com toda a certeza — era eco da voz do próprio Deus

ressoando dentro do peito de cada um. Esta voz resolveu

sair de sua latência e se revelar em sua perfeita sonoridade.

A Palavra de Deus, Jesus Cristo, foi pronunciada totalmente

dentro do mundo. Ele é a gramática que nos faz

compreender quem é Deus e quem é o ser humano, o ser

capaz de acolher Deus. Quando professamos, trêmulos de

emoção sagrada, o Verbo se fez carne, cremos: o projeto de

a criatura humana ser Deus se concretizou, o utópico do

desejo tornou-se tópico da realidade, a encarnação

representa a historização da ânsia essencial e suprema da

natureza humana. O ser humano não quedou condenado

como um Sísifo a rolar eternamente a pedra, sem consegui-

lo, até o cume da montanha. Não permaneceu

definitivamente um Prometeu acorrentado com um desejo

infinito de libertação. Prometeu foi libertado, Sísifo rolou a

pedra até o topo da montanha, porque em Jesus Cristo o ser

humano chegou plenamente em Deus. Só agora se aquieta o

coração inquieto. Por isso os anjos podem cantar: Glória a

Deus nas alturas e paz na terra às pessoas de boa vontade.

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Anúncio dos anjos aos pastores - pintura na Capela do Campo dos

Pastores (Belém)

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Quando professamos, diante do presépio, o Verbo se

fez carne, cremos: o ser humano chegou em Deus porque

Deus chegou primeiro ao ser humano. E Deus chegou ao ser

humano porque havia, feita por Deus mesmo, uma abertura

infinita nele. Ele era um vazio à espera de uma plenitude.

Eis que com a encarnação de Deus a abertura se plenificou e

o vazio se saciou. Assim o ser humano tornou-se Deus

porque Deus se tornou ser humano. O mistério da

encarnação decifra o problema humano. Ensina-o

incisivamente o Vaticano II: "Na realidade o mistério do ser

humano só se ilumina verdadeiramente no mistério do

Verbo encarnado... Cristo manifesta plenamente o ser

humano ao próprio ser humano e lhe descobre a sua

altíssima vocação" (Gaudium et Spes, 22).

A altíssima vocação do ser humano se realiza lá onde o

ser humano supera infinitamente o ser humano, vale dizer,

tornando-se Deus. A divinização constitui o sentido da

hominização. Mas isto o ser humano alcança, não pela

exacerbação de seu desejo e de sua vontade de poder, mas

por obra e graça do próprio Deus que se humanou Ele

próprio.

Ao humanar-se, Deus não mutilou o ser humano. O

projeto de Deus não destrói, antes sublima o projeto

humano. O querer-ser-pessoa humana de Deus estabelece o

querer-ser-Deus do ser humano. Divinizando-se, o ser

humano é mais humano. Humanando-se, Deus é mais Deus

(para nós). A encarnação define o modo como Deus quis ser

condescendente para com o ser humano: respeitando tudo o

que é humano, assumindo tudo o que constitui a nossa

condição histórica, menos o pecado. O modo de sua

condescendência reside, portanto, na humilhação, no

acolhimento, no rebaixamento e no silêncio. Sua entrada no

mundo não foi estrepitosa: deu-se à margem da história

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oficial, fora da cidade, no meio da noite, no coração da

terra, numa gruta de animais. Quase ninguém o percebeu.

Somente aqueles que possuíam um coração aberto.

Deus não quis aparecer como Deus, mas como pessoa

humana. Quis que o ser humano se realizasse totalmente.

Por isso a vinda de Deus em nossa carne significa a

completa hominização e a realização do desejo utópico do

ser humano. Jesus, no qual Deus se entregou totalmente,

surge como o ecce homo, o verdadeiro Adão e a nova pessoa

humana. Mas isso somente é possível com a condição de o

ser humano usar a mesma lógica de Deus, que é a da

posposição, da humildade, do rebaixamento e do

retraimento de si mesmo para que não ele, o ser humano,

mas Deus possa aparecer. Assim a busca insaciável do ser

humano por Deus descansou. Descansa porque encontrou

Deus não fora de si mesmo e de seu mundo, mas cm si

mesmo, em sua carne o no coração de seu mundo.

Quando professamos, no meio da luz santa do Natal, o

Verbo se fez carne, cremos: Aquele que estava sempre no

mundo (Jo 1,10), Aquele que era a luz verdadeira que

ilumina todo o ser humano em todos os tempos (Jo 1,19),

Aquele que estava presente onde se dizia a verdade, se

vivia o amor, se estabelecia uma comunicação fraterna,

Aquele que anonimamente atuava na história conduzindo-a,

secretamente, na direção intencionada pelo Mistério, agora

se revelou plenamente, se identificou pelo nome e se chama

Filho de Deus, o Verbo eterno, Jesus Cristo. A verdade, a

revelação, o amor, o perdão, a comunhão fraterna deixaram

de ser substantivos abstratos; são realidades concreto-

concretíssimas; tornaram corpo; assumiram uma

personalidade; chamam-se Jesus Cristo, Filho eterno de

Deus e Irmão nosso carnal.

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Adorazione dei pastori - Gherardo delle Notti

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O Deus que um dia assumiu o mundo não o abandonou

jamais. O Natal não é um dia do ano; é cada dia, porque

cada dia carrega dentro de si o Filho eterno encarnado. Ele

está na comunidade dos fiéis, está nos seus sacramentos,

está nas palavras sagradas, está nos corações das pessoas

dc boa vontade, está no mundo todo a caminho da parusia.

Quando o pobre que pouco tem e ainda reparte, quando o

sedento dá a água e o faminto o pão, quando o fraco

fortalece o impotente, "vai Deus mesmo em nosso mesmo

caminhar". Quando se diz a verdade onde impera a mentira,

quando se ama onde há ódio, quando se prega a paz onde

vigora a guerra, "vai Deus mesmo em nosso mesmo

caminhar". A encarnação se prolonga, o Verbo perpetua sua

ação na história, Jesus Cristo continua a nascer na vida dos

seres humanos.

Quando professamos, na festa do Natal, com inaudita

alegria, o Verbo se fez carne, cremos: Deus está totalmente

aqui. Ele veio para sempre. Ele se chama Jesus de Nazaré.

Por este Menino, Deus disse definitivamente ao mundo e ao

ser humano: eu te amo. Esta palavra de amor divino feita

carne não deixa o mundo indiferente; tudo nele ganha um

sentido novo; não há nada que seja totalmente absurdo,

porque Deus disse: eu te amo. Na nossa noite acendeu-se

uma Luz que não se apaga nunca. Deus disse à nossa

solidão, às nossas lágrimas, ao nosso desconsolo, às nossas

fraquezas: eu te amo.

Com Jesus Cristo explodiu e implodiu um derradeiro

sentido para dentro e para fora de nossas vidas. Neste

Menino o mundo e o ser humano chegaram a um fim bom:

chegaram, enfim, em Deus. Manifestou-se o absoluto

Sentido. Agora recitamos, não, rezamos entre lágrimas:

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"No princípio era o Sentido

E o Sentido estava com Deus

E o Sentido era Deus.

No princípio estava o Sentido com Deus.

Todas as coisas foram feitas por Ele

E sem Ele nada se fez de quanto foi feito.

No Sentido estava a vida

E a vida era a luz dos seres humanos.

..................................

E o Sentido se fez carne

E armou tenda entre nós.

E nós vimos a sua glória,

Glória do Unigénito do Pai

Cheio de graça e de verdade"

(cf Jo 1,1-4.14).

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3

Jesus Cristo:

encontro de Deus

e do ser humano

O Natal nos propicia fazer uma reflexão sobre o

grande mistério da encarnação de Deus e da divinização do

ser humano. O Verbo se fez carne. Por isso a carne se fez

Verbo. Nesta afirmação está o máximo que podemos dizer

de Deus e o máximo que podemos enunciar do ser humano.

O Menino que repousa no presépio, em sua inocência

cândida e em sua singeleza despretensiosa, contém a chave

que ilumina o mistério do ser humano e o mistério de Deus.

Nele ambos, Deus e o ser humano, se encontram numa

absoluta imediatez: olho a olho, coração a coração, frente a

frente.

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Este mistério, a despeito de sua misteriosidade, não

nos aterra; ao contrário, nos alegra sobremaneira. Os

limites de nossa compreensão não nos entristecem; ao

invés nos excitam a admiração pelo Amor divino em sua

simpatia para com o ser humano.

Fazemos nossas as palavras do Papa São Leão Magno (†

461) proferidas por ocasião da festa do Natal: "A união das

duas naturezas numa só Pessoa (em Jesus Cristo), eis o que

a palavra não pode explicar, se a fé não o crer; e assim

nunca falta motivo para o louvor, pois nunca é bastante a

eloquência de quem louva. Alegremo-nos portanto de nossa

incapacidade para falar de tão grande mistério de

misericórdia, e, não podendo expressar o que há dc sublime

em nossa salvação, reconheçamos que é bom para nós ser

assim vencidos. Com efeito, ninguém se aproxima tanto do

conhecimento da verdade como quem compreende que,

tratando-se das realidades divinas, mesmo se já progrediu

bastante, resta-lhe sempre algo a aprender. Pelo contrário,

quem presume já ter alcançado o fim não encontra o que

desejava, mas falha em sua procura" (Nono sermão sobre o

Natal, 1).

Humildemente, pois, tentemos nos achegar a este

mistério. De onde partir, do ser humano ou de Deus? Sendo

Cristo o encontro de ambos, qualquer ponto de partida é

excelente, porquanto nos conduz

ao mesmo fim: o encontro do ser humano em Deus

e de Deus no ser humano. Partamos do ser humano.

Cada um carrega a si mesmo e vive o mistério do que

significa ser pessoa humana.

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Adorazione dei pastori - Guido Reni

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O divino do ser humano

Qual é a estrutura essencial do ser humano? A tradição

ocidental e cristã nos diz que o espírito identifica o ser

humano dentro do universo dos demais seres. Quando

porém dizemos espírito não devemos pensar que estamos

diante de uma parte do ser humano penetrada por outra

chamada corpo. Corpo e espírito são qualidades do ser

humano todo e não dois componentes que juntados e

somados resultam no ser humano. Corpo é o ser humano

todo inteiro (portanto o corpo e o espírito, da linguagem

vulgar) enquanto se dimensiona para a terra e para a

sociedade, ocupa um lugar, possui unia infra-estrutura

biológica, psicossocial, é limitado e mortal. Espírito é o ser

humano todo inteiro enquanto se dimensiona para o céu,

para o transcendente da alteridade, se abre ao mistério do

outro e do Grande Outro, transcende os mecanismos do

princípio de realidade, vive uma liberdade em aberto, é

ilimitado e imortal.

Espírito, portanto, não significa uma parte do ser

humano, mas uma maneira de existir do ser humano. É o

modo de ser próprio desta realidade chamada ser humano.

Todos os seres da criação são; somente o ser humano

existe. Existência, como a etimologia da própria palavra

sugere, significa o poder estar fora de, transcender, romper

os limites, recusar-se a aceitar qualquer realidade dada

como veredicto final. O espirito é que faz o ser humano ser

diferente do animal. Este se ajusta à natureza circunstante.

O interior é idêntico ao exterior. Ele é simples, sempre

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dentro de uma síntese feita e acabada: o habitat animal.

"Nos animais, a experiência se esgota com as informações

que seus sentidos captam do mundo exterior. Por isto, não

podem eles suspeitar que o possível seja maior que o real.

Realidade e possibilidade se identificam. Ou, mais

precisamente, os limites do real denotam os limites do

possível" (R. Alves, O enigma da religião, 19).

O ser humano-espírito é diferente; nele o possível

excede infinitamente o real. E ele está dimensionado para

as possibilidades abertas. Não capta somente o real; capta-o

e se extasia pelo possível ainda-não-experimentado. Ele

sonha no sono e na vigília. O ser humano possuí fantasia, o

animal não. A capacidade de fantasiar, de acrescentar

sempre algo à realidade, faz com que o ser humano-espírito

se recuse a aceitar qualquer estrutura dada e feita como

termo de sua busca. Ele está sempre para além. Encontra-se

aberto não somente a isto e àquilo; é abertura total, nó de

relações voltado para todas as direções.

Ser pessoa humana significa manter permanentemente

esta abertura total, vale dizer, transcender "a facticidade

bruta da realidade". Em outras palavras, a pessoa humana

existe na medida em que saí de si; é na medida em que dá;

possui na medida em que se entrega.

A nossa fé cristã entendeu como Deus aquela realidade

absolutamente transcendente e infinita para a qual tende,

insaciavelmente, o ser humano. Quanto mais ele comungar

com o Infinito, quanto mais se abrir ao Absoluto e se

entregar ao Amor de Deus, mais pessoa humana se torna. A

sede infinita do ser humano trai a presença do Mistério de

Deus dentro do coração. O nosso grito de plenitude é o eco

da voz de Deus dentro da realidade humana. A nossa

pobreza infinita é a forma que Deus torna para fazer-se

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presente no ser humano. É o divino do ser humano e não

apenas o divino no ser humano.

Quando o ser humano, por vontade graciosa de Deus,

se abre de tal maneira e acolhe o supremo Amor como a

plenitude de seu vazio infinito, quando o ser humano se

une de tal maneira com Deus, por força e graça do próprio

Deus, de sorte que se torna um com Ele, então podemos

dizer que o ser humano chegou à sua exaustiva

hominização e alcançou também a divinização.

Ora, o homem que foi levado a esta suprema realização

se chama Jesus de Nazaré. Hoje, na noite abençoada do

Natal, celebramos seu nascimento e sua manifestação aos

olhos de toda a criação. Ele é verdadeiramente o Homem

que Deus sempre quis em seu desígnio eterno. Por isso

cantam os anjos do céu, festejam as miríades no

firmamento, acorrem os homens à gruta, se aproximam os

animais, e tudo parece deter-se como num grande e

profundo suspiro. Completou-se aquilo para o qual tudo

caminhou: o ser humano foi divinizado e Deus tornou-se

encarnado.

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Presépio israelense

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O humano de Deus

O ser humano é uma parábola de Deus. Se ele é

comunhão, transcendência, abertura para outrem é porque

reproduz, ao nível da criatura, o próprio modo de ser de

Deus. A experiência cristã testemunha: "Deus é amor" (Jo

4,8.16). Amor implica comunhão, encontro, auto-

comunicação, doação de si mesmo a uma alteridade. Deus

emerge assim como absoluta comunhão. O amor de Deus

não se dá a partir de uma pobreza infinita, como no caso do

ser humano, mas a partir de uma incomensurável super-

abundância. E próprio do amor extravasar-se. Assim Deus

não é somente Pai; é também Filho, total comunicação do

Pai; não é somente Pai e Filho; é também o Espírito Santo,

absoluta comunicação do Pai e do Filho; não é somente Pai,

Filho e Espírito Santo; é também a criação toda com seu

número indefinido de seres, como expressão do Amor

trinitário que se excede, comunicando sua verdade, sua

beleza, sua bondade no espaço e no tempo.

Assim como o ser humano é tanto mais humano.

quanto mais está para além dele, assim é com Deus

também. Deus está sempre fora de Deus. O Pai está sempre

com o Filho. O Filho e o Pai estão sempre com o Espírito

Santo. Pai, Filho e Espirito Santo estão sempre (de fato) com

a criação.

E eis que Deus, em seu incomensurável amor, dispôs-se

a comunicar-se totalmente a um ser diferente dele,

portanto, a um ser criado, não divino, para expressar o

absolutamente surpreendente do seu próprio amor. Criou

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uma natureza humana, capaz de recebê-lo, permanecendo

natureza humana, criada e limitada. Deus quis divinizá-la,

não como um teopanismo pagão, onde Deus aparenta um

Moloc que usurpa e transforma tudo em sua própria

realidade divina. O Divino de Deus consiste em respeitar a

alteridade; a criatura continuará criatura e ao mesmo tempo

hospedará Aquele que nem o céu pode conter. Ao se

comunicar à criatura, portanto, Deus constitui a criatura

ainda mais criatura, ainda mais diferente do Divino. Santo

Agostinho o exprime numa fórmula concisa: "pela própria

assunção divina a criatura é criada" (ipsa assumptione

creatur: Contra sermonem Arianorum, 8,6). Criada não

divina, a criatura é feita capaz de acolher o Divino.

Jesus de Nazaré foi aquele homem, eternamente

pensado e querido por Deus, para nele Deus mesmo poder

extravasar todo o seu amor infinito. Hoje, no presépio,

assistimos à manifestação "da bondade e do amor

humanitário de Deus nosso salvador" (Tt 3,4). Esta

humanidade santa é a humanidade de Deus. Por ela, Ele

concretiza o seu amor para conosco, amor quente que se

oferece, amor respeitoso que se propõe, amor que

conquista o coração e o faz também amar. Jesus Cristo

realiza o projeto de Deus de fazer-se pessoa humana;

realiza também o projeto do ser humano de fazer-se Deus.

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Jesus Cristo: sacramento do encontro

de Deus e do ser humano

Jesus Cristo se apresenta como o encontro do ser

humano que busca Deus e de Deus que busca o ser humano.

Ele é a encruzilhada onde se cruzam o caminho

descendente de Deus com o caminho ascendente do ser

humano.

Nele está presente o verdadeiro ser humano, em tudo

igual a nós, exceto no pecado. Nele está a nossa saudade

infinita por um encontro totalmente plenificador; nele

vigora nossa fragilidade e pobreza abissal; nele estão

nossas lágrimas por causa da paixão dolorosa de nosso

mundo; nele está nossa alegria pequena com sua satisfação

temporal e passageira; nele está nossa pequenez humana

presa às estreitezas de um mundo trabalhado por toda

sorte de interesses contraditórios; nele está nossa vida que

é mortal e que vai se consumindo irresistivelmente,

causando-nos insegurança e medo que antecedem à

surpresa do grande encontro.

Nele está presente o verdadeiro Deus matando a nossa

saudade infinita, assumindo nossa fragilidade,

enriquecendo nossa pobreza abissal, enxugando nossas

lágrimas, enchendo-nos de alegria indizível, divinizando

nossa pequenez e imortalizando nossa vida morta. O

projeto humano é assumido no projeto divino; o projeto

divino penetra o projeto humano.

Tudo isso se esconde naquele Pequenino que se move,

cheio de vida, na manjedoura. Ele é o sacramento do

encontro da divinização e da humanização. Agora, como

criança, não pode ainda mostrar tudo o que significa

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quando Deus entra na carne humana e o que significa

quando o ser humano é conduzido para dentro de Deus. O

processo da encarnação se iniciou pela concepção de Jesus,

se desenvolve agora pelo seu nascimento, se intensificará

ao largo da vida até culminar na ressurreição. Tudo vai

sendo assumido por Deus: as estreitezas do seio materno,

as manifestações todas da vida do pequenino embrião, o

choramingar do recém-nascido, sua fala, seus pensamentos,

seu aprendizado, suas decisões de adulto, seus conflitos

com a situação do tempo, toda sua vida e sua morte. Tudo é

assumido por Deus, na medida em que se desenrola a

existência do homem Jesus de Nazaré. Quanto mais Jesus

estava em Deus, mais Deus estava em Jesus. Quanto mais

Jesus mergulhava em Deus, mais pessoa humana ficava,

porquanto o ser humano è tanto mais humano quanto mais

pode estar no outro. Estando totalmente em Deus — o

absoluto Outro —Jesus se tornava totalmente humano.

Quanto mais Deus estava no homem Jesus, mais se

humanizava. Quanto mais o homem Jesus estava em Deus,

mais se divinizava. Deus estava de tal maneira em Jesus

que se identificou com ele. Jesus estava de tal maneira em

Deus que se identificou com Ele. Deus se fez pessoa

humana para que o ser humano se fizesse Deus. Quando se

verifica este encontro inefável, surge no mundo o mistério

da encarnação de Deus e da divinização do ser humano.

Como a fé da Tradição sagrada o disse muito bem: um e o

mesmo Jesus Cristo é verdadeiramente Deus e

verdadeiramente pessoa humana numa unidade

inconfundível, imutável, indivisível e inseparável.

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Adorazione dei pastori - Tintoretto

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Um novo tipo de poesia e de lirismo divino

O Natal não nos revela apenas o sentido último da vida,

a divinização, e o sentido último da auto-entrega de Deus, a

encarnação. Ele nos traz também alegria porque tudo nesta

noite anunciada se iluminou. Revela-nos uma nova face de

Deus e nos dá a conhecer um novo tipo de poesia e lirismo

divino.

O Natal nos fornece a chave para decifrar alguns

mistérios profundos de nossa existência. As pessoas se

perguntavam angustiadas: por que a dor? por que a

humilhação? por que a pequenez sentida e sofrida? qual o

sentido do sofrimento dos últimos da terra? As pessoas

perguntavam a Deus. E Deus silenciava. As pessoas

procuravam argumentos para isentar Deus dos

desconcertos da história. Mas nenhuma resposta fazia

emudecer as perguntas nascidas das raízes do coração

dorido. Agora, no Natal, Deus fala. Silencia o ser humano,

não pergunta mais. Ouve a narração do evento da doçura

divina e humana: Deus nasceu pequeno; Deus se fez

história; Deus se chama presépio.

Deus não responde ao porquê do sofrimento. Ele sofre

junto. Deus não responde ao porquê da dor. Ele se fez o

homem das dores. Deus não responde ao porquê da

humilhação. Ele se humilha. Já não estamos mais sós na

nossa imensa solidão. Ele está conosco. Não somos mais

solitários. Mas solidários. Emudece a argumentação da

razão. Fala a narração do coração. Narra-se a história de um

Deus que se fez criança, que não pergunta mas faz, que não

responde mas vive uma resposta.

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Irmão, a nossa noite se iluminou. O Menino que nasce

em Belém nos revela: tudo possui um sentido secreto e tão

profundo que Deus mesmo quis assumi-lo. A estreiteza de

nosso mundo no qual Deus entrou tem uma saída

abençoada e um desfecho feliz.

Vale a pena ser pessoa humana. Deus quis ser uma

delas. Não somos um rebanho condenado nem uma massa

anônima e sem rumo. Deus não assiste impassível à

tragédia humana. Ele entra. Participa e nos revela: vale a

pena viver a vida como a vivemos, monótona, anônima,

trabalhosa e fiel na luta de sermos cada dia melhores,

exigentes na paciência conosco mesmos e com os outros,

fortes em suportar as contradições e sábios para aprender

delas. Todas estas manifestações de vida foram assumidas

pelo Verbo dc Deus.

Foi nesta humanidade assim concreta e não apesar dela

que Deus se manifestou. O cristianismo não anuncia a

morte de Deus, mas a humanidade, a benevolência e o amor

humanitário de Deus. Olhemos bem fundo nos olhos do

Menino: nele sorri a humanidade, a jovialidade e a eterna

juventude de nosso Deus. Tentemos, nesta noite de Natal,

ser bons, melhores e realmente irmãos uns dos outros.

Lembre-mo-nos das palavras do místico poeta: "Nasça

Cristo mil vezes em Belém e não em teu coração: estás

perdido para o além, nasceste em vão" (Ângelo Silésio).

Assumamos nossa existência com alegria como Cristo

também a assumiu. É justo que procuremos ser afáveis,

benévolos, alegres, suaves, sinceros e amorosos. O próprio

Deus o experimentou e nos mostrou que tudo isso é

possível.

Olhemos para nossas mães e para as mulheres com

respeito e vejamos fundo: descubramos nelas, pelo menos

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hoje, nesta noite, um símbolo da Virgem Maria. Olhemos

fundo para o nosso próximo e lembremo-nos que ele é um

irmão de Cristo e nosso irmão. Façamos de cada pessoa um

próximo e de cada próximo um irmão. Pelo menos nesta

noite divina. Abracemos nossos filhos como se

abraçássemos o Filho que hoje Deus nos deu.

O céu e a terra cantam a noite suave e santa de Deus:

glória a Deus nas alturas e paz na terra às pessoas de boa

vontade!

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4

Para-liturgia

para bênção

do presépio

Entrada: (luzes apagadas, acesas somente aquelas do

presépio; canta-se um canto de Advento).

Celebrante: (traz o Menino Jesus nos braços e o

deposita no presépio).

Irmãos, acabamos de trazer o Menino Jesus para o

nosso meio.

No escuro e nas trevas.

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A luz era fraca; podia-se ver pouca coisa.

É o símbolo da humanidade em situação de advento, de

espera e de expectativa.

Agora o Menino veio.

As trevas se fizeram luz.

A noite tornou-se dia.

É o que significa o Natal: a festa da luz, da vida e do

amor humanitário de nosso Deus.

A luz se acendeu; agora podemos ver tudo: a Deus

como Pai, os outros como irmãos, o mundo como herança

que o Pai nos deu.

Tudo isto por causa do Mistério desta noite santa e

anunciada.

Nasceu um sol que não conhece mais ocaso: Jesus

Cristo, Filho eterno de Deus e nosso irmão bem-amado.

É para celebrar e nos alegrar que aqui estamos diante

do presépio com os anjos do céu, com as pessoas da terra e

com a natureza toda inteira.

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Mensagem em nome dos anjos

Glória a Deus nas alturas e paz na terra às pessoas de

boa vontade!

Esta é a mensagem que vem dos anjos, mensageiros de

Deus. O Menino revela a glória de Deus.

Não é a glória de um rei, nem de um rico, nem de um

forte.

É a glória de um Deus-criança que é inocência, candura,

ternura e amor.

Diante da inocência cala a voz do poderoso para

contemplar.

Diante da candura se dobra o violento para acariciar.

Diante da ternura abre-se o coração do insensível para

se comunicar.

Diante do amor todos se extasiam e recuperam a

alegria de viver.

É o que acontece com o Natal e com a glória de Deus

que é a vida do ser humano.

Esta glória do Deus-menino traz reconciliação e paz à

terra.

Vivemos em conflitos de vida e morte.

Muitas vezes não somos irmãos, não raro, inimigos

somos.

O Natal produz, por uns momentos ao menos, paz e

reconciliação.

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Diante do presépio sentimo-nos irmãos até com os

animais.

Tudo se confraterniza: o céu luminoso dos anjos com a

terra escura das pessoas.

Glória a Deus nas alturas e paz na terra às pessoas de

boa-vontade.

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Mensagem em nome dos seres humanos

(pastores)

Havia pastores nos campos de Belém.

Foram os primeiros a receber a grande notícia do

nascimento da Luz verdadeira que ilumina toda pessoa que

vem a este mundo, Jesus.

Foram à gruta, guiados pela Luz.

Viram e se encheram de alegria.

Comunicaram a verdade que nos vem até hoje: O

Esperado por todos os séculos acaba de nascer. A graça de

Deus não abandonou a terra dos seres humanos. O Salvador

está em nosso meio!

Os pastores representam a humanidade inteira,

especialmente aquela porção que Deus mais ama: os pobres

e os humildes deste mundo.

O Natal traz uma esperança para o coração: no Reino

que agora se inaugura não haverá mais pobreza que ofende

a Deus e humilha as pessoas.

O Menino dá esperança aos desesperançados.

Consola os tristes.

Enxuga as lágrimas de todos os que sofrem as dores

desta vida.

Irmãos, eis que vos anuncio uma bela notícia; ela é de

grande alegria para todo o povo:

Hoje nasceu-nos o Libertador que é o Cristo Senhor!

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Estrela no lugar onde Jesus teria nascido — Igreja da

Natividade (Belém)

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Mensagem em nome das criaturas da natureza

Junto do presépio descansam o boi e o asno.

Nos campos ovelhas e cães de guarda.

No céu as estrelas seguem o seu curso.

Tudo vem banhado pela luz que jorra da gruta onde

repousa o Menino sobre palhinhas, sorrindo.

À natureza não ficou indiferente ao nascimento de

Deus.

Histórias antigas nos relatam que quando tudo se

quedava num profundo silêncio e a noite estava no meio de

seu curso, então, de repente, fez-se um grande clarão no

céu e Deus desceu à terra.

Nasceu o Verbo da Vida. Então as folhas que

farfalhavam pararam como mortas.

Então o vento que sussurrava ficou parado no ar.

Então o galo que cantava parou no meio do seu canto.

Então as águas do riacho que corriam estancaram.

Então as ovelhas que pastavam ficaram imóveis.

Então o pastor que erguia o seu cajado ficou

petrificado no ar.

Então, neste momento, tudo parou, tudo silenciou,

tudo se suspendeu: nasceu Jesus Cristo, nosso Salvador e

Senhor de toda a criação.

A natureza inteira reconhece, agradece e se une aos

seres humanos diante do presépio.

Nas nossas trevas nasceu uma Luz verdadeira.

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A Luz tem mais direito que as trevas.

Alegremo-nos e irmanemo-nos com todos os seres do

mundo.

O Celebrante incensa o presépio

(Canta-se um cântico de Natal)

Oração do Celebrante

Jesus que foste Menino, menino qual um de nós: dá-

nos nesta noite santa uma alma de criança para podermos

ser simples, alegres, confiantes e cheios de ternura e

carinho para com todas as pessoas, c com os seres todos de

tua criação.

Isto te pedimos por Ti mesmo que, Filho de Deus,

tudo assumiste e consagraste c Te fizeste nosso Irmão

agora e para sempre, pelos séculos dos séculos. Amém.

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Ilustrações

Capa e abertura dos capítulos: Natività - C. Batoni