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41 O TANABATA MATSURI, ou Festival das Estrelas, realiza-se no bairro desde 1979. Inspirado numa lenda, conta o drama do romance proibido entre a princesa Orihime e seu amado Kengyu, um simples pastor. Punidos, eles são transformados nas estrelas Vega e Altair e condenados a habitar o firmamento separados pela Via Láctea. Oriente próximo No bairro da Liberdade em São Paulo, reside o espírito dos 100 anos da imigração japonesa no Brasil.

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40 national geo graphic • JUNHO 2008 liberdade 41 O TANABATA MATSURI, ou Festival das Estrelas, realiza-se no bairro desde 1979. Inspirado numa lenda, conta o drama do romance proibido entre a princesa Orihime e seu amado Kengyu, um simples pastor. Punidos, eles são transformados nas estrelas Vega e Altair e condenados a habitar o firmamento separados pela Via Láctea.

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No bairro da Liberdade em São Paulo, reside o espírito dos 100 anos da imigração

japonesa no Brasil.

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42 national geo graphic • abril 2008 O NOME LIBERDADE foi dado em 1920, mas o lugar já concentrava imigrantes japoneses desde 1912. Os sinais da presença nipônica diluem-se hoje na caótica paisagem urbana do centro velho da capital paulista. Na própria planta oficial da cidade, os limites do bairro não são distintos.

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texto e fotos por Marcio Scavone

A primeira vez em que olhei para a Liberdade foi no começo dos anos 70. Era uma límpida tarde de outono, e eu percorri suas ruas na com-panhia de meu pai, que tinha nas mãos uma câmera de vídeo super-8 Kodak. A magia do bairro japonês já tinha há muito tempo capturado sua imaginação de escritor. Meu pai era um refém da Liberdade. Enquanto caminhava um passo adiante de mim, ele chamava minha atenção para a luz singular do outono nos trópicos – que pincelava os velhos edifícios com uma tinta âmbar carregada de nostalgia. No mês de maio, por algum capricho astronômico, conseguimos em São Paulo, sob a sombra imaginária da linha de Capricórnio, observar as pessoas e as coisas banhadas por uma luz oblíqua e tépida, típica das altas latitudes, semelhante àquela do distante arquipélago japonês. Ou seja, no outono, a Liberdade parecia ainda mais original, mais verdadeira, mais próxima de sua ascendência oriental. Meu pai caminhava rápido e gesticulava como um diretor de cinema que exigia concentração e foco de seu cameraman – eu.

A Liberdade é um dos símbolos mais cintilantes, ainda hoje, da centenária imigração japonesa no Brasil. Em 1912, quatro anos após o navio Kasato Maru apor-tar em Santos com a primeira leva de imigrantes, pio-neiros na capital começaram a concentrar-se na íngre-me rua Conde de Sarzedas, onde quase todas as casas tinham porão – o preço dos aluguéis no subsolo era ínfimo, e os quartos podiam acomodar um grande gru-po de pessoas. Logo começaram as atividades comer-ciais típicas do Oriente: alguém abriu um empório, uma casa que fabricava tofu (queijo de soja), outra de manju (doce típico). Surgiram também agências de empregos. Nascia a “rua dos japoneses” em pleno coração da capital paulista (mapa).

Vinte anos depois, cerca de 2 mil deles já viviam na cidade, agora espalhados em ruas diversas do bairro, como a Conselheiro Furtado, a Tomás de Lima (atual Mituto Mizumoto) e a Irmã Simpliciana, perto da Praça da Sé. A vida dos imigrantes era dura, mas havia oferta de trabalho, comida e moradia. Escolas para ensino do idioma da terra natal foram abertas. Nos fins de sema-na, jogos de beisebol eram lazer certo. Nas pensões, podia-se comer comida típica e ler publicações em japonês. Problemas só viriam a ocorrer em 1941, com a Segunda Guerra e a adesão do Japão à Alemanha. O governo brasileiro proibiu a circulação dos jornais da colônia, fechou o consulado e decretou a expulsão dos japoneses residentes nas ruas Conde de Sarzedas e dos Estudan-tes. Apenas em 1945, após a rendição do Japão, é que o bairro voltou à vida normal – eclética e multicultural, como a que me fascinou desde garoto.

Assim, de que maneira fotografar hoje o espírito remanescente da maior ci-dade japonesa fora do Japão? Fachadas, ruas, ruelas, quiosques, pessoas apres-sadas, velhos que se movem devagar, táxis eternamente parados no meio-fio prontos para a próxima viagem. Na Liberdade, tudo parece se diluir, à espera de uma ordem misteriosa para voltar a ser o que foi um dia. As cores do bairro se desprendem como velhos cromos de um álbum de figurinhas de infância.

UMA hISTóRIA DE AMOR nissei típica do bairro foi vivida por Marcus Iizuka e Fernanda Branchelli. Ele é um destacado repórter fotográfico que atua na colônia japonesa; ela, uma artista plástica descendente de italianos do sul do Brasil. A assimilação é harmônica até na cerimônia budista no templo Soto Zenshu, que pertence à família do noivo.

Av. Liberdade

R. Conselheiro Furtado

R. Galvao Bueno

R. dos Estudantes

Radial Leste

R. da Gloria

R. Dr. Tom´as de Lima

R. C

onde

de

Sarz

edas

Pra¸caLiberdade

mapa: l.f. martini

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Em 2007, com a operação municipal que proibiu a apresentação de outdoors em toda a cidade, o bairro antes orgulhoso de velhos letreiros em kanji foi des-pido de seus luminosos e suas placas para incorporar o novo código visual ur-bano. Numa manhã de segunda-feira, comecei a ver a máscara sendo retirada das fachadas e o rosto envelhecido dos quarteirões expostos sem maquiagem. Nas ruas despidas de letreiros, eu pensava na metáfora que se apresentava dian-te de mim: em sua essência, o antiquíssimo teatro nô é povoado por deuses e guerreiros, mulheres histéricas, impotentes diante dos mistérios do destino. No entanto, é justamente o personagem central, o shite, o espírito errante que carrega o tempo e a nostalgia nos ombros, o único a usar máscara.

O teatro nô e seus parâmetros surgiam como referência óbvia: a busca da maior significação com um mínimo de gesto ou expressão. Desvendar os se-gredos por trás das máscaras do bairro. Eu gostaria de ter feito essas fotos ao longo dos últimos 40 anos, desde a inesquecível primeira visita na companhia de meu pai. Teria conhecido o apogeu da Liberdade nos anos 60 e 70, tempos em que sua vida econômica e social era conduzida entre paredes invisíveis e na língua materna. Época de pujança e autonomia cultural, de sua cinelândia única e inesquecível e dos inferninhos animados por bossa nova e jazz.

A cidade cresceu, e a Liberdade também. Cresceu e foi engolida pela me-trópole. Na própria planta oficial de São Paulo, seus limites não são distintos. Formam uma espécie de zona cinza, uma penumbra povoada por isseis, nisseis e sanseis (imigrantes, filhos e netos, hoje já espalhados também por outros bairros) que se diluem no caldeirão étnico das áreas vizinhas. Mais que um gueto japonês, a Liberdade tornou-se um bairro oriental: a colônia chinesa já domina o comércio, a presença coreana é crescente.

Andei muito com a câmera na mão e passei em redações de jornais da comunidade, onde fui bem recebido mas notei um misto de surpresa e honra por haver um gaijin encarregado de registrar o espírito nikkei e sua sobrevida após um século. Fiz amizades, tomei muito chá, deliciei-me com a culiná-ria. Muitas das minhas jornadas aconteceram durante os festivais. O Hana- matsuri, o Festival das Flores, em abril, celebra o nascimento de Buda. A es-tátua de um elefante branco é transportada em andor pelas ruas numa alusão à chegada de Buda a este mundo. (Um equivalente zoomórfico da Anuncia-ção, visto que a mãe de Sidarta foi visitada em sonho não por anjos, mas por um paquiderme.) Há também o Tanabata Matsuri, o Festival das Estrelas, em julho. As ruas amanhecem transformadas em bulevares, enfeitadas com galhos de bambu amarrados em arco. Celebra-se uma antiga lenda sobre dois amantes que foram punidos, representados no céu pelas estrelas Altair e Vega, separadas durante todo o tempo, mas que têm a chance de se encontrar uma vez por ano, na margem esquerda ou direita da Via Láctea, aproveitando uma distração dos deuses. No dia do festival, as pessoas amarram nos bambus tiras de papel colorido com seus desejos anotados. Porém, não prendem muito forte para que eles possam ser carregados pelo vento em direção ao céu, e, assim, se realizarem. Por sorte, nessa época costuma ventar forte na Liberdade.

OS PRIMEIROS IMIGRANTES, pouco mais de 700, chegaram ao Brasil no navio Kasato Maru em junho de 1908. Hoje fazem de São Paulo a maior cidade japonesa fora do Japão. O culto às tradições, à longevidade e à memória garantem homenagens regulares aos pioneiros no auditório do Bunkio, da Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa.

fOntE: CUltUraJapOnESa.COm.Br

Capital japonesa Saiba mais sobre Viagem à Liberdade, livro de marcio Scavone, em ngbrasil.com.br/0806

Esta é a primeira reportagem de Marcio Scavone na revista. Suas fotos da Liberdade estão expostas no Museu da Casa Brasileira, em São Paulo, até 6 de julho.

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48 national geo graphic • maio 2008 liberdade 49 A LIBERDADE é um dos pontos turísticos mais visitados da cidade. Com inúmeros restaurantes típicos e comércio rico e criativo, seus exóticos eventos culturais capturam a curiosidade da população mestiça da maior cidade do Brasil. Em 1967, o bairro recebeu o então príncipe herdeiro Akihito e a princesa Michiko, hoje o casal imperial japonês.

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SUSUMI MUkOTAkA amola facas de sushi e leciona cursos para afiadores há 47 anos no mesmo endereço. A faca do sushiman é única e pessoal. Pelo fato de a temperatura do corpo da mulher ser ligeiramente mais elevada que a do homem, não se vêem mulheres dedicadas ao ofício, que exige contato direto da mão com o peixe cru.

O CONSUMO DE PEIXES no Brasil – 7 quilos/ano por habitante – é baixo se comparado com o registrado no resto do mundo. Mas, na Liberdade, esse consumo atinge níveis altíssimos, coerentes com o padrão da cozinha japonesa tradicional. A procura é grande por atum, anchova, tainha, bonito, carapau, prego e olho-de-boi, entre outros peixes.

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DESDE 2007, novas normas urbanas visam a eliminar a poluição visual da capital paulista. Outdoors e letreiros ostensivos foram banidos. São Paulo pode ter ganho em limpeza visual, mas a Liberdade parece exceção. As ruas aos poucos vão perdendo o encanto extra dos luminosos típicos nos caracteres kanjis que diferenciavam a região.

A PRIMEIRA MÁQUINA de karaokê foi inventada no Japão no início dos anos 70, e a diversão musical logo se espalhou pelo mundo. Há na Liberdade muitos bares especializados, como os freqüentados pela fonoaudióloga Miriam Okuda – que, curiosamente, lida com pessoas expostas à poluição sonora no trabalho. Em japonês, karaoke significa “orquestra vazia”.

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54 national geo graphic • JUNHO 2008 liberdade 55 O CONCURSO MISS TANABATA acontece na sede da Associação Miyagui Kenjinkail. Em 2008 será realizada a 30a edição. As candidatas, que vêm de todo o estado de São Paulo, vestem o yukata, costume típico japonês para o verão, um traje mais leve que o quimono, compatível com o clima do Brasil. A roupa é um bom símbolo do mais japonês dos bairros brasileiros. j