orientações e prática

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1 UNIVERSIDADE DO EXTREMO SUL CATARINENSE UNESC PROGRAMA DE PS-GRADUAO STRICTO SENSU EM EDUCAO PPGE MESTRADO EM EDUCAO

ALAIM SOUZA NETO

FORMAO do LEITOR e CNONE LITERRIO: relaes entre as Orientaes Curriculares e as prticas docentes

CRICIMA, NOVEMBRO DE 2008

2 ALAIM SOUZA NETO

FORMAO do LEITOR e CNONE LITERRIO: relaes entre as Orientaes Curriculares e as prticas docentes

Dissertao apresentada ao Programa de PsGraduao em Educao da Universidade do Extremo Sul Catarinense - UNESC, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Educao, sob a orientao da Prof. Dr. Celdon Fritzen.

CRICIMA, NOVEMBRO DE 2008

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DEDICATRIA minha me, Sonir Souza Neto e ao meu pai, Alamir Leonardo Neto (os dois in memoriam), que assim como milhes de brasileiros no tiveram acesso aos bancos escolares, mas incentivaram todos os seus filhos a uma constante busca pela formao acadmica e humana. Dedico esta pesquisa tambm a todos aqueles que refletem, fazem e encaram a pesquisa cientfica como um compromisso em construo e prtica constante, necessria, do processo educacional e do desejo de inovao e transformao da sociedade.

4 AGRADECIMENTOS

Sem o apoio, o estmulo e a colaborao recebida de diversas pessoas, esta pesquisa acadmica dificilmente teria se realizado. Por isso, agradeo a todos aqueles que de alguma forma me apoiaram, torceram por mim e viabilizaram a concretizao deste sonho. Primeiramente UNESC - Universidade do Extremo Sul Catarinense, por oferecer comunidade criciumense um programa de mestrado em educao reconhecido pela CAPES. Alm disso, aos funcionrios do PPGE da UNESC, em especial secretria do PPGE, Vanessa M. Dias. Ao meu orientador, Prof Dr. Celdon Fritzen, um especial agradecimento, pelo ensino e sabedoria de que conhecer mais do que apenas acumular conhecimentos, modificar, estar aberto para novas perspectivas, nunca estar totalmente acabado, mas sim compartilhar, construir juntos, sorrindo ou chorando, buscando significados, olhando ao outro sempre... A voc Celdon, agradeo tambm, pela pacincia em deixar, acolhedoramente, que eu percorresse meus prprios caminhos nos momentos em que passei por uma srie de entreveros relacionados sade e, principalmente, pela presso motivadora que me permitiu percorrer com qualidade todo o trajeto necessrio de uma pesquisa acadmica. Fica o meu agradecimento final pelo seu zelo de orientador e rigor acadmico com os meus trabalhos. banca examinadora, professores Dr. Celdon Fritzen, Dr. Gladir da Silva Cabral e Dra. Tnia M. Piacentini, que contriburam significativamente para este trabalho desde o momento da qualificao. Aos professores do PPGE - Programa de Ps-Graduao em Educao (mestrado), que direta ou indiretamente, contriburam para a realizao desta dissertao, atravs das discusses em sala de aula e das indicaes de leituras, especialmente, aos professores Celdon Fritzen e Gladir da Silva Cabral, estes ltimos por terem me oferecido uma reformulao em minhas concepes educacionais, lingsticas e literrias. Aos orientadores e orientandos da linha de pesquisa Educao, Memria e Linguagem do PPGE, um grupo da pesada e em constante expanso, pela

5 competncia, pela dedicao e pela importncia no cenrio da produo terica educacional contempornea do pas. s instituies escolares da pesquisa e aos professores entrevistados durante a pesquisa de campo, pela disponibilidade e dedicao aos depoimentos em resposta ao questionrio que muito nos auxiliaram a fim de que pudssemos refletir sobre nossa prtica. s instituies de ensino das quais sou ou fui professor: Colgio Marista, Colgio Hermann Spethmann, Colgio Energia, SESI Escola, EEB Jos do Patrocnio e EEB Joaquim Ramos, por simplesmente permitirem que eu desenvolva em minha prtica pedaggica as reflexes que fiz durante e depois desta pesquisa. Rosilene e Adriana, amigas e companheiras de mestrado, pelas leituras atentas, pelas sugestes, pelas indicaes de textos, pelo incentivo, pelas conversas e, principalmente, pela amizade. Aos meus amigos Fbio e Edinho, os quais, mesmo de longe, torceram por mim e me passaram energia positiva por telefone, cartas ou e-mail, mesmo nas horas mais difceis, pelo riso ou choro compartilhado, pela sensibilidade em deixar que eu seguisse meu caminho e, acima de tudo, por respeitarem a minha essncia e tornarem mais fcil meu sonho almejado. A todos os meus familiares, que de longe ou perto ficaram torcendo por mim: a minha irm: Sula, a minha segunda me: Conta, aos meus sobrinhos: Rafael e Matheus e, finalmente, minha famlia, no de sangue, mas de amor: Neli Villain e Lus Rabello, bem como seus filhos, por tudo que fizeram e fazem por mim nessa vida. Todos vocs so vozes que ecoaram nesta pesquisa. A todos vocs, est aqui um sonho...

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EPGRAFE "[..] quanto mais me assumo como estou sendo e percebo as razes de ser de porque estou sendo assim, mais me torno capaz de mudar, de promover-me, no caso, do estado de curiosidade ingnua para o da curiosidade epistemolgica. No possvel a assuno que o sujeito faz de si numa certa forma de estar sendo sem a disponibilidade para mudar. Para mudar e de cujo processo se faz necessariamente sujeito tambm [...] a assuno se vai fazendo cada vez mais assuno na medida em que ela engendra novas opes, por isso mesmo que ela provoca ruptura, deciso e novos compromissos. Paulo Freire

7 RESUMO Esta pesquisa tem como objetivo investigar as atuais abordagens tericas e prticas sobre leitura, cnone e ensino de literatura. Com isso, procurou-se refletir e conhecer como os discursos das Orientaes Curriculares - Ensino Mdio (2006) problematizam a relevncia do cnone literrio no processo de formao do leitor. Assim, tomaram-se como construo terica os elementos que compem a questo a ser investigada: leitor, leitura literria, literatura e cnone, com vistas a refletir sobre a formao do leitor e a funo pedaggica que o letramento literrio pode oferecer num processo educativo para os indivduos. A metodologia utilizada feita atravs de uma abordagem qualitativa, tecendo consideraes a respeito das relaes e contradies entre uma anlise documental dos discursos presentes nas Orientaes Curriculares para o Ensino Mdio (BRASIL, 2006) e uma pesquisa de campo que analisa as experincias relatadas de seis professores de literatura de escolas, pblicas e particulares, colhidas em entrevistas semi-estruturadas videogravadas sobre a suas prticas pedaggicas. A anlise do corpus mostrou que o trabalho docente e as concepes sobre cnone, leitura e literatura dos professores no so realizados com base em reflexes tericas consistentes em relao s Orientaes Curriculares. Evidencia-se tambm que os professores no conhecem esses documentos e por isso no sabem do que tratam. Por ltimo, observa-se que os professores acabam no priorizando a leitura literria em sala de aula e dando muita nfase histria da literatura, pois apresentam fragilidades no que diz respeito funo da literatura, mediao da leitura e, conseqentemente, formao do leitor do texto literrio. Palavras-chave: Leitura - Ensino de Literatura - Cnone - Letramento Literrio Orientaes Curriculares

8 ABSTRACT

This research aims to investigate the current theoretical approaches and practices on reading, teaching and canon of literature. With this, we have tried to reflect and learn how the Guidelines for Curriculum - High School (2006) discuss the importance of the literary canon in the process of formation of the reader. Thus, taken as a theoretical construct, the elements that compose the question to be investigated: readers, reading literature and literature canon, have the idea to reflect over the learner formation and the function that a literary literacy education process can offer for individuals. The methodology used is made through a qualitative approach, bringing up considerations about the relationships and contradictions between a documentary analysis of speeches present in the Curriculum Guidelines for high school (BRASIL, 2006) and a field research that examines the experiences of six reported teachers of literature in public and private schools, the experiences are Semi-structured video interviews on their teaching practices. The analysis showed that the body of teaching and notions about canon, reading and literature of the teachers are not made based on theoretical reflections consistent with regard to curriculum guidelines. It is also true that teachers do not know the documents and are therefore not aware of the deal. Finally, it appears that teachers have not prioritized the literary reading in the classroom and are giving great emphasis to the history of literature, since they have weaknesses on regards of the role of literature, in the mediation of reading, and consequently in the training of the reader of the literary text.

Keywords: Reading - Teaching of Literature - Canon - Literary Literacy Curriculum Guidelines.

9 SUMRIO

INTRODUO .......................................................................................................... 10 1 CAPTULO: OS PCNs em FOCO Partindo deles ............................................ 16 1.1 Contextualizando os PCNs.................................................................................. 16 1.2 O que so os PCNs? O que afirmam da leitura da literatura?............................. 19 2 CAPTULO CHEGANDO nas ORIENTAES CURRICULARES A Anlise documental .............................................................................................................. 33 2.1 O que dizem os conhecimentos de literatura nas orientaes curriculares ......... 33 2.2 O lugar do cnone literrio nas orientaes curriculares para o ensino mdio ... 41 3 CAPTULO: TRAJETRIAS DE PESQUISA ....................................................... 57 3.1 Justificando o tipo de pesquisa de campo ........................................................... 57 3.2 O cenrio de pesquisa de campo: as escolas ..................................................... 59 3.3 Caracterizao do corpus da pesquisa de campo: os entrevistados Afinal, quem so eles? ......................................................................................................... 61 3.4 As entrevistas Para qu e como foram realizadas? ......................................... 64 4 CAPTULO: ANLISE DOS RESULTADOS ....................................................... 66 4.1 Procedimentos de anlise das entrevistas .......................................................... 66 4.2 A identificao e formao dos entrevistados ..................................................... 67 4.3 A perspectiva de ensino de literatura e a formao do leitor na escola .............. 73 4.4 Relaes do cnone literrio com a prtica do professor na formao do leitor . 85 4.5 O letramento literrio nas vozes dos professores ............................................... 92 4.6 Afinal, o que dizem os professores das orientaes curriculares ........................ 96 5 CAPTULO: UM POSSVEL FIM: MLTIPLAS ALTERNATIVAS ..................... 100 REFERNCIAS....................................................................................................... 107 APNDICE .............................................................................................................. 111 Apndice 1: Questionrio para professores Dissertao de Mestrado ................. 112 Apndice 2 Modelo da autorizao assinada pelos professores .......................... 115

10 INTRODUO

Palavras de Mestre O homem constri casas porque est vivo, mas escreve livros porque se sabe mortal. Ele vive em grupo porque gregrio, mas l porque se sabe s. Esta leitura para ele uma companhia que no ocupa o lugar de qualquer outra, mas nenhuma outra companhia saberia substituir. Ela no lhe oferece qualquer explicao definitiva sobre o seu destino, mas tece uma trama cerrada de conivncias entre a vida e ele. nfimas e secretas conivncias que falam da paradoxal felicidade de viver, enquanto elas mesmas deixam claro o trgico absurdo da vida. De tal forma que nossas razes para ler so to estranhas quanto nossas razes para viver. E a ningum dado o poder para pedir contas dessa intimidade. Daniel Pennac, 1993

A apresentao desta pesquisa acadmica tem a inteno de visualizar o caminho por ns percorrido, ou pelo menos daquilo que queremos percorrer. No entanto, compreendemos essa ser a ltima parte de nossa pesquisa, pois, na verdade, trata-se de iniciar a caminhada pelo fim dela, olhando para trs, recuperando nossas reflexes entre orientador e orientando que se seguiram desde o incio desse processo. Iniciamos, ento, pela epgrafe, que demonstra ter uma relao muito complexa sobre aquilo que queramos pesquisar, j que por ela, vemos a leitura como um possvel encontro entre o homem e a sua realidade social. Dessa forma, envolvidos num processo de educao para o homem, partimos deste encontro para iniciar o desafio que temos: a preocupao com a leitura, decorrente de nossa vivncia educacional escolar e, ainda, da constatao de que ensinar a ler uma proposta que consta em todos os programas de ensino, nos diversos nveis, sendo objeto de discusso em cursos e encontros de educadores. a partir de questes como as funes da leitura, do ensino da literatura e da relevncia do cnone que pretendemos refletir sobre a formao do leitor e a funo pedaggica que o letramento literrio pode oferecer num processo educativo para os indivduos. Sabemos, pelos PCNs - Parmetros Curriculares Nacionais (1998), que h uma primazia da leitura como um dos objetivos gerais do ensino de Literatura e Lngua Portuguesa, estas ltimas sempre muito imbricadas na instituio escolar.

11 Os PCNs ainda recomendam ser preciso:[...] utilizar a linguagem na escuta e produo de textos orais e na leitura e produo de textos escritos de modo a atender a mltiplas demandas sociais, responder a diferentes propsitos comunicativos e expressivos, e considerar as diferentes condies de produo do discurso. (BRASIL, 1998, p. 23)

Tendo em vista o que se comenta sobre pesquisas realizadas pelo rdio, televiso ou outras realizadas pelos jornais e revistas e ainda pesquisas de acadmicos universitrios sobre os hbitos de leitura dos brasileiros, fica evidente a baixa qualidade da leitura das pessoas. Minimamente retratada, essa realidade o desafio com o qual a escola deve lidar ao promover a formao dos indivduos. Nos documentos oficiais (BRASIL, 1999), alm do conjunto de atitudes a que o educando precisa se habilitar, est presente a preocupao com a participao do indivduo na sociedade, de que fazem parte a cidadania e a continuidade dos estudos. Nessa perspectiva, h a necessidade de que o aluno tenha condies de refletir sobre as linguagens e seus sistemas a fim de alcanar a cidadania desejada. Com essa condio, ler, nesta pesquisa, implicar um processo de interao do leitor com o texto, mais particularmente, o texto literrio. Nesse sentido, consideramos que o ato de ler vai muito alm da simples decodificao do cdigo alfabtico. Ao ver a leitura sob esse prisma, percebe-se que ela desempenha um papel relevante na formao do indivduo, pois dever prepar-lo para interagir com o mundo, numa postura cada vez mais crtica. Nossa opo por problematizar as relaes entre a leitura, a literatura, o letramento e o cnone literrio, foi feita como forma de reconhecermos a relevncia desses termos no processo de formao do leitor. Todos esses termos esto muito presentes em nossa trajetria de vida pessoal e profissional, mas, tambm, queramos compreender como eles so questionados e vivenciados numa perspectiva para alm da dimenso escolar, visto que eles, antes de serem escolares, so sociais. Precisamos compreender o ato de ler e letrar como necessidades, cada vez mais concretas aos nossos educandos, para as quais precisamos estar aptos e, assim, podermos corresponder s novas configuraes culturais e poltico-sociais que na escola e, conseqentemente, na sociedade, se estabelecem.

12 Para atender a um novo cenrio social, que ser explicitado em vrios momentos desta pesquisa, formar leitores competentes e crticos tornou-se um dos maiores desafios educacionais na atualidade. O que temos assistido na escola a imagem de um cidado contemporneo, e que no est intimamente ligada ao sujeito escolarizado, capaz de manipular as leituras e, atravs dessas, interagir com suas experincias individuais e a sociedade. Entre tais experincias esto as habilidades e competncias necessrias a tornar um leitor competente. Essas habilidades se encontram tambm descritas nos Parmetros Curriculares Nacionais (1997a) e partem do princpio de que a leitura muito mais que decifrao. Dessa forma, conceber um leitor competente supe formar[...] algum que compreenda e reflita sobre o que l; que possa compreender no texto a leitura que no aparece, mas que est escrita, identificando elementos implcitos; que pratique relaes entre o que l e o j lido; que entenda as mltiplas significaes que pode conter um texto; que consiga valorizar a sua leitura a partir do encontro de elementos discursivos que permitam faz-lo. (BRASIL, 1997a, p. 36)

Entretanto, apesar das competncias do leitor se concretizarem nos Parmetros Curriculares Nacionais, fato que, salvo algumas raras excees, a leitura costuma ser concebida na escola apenas como uma atividade escolarizada ,como afirma Soares (2004) e no de real significao e relao com a vida dos indivduos sociais. A escolarizao da leitura tem se tornado uma tarefa para ensinar a ler de forma mecnica, linear e esttica. fato que h um grande descompasso entre o que se espera da escola na formao do leitor crtico e competente e sua efetiva atuao nesse processo. Pela histria da leitura, nota-se que os homens estabelecem relaes com a leitura que se diferem ao longo do tempo. A necessidade atual [...] fazer uso da leitura [...] (SOARES, 2004, p. 32) para que haja de modo efetivo o desenvolvimento de uma competncia para o pleno exerccio da cidadania na atual sociedade. Assim, temos uma justificativa para a realizao desta pesquisa, que se prende ao fato de que, na atual conjuntura social em que a educao est inserida, nota-se que houve uma rpida mudana de valores poltico-sociais e da prpria cultura. Essas mudanas foram possibilitadas devido a uma nova configurao social, dos meios de comunicao e da tecnologia, e de novos saberes que a humanidade necessita.

13 Embora se tenha um reconhecimento da importncia do ato de ler e dos avanos do conhecimento cientfico sobre aspectos relativos leitura, as mudanas ditas anteriormente no produziram alteraes significativas no processo do ensino da leitura. Assim, mesmo depois da implementao dos PCNs, temos muitos estudos e pesquisas apresentando lacunas que necessitam ser investigadas. So esses espaos vazios que tornam o tema leitura, literatura, cnone literrio e educao ainda relevantes em pesquisas acadmicas educacionais. Em suma, so algumas dessas lacunas que objetivamos problematizar nesta pesquisa. A problematizao da pesquisa ser feita luz de teorias da educao, j que ela representa importante ferramenta para entender a realidade. Entendida a realidade, a pesquisa torna-se agente de mudanas, quer pela sua relao com o processo ensino-aprendizagem, quer pelas discusses que oferece ou deixa de oferecer aos problemas que afligem a sociedade, pois, conforme Luna (apud FAZENDA, 1997, p. 26): A pesquisa uma atividade de investigao capaz de oferecer (e, portanto, produzir) um conhecimento novo a respeito de uma rea ou de um fenmeno sistematizando-o em relao ao que j se sabe dela (e). No nos propomos nesta dissertao a produzir algo absolutamente novo, mas a fazer, cientificamente, um diagnstico recortado, explicitado na metodologia da pesquisa, sobre o ensino de literatura e a relevncia do cnone literrio nesse ensino. O diagnstico ser subordinado a uma perspectiva de ensino preocupada com a formao do leitor literrio. Para se alcanar novos caminhos na pesquisa, um bom incio, sem dvida, refletir e problematizar aquilo que j foi realizado. Nessa perspectiva, um dos objetivos especficos desta pesquisa apreender as atuais abordagens tericas sobre leitura e o ensino de literatura, relacionando a uma anlise documental dos discursos presentes nas Orientaes Curriculares para o Ensino Mdio (BRASIL, 2006), juntamente com uma pesquisa de campo com professores de literatura. Esclarecemos que a opo de anlise documental dessas Orientaes (2006) foi pela expresso que esse documento, aps dez anos de sua primeira verso e implementao nas escolas brasileiras, vem apresentando nas instncias de ensino. Com isso, procurou-se refletir sobre a problemtica deste estudo que se constituiu em conhecer como os discursos das Orientaes Curriculares - Ensino Mdio (2006) problematizam a relevncia do cnone literrio no processo de formao do leitor. Nesse questionamento, buscou-se tecer consideraes sobre as

14 prticas de formao do leitor, no ensino de literatura, a fim de pesquisar e problematizar os discursos tericos da academia e, posteriormente, dos professores, na sociedade contempornea. Nela, assistimos, de um lado, o fortalecimento de uma tradio clssica de leitura, estabelecida pelas instncias educacionais e culturais e, de outro, o estabelecimento da leitura anrquica, termo de Petrucci (1999), no-literria, em que no se releva o cnone como elemento de importncia na formao do leitor. Na impossibilidade de abarcar em um s estudo todas as produes cientficas das Orientaes Curriculares que abordam a temtica da leitura, decidimos enfocar, nesta pesquisa, os textos produzidos por ocasio do mdulo Conhecimentos de Literatura. Este recorte viabiliza a anlise das questes e dos autores mais recentes nas pesquisas sobre o tema. A idia de nos debruarmos numa leitura crtica das Orientaes Curriculares para o Ensino Mdio (2006), luz das teorias educacionais de ensino da leitura/literatura, surgiu em reflexes entre orientador e orientando e, em seguida, pela prpria leitura desses discursos oficiais, os quais se apropriam, pelo nosso olhar, superficialmente de determinadas categorias tericas em relao leitura e ao letramento. Esta pesquisa, documental e de campo, tem por objetivo geral verificar que aspectos esto sendo privilegiados em relao leitura e ao letramento literrio na elaborao das Orientaes Curriculares (2006) e nas prticas dos professores de literatura em sala de aula. Delimitada a pesquisa, buscamos esclarecimentos e dados relevantes em autores que j tratam dessas questes que citamos, como Magda Soares, Regina Zilberman e Leyla Perrone-Moyss. Entretanto, com o objetivo de ampliar o estudo sobre letramento, quando necessrio, outros tericos que se relacionam rea da leitura, literatura, cnone literrio e educao, foram chamados a contribuir na anlise. A partir das reflexes feitas a respeito da problemtica que envolve o ensino e as prticas de leitura e literatura, feita a descrio dos captulos que constituem metodologicamente o objeto de averiguao desta pesquisa. Sendo assim, tal descrio ser trabalhada sob a seguinte estrutura: no primeiro captulo apresenta-se um pouco da histria e contextualizao da elaborao e implantao dos PCNs no Brasil. Em seguida, busca-se compreender o caminho pedaggico desde a implantao dos PCNs, PCNEM, PCN+ at as Orientaes Curriculares para o ensino mdio. No segundo captulo focaliza-se como se procede a educao

15 literria nos dias de hoje e o lugar do cnone literrio nessa educao, seguido por sua defesa ou contestao, advinda de mudanas sociais, polticas e econmicas da atualidade. O terceiro captulo versa sobre a metodologia da pesquisa de campo realizada com professores de literatura a fim de verificar como so executadas as prticas pedaggicas de ensino da literatura. O quarto captulo analisa os resultados da pesquisa de campo com os professores entrevistados. Por fim, so apresentadas as consideraes sobre as relaes e contradies entre a anlise documental das Orientaes Curriculares (2006) e a pesquisa de campo com professores, e qual a relevncia desta pesquisa educao brasileira, bem como os dados bibliogrficos.

16 1 CAPTULO: OS PCNs em FOCO Partindo deles

No ser tempo de escrever uma histria literria perspectivada a partir das condies de produo especficas e suas transformaes? E no seria tambm de levar em conta as condies em que a literatura lida e divulgada uma histria literria dos leitores e editores, e no apenas de autores e das obras? Viktor Zmegac, 1986

1.1 Contextualizando os PCNsNeste final de milnio, a sociedade brasileira vive um momento de rpidas transformaes econmicas e tecnolgicas, ao mesmo tempo em que os avanos na cultura e na educao transcorrem de forma bastante lenta. Em funo de uma economia dependente, no se desenvolveu uma cultura e um sistema educacional que pudessem fortalecer a economia, fazendo-a caminhar para a sua auto-suficincia (BRASIL, 1998, p.19).

A partir da leitura da epgrafe acima, extrada dos PCNs, podemos realizar um exerccio de contextualizao desse documento na conjuntura nacional do Brasil em relao ao cenrio poltico-econmico mundial no final da dcada de 1990. A epgrafe permite compreender a necessidade econmica de sintonizar a nao com o ritmo da globalizao e de suas exigncias, como fator decisivo para a proposio dos PCNs. Assim, veremos que reconfigurar a educao brasileira um dos movimentos realizados para adequar o pas s polticas neoliberais que predominam, como tambm, atender aos requisitos das agncias de financiamento internacionais. Entende-se a poltica neoliberal, segundo os autores Arelaro (2000) e Neves (2000), como um produto da globalizao econmica, resultado da acumulao de capital e de sua regulao cada vez mais independentes do Estado nacional. Para a ideologia neoliberal existem condies primordiais, entre elas: mercado livre; atividades econmicas no regulamentadas; moeda estvel; reduo dos benefcios sociais; privatizao de tudo o que for possvel; valorizao da produtividade. Nessa poltica, os conceitos de qualidade e produtividade so as referncias sistmicas para a gesto das indstrias e dos comrcios. Dessa forma, esses conceitos so formadores de padres e indicadores para que as empresas

17 alcancem seus objetivos econmicos e tornem-se viveis perante a concorrncia econmica. As referncias para empresas (indstria e comrcio) so as mesmas que nortearam a criao e implantao dos PCNs no cenrio educacional brasileiro. Fica assim, mais fcil compreender, dentro dessa circunstncia, porque a educao brasileira em determinado momento necessitava de novos referenciais. Ora, se a economia precisava de transformaes, ser que a educao tambm? A partir do incio dos anos 1990, a educao foi includa nas discusses sobre as reformas polticas. Tais reformas ficavam atreladas s exigncias econmicas dos bancos internacionais, os quais concediam os financiamentos aos pases em desenvolvimento na exigncia de que disponibilizassem ensino bsico a todas as pessoas sem escolarizao. Foi assim que os bancos internacionais, a partir dos emprstimos, comearam a funcionar como instituies reguladoras dos pases em desenvolvimento na conduo de mudanas sociais. Dentre as exigncias de regulao dos bancos financiadores, temos a avaliao nacional, feita pelo MEC, que demonstrou, por exemplo, em razo do baixo desempenho dos alunos, a frgil e incompleta formao dos professores (FONSECA, 1995). Na inteno de encontrar uma sada rpida para a problemtica do cenrio educacional, o Estado apresenta algumas alternativas: investir maciamente na formao dos professores e nas condies fsicas das escolas, alm de reorganizar os planos de carreira e das jornadas de trabalho dos professores (FONSECA, 1995). Se essas so as condies de implantao dos PCNs, poderamos ento afirmar que o documento seria mais uma estratgia de fazer calar as vozes das minorias, de subjugar os excludos s foras do capital? Seria precipitado condenar o documento por sua ligao com esse contexto de reformas modernizadoras e vinculadas globalizao na qual o Pas desejava se inserir. Ressoando as lutas que se apresentam na sociedade, os PCNs tambm podem ser vistos como o lugar em que uma renovao epistemolgica e da prtica docente, se no se concretizou, pelo menos se tornou objeto de debates. O que desejamos salientar que, embora tenha sido forjado na esteira de objetivos de adequao ao mercado, no necessariamente, pelo jogo de foras que constitui a sociedade e que ele representa, tenhamos que ver o documento de forma negativa. A observao

18 dessas contradies de que os PCNs so o resultado pode ser vista claramente no processo de sua constituio. Dada a necessidade de criao dos PCNs, era preciso definir a equipe que poderia elabor-los. Sendo assim, em 1994, um grupo de pessoas foi convocado pelo Ministrio da Educao. Era formado por aproximadamente 60 profissionais e estudiosos da educao brasileira e mais pessoas da Argentina, Colmbia, Chile e Espanha, as quais haviam participado de reformas educacionais e curriculares em seus pases (ARELARO, 2000). Foram eles que elaboraram a primeira verso dos PCNs que foi entregue s escolas no fim de 1995. Em 1996, cria-se a Lei n 9394/96 que estabelece os novos rumos para a educao brasileira. No mesmo ano, o Ministrio da Educao afirma que um nmero de mais ou menos 400 professores das mais diversas reas do saber e tericos da educao receberam a verso para verificao e emisso de um parecer tcnico (FONSECA, 1995). Num jogo de contradies sociais, inmeras foram as manifestaes, constitudas por pesquisadores da educao e educadores, contrrias s formas de elaborao dos PCNs. Nesse jogo, em resposta a manifestaes da sociedade e da comunidade acadmica, o Ministrio da Educao afirmou que a elaborao dos PCNs passou por um processo elaborado de anlise em todo o pas. Uma discusso da qual participaram inmeros docentes de universidades pblicas e particulares, especialistas de secretarias de educao municipais e estaduais, de instituies renomadas das diversas reas, alm dos educadores. Tentando garantir que era o resultado de um amplo debate, o prprio documento reitera essa posio: a elaborao dos PCNs iniciou a partir das propostas curriculares dos Estados e Municpios do Brasil, quando da anlise realizada pela Fundao Carlos Chagas sobre os currculos oficiais (BRASIL, 1997a, p. 8). Enfim, feita a discusso dos PCNs pelos envolvidos, tenha sido o processo participativo ou no, democrtico ou no, o que no nosso objeto especfico de pesquisa, o documento pedaggico oficial invade as escolas no final de 1997. Os PCNs se apresentaram na escola de forma muito peculiar: com excelente material de qualidade grfica, esteticamente desenvolvido, dividido pedagogicamente em temas e sub-temas. Alm da preocupao com a apresentao dos PCNs, o Ministrio da Educao pensou na acessibilidade desses

19 documentos nas escolas. Foi assim que disps para cada professor um exemplar, a fim de que ele pudesse l-lo e consult-lo. Desse modo, como se prope esta pesquisa, cremos que podemos encontrar nas pesquisas com professores caminhos para se pensar o sucesso ou no do projeto de elaborao e implementao de referncias curriculares para o pas. Nossa inteno frente ser a de obter elementos para pensar se um projeto de elaborao e editorao to bem planejado foi realmente concretizado na escola. Por exemplo: tendo recebido ou no o professor os PCNs, teve ele qualquer tipo de formao sobre os discursos tericos neles contidos? Finalizando nossa contextualizao do documento, poderamos dizer que o Ministrio da Educao criou mecanismos de formao para os professores que correspondiam s exigncias da nova configurao poltico-econmica neoliberal da dcada de 1990. Todavia, fato que, originado em contextos de atendimento s exigncias econmicas e sociais especficas, o documento se construiu tambm com o comprometimento de intelectuais envolvidos na reflexo e transformao das condies educacionais e no conformados a uma educao apenas para o mercado de trabalho. Com os PCNs podemos ter as primeiras aproximaes com os discursos de estudiosos e tericos que problematizam a educao brasileira. Cabenos, ento, assumir uma atitude de anlise documental sobre as teorias e discursos nele presentes. Em suma, o que faremos neste trabalho refletir sobre os desdobramentos que as polticas educacionais a partir do Estado, nesse caso os PCNs, oferecem educao brasileira, particularmente no que diz respeito formao de leitor literrio.

1.2 O que so os PCNs? O que afirmam da leitura da literatura? Grosso modo, como j dito na introduo desta dissertao, nossa justificativa de anlise dos PCNs foi compreender qual sua relevncia e recepo no cenrio da educao brasileira, depois de passados dez anos de sua implementao. Vimos no item anterior da pesquisa que os Parmetros Curriculares Nacionais foram elaborados por um grupo de especialistas da educao ligados ao Ministrio da Educao (MEC). Entretanto, l no ressaltamos o objetivo educacional com que o documento foi elaborado e implementado, visto que tratamos apenas do cenrio poltico-ecnomico que demandou o surgimento dos PCNs. A

20 exposio do objetivo educacional dos PCNs e seu debate, seguido da abordagem da concepo de leitura literria no ensino fundamental e por fim no ensino mdio so as trs grandes discusses que faremos durante este item da dissertao. Iniciemos, ento, pela primeira: o propsito dos PCNs em relao educao brasileira. Segundo o Ministrio da Educao, visavam a tornar-se uma referncia para elaborao dos currculos escolares, como tambm servir de subsdio para elaborao das propostas curriculares estaduais e municipais. Os PCNs so, portanto, uma proposta do Ministrio da Educao para a educao escolar brasileira tornar-se eficiente, fornecendo limites e condies de funcionamento para os currculos na escola, bem como os mnimos contedos a serem ministrados nas disciplinas. So referenciais para todas as escolas do pas a fim de que elas garantam aos estudantes uma educao bsica de qualidade. Em suma, o objetivo afianar que crianas e jovens tenham garantia de acesso aos conhecimentos necessrios e possam integrar-se na sociedade globalizada como cidados participativos e conscientes de suas responsabilidades (BRASIL, 1998). Segundo os prprios PCNs, seu objetivo principal de[...] compreender a cidadania como participao social e poltica, assim como exerccio de direitos e deveres polticos, civis e sociais, adotando no dia-a-dia, atitudes de solidariedade, cooperao e repdio s injustias sociais, respeitando o outro e exigindo para si o mesmo respeito (BRASIL, 1997a, p. 7).

Todavia, quando falamos em PCNs, antes devemos reconhecer de quais PCNs estamos falando, pois esses se apresentam em trs grandes grupos: os de ensino fundamental para o I e II ciclos, editados em 1997; os de ensino fundamental para o III e IV ciclos, em 1998; e os de ensino mdio (PCNEM), em 1999. esse ltimo documento (PCNEM), desdobrado em outro documento conhecido como Orientaes Curriculares para o Ensino Mdio, editado em 2006, que abordaremos nesta dissertao, juntamente com uma pesquisa de campo com professores. Embora a anlise documental principal do problema da pesquisa seja feita sobre as discusses tericas da ltima edio dos parmetros, intitulado de Orientaes Curriculares (2006), fizemos tambm a leitura dos demais livros dos PCNs. Fizemos isso porque eles constituem o incio do processo de elaborao do

21 rol de PCNs e era fundamental compreender o pensamento engendrado em todos os documentos. Dessa forma, a fim de situar a problemtica desta pesquisa, abordaremos, na seqncia, a segunda e terceira discusses, a que propusemos no incio deste item: das relaes, contradies e convergncias da leitura literria no ensino fundamental e por fim no ensino mdio. Foram algumas dessas, principalmente as contradies, que levaram o Ministrio da Educao a editar uma outra verso do documento anos mais tarde. Mas, podemos nos questionar sobre o que pode ter acontecido no PCNEM (1999) que mereceram novas produes como os PCN+ (2002) e as Orientaes Curriculares (2006)? Para compreender o porqu dessa reedio pela perspectiva do ensino de literatura, discutiremos a concepo de leitura literria, primeiramente nos PCNs de ensino fundamental (1997b e 1998) e, por ltimo, nos PCNEM (1999). Como sabemos, a educao bsica no Brasil compreende desde o primeiro ciclo do ensino fundamental at o terceiro ano do ensino mdio. Dessa maneira, importante que se conhea e se discuta toda a concepo de leitura literria dos PCNs para que no corramos o risco de ter uma concepo fragmentada e equivocada do processo de letramento literrio durante a etapa final da educao bsica do indivduo: o ensino mdio. Iniciando a anlise pelo primeiro livro dos PCNs (1997b), deparamo-nos com a especificidade curricular da disciplina de Lngua Portuguesa e, por sua vez, da Literatura inseridas numa esfera maior que a linguagem. Segundo os prprios PCNEM,[...] muitos educadores podero perguntar onde est a literatura, a gramtica, a produo de texto escrito, as normas. Os contedos tradicionais foram incorporados por uma perspectiva maior, que a linguagem, entendida como um espao dialgico, em que os locutores se comunicam (BRASIL, 1999, p. 144).

Todavia,

podemos

nos

perguntar:

mas

por

que

a

linguagem?

Considerando a velocidade, a quantidade e a baixa qualidade de informaes que circulam no mundo contemporneo, a lei n 9.394/96 critica a fragmentao do saber e estimula a prtica de um ensino que aproxime e integre as reas do conhecimento. Para isso, sugere um ensino contextualizado e interdisciplinar, voltado para o

22 exerccio da cidadania, no qual o aluno seja efetivamente o protagonista do processo de aprendizagem. Nesse contexto, a linguagem ou as linguagens passam a ser vistas como um importante meio tanto para a construo de significados e conhecimentos quanto para a constituio da identidade do estudante. Alm disso, a linguagem verbal passa a ser por excelncia a ferramenta natural da interdisciplinaridade. De acordo com os PCNs (1998, p. 20), os homens e as mulheres interagem pela linguagem. Podemos dizer, em poucas palavras, que a linguagem assim se definiria como uma prtica social que se realiza nos diversos grupos sociais. Esse comprometimento em relao linguagem justifica-se nos PCNs por se perceber uma preocupao adequada ao objetivo de exercitar a cidadania, visto que esse exerccio necessita do cidado que tenha a capacidade de utilizar a lngua de modo variado, para produzir diferentes efeitos de sentido e adequar o texto a diferentes situaes de interlocuo oral e escrita (BRASIL, 1998, p. 23). Junto com a concepo de linguagem que os PCNs de Lngua Portuguesa denotam, est presente nos discursos oficiais uma preocupao com a formao do leitor na escola. Reconhece-se, assim, o texto escrito como unidade bsica no ensino e da interao no processo de ensino-aprendizagem. Entre os tipos de textos, esto tambm os textos literrios. Em sntese, o processo epistemolgico para compreenso da linguagem faz uso da juno da concepo de aprendizado da lngua e da literatura para atender ao objetivo de incorporao da cidadania pelo indivduo. Na prtica, o que acontece a presena do texto literrio no processo de formao do leitor subalternamente a uma perspectiva maior de ensino da linguagem. Na concepo dos parmetros,[...] interagir pela linguagem significa realizar uma atividade discursiva: dizer alguma coisa a algum, de uma determinada forma, num determinado contexto histrico e em determinadas circunstncias de interlocuo (BRASIL, 1998, p. 20-21).

Pela anlise dos PCNs (1997a, 1998), vemos ainda que, pela sua concepo de leitura, no se trata de extrair informao, decodificando letra por letra, palavra por palavra (BRASIL, 1998, p. 69), fazendo-nos constatar que a leitura tem sua concepo ampliada em relao quela vista como um processo educativo que terminava na alfabetizao, como aconteceu por muito tempo.

23 Isso porque, embora no percebamos, estamos lendo e escrevendo at nas menores aes realizadas. Da a importncia de saber ler e escrever a fim de que possamos participar plenamente como cidados ativos desse sistema de escrita na sociedade, seja trabalhando, atuando, agindo, transformando etc. Com essa conscincia, descobrimos e alargamos nossas representaes do mundo, ou seja, colocamos em anlise os contedos de nossas experincias a fim de question-los e, se necessrio, transformar esses contedos. Os PCNs compreendem a concepo de letramento como[...] um produto da participao em prticas sociais que usam a escrita como sistema simblico e tecnologia. So prticas discursivas que precisam da escrita para torn-las significativas, ainda que s vezes no envolvam atividades especficas de ler ou escrever (BRASIL, 1997b, p. 23).

De fato, a presena da escrita e da leitura se fizeram e fazem de muitas formas, conforme a atividade, a finalidade e a situao, e entre as esferas que se formam pelo sistema de escrita podemos nos encaixar em qualquer uma delas ou, ainda, em todas: em nossa vida domstica, pagando contas, cumprindo horrios, escrevendo bilhetes; em nossa vida ntima e relacionamento pessoal, escrevendo dirios, pensamentos, cartas; no recebimento de informaes, pela TV, rdio, leitura; em nossa formao e instruo, como atividades escolares; em atividades laborais e profissionais, acessando manuais, blocos, cheques; em atividades sociais, no clube, na igreja, no sindicato etc. Vemo-nos, assim, sem querer, obrigatoriamente inseridos num mundo em que as atividades so quase todas mediadas pelo escrito. Essa configurao social contempornea exige dos sujeitos que dela participam diferentes possibilidades de leitura e de escrita. Dessa forma, a concepo de leitura precisa ser um processo contnuo, infinito em que o que vale o saber fazer uso do ler e escrever (SOARES, 2004). Logo, v-se que o cidado letrado em vez do alfabetizado, o que sabe praticar a leitura e a escrita, est sim mais preparado a participar do mundo em que vive porque conhece e se posiciona perante as transformaes que decorrem do aparecimento das diferentes tecnologias, exigncias sociais e insero das infinitas informaes culturais.

24Mas a nfase que se est dando ao conhecimento sobre as caractersticas discursivas da linguagem que hoje sabe-se essencial para a participao no mundo letrado no significa que a aquisio da escrita alfabtica deixe de ser importante. A capacidade de decifrar o escrito no s condio para a leitura independente como verdadeiro rito de passagem um saber de grande valor social (BRASIL, 1997b, p. 34).

A concepo de letramento dos PCNs (1997) tem como referncia a abordagem interacionista da linguagem, a qual muito presente nos Parmetros Curriculares Nacionais de Lngua Portuguesa, principalmente, quando no tratamento dado ao texto ao afirmar que esse no est pronto quando escrito: o modo de ler tambm um modo de produzir sentidos (BRASIL, 1998, p. 70). Destaca-se, assim, a funo social do leitor na produo de outros sentidos. A juno da concepo de letramento e abordagem interacionista da linguagem resulta na idia de que um cidado letrado deve ser um leitor competente entendido como aquele que[...] sabe selecionar, dentre os vrios textos que circulam socialmente, aqueles que podem atender a suas necessidades, conseguindo estabelecer estratgias adequadas para abordar tais textos. O leitor competente capaz de ler as entrelinhas, identificando, a partir do que est escrito, elementos implcitos, estabelecendo relaes entre o texto e seus conhecimentos prvios ou entre o texto e outros textos j lidos (BRASIL, 1998, p. 70).

Todo o trabalho de formao do leitor, a partir da concepo de leitura dita acima, deve fornecer aos alunos do terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental os seguintes valores e atitudes:interesse, iniciativa e autonomia para ler textos diversos adequados condio atual do aluno; interesse pela leitura e escrita como fontes de informao, aprendizagem, lazer e arte; interesse pela literatura, considerando-a forma de expresso da cultura de um povo; interesse por trocar impresses e informaes com outros leitores, posicionando-se a respeito dos textos lidos, fornecendo indicaes de leitura e considerando os novos dados recebidos; interesse por freqentar os espaos mediadores de leitura bibliotecas, livrarias, distribuidoras, editoras, bancas de revistas, lanamentos, exposies, palestras, debates, depoimentos de autores , sabendo orientar-se dentro da especificidade desses espaos e sendo capaz de localizar um texto desejado (BRASIL, 1998, p. 64).

A funo social da leitura, assim, ter sido mais completa se o leitor puder atuar com maior autonomia nessa sociedade, haja vista que a leitura de diferentes tipos de textos fornece ao indivduo a possibilidade de uma formao de cidados/leitores crticos capazes de avaliarem o que lem.

25 Uma vez que evidenciamos a preocupao dos PCNs com a leitura, poderamos questionar os prprios PCNs para que nos respondessem quais os textos que precisam ser lidos e oferecidos aos alunos na escola. So todos? Os literrios? Os no-literrios? Decerto que os parmetros traduzem em seus discursos uma preocupao com a especificidade da leitura literria. Encontramos nos PCNs a valorizao do texto literrio quando afirmam que ele ultrapassa e transgride os planos da realidade para constituir outra mediao de sentidos entre o sujeito e o mundo, entre a imagem e o objeto, mediao que autoriza a fico e a reinterpretao do mundo atual e dos mundos possveis (BRASIL, 1998, p. 26). O texto literrio pode no ensinar nada, nem se pretender a isso; mas seu consumo induz a algumas prticas socializantes que, estimuladas, mostram-se democrticas porque so igualitrias (LAJOLO; ZILBERMAN, 1988, p. 19). Nesse sentido, a democracia entendida como um alargamento da oferta de bens culturais e abertura de horizontes scio-intelectuais em que o texto literrio pode servir de suporte e motivao. Os PCNs enunciam queA literatura no cpia do real, nem puro exerccio de linguagem, tampouco mera fantasia que se asilou dos sentidos do mundo e da histria dos homens. Se tomada como uma maneira particular de compor o conhecimento, necessrio reconhecer que sua relao com o real indireta (BRASIL, 1997b, p. 23).

Dessa forma, vemos na literatura, ou melhor, no texto literrio, a possibilidade de formao para o indivduo; a qual contnua, incessante e at mesmo interminvel, ou seja, pelo texto literrio temos uma dinmica infinita envolvida e que se movimenta conforme as mutaes e as contradies histricas, polticas e sociais. Somos cientes, pela leitura, de que as formas de conhecimento no se esgotam e que a idia de que o homem possa apossar-se da totalidade dessas formas de saber ilusria. A leitura literria, por sua vez, como ato cultural, no se esgota na educao formal. Como modo de conhecimento, exige uma relao constante com o leitor, da mesma forma que a leitura do mundo. Confiamos a partir das relaes histrico-culturais que os caminhos que levam o leitor ao conhecimento e crtica so estabelecidos nas relaes do homem com o seu meio cultural impregnado de

26 vises de mundo, por isso no podemos negar o valor do conhecimento produzido a partir da leitura dos livros literrios. No momento em que falamos da funo da leitura, enfatizamos que os PCNs de Lngua Portuguesa, do terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental, tm uma preocupao com a literatura, pois contemplam no ensino de lngua portuguesa a leitura de contos, novela, romance, poema, texto dramtico, cano (BRASIL, 1997, 1998). Essa diversidade textual, conforme os PCNs, no s garantir a formao de leitores, mas sim de leitores competentes (BRASIL, 1997b, p. 55). Ainda, segundo os PCNs a questo do ensino da literatura ou da leitura literria particular e singularizada porque envolve[...] um exerccio de reconhecimento das singularidades e das propriedades compositivas que matizam um tipo particular de escrita. Com isso, possvel afastar uma srie de equvocos que costumam estar presentes na escola em relao aos textos literrios, ou seja, trat-los como expedientes para servir ao ensino das boas maneiras, dos deveres do cidado, dos tpicos gramaticais, das receitas desgastadas do prazer do texto, etc. Postos de forma descontextualizada, tais procedimentos pouco ou nada contribuem para a formao de leitores capazes de reconhecer as sutilezas, as particularidades, os sentidos, a extenso e a profundidade das construes literrias (BRASIL, 1997b, p. 37-38).

A citao acima se centra na problematizao da relao entre a leitura literria e a sua escolarizao, ou seja, uma tenso estabelecida entre um discurso pedaggico e um discurso literrio. De fato, essa reflexo nos leva s relaes e contradies entre a literatura e sua escolarizao, mas no nossa inteno primordial problematiz-la aqui. Por sua vez, tal tenso acaba fornecendo elementos primordiais para compreender os distanciamentos entre a elaborao de um documento, ou seja, a teoria e a aplicao desse mesmo documento na escola, ou melhor, a prtica. Poderamos dizer que a tenso entre esses discursos se traduz no dia-a-dia, nas dificuldades que o professor tem para trabalhar os textos literrios na escola. Discutir essa questo sempre um projeto de muita ousadia e polmica, pois demanda discutir o ensino de literatura e sua funo social na escola. Contudo, faremos isso em um outro momento nesta dissertao. Por enquanto, atemo-nos a compreender que nesses parmetros curriculares a lngua e a literatura interagem para, juntas na escolarizao do gnero textual, fornecer aos leitores, alm do

27 contato com uma das manifestaes da arte, o reconhecimento das questes do diaa-dia, das atitudes do outro e de si prprio, situando-se sempre na histria. Querendo finalizar a questo que problematiza a presena da leitura literria nos PCNs do terceiro e quarto ciclos (1998), resumimos que a questo centra-se numa preocupao do Ministrio da Educao com a formao de leitores nesses citados nveis escolares. Segundo os prprios PCNs (1998) nessa fase que muitos dos alunos desistem de ler por no conseguirem atender s demandas de leitura colocadas pela escola (p. 71). Acrescentam que cabe escola organizarse em torno de um projeto educativo comprometido com a intermediao da passagem do leitor de textos facilitados (infantis ou infanto-juvenis) para o leitor de textos de complexidade real (p. 71). E a quais textos estaria o Ministrio da Educao referindo-se quando fala em textos de maior complexidade? Podemos afirmar que so os literrios? So esses que podem conduzir os leitores to valorizada real complexidade? So questionamentos como esses que permeiam todo tempo nossa pesquisa, j que nossa questo central na dissertao a relevncia do cnone literrio no processo de formao do leitor. Finalizada a discusso que aborda a concepo de leitura literria no ensino fundamental (terceiro e quarto ciclos), o que se pode afirmar dessa discusso no ensino mdio contemplada nos PCNEM (1999)? So as mesmas intenes que se revelam tanto na elaborao dos PCNs do ensino fundamental como do ensino mdio em relao ao ensino da leitura literria? Ou seja, o ensino de literatura no nvel mdio tambm abarcado pela perspectiva de ensino da linguagem como no nvel fundamental? em torno dessa discusso que nos debruamos a seguir. Comecemos por afirmar que os PCNEM (1999) na rea de Linguagens, cdigos e suas tecnologias tiveram sua recepo pelas escolas de forma bem menos impactante em relao entrega dos PCNs do ensino fundamental (1997b, 1998), visto j estar a escola preparada a receber o documento. Uma das razes dessa baixa repercusso, segundo crticos e tericos dos PCNs, foi a extenso do documento, j que concebe um novo ensino de lngua e literatura, mas sem desenvolvimento terico que permitisse aos professores repensarem suas prticas pedaggicas (BRASIL, 2002).

28 Localizando o ensino de Lngua Portuguesa, o documento apresenta uma concepo enunciativo-discursiva da linguagem, com citaes de Mikhail Bakhtin. Entretanto, ao expor a funo das linguagens, os PCNEM afirmam que:Utilizar-se das linguagens como meio de expresso, informao e comunicao em situaes intersubjetivas, que exijam graus de distanciamento e reflexo sobre os contextos e estatutos de interlocutores; saber colocar-se como protagonista no processo de produo/recepo (BRASIL, 1999, p.135).

Alm das diferentes concepes que se estabeleceram para a funo da linguagem como sendo um meio de expresso, informao e comunicao, diferentes em relao ao que se estabelecia no cenrio educacional anterior a essa poca (1997, 1998, 1999) e resultado de reflexes do pensamento pedaggico de Bakhtin, como poderiam os professores conhecer o pensamento desse terico da gneros do discurso, to recente nas discusses da poca? Ser que o contexto em que se inserem os professores de Lngua Portuguesa foi levado em conta? difcil imaginar que em apenas quatorze pginas referentes aos conhecimentos de lngua portuguesa pudessem existir subsdios suficientes ao professor a fim de que ele pudesse refletir sobre suas metodologias de ensino de lngua e literatura. O jogo de foras que se mostra em resposta ao exposto acima foi comum a uma boa parte dos professores e tericos da educao em todo o pas. Primeiro, pela insuficincia terica que explicasse o que se desejava; segundo, porque criticava o ensino de gramtica e literatura at ento; terceiro, e a mais importante nesta pesquisa, por considerar o ensino de literatura como uma entre as muitas linguagens, sem qualquer especificidade. As citaes relativas literatura foram duas:[...] A confuso entre a norma e gramaticalidade o grande problema da gramtica ensinada pela escola. O que deveria ser um exerccio para o falar/escrever/ler melhor se transforma em uma camisa-de-fora incompreensvel. Os estudos literrios seguem no mesmo caminho. A histria da literatura costuma ser o foco da compreenso do texto; uma histria que nem sempre corresponde ao texto que lhe serve de exemplo. O conceito de texto literrio discutvel. Machado de Assis literatura, Paulo Coelho no. Por qu? As explicaes no fazem sentido para o aluno (BRASIL, 1999, p. 137). Os contedos tradicionais de ensino da lngua, ou seja, nomenclatura gramatical e histria da literatura, so deslocados para um segundo plano. O estudo da gramtica passa a ser uma estratgia para compreenso/

29interpretao/produo de textos e a literatura integra-se rea de leitura (BRASIL, 1999, p. 139).

fato que os PCNEM (1999) abordam questes importantssimas, porm no as desenvolvem. Segundo os PCNEM, ser que Paulo Coelho to importante como Machado de Assis? E a histria da literatura seria um contedo tradicional? Baseado em qu? E mais, o que poderia se dizer sobre a restrio do ensino de literatura leitura? Em que consistiria, ento, esse novo ensino de literatura? So muitos os questionamentos que ficam sem respostas. O documento infere, tambm, que o professor deve promover leituras de textos literrios, sem dizer sob quais critrios de seleo. No quadro da pgina 145, encontramos duas habilidades relacionadas literatura:Analisar os recursos expressivos da linguagem verbal, relacionando textos, contextos, mediante a natureza, funo, organizao, estrutura, de acordo com as condies de produo, recepo (inteno, poca, local, interlocutores participantes da criao e propagao de idias e escolhas, tecnologias disponveis). Recuperar, pelo estudo do texto literrio, as formas institudas de construo do imaginrio coletivo, o patrimnio representativo da cultura e as classificaes preservadas e divulgadas, no eixo temporal e espacial. (BRASIL, 1999, p. 145).

A primeira habilidade coerente com uma perspectiva de enunciao da linguagem, entretanto aborda textos em geral, literrios e no-literrios. J, a segunda habilidade pode levar o professor a questionar se o modo pelo qual vem ensinando literatura atinge ou no o que se espera. Mas, quais os subsdios que o documento oferece para que se faa isso de maneira eficaz? Nenhum ou quase nenhum, poderamos dizer. Quanto citao que afirma recuperar as classificaes preservadas e divulgadas, o que poderia ser? Classificar autor/obra? Se for isso, o que ento consistiria a novidade de ensino da literatura? Se no for, o qu e como fazer, ento? O que se constata a falta de clareza em relao ao ensino de literatura, mais a pouca relevncia do ensino desse saber na escola. Inmeras foram as crticas de escritores brasileiros e da prpria academia em relao pouca importncia para a literatura na escola. Tudo, ainda, somado falta de uma explicao clara em relao ao ensino dessa literatura. Entre as muitas manifestaes de indignao, citamos a de duas professoras da USP, Neide

30 Rezende e Maria Helena Nery Garcez, que se manifestam no Jornal da USP em relao aos PCNEM (1999):[...] no ensino mdio, os PCNs no so parmetros de nada. So genricos e tocam de forma muito ruim no ensino de literatura. As escolas se renem, tentam entender o que no possvel entender. A professoras dizem que est em jogo um novo modelo de literatura, que antes se prendia muito a pocas e autores, sem que o aluno entrasse em contato direto com os textos. Esse um modelo fragmentado do sculo 19, que poderia ser mais apropriadamente considerado ensino da histria da literatura. [...] camos no extremo oposto de negligenciar e dar pouca nfase aos estudos literrios que fazem, assumir posies analticas, crticas, amadurecer, em suma (Jornal da USP, 2000, p. 12).

O que as professoras afirmam em relao aos estudos literrios tem uma relevncia no s no contexto histrico de ensino da literatura e sua relevncia no currculo escolar, mas tambm para esta pesquisa, visto abordar e problematizar uma preocupao com a importncia do cnone literrio num processo de formao do leitor durante o perodo escolar. A repercusso foi to intensa a respeito dessa lacuna nos estudos da linguagem, que suscitou a publicao de um novo documento pelo MEC, chamado de complementar aos parmetros do ensino mdio: PCN+ (2002). A elaborao do novo documento teve a coordenao de Carlos Emlio Faraco, contudo, mesmo tendo sido feitas inmeras correes, por assim dizer, em relao s discusses que foram feitas anteriormente nos PCNEM (1999), o documento parece ter negado ainda a especificidade da literatura no ensino de lngua portuguesa. Em relao ao ensino de literatura, especificamente, tem-se: nos PCNEM (1999), o ensino de histria da literatura deveria ocupar um papel secundrio, enfatizando-se a formao de leitores de literatura; entretanto, nos PCN+ o enfoque era outro. Citamos trs passagens do texto dos PCN+, para evidenciar a contradio que se estabelece no ensino de literatura entre os documentos de 1999 e 2002 que, de um lado, excluem a histria da literatura e, de outro, destacam uma relevncia para essa histria. Dessa forma, pode-se compreender como foi evidente a questo de termos uma grande impreciso terica no ensino de literatura. Nos PCN+ (2002), tem-se que

31Entender as manifestaes do imaginrio coletivo e sua expresso na forma de linguagens compreender seu processo de construo, no qual intervm no s o trabalho individual, mas uma emergncia social historicamente datada. O estudo dos estilos de poca, por exemplo, em interface com os estilos individuais, adquire sentido nessa perspectiva: a de que o homem busca respostas inclusive estticas a perguntas latentes ou explcitas nos conflitos sociais e pessoais em que est imerso (BRASIL, 2002, p. 52). A lngua, bem cultural e patrimnio coletivo, reflete a viso de mundo dos seus falantes e possibilita que as trocas sociais sejam significadas e ressignificadas: No domnio desse conceito est, por exemplo, o estudo da histria da literatura,a compreenso do dinamismo da lngua, a questo do respeito s diferenas lingsticas, entre outros (IDEM, p. 66). A formao do aluno deve propiciar-lhe a compreenso dos produtos culturais integrados a seu(s) contexto(s) compreenso que se constri tanto pela retrospectiva histrica quanto pela presena desses produtos na contemporaneidade (IDEM, p. 69).

O que vimos nas citaes supra uma importncia dada histria da literatura no currculo escolar, embora o documento aborde a idia de desenvolver essa histria da literatura sem que haja a obrigatoriedade de abordar minuciosamente todas (2002) as escolas literrias e seus respectivos autores. Admite, ainda, trabalhar com as obras clssicas da literatura brasileira, em contradio ao que foi dito em 1999, quando questionava e confundia o professor de literatura ao lanar questes sem respostas. Como exemplo, temos:[...] A histria da literatura costuma ser o foco da compreenso do texto; uma histria que nem sempre corresponde ao texto que lhe serve de exemplo, O conceito de texto literrio discutvel. Machado de Assis literatura, Paulo Coelho no. Por qu? As explicaes no fazem sentido para o aluno (BRASIL, 1999, p. 137).

Tanto os PCNEM (1999) quanto os PCN+ (2002) no fornecem respostas, ou mesmo reflexes mais profundas a respeito dessa questo que faz incluir um autor e no incluir o outro. O que falta em ambos os documentos uma discusso da relevncia do cnone no ensino de literatura. Os professores de literatura, na escola, esto diante de uma falta de reflexes tericas que poderiam ter sido feitas, as quais justificassem uma seleo ou no do cnone literrio durante as aulas de literatura. louvvel a preocupao do MEC, quando oportuniza a criao de um novo documento (2002) para dar conta de uma problemtica que se estabelece na escola em relao ao ensino de literatura. Contudo, evidente que os PCN+ (2002) no conseguiram resolver a falta de clareza e discusso terica que os PCNEM

32 (1999) apresentaram, quando reduziram ao ensino maior da linguagem a especificidade da literatura. Enfim, o que se verifica nesse contraponto dos documentos oficiais a existncia de discusses antagnicas envolvendo o ensino de histria da literatura. Nessa extenso problemtica da literatura, os documentos tambm no deixam claro aos professores sua posio acerca da seleo do cnone literrio. O primeiro documento (PCNEM) faz uma crtica falta de discusso em torno do cnone, mas no prope o estudo das obras consagradas; o segundo (PCN+) prope a leitura de obras clssicas, mas no discute e problematiza o porqu da leitura dessas obras e autores. Por conseqncia a toda preocupao em torno da recepo dos PCNEM e PCN+ por parte dos professores que em 2004 o MEC props uma nova discusso: o interesse em elaborar uma nova proposta de ensino para o ensino mdio. Assim, surgiu uma discusso atualizada tambm sobre o ensino de literatura, visto que no novo documento, agora chamado de Orientaes Curriculares Nacionais para o Ensino Mdio, se incluiria tambm, na parte referente s linguagens, a questo especfica tratada como Conhecimentos de Literatura. dessa discusso que trataremos no prximo item da dissertao.

33 2 CAPTULO CHEGANDO nas ORIENTAES CURRICULARES A Anlise documental[...] a escola deve fazer com que voc conhea bem ou mal um certo nmero de clssicos dentre os quais (ou em relao aos quais) voc poder depois reconhecer os seus clssicos. A escola obrigada a dar-lhe instrumentos para efetuar uma opo: mas as escolhas que contam so aquelas que ocorrem fora e depois de cada escola talo Calvino, 1994.

2.1 O que dizem os conhecimentos de literatura nas orientaes curriculares

Vimos no item anterior desta dissertao, quando tivemos acesso leitura dos Parmetros Curriculares Nacionais do Ensino Mdio (PCNEM, 1999), a incorporao do ensino de literatura pela disciplina de lngua portuguesa numa perspectiva abrangente de ensino da linguagem. Esse discurso de incorporao da literatura pela linguagem, gerou tantas conseqncias tericas e pedaggicas, na academia e na escola, como j dito, que, alm de suscitar um novo documento que satisfizesse por ora, essa problemtica, iniciou a discusso pedaggica no prprio documento oficial do ensino mdio, na parte que concerne aos Conhecimentos de Literatura das Orientaes Curriculares (2006). Os documentos oficiais afirmam que[...] os PCN do ensino mdio, ao incorporarem no estudo da linguagem os contedos da Literatura, passaram ao largo dos debates que o ensino de tal disciplina vem suscitando, alm de negar a ela a autonomia e a especificidade que lhe so devidas (BRASIL, 2006, p. 49).

Ora, pela prpria citao das Orientaes Curriculares para o Ensino Mdio (2006), vemos que o documento oficial est preocupado em produzir um olhar diferenciado e, porque no dizer especial, sobre a importncia da arte literria, ou seja, da literatura, como uma das grandes modalidades da escrita a que o homem pode ter acesso. E mais, ainda resgatar a autonomia e especificidade que lhe so devidas (BRASIL, 2006, p. 49). Assim, emergiram, no contexto educacional brasileiro, novas diretrizes para o ensino de literatura no nvel mdio. Tais diretrizes desdobraram-se a partir dos PCNEM (1999). Selecionamos elas a partir dos discursos contidos no primeiro

34 volume dos documentos oficiais quando da referncia aos Conhecimentos de Literatura, possibilitando-nos que elas (Orientaes) nos ofeream a reflexo do problema que se estabelece em nossa pesquisa: a relevncia do cnone literrio no processo de formao do leitor. Assim, temos trinta e duas pginas de discusses tericas produzidas por pesquisadores da rea da leitura e da literatura que merecem nossas reflexes e consideraes. Justificamos, novamente, que a escolha especfica das Orientaes Curriculares (2006) como opo metodolgica de anlise foi feita por entender que, prestes a se comemorar dez (10) anos da primeira edio dos PCNEM (1999), pensamos ser conveniente para esta pesquisa: compreender como finalizou, oficialmente, o movimento de elaborao da concepo de ensino de literatura dos PCNEM (1999) at as Orientaes Curriculares (2006). Em suma, nosso objeto de pesquisa (relevncia do cnone) ser analisado a partir de dois desdobramentos. O primeiro deles ser a anlise documental das Orientaes Curriculares (2006) e o segundo uma pesquisa de campo com professores de Literatura. Neste item da dissertao, faremos exatamente a anlise do primeiro deles. Quanto s Orientaes Curriculares (2006), primeiramente, afirmamos que nossa inteno problematizar a articulao dos discursos pedaggicos oficiais em torno de trs questes fundamentais a nossa problemtica. So elas: o ensino de literatura, o processo de formao do leitor e, por fim, o processo de letramento literrio. Salientamos que todas as discusses pedaggicas que se encontram nas Orientaes Curriculares (2006) esto direta ou indiretamente relacionadas a esta pesquisa. Contudo, as que abordam a importncia da literatura enquanto disciplina escolar e a formao do leitor em si so as que extraem maior significao para nossa problemtica. Alm das consideraes j feitas acima, lembramos que as trs questes anteriormente citadas tambm sero abordadas quando da anlise de dados da pesquisa de campo com professores, o que faremos no prximo captulo. Desse modo, iniciamos nossa problematizao pela primeira das trs questes propostas neste item: a questo em torno do ensino de literatura. Objetivamos, assim, pensar qual o lugar da Literatura, aqui compreendida como uma disciplina que pertence ao currculo escolar do ensino mdio, tal como proposto pelas Orientaes Curriculares (2006). Problematizar o lugar da Literatura nesses

35 documentos oficiais representa compreender o papel da disciplina na escola, ou seja, sua funo social no processo formativo dos indivduos. Para compreendermos o lugar que a Literatura pode ocupar na escola enquanto disciplina curricular, precisamos antes, recorrer configurao histrica que privilegia o ensino de Literatura como uma das disciplinas escolares de formao. Conforme Aguiar e Silva (1988, p. 37), o termo latino litteratura um conceito a partir do vocbulo grego grammatik, que deriva do radical littera letra, relacionado arte de escrever e ler, gramtica, instruo, erudio. Da concepo grega de literatura saltamos diretamente segunda metade do sculo XVIII, poca em que a literatura tornou-se concebvel na escola. Assim, diferentemente da poca dos gregos, nesse sculo citado a literatura assume sua especificidade, mas no mbito escolar. Nessa mesma poca cresce a circulao do texto literrio, com o aumento de leitores movidos pela ascenso econmica, poltica e cultural dos burgueses, possibilitada pelo advento da indstria e das modernas tcnicas de impresso. Esse o cenrio econmico-social em que a disciplina Literatura emerge no contexto educacional (ZILBERMAN, 1988). O ensino de literatura do sculo XVIII centrou-se em duas funes para a escola: aprender a lngua e aprender a histria da nao, estabelecendo limites cronolgicos dos autores, obras e escolas literrias. Essas funes da literatura no sculo XVIII, como afirma Zilberman (1990), j so os primeiros indcios de uma posterior crise no ensino do texto literrio, hoje tido como desdobramento da falta de leitura dos alunos e da m formao de educadores da literatura. Nessa crise estabelecida nos dias de hoje,[...] os alunos no aprendem o contedo das disciplinas de que a literatura faz parte, pois, ao final do processo de escolarizao, desconhecem a gramtica, no escrevem corretamente, ignoram a tradio literria, so incapazes de entender as formulaes mais simples de um texto escrito, mesmo o meramente informativo. (ZILBERMAN, 1990, p.16)

Estabelecida essa crise no ensino de literatura, como proposto por Zilberman (1990), de que forma as Orientaes Curriculares (2006) se colocam em relao a essa questo? Tais Orientaes abordam esse problema afirmando que faz-se necessrio e urgente o letramento literrio: empreender esforos no sentido

36 de dotar o educando da capacidade de se apropriar da literatura, tendo dela a experincia literria (2006, p. 55). Da mesma forma, Frederico e Osakabe (2004) apontaram, em um documento que critica a elaborao dos PCNEM (1999) e PCN+ (2002), a ausncia da especificidade da literatura enquanto disciplina, fator que negligencia o problema pelo qual passa o seu ensino atualmente. Abordaram os autores, ainda, o papel da literatura na contemporaneidade, o qual tem se desviado de sua funo. Em outras palavras, os autores afirmaram que, em triste consonncia com esse cenrio, a literatura no tem proporcionado o contato ou conhecimento da arte na escola, apesar de ser uma das ltimas armas que esta ainda tem para oferecer ao indivduo a fruio ou experincia dela (Idem, 2004). A partir dessa discusso anterior, problematizada por Frederico e Osakabe (2004), queremos evidenciar a complementao que se encontra nas Orientaes Curriculares (2006) a esse respeito. Nessas orientaes pedaggicas encontramos uma relao importante que pode justificar a presena e a garantia do ensino de literatura na escola: ela a ltima trincheira de possibilidade de acesso arte que a escola pode oferecer, sobretudo, de humanizao do homem coisificado (BRASIL, 2006, p. 53). Corroboram tambm os autores Fusari e Ferraz (2001), sobre essa funo fundamental para disciplina de Literatura, afirmando a arte como movimento na dialtica da relao homem-mundo (p. 23). Compreender a funo da arte no contexto escolar muito importante, poisA disciplina Arte compe o currculo compartilhado com as demais disciplinas num projeto de envolvimento individual e coletivo. O professor de Arte, junto com os demais docentes e atravs de um trabalho formativo e informativo, tem a possibilidade de contribuir para a preparao de indivduos que percebam melhor o mundo em que vivem, saibam compreend-lo e nele possam atuar (IDEM, 2001, p. 24).

Essa forma de pensar a educao escolar em Arte pode tornar-se democrtica e acessvel a todos, na escola ou no, quando feita pela Literatura. Assim, v-se que a funo da Literatura garantir o seu acesso a um tipo especial de texto (linguagem) que em sua especificidade artstica pode ser fornecido a qualquer indivduo. Segundo as Orientaes Curriculares (2006), essa especificidade tem como uma de suas marcas a transgresso, que garante ao participante do jogo da leitura literria o exerccio da liberdade] (2006, p. 49). Ainda

37 segundo os documentos oficiais, apoiados nas palavras de Frederico e Osakabe (2004),Nisso reside sua funo maior no quadro do ensino mdio: pensada (a literatura) dessa forma, ela pode ser um grande agenciador do amadurecimento sensvel do aluno, proporcionando-lhe um convvio com um domnio cuja principal caracterstica o exerccio da liberdade (FREDERICO; OSAKABE, 2004, p. 10).

Como vimos, tal discusso, que envolve a experincia com a arte e, por sua vez, a literatura, segundo os documentos oficiais (Orientaes), uma justificativa fundamental para garantir a permanncia da disciplina Literatura no currculo do nvel mdio na escola. Assim, pensa-se o ensino de Literatura como um lugar para a formao humana e artstica do indivduo. Alm disso, no s pelas funes que apresentamos para justificar a literatura enquanto expresso ou linguagem da arte, mas tambm pela condio que se estabelece nas Orientaes Curriculares (2006) em atendimento a uma lei nacional para educao brasileira, justificando-se a presena da disciplina no ensino mdio. Na lei, tem-se que um dos objetivos a serem alcanados pelo ensino mdio o [...] aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formao tica e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crtico (BRASIL, 1996 apud BRASIL, 2006, p. 53). Sendo assim, quer seja para o exerccio da liberdade, da transgresso, ou para simplesmente cumprir o Inciso III em relao aos objetivos propostos pela referida Lei acima (9.394/96), o ensino de Literatura j tem uma enorme responsabilidade e funo diante do processo de formao dos indivduos. Dessa forma, a Literatura j teria sua razo de estar e permanecer no currculo escolar do ensino mdio. Imediatamente problematizao da primeira questo deste item da dissertao, faremos na seqncia um caminho semelhante para segunda questo: a formao do leitor. Para tanto, utilizamo-nos tambm dos mesmos recursos metodolgicos utilizados na primeira (questo). Nessa que se estabelece a respeito da formao do leitor, as Orientaes Curriculares (2006) se pronunciam, afirmando queConfigurada como bem simblico de que se deve apropriar, a Literatura como contedo curricular ganha contornos distintos conforme o nvel de escolaridade dos leitores em formao. As diferenas decorrem de vrios fatores ligados no somente produo literria e circulao de livros que

38orientam os modos de apropriao dos leitores, mas tambm identidade do segmento da escolaridade construda historicamente e seus objetivos de formao (BRASIL, 2006, p. 61).

Essa discusso que distingue a literatura para os diferentes nveis escolares, fundamental e mdio, torna-se de extrema importncia para esta pesquisa porque nossa problemtica est diretamente relacionada relevncia do cnone literrio durante a formao do leitor. Entretanto, o cnone far parte da discusso posterior do prximo item da dissertao. Por enquanto, problematizaremos a formao do leitor em si no ensino mdio. Podemos dizer, pelas pesquisas sobre a leitura e a literatura (ZILBERMAN, 1990), que o ensino desta tem muitos objetivos e um deles contribuir no processo de formao do leitor. Por meio da experincia com a leitura literria, o indivduo passa a conhecer-se melhor e ao outro, com maiores possibilidades de transformar o mundo em que vive. Em outras palavras, para Zilberman o exerccio da leitura do texto literrio em sala de aula pode preencher esses objetivos (1990, p. 20). Se o texto literrio pode oferecer condies para formao do aluno enquanto leitor, cabe-nos compreender a quais condies esto sujeitos os indivduos durante a sua formao leitora no ensino mdio. Compreendidas as condies, problematizamos o ensino de literatura, visto ser esse uma importante dimenso da formao do leitor. Conforme os autores Frederico e Osakabe (2004), h uma ausncia da arte literria na escola e isso uma conseqncia da tentativa de atenuar o impacto da distncia entre as manifestaes literrias consagradas e as condies de recepo do aluno (Idem, p. 62). Isso acaba resultando na reduo da experincia literria, e levando a escola (professores e alunos) a tomarem as seguintes medidas: limitao seleo de autores e obras; fragmentao dos textos literrios; apresentao da literatura restrita aos livros didticos; nfase particular de alguns gneros; estudo cronolgico, seqencial e sistematizado da histria da literatura; estudo de literatura sem a leitura da obra literria (EVANGELISTA et al, 2006).

39 No diferente, as Orientaes Curriculares (2006) acrescentam que h:a) substituio da literatura difcil por uma literatura considerada mais digervel; b) simplificao da aprendizagem literria a um conjunto de informaes externas s obras e aos textos; c) substituio dos textos originais por simulacros, tais como parfrases ou resumos (BRASIL, 2004, p. 62-63 apud BRASIL, 2006, p. 64).

Segundo os autores Frederico e Osakabe (2004), esses desdobramentos durante a formao do leitor so resultantes da ampliao da oferta de vagas na escola e, assim, o ensino mdio encontra-se diante de uma nova realidade: alunos originrios das mais diversas classes sociais, com diferentes experincias culturais e lingsticas, diferentemente do pblico de alunos suposto pelos antigos programas escolares (BRASIL, 2004, p. 61). Ainda sobre esses desdobramentos, as Orientaes Curriculares (2006) afirmam que todos os deslocamentos em relao ao objetivo da disciplina literatura, a leitura, s podero ser resgatados se forem repensadas as questes de formao do leitor no ensino mdio. Segundo os documentos oficiais, os objetivos que visam leitura se perdem no pragmatismo formulado pelos manuais didticos que tm por fim apenas cumprir o papel de referncia curricular na prtica dos professores.Percebe-se que a Literatura assim focalizada o que se verifica sobretudo em grande parte dos manuais didticos do ensino mdio prescinde da experincia plena de leitura do texto literrio pelo leitor. No lugar dessa experincia esttica, ocorre a fragmentao de trechos de obras ou poemas isolados, considerados exemplares de determinados estilos, prtica que se revela um dos mais graves problemas ainda hoje recorrentes (BRASIL, 2006, p. 63).

Ainda sobre isso, afirmam os documentos oficiais que esse quadro catico s mudar se tais manuais forem elaborados visando formao do leitor da literatura rumo sua autonomia (2006, p. 64). Se a autonomia for privilegiada no ensino de Literatura, os manuais didticos sero negados pelos leitores que necessitaro em sua formao a integral leitura de livros. Nesse espao de contradies e impasses em que se encontra o processo de formao do leitor insere-se tambm o ensino de Literatura. Os educadores podem ento, estar se questionando: qual leitor formar na escola? Por certo, estariam pensando no lugar-comum dessa resposta: formar um leitor crtico. Esse tem sido constantemente perseguido durante as prticas docentes em

40 resposta s teorias da linguagem e objetivos propostos por documentos oficiais nas ltimas dcadas, entre eles os PCNEM (1999). As Orientaes Curriculares afirmam, para essa discusso, o seguinte:Formar para o gosto literrio, conhecer a tradio literria local e oferecer instrumentos para uma penetrao mais aguda nas obras [...] decerto supem percorrer o arco que vai do leitor vtima ao leitor crtico. Tais objetivos so, portanto, inteiramente pertinentes e inquestionveis, mas questionados devem ser os mtodos que tm sido utilizados para esses fins (BRASIL, 2006, p. 69). O desafio ser levar o jovem leitura de obras diferentes [...] sejam obras da tradio literria, sejam obras recentes, que tenham sido legitimadas como obras de reconhecido valor esttico, capazes de propiciar uma fruio mais apurada, mediante a qual ter acesso a uma outra forma de conhecimento de si e do mundo (BRASIL, 2006, p. 70).

Parece, portanto, necessrio motivar os alunos leitura de livros que atendam s suas necessidades imediatas e no s para satisfao da escola, para poderem, assim, reconhecer-se como leitores ou que vejam nessas atividades o prazer ou mesmo a razo de ler. O objetivo ser compartilhar impresses de leituras entre alunos e professores. Dessa forma, os alunos leriam no porque a escola pede, como obrigao, mas sim porque se estar motivado a fazer algo movido pelos seus desejos e necessidades. Nesse processo, o aluno perceber a repetio, a limitao e os valores das obras que l (BRASIL, 2006). Ento, esse caminho evolutivo da formao do leitor, de uma obra para outra, poder conduzi-lo ao letramento literrio. Essa a nossa terceira questo neste item da dissertao. Essa questo foi deixada por ltimo, pois compreende aspectos e relaes j considerados durante a problematizao das questes anteriores: ensino de Literatura e formao do leitor. Alcanados os seus objetivos, torna-se mais fcil compreender o letramento literrio a que o leitor ser conduzido. Mas o que vem a ser o letramento literrio? O termo tem sua origem numa corrente lingstica, mas j teve sua concepo ampliada e debatida no campo das teorias e correntes educacionais. Para melhor compreenso do surgimento e dinmica de evoluo desse conceito, pode-se recorrer a Soares (2004). Em poucas palavras, pode-se compreender letramento como estado ou condio de quem no apenas sabe ler e escrever, mas cultiva e exerce as prticas sociais que usam a escrita (SOARES, 2004, p. 47).

41 Ou seja, podemos compreender o letramento literrio como um processo de algum que no simplesmente l (decodifica) um texto literrio, mas dele se apropria com significao, fruio e experincia literria. A respeito disso, as Orientaes Curriculares apresentam como experincia literria[...] o contato efetivo com o texto. S assim ser possvel experimentar a sensao de estranhamento que a elaborao peculiar do texto literrio, pelo uso incomum da linguagem consegue produzir no leitor, o qual, estimulado, contribui com sua prpria viso de mundo para a fruio esttica (BRASIL, 2006, p. 55).

Isso seria permitido somente quando do encontro do leitor com a obra num jogo e troca de significados e experincias. Zilberman (2003), numa de suas pesquisas, afirma que esse tipo de leitura (da literatura) tem-se tornado cada vez mais rarefeita no mbito escolar (p. 258). Segundo a autora, esse tipo de leitura tem desaparecido em meio a tantos outros tipos de textos, resumos e fragmentos, menos ou mais pragmticos. Dessa maneira, cabe escola, segundo as Orientaes Curriculares (2006), desenvolver o letramento literrio empreendendo esforos no sentido de dotar o educando da capacidade de se apropriar da literatura, tendo dela a experincia literria (BRASIL, 2006, p. 55). Diante da perspectiva de letramento literrio que a escola pode adotar, importante ser discutir quais obras literrias facultaro a possibilidade de fornecer ao aluno/leitor um processo contnuo de experincias estticas que enriqueam seus horizontes culturais e sociais. Que obras seriam essas? Proporcionam o estranhamento, o prazer esttico? Como seriam selecionadas? A partir de que elas se constituem como padro para a formao de um leitor de literatura? So critrios mutveis, histricos? So tais questes que nos colocaro diante de um novo debate no prximo item da dissertao.

2.2 O lugar do cnone literrio nas orientaes curriculares para o ensino mdio

No item anterior desta pesquisa, problematiza-se o ensino de Literatura, a formao do leitor e, por fim, o processo de letramento literrio durante o perodo de

42 escolarizao do ensino mdio. Tais relaes foram feitas luz do discurso pedaggico oficial do ensino mdio na atualidade, ou seja, as Orientaes Curriculares (2006). A esse documento contrapomos discusses de pesquisadores da leitura e da literatura sobre as questes citadas anteriormente. Dito em outras palavras, problematizamos o processo de formao do leitor durante o ensino da disciplina de Literatura no nvel mdio a fim de conduzir o aluno a um letramento literrio. Contudo, nossa proposio naquele item da pesquisa no abordou a relao que se estabelece entre o cnone literrio e o ensino de Literatura. Nossa proposta de compreenso da relao entre o cnone literrio e o ensino de literatura iniciada pela crtica histrica do conceito de cnone; em seguida, pela breve leitura da sua relao com as humanidades; posteriormente, uma contextualizao da nova ordem ou desordem poltico-social que problematiza o ensino de Literatura, a tradio do cnone e a prpria formao do professor. Esse novo cenrio configura um espao de questionamentos e dvidas. Desse modo, por ltimo, apresentaremos os desdobramentos para aceitao ou mesmo contestao do cnone, nos dias de hoje, pela cultura contempornea. Para que seja possvel estabelecer com mais clareza as articulaes dessa aceitao ou contestao, analisaremos cada uma delas, buscando estabelecer convergncias, contradies e impasses. Nesse amplo debate, contrapomos diferentes teorias na inteno de extrair relevncia para o ensino de Literatura objetivando a formao do leitor e o letramento literrio, ou seja, queremos problematizar os mtodos que levam os professores a aceitar ou contestar o cnone na formao do leitor. Como j dito, o cnone literrio o centro de nossa discusso neste item da pesquisa. Desse modo, iniciamos pelo conceito de cnone literrio e seus caminhos durante a histria da humanidade. Os trs pargrafos seguintes so compilaes extradas do dicionrio eletrnico de literatura organizado por Carlos Ceia (2008) e que nos fornecem elementos importantes para pensar a questo do cnone. O termo cnone tem sua origem na Grcia antiga com a palavra kanon, um tipo de vara que funcionava como instrumento de verificao de medida e em seguida tem sua mudana para algo que designa padro, modelo ou, ainda, norma. O sculo IV o primeiro sculo que especifica a utilizao do termo cnone, pois se trata da lista de Livros Sagrados que a Igreja determina como sendo os alicerces da

43 f e da verdade da palavra de Deus, primeiramente, pelos judeus com a Torah e em seguida pelos cristos. Para entrada nessas listas, todo texto antes deveria ser canonizado pela Igreja. Assim, formou-se o cnone bblico, que se estende na histria do homem universalizando a idia de cannico. Estabelece-se como cnone, ento, de forma especfica pela teologia e no restrita literatura, a lista de textos e/ou autores tidos como lei por uma determinada comunidade porque produz e reproduz os valores ditos universais. Pelos sculos que se seguiram desde o Renascimento, o termo e o conceito de cnone foram aplicadas literatura, muitas vezes traduzidos como clssicos ou obras-primas. Assim, a escola incorporou o termo clssicos para literatura. A palavra derivada de classis, que, em latim, significa classe de escola. A autora Lajolo (1982) afirma que os clssicos eram chamados de clssicos por serem julgados adequados leitura de estudantes, teis na consecuo dos objetivos escolares (p. 21). O cnone literrio est sujeito entrada ou sada de autores e obras, mas num contexto institucional, e assim a escola tambm segue os padres estabelecidos por uma elite intelectual, j que ela no est descolada da sociedade, ao mesmo tempo que entre outras instituies formativas, e se apresenta como privilegiada na moldagem do cnone literrio. Dada essa condio, o ensino de literatura na escola no privilegia qualquer literatura, mas aquela que tenha valor esttico historicamente reconhecido num consenso institucional. A escola, como detm a distribuio do conhecer, tem a funo social de ensinar como ler e escrever (letrar), bem como o que ler e escrever (cnone). Assim, ela torna-se uma importante determinadora das obras literrias que sero conhecidas e tambm, por incluir as obras no currculo de ensino de literatura, acaba perpetuando e preservando o valor esttico de algumas das obras e autores literrios. Isso no passa despercebido pelas Orientaes:Portanto, quando se coloca a questo das escolhas e das preferncias dos jovens leitores na escola, no se pode omitir a influncia de instncias legitimadas e autorizadas, que contando com seus leitores consultores para assuntos da adolescncia e da infncia, j definiram o que deve ser bom para jovens e crianas, em sintonia com resultados de concursos, avaliaes de especialistas, divulgao na imprensa, entre outros setores que se integram ao movimento do circuito da leitura na sociedade (BRASIL, 2006, p. 62).

44 O cnone literrio , assim, uma relao (corpus) de obras e autores social e institucionalmente considerados universais e verdadeiros, transmitindo os valores humanos primordiais aos seres humanos e caractersticas estticas ideais de um texto, por isso dignos de repasse de gerao a gerao. Na mesma esteira de conceituao, Petrucci (1999) afirma que o cnone um elenco de obras ou de autores propostos como norma, como modelo (p. 207). Acrescenta, ainda, que para diferentes culturas escritas existem diferentes cnones, com validade em vrios mbitos (religioso, literrio, etc.), e na nossa tradio literria ocidental temos um cnone amplo que atende s necessidades da indstria editorial, mas, sobretudo, rgido na transmisso de valores ideolgicos, culturais e polticos do Ocidente. Finalizada a parte relativa ao conceito de cnone, na seqncia apresentamos em poucas palavras sua relao com as humanidades. Dizemos relao, pois entre as humanidades e a literatura est o meio de acesso de um a outro: o cnone. De forma sucinta, o termo humanidades deve ser compreendido como[...] uma relao intrnseca com a tradio cultural e seu poder formativo. Por esse termo queremos nos referir percepo que j se localizava na Antigidade clssica de que a arte, quando executada superiormente, tem a capacidade de humanizar, de retirar nossa natureza de um estado de caos para a ordem do mundo e, assim fazendo, civilizando-nos e a este (FRITZEN, 2007, p. 1).

No mesmo campo semntico da afirmao de Fritzen, as Orientaes Curriculares (2006, p. 53) tratam das humanidades atribuindo a ela duas importantes funes: a primeira como um tipo de saber (conhecimento) que no pode ser medido nem objetivado; a segunda, como meio, sobretudo, de humanizao do homem coisificado: esses so alguns dos papis reservados s artes, de cuja apropriao todos tm direito (BRASIL, 2006, p. 53). No diferente do