7
1 Orquestras sinfônicas no Brasil: em busca de um novo modelo Artigo de Cláudia Toni 1 enviado por e-mail, em 2006. A comemoração dos 35 anos da Fundação Clóvis Salgado coincide com o 80º aniversário de Olivier Toni, fagotista profissional, compositor, regente, professor e incansável empreendedor na área musical, tendo ele próprio criado quatro orquestras e duas escolas de música em São Paulo. Assim, escrever sobre o papel que as orquestras sinfônicas têm na vida cultural brasileira assume um sentido ainda mais importante para quem, há quase 30 anos, tem trabalhado na administração cultural na área pública, com especial interesse na gestão de instituições musicais. O sobrenome comum não é coincidência: pude observar no cotidiano todos os empreendimentos do Maestro Toni, que tinham como pedra basilar a formação de instrumentistas. Músico na Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo, ele foi observador privilegiado das precárias condições do ensino da música na capital paulista, o que fez com que seus projetos sempre objetivassem formar profissionais com qualidade técnica, mas também capazes de refletir sobre sua profissão de maneira crítica. Parece longínqua a data em que ele regeu a primeira Orquestra Jovem paulista, mas isto aconteceu em 1968, portanto há bem menos de meio século. Daquela data até hoje, o panorama dos conjuntos sinfônicos brasileiros mudou e talvez seja este um bom momento para pensar o que é possível fazer daqui em diante. Ao longo de cinco anos me foi possível conduzir o processo de reestruturação administrativa e institucional da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo Osesp. Lá cheguei quando a administração contava com três funcionários, em março de 1998, e de lá saí após sua tournée nos Estados Unidos, deixando uma equipe que contava então com 59 profissionais. 1 Claudia Toni: Formada em História pela Universidade de São Paulo, Claudia Toni é administradora cultural. Dirigiu os conjuntos artísticos do Teatro Municipal de São Paulo (Orquestra Sinfônica Municipal, Balé da Cidade, Corais Lírico e Paulistano e Quarteto de Cordas) entre 1977 e 1979. Foi diretora artística do Mozarteum Brasileiro (1981/85) e Assessora de Música da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo (1983/84). É funcionária da Universidade de São Paulo desde 1987, onde foi Diretora de Difusão Cultural do Museu de Arte Contemporânea(1988/92). Em março de 1998, assumiu a Direção Executiva da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP) cargo que ocupou até dezembro de 2002. Foi indicada para o Prêmio de Mulher do Ano de 2002, promovido pela revista Claudia / Editora Abril. Entre abril de 2003 e fevereiro de 2005 foi Assessora da Casa Civil do Governo do Estado de São Paulo. Consultora do Senac para projetos de formação e capacitação de profissionais da área cultural, é Assessora da Secretaria de Cultura da Prefeitura de São Paulo. Claudia Toni é membro da APAP - Association of Performing Arts Presenters e da ISPA - International Society for the Performing Arts Foundation e integra seu Conselho Diretor desde janeiro de 2006.

Orquestras Sinfônicas No Brasil Em Busca de Um Novo Modelo

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Orquestras Sinfônicas No Brasil Em Busca de Um Novo Modelo

Citation preview

  • 1

    Orquestras sinfnicas no Brasil: em busca de um novo modelo

    Artigo de Cludia Toni1 enviado por e-mail, em 2006.

    A comemorao dos 35 anos da Fundao Clvis Salgado coincide com o 80

    aniversrio de Olivier Toni, fagotista profissional, compositor, regente, professor e

    incansvel empreendedor na rea musical, tendo ele prprio criado quatro orquestras e

    duas escolas de msica em So Paulo. Assim, escrever sobre o papel que as orquestras

    sinfnicas tm na vida cultural brasileira assume um sentido ainda mais importante para

    quem, h quase 30 anos, tem trabalhado na administrao cultural na rea pblica, com

    especial interesse na gesto de instituies musicais. O sobrenome comum no

    coincidncia: pude observar no cotidiano todos os empreendimentos do Maestro Toni,

    que tinham como pedra basilar a formao de instrumentistas. Msico na Orquestra

    Sinfnica Municipal de So Paulo, ele foi observador privilegiado das precrias

    condies do ensino da msica na capital paulista, o que fez com que seus projetos

    sempre objetivassem formar profissionais com qualidade tcnica, mas tambm capazes

    de refletir sobre sua profisso de maneira crtica. Parece longnqua a data em que ele

    regeu a primeira Orquestra Jovem paulista, mas isto aconteceu em 1968, portanto h

    bem menos de meio sculo. Daquela data at hoje, o panorama dos conjuntos sinfnicos

    brasileiros mudou e talvez seja este um bom momento para pensar o que possvel

    fazer daqui em diante.

    Ao longo de cinco anos me foi possvel conduzir o processo de reestruturao

    administrativa e institucional da Orquestra Sinfnica do Estado de So Paulo Osesp.

    L cheguei quando a administrao contava com trs funcionrios, em maro de 1998, e

    de l sa aps sua tourne nos Estados Unidos, deixando uma equipe que contava ento

    com 59 profissionais.

    1 Claudia Toni: Formada em Histria pela Universidade de So Paulo, Claudia Toni administradora cultural. Dirigiu os conjuntos artsticos do Teatro Municipal de So Paulo (Orquestra Sinfnica

    Municipal, Bal da Cidade, Corais Lrico e Paulistano e Quarteto de Cordas) entre 1977 e 1979. Foi

    diretora artstica do Mozarteum Brasileiro (1981/85) e Assessora de Msica da Secretaria de Estado da

    Cultura de So Paulo (1983/84). funcionria da Universidade de So Paulo desde 1987, onde foi

    Diretora de Difuso Cultural do Museu de Arte Contempornea(1988/92). Em maro de 1998, assumiu a

    Direo Executiva da Orquestra Sinfnica do Estado de So Paulo (OSESP) cargo que ocupou at

    dezembro de 2002. Foi indicada para o Prmio de Mulher do Ano de 2002, promovido pela revista

    Claudia / Editora Abril. Entre abril de 2003 e fevereiro de 2005 foi Assessora da Casa Civil do Governo

    do Estado de So Paulo. Consultora do Senac para projetos de formao e capacitao de profissionais da

    rea cultural, Assessora da Secretaria de Cultura da Prefeitura de So Paulo. Claudia Toni membro da

    APAP - Association of Performing Arts Presenters e da ISPA - International Society for the Performing

    Arts Foundation e integra seu Conselho Diretor desde janeiro de 2006.

  • 2

    No exagero afirmar que foi implantado, naquele perodo, um modelo pioneiro e

    singular de administrao cultural pblica no Brasil. Se, de um lado, a Osesp queria

    mostrar-se como um organismo musicalmente slido e de qualidade artstica

    inquestionvel, era claro que sua gesto teria que se estruturar de forma slida, mas

    olhando para a sociedade que a mantm no intuito de fazer dela um instrumento de

    democratizao do acesso aos bens culturais2.

    Mas ser que basta, nos dias de hoje, que as orquestras brasileiras sejam modelos de

    excelncia administrativa e cpias mais ou menos acabadas de suas congneres no

    exterior? interessante observar, com certo estarrecimento, que o grande sonho de

    nossos conjuntos sinfnicos seja galgar os degraus da fama e atingir o status de irms

    das orquestras do mundo rico. O mais estranho que o ponto de chegada to almejado

    tome como referncia a situao dos conjuntos estrangeiros tal qual eles eram h cerca

    de 30 ou 40 anos... Ou seja, nossos conjuntos querem ser o que os estrangeiros foram

    em meados do sculo passado! Fica, certamente, mais incongruente quando nos

    lembramos que Minas Gerais, ainda no sculo XVIII, viu nascer orquestras das quais os

    cidados sempre se aproximaram, participando delas e assumindo-as como instituies

    verdadeiramente pblicas.

    E o que ser que fazem hoje as grandes orquestras no mundo desenvolvido e como elas

    podem nos ensinar a pensar numa atividade sinfnica mais coerente com nosso tempo?

    H exemplos valiosos em diversos pases.

    A diminuio crescente do pblico das orquestras impulsionou a criao de projetos que

    visam a conquista de novas audincias. A Gr-Bretanha implantou o mais eficiente e

    criativo sistema de educao musical na escola bsica que se tem notcia e, no por

    acaso, foi a primeira a desenhar ativa programao dedicada formao de pblico

    2 Algumas das iniciativas empreendidas, entre abril de 1998 e novembro de 2002, num processo conjunto com todos aqueles que l

    trabalhavam a includos voluntrios merecem ser citadas: a) idealizao e implantao das reas administrativas; b) concepo e

    implantao de programa de identidade institucional; c) idealizao e instalao do Centro de Documentao Musical Maestro

    Eleazar Carvalho (arquivo musical, arquivo histrico e midiateca de acesso pblico); d) idealizao planejamento e instalao do

    Servio de Voluntrios; e) planejamento e instalao do Servio de Assinaturas; f) concepo e projeto editorial dos programas de

    concerto e demais publicaes; g) implantao de site na Internet; h) planejamento e produo dos concertos inaugurais da Sala So

    Paulo; i) planejamento e instalao de todos os servios da orquestra em sua sede na Sala So Paulo; j) produo de cinco compact

    discs para o selo sueco BIS; l) organizao das temporadas de concerto, que juntas perfizeram cerca de 400 apresentaes; m)

    implantao da informatizao das reas administrativas e de servio; n) concepo, planejamento e instalao da Coordenadoria de

    Programas Educacionais; o) planejamento e lanamento da Criadores do Brasil, editora musical da Orquestra; p) planejamento e

    produo das turns latino-americana, em 2000, e norte-americana, em 2002, quando foram realizados 22 concertos em 18 cidades

    dos EUA.

  • 3

    dentro de suas orquestras. A situao da London Sumphony Orchestra (LSO) parece

    exemplar: tendo comprado a igreja de St Luke para l instalar um dos mais bonitos e

    dinmicos centros livres de educao musical da Europa, a inventividade de seus

    programas vai desde a encomenda de novas obras at a programao regular de

    atividades desenvolvidas, em conjunto, pelos prprios msicos com faixas diferenciadas

    de pblico. Sob o nome de LSO Discovery esto abrigadas iniciativas nicas. Alm

    disso, no stio do conjunto na Internet h excelente contedo crtico e analtico das obras

    que a orquestra executa, com a incluso de vdeos e outras mdias e de inmeros

    exemplos musicais. uma lio de respeito inteligncia do pblico navegar, por

    exemplo, nas informaes sobre a Sagrao da Primavera de Igor Stravinski.

    No continente, a Filarmnica de Berlim, atenta ao que se passava na Gr-Bretanha,

    escolheu para seu diretor artstico o maestro Simon Rattle, lder de um projeto musical

    originalssimo na cidade de Birmingham e figura engajada numa prtica nova de dirigir

    orquestras. Em uma entrevista concedida International Arts Manager Magazine, em

    dezembro de 2002, ele reiterava que a escolha de seu nome feita por voto direto dos

    msicos era uma prova inequvoca do desejo do conjunto de mudar, em busca de um

    novo repertrio e de um novo pblico.

    Rattle foi, no por acaso, em busca do tambm britnico Richard McNicol, animador

    musical da hlas! London Symphony Orchestra, para construir o programa

    educacional do conjunto alemo. O projeto grande, reveste-se de enorme importncia

    e recebeu o excelente e emblemtico nome de Zukunft@Bphil, cuja traduo

    Futuro@BerlinPhilharmonie. Os dois espetaculares projetos de levar ao palco

    crianas e adolescentes no bailarinos, oriundos das periferias problemticas de Berlim,

    para danar A Sagrao da Primavera e Carmina Burana do uma medida do

    engajamento e ousadia do conjunto nessa proposta: afinal, a Filarmnica nunca havia

    tocado em espetculos de dana! Mas eles esto realmente investidos da misso de

    expandir sua audincia, de apontar para a premente necessidade de ensinar msica com

    inventividade e resultado, assegurando a prpria sobrevivncia da orquestra. Vale a

    pena mencionar como McNicol se expressa sobre seu projeto: de criatividade que

    tratamos no programa de Berlim e no da escuta passiva.

    Do outro lado do Oceano Atlntico, os norte-americanos no esto menos atentos

    questo e implantam programas slidos para ampliar seu pblico e diversific-lo. A

    questo se reveste de tal importncia que a Orquestra Sinfnica de Chicago (OSC) foi

  • 4

    obrigada a criar uma Diretoria para a Incluso, com a finalidade de instituir

    programas que dessem conta da diversidade da populao da cidade e de seus arredores,

    sobretudo os mais pobres. E vale dizer que a deciso foi, de certa forma, decorrncia da

    demanda de patrocinadores exigentes que achavam a OSC excessivamente fechada e

    voltada para um tipo restrito de pblico. Nos Estados Unidos, a prtica de criar projetos

    educacionais seguida no s pelos conjuntos e companhias e isto vale tambm para a

    dana, teatro e pera mas tambm pelos promotores. A University Musical Society, da

    pequenina cidade de Ann Arbor, em Michigan, por exemplo, organiza temporadas de

    artistas e conjuntos convidados, com cerca de 75 espetculos por ano. Entretanto,

    promoveu, em 2005, um total de 125 aes educativas com os artistas que apresentou,

    que foram desde workshops at ciclos de conferncia e visitas de artistas consagrados s

    escolas pblicas de ensino fundamental.

    H que salientar que europeus e norte-americanos tm mais uma coisa em comum: suas

    orquestras, sejam elas pblicas ou privadas, so dirigidas por Conselhos fortes e muito

    ativos. Democraticamente escolhidos e, consequentemente, representativos da

    diversidade tnica, econmica, poltica, religiosa, cultural e de gnero de suas

    comunidades, os Conselhos dirigem efetivamente as instituies e tm clara influncia

    na adoo de programas que visem a difuso cultural, a educao para as artes e a

    formao de pblico, aqui compreendido como o conjunto da sociedade e no somente

    um extrato dela.

    E ns, que vivemos num pas onde no h educao musical em nenhuma das sries do

    ensino fundamental e onde o rdio e a televiso s transmitem o que de pior h em

    matria musical? O que fazemos ns? O que fazem nossas orquestras? Que papel tm

    elas e o que anseiam? Sero elas capazes de mudar tal cenrio? Podero elas implantar

    programas que democratizem o acesso msica de criao?

    interessante observar a questo sob diversos pontos de vista.

    Desconfio de concertos populares. Sempre me intrigou o entusiasmo que os

    programadores tm em apresentar para o povo concertos ao ar livre, com som

    amplificado, sob sol forte, com dezenas de acontecimentos que distraem, enquanto se

    reserva aos mais ricos o desfrute do verdadeiro som de uma orquestra sinfnica, cujo

    repertrio foi escrito para soar em salas especiais, em silncio e em estado de

    concentrao. Tenho averso s tentativas de fuso entre a msica de concerto e a

    popular, recurso muito difundido entre ns, brasileiros, que adoramos flertar com o

  • 5

    populismo. Fico ainda mais indignada com as tentativas de tornar os clssicos mais

    populares, por meio da organizao de eventos que mesclam, por exemplo, escolas de

    samba e orquestras. Tudo isso no passa, em minha opinio, de uma mscara para a

    prtica de oferecer, aos no familiarizados com a nada simples linguagem da msica

    erudita, plulas de boa msica. Ou seja, expia-se a culpa com um mal disfarado

    brinde para aqueles que no so contemplados como deveriam com a boa formao

    musical e com projetos consistentes de educao em artes. necessrio ser, portanto,

    inventivo e tenaz para criar e implantar programas que tenham em vista garantir o

    acesso de grandes contingentes de pessoas aos concertos sinfnicos.

    A pergunta e por onde deveramos comear? parece ter uma resposta muito simples:

    natural que nos ocupemos de formar e subsidiar aqueles que insistem em ensinar msica

    na escola, sobretudo a pblica3. H um movimento srio no Brasil, deflagrado por

    artistas de inequvoca competncia, em favor da instituio do ensino da msica na

    escola fundamental. Nossas orquestras poderiam comear por aderir, fortalecer e brigar

    com valentia por essa causa.

    Mas preciso ir alm da formao de pblico. Que tipo de repertrio tem freqentado

    os concertos de nossas orquestras? Como construda sua programao e em que

    medida ela espelha a produo brasileira, seus compositores e intrpretes em atividade?

    Em que medida nossas orquestras em sua totalidade mantidas com dinheiro pblico

    so espaos abertos ao exerccio de profissionais de diferentes tendncias? Ao grande

    pblico difcil dar-se conta de como os programas so convencionais e os intrpretes a

    execut-los to previsveis. O pavor da experimentao tanto que muitas vezes so

    apresentados artistas estrangeiros de qualidade pfia por temor e preconceito de abrir

    a porta a um nacional. Indo mais alm, constrangedor constatar que nossas orquestras

    s se sentiro verdadeiramente bem quando conseguirem dinheiro suficiente para

    reproduzirem com perfeio o que fazem suas congneres estrangeiras. S um detalhe

    ser diferente: nos programas daqui haver elencos variados e milionrios de solistas,

    mas dirigidos, preferencialmente, por regentes nicos... A regra da diversidade na

    direo no convm copiar.

    No domnio da composio, as tentativas de ampliar o repertrio s recaem nos autores

    brasileiros j consagrados, e, se comparadas com os valores pagos aos intrpretes, as

    3 As mazelas no so privilgio das escolas pblicas. At 2004, uma das 5 melhores escolas particulares da capital paulista, relacionadas pela revista Veja So Paulo, no oferecia ensino de msica em nenhuma das series do I e II graus.

  • 6

    despesas feitas com a encomenda de obras so vergonhosas. Ao observador atento d a

    impresso que nossas orquestras no tm nenhuma preocupao com nossos

    compositores.

    H mais questes: quais tentativas os conjuntos tm feito para sair de suas acolhedoras

    sedes, verdadeiras fortalezas inexpugnveis a proteg-los dos ventos da

    contemporaneidade e da to necessria insegurana de idias ? Ser possvel que

    nossas cidades no ofeream outras opes? Ser que no h alternativas alm da praa

    pblica? Ser possvel que eles s consigam se apresentar com a formao completa?

    Ser que a nenhum deles ocorre fracionar o grupo e invadir outros espaos,

    aproximando-se da coletividade, abrindo-se para novos repertrios? Na verdade, o mais

    assustador, quando olhamos nossos conjuntos sob o ponto de vista estritamente artstico,

    constatar como eles se comprazem em fazer parte da cultura oficial. Sua meta, seu

    projeto ser como um museu dos anos de 1960 ou 1970. Sim, porque os museus de hoje

    so abertos e ousados espaos de troca e de enfrentamento.

    Nossos conjuntos no conseguem inovar nem mesmo na rea da difuso eletrnica de

    seu trabalho. Sediada num pas riqussimo, a Orquestra Filarmnica da Rdio BBC, de

    Londres, permitiu que, ao longo de uma semana em 2005, fossem baixadas livremente,

    via Internet, as gravaes das nove sinfonias de L.V.Beethoven feitas por ela sob a

    regncia de Gianandrea Noseda. Ao todo, foram um milho de cpias, em sua grande

    maioria feitas por pblico novo, no familiarizado com esse repertrio. Deste lado do

    Atlntico, ainda insistimos em continuar gravando compact discs, com preos

    impossveis para a grande maioria de nosso pblico e, pior, com as mesmas sinfonias de

    Beethoven! Ou seja, nos damos ao luxo de passar ao largo das poucas, mas muito

    interessantes experincias de difuso em massa da msica culta.

    Na verdade, o grande rol de preocupaes a orientar as orquestras brasileiras que

    querem se manter vivas no sculo XXI, com papel de protagonistas no cenrio artstico

    de suas comunidades, precisa incluir uma questo central: a democratizao interna. A

    grande lio das orquestras estrangeiras justamente esta. Nos ltimos trinta anos, elas

    foram obrigadas por diferentes razes o que inclui sua prpria sobrevivncia , a

    tornarem-se organismos democrticos, controlados por suas comunidades e com sua

    ativa participao. Mais do que isso, as orquestras foram revolvidas de dentro para fora,

    se abrindo para a participao intensa de seus artistas e funcionrios e com a eliminao

    de posturas ditatoriais. No Brasil, a milhares de quilmetros de distncia, sem

  • 7

    informao especializada, pblico e gestores de cultura acreditam que orquestras

    sinfnicas ainda so sinnimo de imprios autoritrios e indevassveis, inventados e

    dirigidos por criaturas que ditam ordens aos berros e esto acima do bem e do mal. Este

    modelo, falido h dcadas no Hemisfrio Norte, desrespeita e aparta a sociedade das

    decises e, mais grave, faz dela uma espectadora passiva em todos os sentidos.

    A atividade sinfnica foi viva e dinmica por mais de duzentos anos porque abrigou

    sempre a inquietao criativa e a expanso da linguagem musical. Os desafios para

    manter as orquestras sinfnicas brasileiras atuantes, imprescindveis no cenrio artstico

    e no anacrnicas no universo da cultura, so inmeros, mas certamente estimulantes.

    preciso, portanto, coragem, talento e excelente gesto democrtica para iniciar um novo

    modelo, que incorpore as grandes conquistas j feitas o que inclui uma crescente e

    visvel qualidade de nossos intrpretes e que perceba que elas so um excelente elo de

    identificao da sociedade com o que melhor se pode produzir num pas como o Brasil.

    Os 35 anos da Fundao Clvis Salgado trazem baila o nome do patrono da

    instituio, justamente no centenrio de seu nascimento. frente do Ministrio da

    Educao, condizente com a tradio de seu povo e sabedor da importncia da msica

    para a vida da coletividade, Clvis Salgado convidou para seu assessor artstico-musical

    um dos grandes msicos do pas, o compositor Camargo Guarnieri. Vale dizer que,

    observando as experincias de outros pases e buscando na nossa histria os bons

    exemplos, nos damos conta de que no necessrio reinventar a roda, apenas coloc-la

    a servio da coletividade.