Organização do Delírio - Proposta de Figurino para Os Babilaques

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Artigo para pós graduação em Direção de Arte da Belas Artes. Realizado em 2013.

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  • CENTRO UNIVERSITRIO BELAS ARTES DE SO PAULO

    PS GRADUAO EM DIREO DE ARTE

    CAMILA SCHVAITZER

    ORGANIZAO DO DELRIO: PESQUISA E PROPOSTA DE FIGURINO PARA OS BABILAQUES

    SO PAULO

    2013

  • CAMILA SCHVAITZER

    ORGANIZAO DO DELRIO:

    PESQUISA E PROPOSTA DE FIGURINO PARA OS BABILAQUES

    Artigo Cientfico apresentado como requisito parcial

    obteno do ttulo de Especialista no Curso de Ps-

    Graduao (Lato Sensu) em Direo de Arte do Centro

    Universitrio Belas Artes de So Paulo.

    Orientadora: Profa. Me. Carolina Bassi de Moura

    SO PAULO

    2013

  • FOLHA DE APROVAO

    CAMILA SCHVAITZER

    ORGANIZAO DO DELRIO:

    PESQUISA E PROPOSTA DE FIGURINO PARA OS BABILAQUES

    Artigo Cientfico apresentado como requisito parcial obteno do ttulo de Especialista no Curso de Ps-Graduao (Lato Sensu) em Direo de Arte do Centro Universitrio Belas Artes de So Paulo.

    BANCA EXAMINADORA

    ______________________________________________________ Profa. Me. Rosane Muniz

    Profa. Me. Carolina Bassi de Moura

    Data da Defesa: So Paulo, de 2013

  • 4 ORGANIZAO DO DELRIO:

    PESQUISA E PROPOSTA DE FIGURINO PARA OS BABILAQUES

    CAMILA SCHVAITZER1

    RESUMO Este artigo aborda a proposta e estruturao de figurino para Os Babilaques, um projeto musical que tem como principal caracterstica a fuso entre os campos da poesia e a msica. Para tanto, sero apresentadas suas influncias artsticas, discorrendo sobre o contexto sociopoltico e cultural das dcadas de 60 e 70, cujos acontecimentos so os que mais respingaram no conceito do projeto. Deste apanhado, sero extrados alguns artistas nacionais e estrangeiros da cena musical, a fim de investigar seu trabalho esttico para que estes elementos justifiquem e inspirem a criao do trabalho de figurino, sendo assim possvel dar forma concreta s ideias dos Babilaques. Palavras-chave: Figurino; Figurino de Show; Figurino performtico; Babilaques. ABSTRACT This article approaches a costume design proposal and structuring for Os Babilaques, a musical project which has as its main characteristic the fusion between the poetry and music fields. For such, it will be presented the Babilaquess artistic influences, discussing over the 60s and 70s socialpolitic conjuncture, whose events are the ones that most invaded the projects concept. From this gathering, a few national and foreign artists, symbols from the periods cultural production will be extracted, with the goal of investigating their esthetical work in order that those elements validate and inspire the creation of a new costume work, making it possible to transform the Babilaquess idea concrete.

    Keywords: Costume design; Concert costume design; Performatic costume design; Babilaques.

    INTRODUO

    Uma expresso artstica tem, em sua construo, diversas outras expresses interligadas, que devem ser ntegras em sua unidade, mas principalmente devem se conectar com o todo para reforar a mensagem potica que aquela obra pretende transmitir. Destas expresses, o trabalho em questo abordar o figurino. O trabalho original a que se refere este artigo, foi realizado para a concluso do curso de Ps Graduao em Direo de Arte do Centro Universitrio Belas Artes de So Paulo, e consistiu na elaborao de uma proposta de identidade visual aplicada em formato de figurino para as apresentaes do projeto musical Os Babilaques, formado em So Paulo e liderado pelo seu idealizador, o professor e poeta Paulo Csar de Carvalho, alm de msicos itinerantes que formam suas parcerias pontuais.

    1 Aluna do Curso de Ps-Graduao em Direo de Arte do Centro Universitrio Belas Artes de So Paulo; Graduada em Moda, com cursos na rea de fotografia e cinema. ([email protected])

  • 5 A partir do entendimento das influncias do projeto, foram extrados elementos que conversassem diretamente com o seu conceito, fundamentados em uma pesquisa histrica e anlise de cones da cena musical internacional e nacional, baseados num critrio de relevncia de suas obras e a importncia da relao de seus trajes de cena com o contedo potico de suas propostas. Cada um destes cones teve sua proposta de figurino dissecada, visando a identificao dos componentes-chave de sua estruturao. A partir desse entendimento, buscou-se incorporar referncias que se relacionem diretamente com a proposta do projeto musical e elaborar um figurino adequado ao seu conceito artstico. A imagem exerce uma importante influncia sobre os outros sentidos no que se refere interpretao de uma mensagem. Um figurino, quando capaz de dar forma s ideias e s emoes contidas nas obras, aproxima o interlocutor do artista e de sua potica. HISTRICO Os anos 60 e 70 foram particularmente importantes para o Brasil e para o Mundo dado a quantidade e profundidade das transformaes polticas, sociais e culturais vivenciadas pela sociedade da poca. Pela primeira vez na histria, essas transformaes foram protagonizadas por uma camada mais jovem da populao ocidental que, nascida no ps-guerra numa gerao que ficou conhecida como baby boomers, gozavam de um mundo que prometia grandes evolues tecnolgicas, econmicas e democrticas. Este horizonte moldou essa gerao de forma a iniciar um rompimento com os valores patriarcais de educao, propiciando uma reviravolta social na questo da participao do jovem no mercado de trabalho e de consumo, no papel da mulher na sociedade, da liberdade sexual e no envolvimento visceral dos jovens com a opinio poltica. No Brasil, as consequncias polticas do golpe militar em cima das promissoras transformaes sociais do governo Goulart culminaram numa privao de liberdades e censura em cima da produo cultural brasileira. Entretanto, mesmo em meio a um cenrio desfavorvel, nunca a cena cultural brasileira foi to aquecida, confundindo o surgimento de movimentos musicais como a MPB, a Jovem Guarda e a Tropiclia com os prprios debates polticos e estticos do pas. A grande fonte de inspirao para o surgimento das ideias que fomentaram a criao deste trabalho de figurino foi encontrada num mergulho fundo nestes acontecimentos. A escolha deste perodo como alicerce para a identificao de elementos deu-se pela investigao das principais referncias artsticas dos Babilaques. Das influncias levantadas, se no tomaram lugar e forma nestas dcadas, ao menos podemos entend-las como produto resultante da efervescncia cultural que o mundo presenciou poca. Alm disso, a anlise de algumas construes de traje especficas do perodo foi fundamental para obter percepes acerca do desenvolvimento deste figurino. Destes estudos, foi possvel extrair diversas correlaes para a proposta artstica do projeto musical.

  • 6 TRAJES PERFORMTICOS CENA MUSICAL

    IMAGEM2 Tropiclia : Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa fizeram parte do movimento cultural brasileiro mais relevante das dcadas de 60 e que tambm permeou os 70. Seus figurinos eram altamente sintonizados tanto com as razes brasileiras quanto com o que mais acontecia de novo no Brasil e no mundo. Como membros deste to importante movimento, que tambm teve efeitos no s no popular, mas em todo o meio artstico brasileiro, sua escolha mais que justificvel.

    2 Imagem 1: Gal canta Divino Maravilhoso no Festival da Record, 1968. Fonte: tropicalia.com.br/ Imagem 2: Caetano e Gil, pouco antes de subirem ao palco para defenderem suas canes no III FIC, no TUCA, 1968. Fonte: tropicalia.com.br/ Imagem 3: Secos & Molhados, show de 1974, interpretao da msica Sangue Latino. Fonte: secosemolhados.com/ Imagem 4: David Bowie como Ziggy Satardust no palco, 1973. Fonte: davidbowie.com

  • 7 Alm de ser considerado um movimento de ruptura na esfera da msica popular brasileira, o tropicalismo foi tambm uma revoluo cultural em todas as representaes, dentre elas a forma visual de se apresentar. Numa poca ditatorial de dura censura e dos embates entre as correntes de esquerda e direita, o nacionalismo chegava at a cultura. Estava em voga a rejeio de qualquer smbolo imperialista das culturas dominantes, em prol de uma valorizao fundamentalista da produo cultural nacional. Os artistas da tropiclia tambm utilizaram o poder do figurino para atingir e provocar essas questes, a partir de uma crtica esttica simblica, subjetiva, a partir de colagem de imagens, alegoria e pardia. O movimento distanciava-se, por exemplo, das canes de protesto, que eram mais diretas em sua linguagem. Aliados a uma proposta vanguardista de se fazer msica popular, os participantes do movimento apresentaram um forte apelo visual ao pblico. Os tropicalistas se tornavam singulares em suas apresentaes, abusando de recursos no musicais, como a mis-en-scne e os rudos dos microfones, canais de gravao, sonoridades estranhas, gritos, sussurros e movimentos corporais. Essa incorporao de elementos no musicais foi resultado de uma grande interao dos msicos tropicalistas com artistas de outros campos, sendo alguns exemplos notrios nomes como Glauber Rocha, Hlio Oiticica, Rubens Gerchman, Lygia Clark e Jos Celso Martinez Corra. No figurino, por sua vez, a mais intensa troca foi feita com Regina Boni e sua butique Ao Dromedrio Elegante. Mineira sem profisso definida, Regina Boni foi escolhida pelos tropicalistas para ilustrar, atravs de figurino, tudo o que os participantes do movimento pretendiam expressar. Entendendo que o corpo era tambm uma linguagem, pretendiam sempre nortear suas criaes com a pergunta Que reao a gente pode causar no pblico?. Com essa pergunta em mente, Regina produzia primeiro uma roupa que conversasse com a cano a qual seria incorporada, e depois que pudesse mexer com os costumes e valores pr-estabelecidos das pessoas. Transformaram assim a experincia musical em hptica, ou seja, permitiram que o olhar pudesse simular o tato. O que foi de grande valor e importncia para a obra deles se considerarmos, que o principal meio de difuso de cultura de massa era a televiso, e esta apresentava, ao mesmo tempo em que uma grande abrangncia, um certo distanciamento entre espectador-artista. Regina desenhou uma roupa para Gal se apresentar num pequeno festival de msica (cuja fonte no foi possvel confirmar). Ali surgia a ideia de cabelo black power para Gal Costa, ganhando um visual mais provocativo j que o cabelo remetia a raa negra que era to discriminada, e o contraste de uma garota linda de voz perfeita com aquele cabelo causava maior efeito com o pblico, pois quebrava a imagem habitual e comportada da cantora, trazendo agressividade e expresso. Era uma roupa de gaze azul toda com strass, e para o cabelo, o estilo black power completado com apliques de lua e estrelas de purpurina. Alm disso, a ento estilista se aproveitou de uma informao privilegiada sobre a tecnologia da televiso para produzir efeitos de rastros de luz:

    A televiso tinha uma pea que queimava e, quando queimava, ficavam aquelas listras. No tinha TV em cores ainda, mas quando as listas misturavam ficava vermelho e branco, e tambm explodia o branco quando dava esse defeito. Liguei pro Boni e perguntei: Se puser uma carreira de strass na roupa da Gal, se ela se mexer, vai fazer um rastro de luz?. Vai. Fiz um rastro de luz na roupa, em volta dela inteira. Ela se mexia pouqussimo, mas quando se mexia era um efeito especial. Tirei partido da informao privilegiada que eu tinha. (BONI, 2010)

    O brilho dos espelhos e da carreira de strass causava um efeito nico de relampejos na tela da televiso, alm de prover mais informao visual atravs da presena de

  • 8 bordados, colares de pedra, mianga e aplicaes. Com essa criao de camadas, apesar da ausncia de cor na TV, a roupa ganhava destaque. Regina tambm faria a roupa da msica Divino, Maravilhoso, uma bata vermelha, de cetim, toda bordada de espelhos. Gal Costa utilizou o poder de seu figurino para propor uma reviso esttica feminina, que transformou sua postura, de tal forma que ganhou fora e expressividade para bradar os versos de Divino Maravilhoso: preciso estar atento e forte/ No temos tempo de temer a morte. Com seu figurino de influncias orientais, trazia em sua imagem a contracultura hippie, e toda rebeldia jovem necessria para se colocar contra o momento poltico atravessado. Gal comeou a partir destas apresentaes a ganhar notoriedade. Para Caetano, ficou eternizado o figurino utilizado para defender a msica Proibido Proibir no III Festival Internacional da Cano de 1968. Um conjunto de vinil verde-limo e de vinil preta, de manga comprida e fechada com colete de vinil prateado. Completavam o visual e o contraste moderno x arcaico, um cinturo de cobra marrom-escuro, com uma fivela de prata, alm de Ded, esposa de Caetano na poca, acrescentar-lhe colares de dente de javali, transformando Caetano numa espcie de extraterrestre canibal (BONI, 2010). O penteado volumoso, fora dos padres visuais da poca contribuia com o visual provocador, j que indignava ainda mais, queles resistentes a suas ideias estticas. O traje transgressor de Caetano e todo o seu simbolismo em torno dos debates culturais e sociais da poca, foi bastante importante para dar fora mensagem provocativa que ele pretendia deixar com a apresentao. No toa foi vaiado e quase agredido na companhia dos Mutantes e seu rock eltrico. Gil, por sua vez, completando o trio tropicalista, era retratado como um deus negro, utilizando roupas de origem africana, como se fosse um rei africano ou at mesmo um lder religioso do candombl. Como o pblico normalmente nutria uma rejeio Gil, motivada principalmente por pensamentos racistas, no havia maneira melhor de exaltar a sua figura seno represent-lo desta forma. Utilizou seu traje para valorizar suas razes afro-brasileiras e suas ligaes com o Nordeste do pas contrastando diretamente com a ousadia sonora de sua msica Questo de Ordem, apresentada no mesmo festival, que por sinal no foi compreendida pelos jurados e desclassificada, acompanhada pelas guitarras dos Beat Boys. O resgate ao regionalismo e a exaltao do Nordeste tambm estavam pautados nas reflexes sobre cultura brasileira de raiz e seus contrapontos modernidade da msica internacional, presentes na obra de Gil atravs do uso da guitarra eltrica e da influencia que ele havia herdado do apreo pelos Beatles. Regina Boni enfatiza o conceito das criaes de seus figurinos:

    Fiz sim, algumas roupas para Gal, Gil, Caetano. Estas roupas que eu fazia e minha me costurava no eram roupas, mas uma espcie de organizao do delrio, ou melhor, uma declarao de amor e felicidade em estado bruto, com alto teor de pureza. Foram consumidas. Eu as considero uma criao coletiva, cuja funo era vestir o que todos sentamos e apenas eles diziam. Ns experimentvamos. Estvamos vivos. Esta circunstncia ocasional de dar forma concreta s idias, emoes sensveis, msica, era altamente excitante. (BONI, 1987)

    Por mais que profissionalmente no se definisse como tal, o pensamento de figurinista de Regina Boni foi preponderante para a composio do figurino dos artistas da Tropiclia. Isso se deu por que atravs dela, toda a ideia e o conceito que se encontrava por trs das letras e ideais tropicalistas, foram traduzidos implicitamente, porm de forma visvel, na composio dos trajes de cena, que se transformaram em importantes meios de transmisso das mensagens do movimento. A esttica do figurino tropicalista buscava refletir o que se propunha na msica e nas ideologias do movimento. A questo do choque e absoro de correntes antagnicas,

  • 9 como por exemplo, a alta cultura x a baixa cultura, o arcaico x o moderno e o popular x o erudito tambm estavam presentes em sua maneira de construir sua identidade visual a partir de suas vestimentas. Dessa forma eles no eliminavam fronteiras, mas sim, se colocaram acima delas e de suas classificaes. Secos e Molhados

    Influenciados por Bowie e considerados como a maior expresso do Glam no Brasil, o grupo Secos e Molhados abalou a cena musical brasileira dos anos 70, que andava relativamente montona no pas. No corpo do performtico vocalista Ney Matogrosso, foram incorporadas diversas formas de ser do homem brasileiro, indo do primata at o astronauta. Incorporadas parece ser a forma certa de descrever as aes de Ney, que usou da dana e da expresso do corpo para apresentar sua ousada proposta artstica. O nome de Ney se tornou, para o inconsciente coletivo, um sinnimo de ruptura, excentricidade e ousadia, caractersticas que ganharam formas, cores e texturas numa fuso com figurinos vibrantes, ousados e icnicos, inspirados nas percepes do artista. Em plena era do perodo do repressivo governo Mdici e em meio a um marasmo musical devido ao medo e a censura intensa, o grupo Secos e Molhados apresentou ao Brasil uma fuso de teatro, msica brasileira regional, rock, folclore portugus, poesia e androginia. Assim como a verso norte-americana, o glitter rock brasileiro tem estreitas relaes com o teatro, especialmente pelas ligaes de Ney Matogrosso com as artes cnicas. A purpurina e as plumas que adornavam o figurino da banda j eram famosas no show biz brasileiro graas escrachada trupe de atores-bailarinos Dzi Croquettes, grande influncia da esttica de Ney. Segundo a jornalista Ana Maria Bahiana, numa matria do jornal Opinio, o Secos & Molhados calcaram-se em trs elementos bsicos e saudavelmente inovadores, dentro do panorama da msica nacional: ...a bela voz de Ney Matogrosso (), o espetculo altamente visual, com maquiagem e movimentao at mesmo sexualmente ambgua, e a incluso de textos de poetas. (BAHIANA, 1980, p. 142-3). Esta movimentao um dos elementos-chave da esttica do S&M e dialoga diretamente com o figurino ostentado durante as apresentaes ao vivo, com destaque para as atuaes de Ney Matogrosso, que danava descalo, de peito nu, colares e miangas penduradas, penas na cabea e, como Joo Ricardo e Gerson Conrad (que completavam o trio), carregado de maquiagem no rosto. Apesar de um estranhamento inicial por parte do pblico e crtica, a esttica S&M tornou-se um deleite ao pblico, atingindo os mais diferentes perfis, desde crianas, jovens e adultos, passando por universitrios, engajados e os que apenas queriam danar. Ney, quando no palco, chamava a ateno por diversos aspectos. A comear por sua postura altiva, de peito nu estufado, cabea erguida e olhos arregalados. Destaca-se tambm sua voz aguda, marcada pelos movimentos exagerados de boca que fortaleciam a pronncia das palavras. O movimento de seus quadris insinuava cdigos de desprendimento, baseados no improviso de seus passos de dana, que brindavam a criatividade, liberdade e espontaneidade. Como grandes auxiliares para seus movimentos, elementos como penas, colares, franjas e lantejoulas bailavam junto ao seu corpo aumentando a densidade da expresso. Fundado na diversidade de elementos e, fugindo da construo de um nico personagem, o S&M criavam, atravs de Ney, uma identidade mvel, fluda e, ao mesmo tempo, escondida, disfarada. Alm do hibridismo de sua identidade, Ney desafiava tambm as fronteiras de definio de homem e mulher, ser humano e animal, pessoa e artista. Criava assim, atravs dessa imagem enigmtica, desejo e curiosidade nos espectadores, encantando e surpreendendo a todos.

  • 10 Numa verdadeira colagem de elementos, o intrprete compe sua figura tribal incorporando num mesmo figurino peas rsticas inteiras e orgnicas, como ossos e dentes de animais, penas, sementes, que compunham peas como brincos, colares, braceletes, tornozeleiras, arranjos de cabea e cintos. Esta juno acrescentava um volume nico figura do artista, no entanto sem acrescentar peso e deformidade ao seu personagem, confundindo os prprios elementos como se fizessem parte da natureza do artista, ou seja, dando credibilidade quela imagem proposta. Outra caracterstica bastante peculiar expressada em seus figurinos a frente do grupo, que a retomada s origens da humanidade denuncia no s os ancestrais brasileiros (indgenas brasileiros), porm os amerndios conforme uma unidade latino-americana. Percebemos esta aluso ao verificar que suas penas so tpicas das tribos indgenas americanas, retiradas de guias, que no so animais brasileiros. O uso de placas de metal e ouro denuncia tambm a explorao extrativista dos colonizadores sobre os nativos sul-americanos, prtica que no ocorreu apenas no Brasil, mas com grande parte das comunidades tribais sul-americanas. Um dos exemplos desta remitncia est na msica Sangue Latino, apresentada durante a turn do show Secos & Molhados, de 1974. Como primeiros artistas a apresentarem o Brasil como uma unidade latina, ou seja, incorporado aos pases vizinhos ex-colonos espanhis, a cano refora esta unificao, o que pode ser verificado nos versos "Meu sangue latino/ Minhalma cativa e nas muitas interpretaes da cano em espanhol. Era possvel no apenas ver, mas imaginar tocar Ney Matogrosso e sentir todos esses elementos, exaltando o lado sensorial ttil em volta do figurino. At o sonoro se fazia presente com o balano de seu corpo movendo os materiais pendurados em seu figurino. O estmulo mltiplo de sentidos como o tato, a viso e a audio d mais credibilidade interpretao do figurino, aproximando a composio artstica realidade. A maquiagem tambm favorecia o carter misterioso e ldico em volta da figura do vocalista. Criada ao acaso e a princpio usada para que Ney escondesse sua identidade, acabou se tornando uma marca registrada de sua esttica, que contrastava com o corpo desnudo e escancarado ao pblico, alm de exaltar seus olhos arregalados e sua boca amplamente aberta na execuo das canes. Alm disso, a maquiagem descaracterizava os traos humanos do artista, elevando este a um patamar do alm-humano, de figura indefinida que povoava o imaginrio de seus espectadores. Numa poca de bastante censura sobre as manifestaes artsticas, onde qualquer obra que ferisse os ideais estticos conservadores do controle ditatorial era indeferida, Ney Matogrosso desafiava qualquer paradigma pr-estabelecido. Na construo de seu personagem sem sexo definido, confundia os espectadores sobre as caractersticas de gnero e definies, criando um ser intangvel, alm do humano.

    David Bowie Escolhemos tambm o grande nome do movimento Glam, o britnico David Robert Jones, ou como o mundo o conheceu, David Bowie. No caso de Bowie, o figurino no representou apenas um jeito de se vestir ou mais um elemento da esttica do artista, mas sim uma grande marca de sua carreira performtica. Seu rastro musical foi muito importante, mas preciso destacar que o artista tambm revolucionou a maneira do homem se expor, explorando a androginia com liberdade e sensualidade, levantando questionamentos e mudanas de comportamento na sociedade, alm de ter sido precursor nos grandes espetculos para os concertos de rock. Conhecido como camaleo, Bowie modificou-se ao longo da carreira, incorporando personagens e estilos, com versatilidade total em suas criaes sempre a servio de novos propsitos estticos musicais e visuais, numa obra que escancarava o poder visual e performtico do astro de rock nroll. Esta transformao foi facilitada tambm pela

  • 11 inquietude de Bowie em relao s artes, alm de seu contato desde jovem com o universo artstico (formao escolar), dentre eles o teatro, grande influenciador na criao de seus personagens. Em seus videoclipes, a presena artstica tambm marcante, incorporando estticas do teatro, explorando a comdia e a tragdia em suas performances audiovisuais, da mmica, das artes plsticas e do cinema, principalmente. Bowie afirmava ter interesse em fazer sua msica parecer como soa e essa foi justamente a fora motriz da inovao esttica da qual Bowie foi um importante precursor. Sua atitude em pensar em trajes de cena na forma de criao de personagens para apresentar suas msicas em shows e turns transgrediu os conceitos de palco, artista, msica e esttica. Os figurinos de Bowie ajudaram a criar em palco esses personagens fictcios, ampliando a experincia artstica causada pela msica e, com ela, a percepo do pblico em relao sua obra. Para recordar alguns destes personagens, que marcaram a trajetria criativa de Bowie, como Ziggy Stardust (1972) e Aladin Sane (1973), faz-se fundamental citar o grande parceiro criativo de Bowie na concepo destas duas personas. O interesse de Bowie pela cultura e estilo japoneses levou-o ao conhecimento da obra de Kansai Yamamoto, estilista japons que seria o primeiro de seu pas a apresentar um desfile no circuito de moda londrino. Bowie conheceu o trabalho de Kansai num desfile em Londres (1971) e passou a admir-lo e adquiriu algumas de suas roupas para seus prprios shows. O primeiro encontro dos dois aconteceu em Nova Iorque, ao assistir uma apresentao de Bowie, Kansai identificou uma semelhana entre a influncia Kabuki de seu trabalho como estilista e a performance de Bowie que subitamente se despia de uma primeira roupa/capa negra para ento aparecer em outra toda colorida, fazendo o pblico ir ao delrio. O contato pessoal entre eles seguiu em formato de uma grande parceria, que levou os dois artistas a patamares ainda mais elevados. Conforme entrevista dada ao Telegraph:

    Eu nunca havia visto uma performance como aquela. Bowie desceu do teto, usando as minhas roupas. Meus designs foram influenciados pelo teatro Kabuki, assim como o seu show. Existe um movimento usado no kabuki chamado hikinuki, onde um traje dramaticamente despido, revelando por baixo uma roupa diferente. De incio, Bowie estava vestido todo de preto, mas de repente estava todo colorido. A plateia se impressionou tanto que todos ficaram seus ps. (YAMAMOTO, 2013)

    A juno andrgina de Bowie como Ziggy Stardust com cabelo vermelho sinttico, maquiagem e as roupas e sapatos de plataforma avant-garde de Yamamoto foram o estopim da cultura glam. Completando o visual tambm foi desenvolvido um complexo trabalho de maquiagem, atividade esta executada pelo prprio David Bowie. Sua maquiagem foi aperfeioada aps Bowie conhecer mais a fundo, numa viagem Tquio, o teatro Kabuki, do qual j era grande admirador. Este estilo japons de teatro apresentava uma maquiagem caracterstica em forma de mscaras que identificavam os personagens do enredo. Bowie complementou o visual com ps brancos e coloridos, sombras, uma esfera dourada na testa, delineador preto sobre os clios e a remoo dos pelos de suas sobrancelhas, reforando o aspecto aliengena de sua composio. A concepo da ideia do personagem Ziggy pode ser pautada em duas ideias centrais. A primeira a aproximao da cultura oriental, inspirada em elementos como o teatro Kabuki, por exemplo, esttica futurista para compor o carter tribal interplanetrio de Ziggy. A segunda pode ser extrada do filme Laranja Mecnica, do diretor Stanley Kubrick. No filme, o conceito de futuro ainda no vivido ou at de um mundo alternativo ia diretamente ao encontro do que Bowie pretendia apresentar como caracterstica de espao-tempo de seu Ziggy. Como disse o artista:

  • 12

    [] Toda a ideia de ter esta [] brincadeira de fala meio Anthony Burgess-Russa que valia-se de palavras russas, as colocava na lngua inglesa e retorciam velhas palavras shakespearianas essa espcie de lngua de mentira... encaixava perfeitamente com o que eu estava tentando fazer na criao deste mundo falso ou este mundo que no tinha acontecido ainda. (BOWIE, 1993)

    Como elemento adicional extrado do filme, foi adaptada a alguns de seus trajes a caracterstica pronta para a ao do figurino dos droogs, como os clios postios e o macaco que, na pele dos personagens ultraviolentos emitia um aspecto maligno, muito embora Bowie no simpatizasse com a violncia excessiva desses personagens. Para reverter este quadro, Bowie adaptou para seu figurino uma verso deste macaco com mais cores, floridos e brilhos atravs de uma miscelnea de tecidos. O ato de criar Ziggy como um ser de outro planeta tambm conversava bastante com o momento que a sociedade ocidental estava vivendo. Numa poca de frustrao, incertezas e diversas crises polticas e econmicas, a humanidade necessitava de novos horizontes, de um guia, de alguma perspectiva para encarar os desafios existenciais e sociais e evoluir em relao a aspectos tecnolgicos, polticos e acima de tudo, humanistas. As recentes bem-sucedidas empreitadas do homem Lua e o sonho do homem em explorar o desconhecido universo, sempre presente em registros histricos de diversas civilizaes da humanidade tambm impulsionaram esta faceta de sua criao. Outro fator que merece meno o rompimento com os padres estticos de gnero. Ao abolir o gnero ou orientao sexual de sua personagem, Bowie podia se movimentar, vestir e agir conforme interesse, se tornando um ser definitivamente livre. Esta liberdade, entre outras coisas era responsvel por atrair tamanha idolatria por parte do pblico. Oprimidos por viver numa sociedade que enquadrava esteticamente e limitava a sua expresso, tinham em Bowie como um ser ideal, perfeito, algo prximo a um semi-deus. Bowie deixou um grande legado artstico para a moda e a msica, eternizado pela sua rica construo de personagens, lapidados por sua extensa rede de referncias, capacidade de absoro de elementos e amplitude de sua percepo sobre o ambiente que vivia e interagia. OS BABILAQUES

    Um pouco hippie/ um pouco pop/ do hip hop/ ao Iggy Pop/ um pouco punk/ um pouco Gal/ do grandfunk/ ao metal/ um pouco dark/ um pouco soul/ do DJ Marky/ ao Nat King Cole/ um pouco bebop/ um pouco Bob/ do ZZ Top/ Zizi Possi/ sou da mistura/ sou bric a brac/ sou criatura/ Babilaque/ um pouco valsa/ um pouco bossa/ da salsa/ ao samba-fossa/ um pouco xote/ um pouco ciranda/ do fox-trote/ Carmen Miranda/ um pouco il/ um pouco Page/ do i-i-i/ ao John Cage/ um pouco marchinha/ um pouco baio/ da modinha/ ao Waly Salomo/ sou da mistura/ sou bric brac/ sou criatura/ Babilaque. (CARVALHO, 2009, p. 21).

    O Projeto Os Babilaques foi fundado em 2008 pelo professor, poeta e doutor em semitica Paulo Csar de Carvalho. Inicialmente uma banda e hoje composto por Carvalho nos vocais e na composio das letras/ poemas, alm de parcerias espordicas para instrumentar as canes, Os Babilaques tem como principal proposta a unio entre poesia e msica. Essa fuso explica tambm o nome escolhido ao grupo, batizado em homenagem ao poeta Waly Salomo e o que ele chamava de babilaques, nada menos que a fuso entre diversas artes e a abolio das fronteiras entre elas. Assim nasceu Os Babilaques, sob a

  • 13 filosofia de romper com as barreiras entre a poesia e a cano, alm de buscar elementos no teatro, na pintura corporal, entre outras expresses. Ao iniciar os contatos com Carvalho para descobrir suas principais influncias, descobri logo que a grande parte delas estava ligada s dcadas de 60 e 70, ou eram pelo menos produto direto do que havia acontecido nelas. Uma das caractersticas marcantes de Carvalho e Os Babilaques, a qual podemos ligar s dcadas lembradas atravs da Tropiclia, a caracterstica antropofgica que permeava o projeto. Carvalho cita regularmente o seu apreo pelo antropofagismo oswaldiano, dizendo se interessar apenas pelo que no lhe pertence, absorvendo toda a arte que o alimenta. Na msica, possvel citar como exemplos dessas influncias, Itamar Assumpo, Secos & Molhados, Roberto Carlos, Iggy Pop, Rolling Stones e Novos Baianos, apenas para ficar em alguns. No quesito poesia, encontra-se ainda mais complexidade e ramificao, indo de Augusto de Campos e Torquato Neto a Paulo Leminski e Roberto Piva, passando por Rimbaud e Allen Ginsberg. O gnero musical de Os Babilaques difcil de ser rotulado, mas se houvesse uma tentativa para defin-lo, seria identificado como um ritmo prximo a MPB, se relacionando tambm com o pop rock, mais descontrado, divertido e espirituoso, sobre uma batida da bateria tpica deste ritmo em algumas msicas, alm do apreo pela irreverncia musical e uma certa rebeldia, que so prprios desta vertente. Cabe ressaltar, entretanto, que esta definio trata-se apenas de um rtulo, uma tentativa grosseira de empacotar num termo mais amplo e facilmente compreensvel os elementos musicais da obra dos Babilaques. A caracterstica mais importante do estilo de criao e execuo musical dos Babilaques justamente a mistura e juno de estilos diversos. Carvalho no gosta de rtulos nem bandeiras para o gnero, preferindo misturar tudo, porm com ressalvas de critrio, como gosta de lembrar na frase da modelo brasileira Leila Diniz: dou para todo mundo, mas no para qualquer um. Nas letras das poesias/ canes dos Babilaques, indentificamos tcnicas como a colagem, as citaes, o jogo de palavras, as distores de sentidos, as brincadeiras com a sonoridade e preocupao especial na edificao da cano. Alm destes, o humor tambm se faz bastante presente, propiciado principalmente pelo uso balanceado de vocabulrio popular de rua e a abolio de fronteiras sexuais e musicais. Essa abolio se d pelo fato de que o sujeito da cano frequentemente transita entre todas as opes sexuais e exalta suas escolhas sem preconceitos ou barreiras. Por fim, o carcter humanista da enunciao em primeira pessoa e da explorao das experincias pessoais do interlocutor em relao a seu meio, acrescido do uso intensivo da conjuno e ao invs da ou, pretende zelar pela adio e pelo rompimento de barreiras e abismos que separem estilos, propostas e pensamentos, promovendo a diversidade e assumindo o presente como guia, numa verdadeira potica da existncia: o agora a hora. Embora a linguagem potica do projeto esteja coesa com sua proposta artstica de romper as fronteiras entre letra e msica h a necessidade de trabalhar por sua identidade visual, que ainda no est em plenitude como o primeiro aspecto. Em todas os encontros e as apresentaes que pude acompanhar em vdeo e in loco, no existia um trabalho visual estruturado, que acaba por limitar o potencial esttico que poderia ser aplicado para reforar a mensagem da obra como um todo. Conforme foi possvel identificar nos objetos de estudo do trabalho, percebeu-se o quo impactante foram os figurinos performticos desenvolvidos e o quanto eles ampliaram a proposta artstica de seus idealizadores. Quando Os Babilaques eram formados por integrantes fixos, ou seja, quando o projeto musical era uma banda, tambm ainda no havia entre eles um pensamento comum a

  • 14 respeito do que eles pretendiam apresentar visualmente. Mencionando apenas Carvalho, foi percebido que suas roupas utilizadas em cena so escolhidas pela praticidade, a partir de peas que o Carvalho j possui e esto sua mo, e na rpida associao destas mesmas temtica da noite. PROPOSTA DE FIGURINO

    IMAGEM 23 O trabalho de figurino nasceu de uma demanda originada pelo prprio Paulo Csar de Carvalho, meu amigo, aps uma srie de encontros em que tive a oportunidade de acompanhar seus ensaios. Dono de um trabalho de poesia bastante elogiado, suas ambies performticas ainda careciam de maior estruturao, conforme levantado anteriormente. A primeira questo central para a composio do trabalho: a ideia de rompimento do muro do discurso. Inspirado nas proposies do intercmbio entre os campos da arte, que tambm norteou a criao do projeto Babilaques de Waly Salomo, influncia direta do projeto musical analisado, o figurino foi orientado de tal modo que pudesse abrigar em forma de traje a poesia, a msica e o movimento de cena numa mesma composio. Outro importante artista e grande influenciador foi o artista plstico Hlio Oiticica. Sua viso sobre a arte como experincia sensorial, ampliao de suas plataformas e a quebra de barreiras entre o pblico e o artista foram importantes insights para refletir a potica dos Babilaques na forma de se vestir no palco. Uma das grandes referncias para a composio dos trajes foi sua obra Parangols. Estes eram basicamente estruturas de tecido para envolver o corpo. Entretanto, s faziam 3 Imagem 1 e 2: David Bowie como Ziggy Stardust no palco, figurino de Kansai Yamamoto. Fonte: ofigurino.blogspot.com.br/ Imagem 3: Incorpore a revolta, parangol de Hlio Oiticica. Fonte: culture-se.com/ Imagem 4: Parte da banda americana The New York Dolls, 1973. Fonte: lastfm.com.br/ Imagem 5: Devendra Banhart se maquiando para fotos de divulgao do disco What Will Be, 2009. Fonte: modaparamim.com.br/ Imagem 6: Cena do filme Laranja Mecnica, Stanley Kubrick, 1971. Fonte: moviesincolor.com/ Imagem 7: Dzi Croquettes em apresentao, 1972. Fonte: cinepersona.com/ Imagem 8: Fotos de Gui Paganini - Sambistas da Escola de Samba Vai Vai (SP) usam "Parangols" originais de Hlio Oiticica no minhoco de So Paulo. Fonte: lounge.obviousmag.org

  • 15 sentido artisticamente, se a pessoa que os vestisse se movesse e danasse, fazendo com que suas cores se movimentassem e se soltassem pelo espao. A pessoa que o vestisse, entretanto, no poderia servi-lo apenas como suporte para exibio, mas sim, como uma verdadeira incorporao da obra no corpo e do corpo na obra. Desta maneira, foram criadas peas que refletissem a necessidade de uma participao de quem as vestisse para despertar suas cores e formas ao danar e se movimentar. Foram construdas camadas de diferentes tecidos que, agrupadas, formaram uma capa que permite adquirir vida pela performance de Carvalho, movimentando as cores. As camadas, os cortes, as cores e tecidos, pensados para este figurino, ficam sem graa se exibidos num manequim ou num cabide. Quando movimentados, entretanto, assumem seu papel pleno de manifestao artstica, revelando camadas no vistas, misturando as cores e percorrendo os espaos do palco furando o ar e incorporando a cano. importante ressaltar que as cores deste figurino tem como grande agente catalisador o movimento do corpo do artista, que ao mover-se mistura as camadas, os tecidos e, consequentemente, as cores. Uma outra premissa para o desenvolvimento do figurino foi levar em considerao o repertrio de msicas para o show intitulado Orangotangos, Reboleros e Carnavalsas. O contedo das letras das msicas deste show aborda temticas como a liberdade de expresso corporal, liberdade sexual, a intensidade das experincias pessoais, o amor e a paixo, a exaltao pluralidade, o viver o presente, tudo isso tratado com uma dose de humor e utilizando-se de tcnicas de construo potica como a colagem, o jogo de palavras e a distoro de sentidos, trazendo esses aspectos para a construo do figurino. Levou-se em considerao tambm, a adaptao funcionalidade do figurino ao perfil de palco no qual Os Babilaques costumam se apresentar. Isto foi especialmente importante para garantir que o traje de cena no atrapalhasse a visualizao e a movimentao do traje durante uma apresentao abrigada em palcos de tamanhos mais discretos. Essa necessidade de adaptao se d pelo fato dos locais contarem com estrutura amadora ou semi-profissional para receber apresentaes. Essa infraestrutura engloba os palcos, a iluminao, a engenharia de som e tambm os camarins. Este ltimo item em especfico bastante raro pelos locais de apresentao, o que dificulta o transporte, a montagem e o cuidado sobre um figurino mais complexo, por exemplo. Para atender os movimentos de Carvalho de acordo com o tamanho dos palcos de casas como o Museu da Lngua Portuguesa, Teatro da Vila e Casa das Rosas, que normalmente se apresenta, e permitir que o traje fosse deslocado facilmente de um lugar a outro, o traje no podia ter propores muito amplas, e deveria ser desmontado ou dobrado com facilidade. Com esta ideia de palco em mente, o figurino foi desenhado de forma a atender tambm, a essas expectativas. Por mais que seu aspecto visual sugira uma pea complexa composta por um emaranhado de camadas, trata-se na verdade de uma pea nica, como se fosse uma capa com vrias camadas costuradas entre si: para vestir a pea, basta Carvalho transpass-las pela cabea. A parte de baixo composta ora por um macaco e hora por uma espcie de legging, ambas compostas pelo mesmo material, que funcionam como base da roupa, sendo justas e anatmicas, tornando o vestir do figurino prtico. A legging/ macaco ajustada ao corpo a base do traje, modelada de forma assimtrica, com apenas uma manga (na verso 1 e 2) e pernas de tamanhos diferentes (em todos os croquis, dando evidncia a tatuagem na perna esquerda de Carvalho) e criando assim, um contraste entre o justo da pea base e o solto da capa que cobre o macaco. A escolha da modelagem irregular, no seguindo o padro (dois braos e duas pernas do mesmo tamanho), mostra um pouco da personalidade das letras/ poesias e a excentricidade do Carvalho como artista e pessoa, evidenciando a fuga aos padres estticos e comportamentais, bem como o enquadramento de formas em ambos.

  • 16 As capas tambm foram modeladas de forma assimtrica, contrabalanceando o peso do tecido mais denso para um lado (j que elas tm apenas uma manga) com a tatuagem mostra, que fecha o brao esquerdo do outro. Nos trajes montados, os tecidos escolhidos formam camadas justapostas, como uma lembrana a tcnica de colagem to explorada pelos tropicalistas (tema bastante explorado na monografia). Cada uma destas camadas evidencia uma funo especfica e as suas exposies conforme o artista se movimenta em palco operam como se contassem histrias, desenvolvidas em pequenos captulos: a roupa comea de um jeito em repouso e se transforma ao longo da apresentao. Uma dessas camadas composta por um tecido bordado mo com as letras da msica Plural (Carvalho), selecionada devido sua aderncia proposta dos Babilaques como um todo: a exaltao da adio, da diversidade e da pluralidade fazem da cano um importante hino sintetizador de muito do que Os Babilaques se prope a apresentar artisticamente. Durante as apresentaes dos Babilaques que pude acompanhar, percebi em Carvalho um gosto e uma vontade em se expressar corporalmente, fosse atravs de gestos, entonao e at mesmo de dana. Neste sentido, foi importante guiar-se para este trabalho a fim de permitir essas aes. A forma de capa adotada, propicia o movimento, dando liberdade para os gestos e aes no palco. So peas soltas, que no prendem braos nem pernas, so apenas colocadas sobre o corpo. J a parte de baixo, anatmica, possui elasticidade, auxiliando na performance e movimentao. Essa possibilidade de movimento, permite interao com a roupa aumentando assim, o poder de expresso. Ao mexer-se, o traje poderia ganhar vida. O formato de capas com peas soltas, tendo sempre uma delas com modelagem ampla, formadas por vrias camadas, costuradas entre si, numa montagem de pea nica, propiciam essa funo. Ao mover-se essas peas ganham vida, criando, alm de efeito de cor, um prolongamento dos movimentos. As camadas criadas com diferentes tecidos, alm dos recortes decotados, as tramas de rede e todas as aberturas para a pele foram trabalhados a fim de esconder ou mostrar as partes do corpo, permitindo sua exaltao e sua sensualidade. A primeira pea que evidencia a pele atravs das transparncias a rede desenvolvida na tela da legging/macaco, que alm de decorar as pernas e outros detalhes das peas abre um importante espao para a valorizao da pele, contrastando o rstico, o artesanal das tramas com a sensualidade da pea colada ao corpo. A segunda pea compreende na tnica (verso 3), que tem parte da sua construo feita em organza preta, deixando translcida a parte do peitoral. O corpo, exaltado e livre, tambm libertado pelo fato de que a composio do traje no sugere qualquer enquadramento de gnero ou opo sexual, remetendo a algumas letras de Carvalho presentes no repertrio do show. A cartela de cores, foi pautada principalmente em tons quentes, remetendo paixo, ao calor, vida e intensidade em viv-la. Como Carvalho mesmo gosta de afirmar, em tom de auto definio: No acredito em poeta experimental, sem vida experimental. Essas cores tambm refletem a temtica de muitas das canes conforme citado anteriormente. A pele mostra tambm reforada pelo uso das cores. Para contrabalancear as cores quentes escolhidas, cores mais neutras, como o cru, foram utilizadas, remetendo ao natural, a pele, ao corpo. Como parte final desta justaposio de tons, temos o cinza e o preto, este ltimo remetente a um aspecto de seduo e fetiche, especialmente nos elementos de transparncia que exaltam a pele. Por trs desta oposio de cores est a inteno de apresentar sobre um mesmo plano a diversidade de tons e expresses, aspectos to promovidos pelo projeto e seu apreo pela potica multifacetada. Neste caso, o figurino funciona como uma tela para contrastar, aos olhos do espectador, essas tonalidades opostas e ao mesmo tempo complementares e harmnicas quando trabalhadas juntas.

  • 17 Outra notvel vertente sessentista presente na composio do figurino a mistura de materiais e a oposio do moderno contra o arcaico (evidentes no movimento modernista oswaldiano e reeditado no tropicalismo). Seguindo Oswald de Andrade, seu contraste da floresta e a escola colocava sob um mesmo plano o aspecto arcaico da cultura de raz e os grandes avanos econmicos e culturais de vanguarda que aconteciam mundialmente e refletiam no Brasil, buscando provocar reflexes acerca do que seria cultura de vanguarda para o pas. O fato do figurino posicionar numa mesma composio materiais mais rsticos, como o algodo cru, alm dos bordados feitos mo, junto a um material mais moderno, devido sua constituio de fios qumicos, remetendo a indstria modernizao, como o tecido sinttico (plstico), pretende remeter aos pensamentos oswaldianos e seu caldeiro de identidades culturais. A propsito, o trabalho das tramas da legging/ macaco e os bordados em uma das partes da capa e da saia, so todos artesanais, propostos para serem feitos mo, sendo peas nicas, carregando assim uma histria e remetendo a questo da brasilidade, do rstico, to presentes em nossa cultura. Essa juno de materiais funciona tambm como uma exaltao diversidade e adio, to promovidas nas poesias de Carvalho. Cada parte da roupa possui um corte, uma modelagem, um tecido e funes especficas dentro do figurino. A preferncia pela conjuno e em detrimento da ou, que sugere escolhas e limitao, explica a opo por misturar esses elementos diversos. Dentro do universo do figurino proposto, tambm foram sugeridas maquiagens. Os traos do desenho da maquiagem foram inspirados nas referncias estudadas na monografia, tendo as Dzi Croquettes, David Bowie e os New York Dolls como principais inspiraes, pelas suas construes ou desconstrues de faces masculinas. O rosto masculino naturalmente tem marcaes fsicas muito expressivas e fortes, especialmente no maxilar, nas sobrancelhas e nos lbios. A fim de cumprir com o objetivo de chocar e questionar os espectadores, prope-se destacar os clios e lbios com formas delicadas e sensualizadas, trazendo o feminino para contrastar com os traos naturais masculinos, rompendo com o estigma sisudo e agressivo do rosto tpico do homem, levantando questionamentos e saindo do senso comum de homem e mulher. Desta forma, descaracterizando o rosto de Carvalho alm das definies de sexo, coloca-se em pauta muito das letras de suas canes, que evocam a liberdade sexual, liberdade de expresso, vida de paixes sem limites, conforme j mencionado anteriormente. Alm disso, o fator que envolve a parte tcnica teve de ser levado em conta, afinal a maquiagem tem que ser possvel de ser feita pelo prprio artista, com traos mais simples e materiais acessveis, como delineador, sombra, rmel, lantejoula, entre outros. As tatuagens, tanto no brao quanto na perna esquerda, aparecem propositalmente com destaque em todas as propostas. Essas intervenes, costumam ir alm do significado artstico de seus traos, muitas vezes marcando etapas da vida, pensamentos e experincias pessoais. Assim Carvalho com sua obra. No papel ou qualquer outra plataforma, est cravado muito do que viveu, do que acredita, do que reflete e filosofa. Alm desta associao, possvel tambm, ao exibir as tatuagens, que o espectador compreenda que quem est no palco no um personagem, mas sim Carvalho em seu estado performtico, vestido de suas ideias, ou de sua poesia. Outro ponto importante, foi a escolha que para estes figurinos os ps ficassem descalos. Alm de propiciar mais conforto, como Carvalho gosta de ficar no s em cena, mas tambm em casa e outros ambientes, os ps descalos permitem uma melhor movimentao e interao com o palco, alm de colocar o intrprete em sintonia direta com sua plataforma de exibio. Sem a presena de um calado, o cho do palco e a pele do artista se tocam, se conectam. Por fim e retomando a obra de Hlio, outros aspecto que relaciona Os Babilaques ao perodo analisado foi o conceito da interatividade entre espectador e obra (especialmente forte nas artes plsticas).

  • 18 Como plataforma performtica para o figurino, foi pensado para o palco uma disposio que permitisse a possibilidade de interao com o pblico e a performance potica. O figurino ganharia um prolongamento que se estenderia ao palco, tornando-se um figurino cenogrfico, tornando o performer (Carvalho), parte integrada ao espao, ao cenrio do show, conectando-o ao palco. Pedaos de tecidos amarrados a Carvalho, prolongamentos de sua capa, seriam dispostos ao longo do palco, ligando-o aos instrumentos, caixas de som, refletores de luz e estrutura, como pilares e colunas, por exemplo. Para garantir o papel de espectador participador ao pblico, haveria pedaos de tecidos irregulares bordados com palavras (extradas das poesias escritas por Carvalho) disponveis ao pblico. No incio do show, enquanto Carvalho estaria no centro do palco preso s extenses do tecido e recitando poemas, o pblico seria convidado para subir ao palco e montar, maneira que entendessem, um poema posicionando os bordados no painel/tecido de cor. Este poema, fruto da combinao de todas as palavras dispostas, poderia ento ser recitado pelo prprio Carvalho, que se soltaria destes pedaos de tecido, dando incio assim ao show. Cabe ressaltar que o resultado desta interao foi pensado tambm como meno ao poeta francs Stphane Mallarm, grande influncia do movimento concretista (identificado como uma das grandes manifestaes literrias da pesquisa levantada na monografia e grande influnciadora da obra de Carvalho). Sua tcnica potica consistia em escrever conforme as palavras lhe surgissem cabea. Para Mallarm, a mente no funciona de maneira linear, portanto as palavras que lhe surgiam eram escritas sem que o poeta soubesse onde elas podiam leva-lo. A organizao destas no papel era o que formava a poesia. Ao permitir que Carvalho vista literalmente a poesia, voltamos a mais uma parte do legado de Hlio Oiticica e os ideais de incorporar a obra de arte. Este figurino permitir que o projeto musical amplie a expresso de sua potica, intensificando o dilogo com seu pblico, atravs dos estmulos de sentidos, que ao invs de se limitarem no som, tero na viso das roupas, seus movimentos e cores, um importante instrumento para auxiliar no entendimento da mensagem que Os Babilaques desejam transmitir. Esta conexo entre o conceito do projeto e sua identidade visual, cria uma mensagem mais impactante e verdadeira, uma vez que todos os aspectos esto alinhados, trazendo mais intensidade at para os artistas participantes na hora de se expressarem.

    IMAGEM 34 4 Croquis (verso 1, 2 e 3) das propostas de figurino para Carvalho, do projeto musical Os Babilaques.

  • 19

  • 19 CONSIDERAES FINAIS O processo de composio dos figurinos para Os Babilaques foi muito alm da minha expectativa em termos de complexidade, profundidade, anlise e estruturao. Os meus primeiros vislumbres sobre o figurino eram diversos e deveriam ser investigados e testados para comprovarem-se ou desmentirem-se. Esse processo se deu por uma pesquisa extensa de referncias, contexto histrico, alm de anlise de trajes de cena de performances musicais e conceito artstico da proposta. O levantamento minucioso das principais fontes artsticas do projeto fez-se fundamental. Muitas destas fontes levaram o trabalho ao encontro das dcadas de 60 e 70 e, por consequncia a cones como David Bowie, Secos e Molhados e a Tropiclia, cujas notveis contribuies histria do figurino da msica proporcionaram um entendimento sobre como relacionar um traje de cena a uma proposta musical. Ao final destas etapas, o modelo inicial pensado para o figurino dos Babilaques foi completamente desmistificado e pude finalmente me aventurar a desenhar um novo traje que estivesse fiel essncia de Carvalho e seu projeto. Fui surpreendida com a naturalidade e rapidez com que pude planejar e executar o desenho dos figurinos. Credito essa aparente tranquilidade forte dedicao e busca por profundidade que guiaram as fases iniciais, em especial ateno dada pesquisa de referncias, to j citada por sua relevncia neste trabalho. No final, ao compartilhar os resultados finais com Carvalho, senti em sua reao uma recompensadora sensao de entusiasmo e, acima de tudo, identificao. Espero que este trabalho acadmico possa ser til tambm aos profissionais da rea e que estes enxerguem valor nas metodologias utilizadas. REFERNCIAS . Bibliografia BARBO, Srgio. Fev 1974 Secos & Molhados: Solta os paves. Revista Super Interessante, novembro 1987. BONI, Regina. Pano Costurado. In: Tropiclia: 20 anos. So Paulo, SESC, 1987. CAMPOS, Augusto. Balano da Bossa e Outras Bossas. So Paulo: Perspectiva, 1978 (3a Edio). CAMPOS, Augusto de e Haroldo de; PIGNATARI, Dcio. Mallarm. So Paulo: Perspectiva S.A., 1991 (3 edio). CARVALHO, Paulo Csar de. Letra na Clave Sol. So Paulo, Nhambiquara, 2012. CARVALHO, Paulo Csar de. Toque de Letra. So Paulo, Nhambiquara, 2009. DUNN, Christopher. Brutalidade Jardim. So Paulo: UNESP, 2009. FAVARETTO, Celso. Tropiclia Alegoria Alegria. So Paulo: Ateli Editorial, 2007. (4. Edio) SALOMO, Waly. Hlio Oiticia: qual o parangol. Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 1996.

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