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Ministrio da Educao | Fundao Joaquim Nabuco Coordenao executiva Carlos Alberto Ribeiro de Xavier e Isabela Cribari Comisso tcnica Carlos Alberto Ribeiro de Xavier (presidente) Antonio Carlos Caruso Ronca, Atade Alves, Carmen Lcia Bueno Valle, Clio da Cunha, Jane Cristina da Silva, Jos Carlos Wanderley Dias de Freitas, Justina Iva de Arajo Silva, Lcia Lodi, Maria de Lourdes de Albuquerque Fvero Reviso de contedo Carlos Alberto Ribeiro de Xavier, Clio da Cunha, Jder de Medeiros Britto, Jos Eustachio Romo, Larissa Vieira dos Santos, Suely Melo e Walter Garcia Secretaria executiva Ana Elizabete Negreiros Barroso Conceio Silva
Alceu Amoroso Lima | Almeida Jnior | Ansio Teixeira Aparecida Joly Gouveia | Armanda lvaro Alberto | Azeredo Coutinho Bertha Lutz | Ceclia Meireles | Celso Suckow da Fonseca | Darcy Ribeiro Durmeval Trigueiro Mendes | Fernando de Azevedo | Florestan Fernandes Frota Pessoa | Gilberto Freyre | Gustavo Capanema | Heitor Villa-Lobos Helena Antipoff | Humberto Mauro | Jos Mrio Pires Azanha Julio de Mesquita Filho | Loureno Filho | Manoel Bomfim Manuel da Nbrega | Nsia Floresta | Paschoal Lemme | Paulo Freire Roquette-Pinto | Rui Barbosa | Sampaio Dria | Valnir Chagas
Alfred Binet | Andrs Bello Anton Makarenko | Antonio Gramsci Bogdan Suchodolski | Carl Rogers | Clestin Freinet Domingo Sarmiento | douard Claparde | mile Durkheim Frederic Skinner | Friedrich Frbel | Friedrich Hegel Georg Kerschensteiner | Henri Wallon | Ivan Illich Jan Amos Comnio | Jean Piaget | Jean-Jacques Rousseau Jean-Ovide Decroly | Johann Herbart Johann Pestalozzi | John Dewey | Jos Mart | Lev Vygotsky Maria Montessori | Ortega y Gasset Pedro Varela | Roger Cousinet | Sigmund Freud
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GASSETJuan Escmez SnchezTraduo e organizao Jos Gabriel Periss
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ISBN 978-85-7019-547-0 2010 Coleo Educadores MEC | Fundao Joaquim Nabuco/Editora Massangana Esta publicao tem a cooperao da UNESCO no mbito do Acordo de Cooperao Tcnica MEC/UNESCO, o qual tem o objetivo a contribuio para a formulao e implementao de polticas integradas de melhoria da equidade e qualidade da educao em todos os nveis de ensino formal e no formal. Os autores so responsveis pela escolha e apresentao dos fatos contidos neste livro, bem como pelas opinies nele expressas, que no so necessariamente as da UNESCO, nem comprometem a Organizao. As indicaes de nomes e a apresentao do material ao longo desta publicao no implicam a manifestao de qualquer opinio por parte da UNESCO a respeito da condio jurdica de qualquer pas, territrio, cidade, regio ou de suas autoridades, tampouco da delimitao de suas fronteiras ou limites. A reproduo deste volume, em qualquer meio, sem autorizao prvia, estar sujeita s penalidades da Lei n 9.610 de 19/02/98. Editora Massangana Avenida 17 de Agosto, 2187 | Casa Forte | Recife | PE | CEP 52061-540 www.fundaj.gov.br Coleo Educadores Edio-geral Sidney Rocha Coordenao editorial Selma Corra Assessoria editorial Antonio Laurentino Patrcia Lima Reviso Sygma Comunicao Reviso tcnica Clio da Cunha, Jeanne Marie Claire Sawaya e Luciano Milhomem Seixas Ilustraes Miguel Falco Foi feito depsito legal Impresso no Brasil Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Fundao Joaquim Nabuco. Biblioteca) Escmez Snchez, Juan. Ortega y Gasset / Juan Escmez Snchez; traduo: Jos Gabriel Periss Madureira. Recife: Fundao Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010. 150 p.: il. (Coleo Educadores) Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7019-547-0 1. Ortega y Gasset, Jos, 1883-1955. 2. Educao Pensadores Histria. I. Ttulo. CDU 37
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SUMRIO
Apresentao por Fernando Haddad, 7 Ensaio, por Juan Escmez Snchez, 11 O problema da Espanha um problema educacional, 11 Ortega e suas circunstncias, 13 A pedagogia idealista, 18 A pedagogia vitalista, 24 Pedadogia da maturidade, 28 Ortega atual, 34 Textos selecionados, 39 A reforma universitria, 39 A misso da universidade, 40 Universidade e liderana, 43 A universidade e ensino da cultura, 44 Universidade e autenticidade, 45 A gnese do ensino, 46 O princpio da economia do ensino, 49 O estudante mdio e o que se pode aprender de verdade, 50 Distino entre profisso e cincia, 50 Ser profissional, 52 Vida humana e cultura, 53 Viver altura do seu tempo, 55 Especializao e cultura integral, 57
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A universidade como princpio promotor, 61 Estudo e curiosidade, 62 Cincia e necessidade, 63 Saber, gosto e necessidade, 65 A falsidade do estudar, 67 Reformar o estudo e o estudante, 69 Apontamentos para uma educao para o futuro, 70 Vida nobre e vida vulgar, ou esforo e inrcia, 83 Por que as massas intervm em tudo e por que s intervm violentamente, 88 A poca do senhorzinho satisfeito, 95 A barbrie da especializao, 102 Chega-se verdadeira questo, 108 Eu sou eu e minha circunstncia, 111 O que filosofia, 119 Ado no Paraso, 125 Meditao da tcnica, 138 Cronologia, 145 Bibliografia, 147 Obras de Jos Ortega y Gasset, 149 Obras sobre Jos Ortega y Gasset, 150 Obras de Jos Ortega y Gasset em portugus, 150 Obras sobre Jos Ortega y Gasset em portugus, 151
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APRESENTAO
O propsito de organizar uma coleo de livros sobre educadores e pensadores da educao surgiu da necessidade de se colocar disposio dos professores e dirigentes da educao de todo o pas obras de qualidade para mostrar o que pensaram e fizeram alguns dos principais expoentes da histria educacional, nos planos nacional e internacional. A disseminao de conhecimentos nessa rea, seguida de debates pblicos, constitui passo importante para o amadurecimento de ideias e de alternativas com vistas ao objetivo republicano de melhorar a qualidade das escolas e da prtica pedaggica em nosso pas. Para concretizar esse propsito, o Ministrio da Educao instituiu Comisso Tcnica em 2006, composta por representantes do MEC, de instituies educacionais, de universidades e da Unesco que, aps longas reunies, chegou a uma lista de trinta brasileiros e trinta estrangeiros, cuja escolha teve por critrios o reconhecimento histrico e o alcance de suas reflexes e contribuies para o avano da educao. No plano internacional, optou-se por aproveitar a coleo Penseurs de lducation, organizada pelo International Bureau of Education (IBE) da Unesco em Genebra, que rene alguns dos maiores pensadores da educao de todos os tempos e culturas. Para garantir o xito e a qualidade deste ambicioso projeto editorial, o MEC recorreu aos pesquisadores do Instituto Paulo Freire e de diversas universidades, em condies de cumprir os objetivos previstos pelo projeto.7
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Ao se iniciar a publicao da Coleo Educadores*, o MEC, em parceria com a Unesco e a Fundao Joaquim Nabuco, favorece o aprofundamento das polticas educacionais no Brasil, como tambm contribui para a unio indissocivel entre a teoria e a prtica, que o de que mais necessitamos nestes tempos de transio para cenrios mais promissores. importante sublinhar que o lanamento desta Coleo coincide com o 80 aniversrio de criao do Ministrio da Educao e sugere reflexes oportunas. Ao tempo em que ele foi criado, em novembro de 1930, a educao brasileira vivia um clima de esperanas e expectativas alentadoras em decorrncia das mudanas que se operavam nos campos poltico, econmico e cultural. A divulgao do Manifesto dos pioneiros em 1932, a fundao, em 1934, da Universidade de So Paulo e da Universidade do Distrito Federal, em 1935, so alguns dos exemplos anunciadores de novos tempos to bem sintetizados por Fernando de Azevedo no Manifesto dos pioneiros. Todavia, a imposio ao pas da Constituio de 1937 e do Estado Novo, haveria de interromper por vrios anos a luta auspiciosa do movimento educacional dos anos 1920 e 1930 do sculo passado, que s seria retomada com a redemocratizao do pas, em 1945. Os anos que se seguiram, em clima de maior liberdade, possibilitaram alguns avanos definitivos como as vrias campanhas educacionais nos anos 1950, a criao da Capes e do CNPq e a aprovao, aps muitos embates, da primeira Lei de Diretrizes e Bases no comeo da dcada de 1960. No entanto, as grandes esperanas e aspiraes retrabalhadas e reavivadas nessa fase e to bem sintetizadas pelo Manifesto dos Educadores de 1959, tambm redigido por Fernando de Azevedo, haveriam de ser novamente interrompidas em 1964 por uma nova ditadura de quase dois decnios.
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A relao completa dos educadores que integram a coleo encontra-se no incio deste volume.
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Assim, pode-se dizer que, em certo sentido, o atual estgio da educao brasileira representa uma retomada dos ideais dos manifestos de 1932 e de 1959, devidamente contextualizados com o tempo presente. Estou certo de que o lanamento, em 2007, do Plano de Desenvolvimento da Educao (PDE), como mecanismo de estado para a implementao do Plano Nacional da Educao comeou a resgatar muitos dos objetivos da poltica educacional presentes em ambos os manifestos. Acredito que no ser demais afirmar que o grande argumento do Manifesto de 1932, cuja reedio consta da presente Coleo, juntamente com o Manifesto de 1959, de impressionante atualidade: Na hierarquia dos problemas de uma nao, nenhum sobreleva em importncia, ao da educao. Esse lema inspira e d foras ao movimento de ideias e de aes a que hoje assistimos em todo o pas para fazer da educao uma prioridade de estado.
Fernando Haddad Ministro de Estado da Educao
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JOS ORTEGA Y GASSET (1883-1955) 1Juan Escmez Snchez 2
O problema da Espanha um problema educacional
Se alguma caracterstica especial de Ortega y Gasset atrai a ateno do leitor sua notvel curiosidade. Qualquer tema ou acontecimento do seu tempo, por menor que fosse, despertava-lhe o interesse e a ateno, como fica evidente em sua abundante produo escrita3. Nosso autor apresenta certos traos que o diferenciam do esteretipo que, em geral, temos do filsofo. Seu pensamento no parece oferecer a estrutura de um sistema. Com frequncia, ele expe seu pensamento em artigos de jornal, e seus trabalhos mais importantes foram publicados na forma de ensaios. Por fim, a beleza literria dos seus textos to sugestiva e cativante que o leitor, se sentindo fortemente envolvido, encontra dificuldades para realizar uma anlise rigorosa das ideias ali apresentadas. Estudiosos competentes de diversos campos do saber j se pronunciaram a respeito da coerncia da filosofia de Ortega, suaEste perfil foi publicado em Perspectives: revue trimestrielle dducation compare. Paris, Unesco: Escritrio Internacional de Educao, v. 24, n. 1-2, pp. 267-285, 1994.1 2 Juan Escmez Snchez (Espanha) doutor em filosofia e, atualmente, professor na Universidade de Valencia e diretor do Departamento de Teoria da Educao. Foi professor agregado na Universidade de Murcia. Decano da Faculdade de Filosofia, Psicologia e Cincias da Educao da Universidade de Murcia. Orientou doze projetos de graduao e 24 teses de doutorado. Publicou doze livros como autor ou coautor e cerca de setenta artigos em revistas ou captulos de livro. Nos ltimos anos, seus trabalhos tm versado sobre as atitudes, os valores e a educao moral. 3
J. Ortega y Gasset, Obras completas, Madri, Alianza Editorial, Revista de Occidente, 1983 (12 v.). Os escritos de Ortega y Gasset citados aqui seguem essa edio. Nas notas de referncia, mencionam-se o ttulo da obra citada, o tomo e as pginas correspondentes.
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diversidade temtica e suas qualidades literrias. Nesse perfil, pretendemos nos limitar abordagem daquelas questes que nos conduzam compreenso de um aspecto do pensamento de Ortega, a meu ver importante, mas pouco tratado. Refiro-me dimenso de Ortega como pedagogo. Embora ele considerasse como sua vocao o cultivo do pensamento, que para ele no poderia ser seno filosfico4, a grande paixo de Ortega foi a educao do povo espanhol. Como Cerezo5 demonstrou, o motor do pensamento de Ortega a contnua e intensa meditao sobre o problema da Espanha. Sua trajetria intelectual no pode desligar-se de tal preocupao. Por esse ngulo, convm interpretar suas atividades polticas, culturais e filosficas, as quais compreendem projetos de reforma sociopoltica do pas, focalizando diferentes nveis e mbitos da realidade social. Ortega era, sobretudo, um pedagogo que, no nvel nacional, buscava a reforma e a transformao da Espanha. Para atingir esse objetivo, todos os meios podiam e deviam ser empregados: jornais, revistas, livros, aulas, poltica etc. A transformao do pas concebida pelo jovem Ortega como o processo de integrao da Espanha cultura europeia. Define-se, assim, sua vocao pblica como intelectual, seu destino como educador, quase reformador social: empenhar-se em elevar a Espanha ao nvel da cultura da Europa. A diversidade de vises que Ortega desenvolve sobre a cultura em conexo com o problema da Espanha nos servir de orientao para interpretarmos a evoluo do seu pensamento, tanto filosfico quanto pedaggico. E como desempenhou Ortega a funo de educador? Conforme ele mesmo repetia sempre: Levando em conta as circunstncias.
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A una Edicin de sus Obras, v.6, p.351. P. Cerezo, La Voluntad de Aventura, Barcelona, Ariel, 1984, pp. 15-87.
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Ortega e suas circunstncias
Compreender uma pessoa requer o estudo de sua biografia, da evoluo de sua vida nos diferentes contextos em que se desenrolou. Essa exigncia reveste-se de especial significao no caso de Ortega, pois foi um dos temas centrais do seu pensamento. Em palestra pronunciada por ocasio dos quatrocentos anos da morte de Juan Luis Vives, em 1940, apresenta-nos sua viso sobre como escrever uma rigorosa biografia6. Para realizar essa tarefa, dizianos, procuramos reconstruir intelectualmente a realidade de um bios, de uma vida humana; e viver , para o homem, ter de lidar com o mundo ao seu redor; mundo geogrfico e mundo social. Se quisermos elaborar uma biografia sria, o elemento decisivo o mundo social no qual nascemos e vivemos. Esse mundo social formado de pessoas, mas tambm dos usos, gostos, costumes e todo o sistema de crenas, ideias, preferncias e normas que integram o que se convencionou chamar, de maneira um tanto vaga, de vida coletiva, correntes da poca, esprito do tempo. Tudo isso inculcado pessoa desde a infncia, na famlia, na escola, no convvio social, nos livros e nas leis. Boa poro desse mundo social passa a fazer parte do eu autntico que o nosso; mas surgem em ns tambm crenas, opinies, projetos e gostos que, mais ou menos, discordam do vigente, daquilo que se faz ou se diz. Nisso consiste o combate que a vida, sobretudo de uma vida fora do comum. Com quais contextos e circunstncias Ortega teve de lidar e como reagiu a eles? Os limites de um artigo desse tipo nos obrigam a considerar to somente aquelas circunstncias interessantes para a compreenso da dimenso pedaggica do nosso
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Juan Vives y su Mundo, v, 9, p.509-515.
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personagem7, abrindo mo, entre outras coisas, da anlise das influncias recebidas na elaborao do seu pensamento filosfico, objeto de investigao em excelentes trabalhos8. Jos Ortega y Gasset nasceu em Madri, em 9 de maio de 1883. Filho de Jos Ortega Munilla e de Dolores Gasset, pertencia, pelos dois ramos familiares, a crculos bastante representativos da cultura e da poltica espanholas da poca. Seu pai, escritor reconhecido, era, desde 1902, membro da Real Academia Espanhola, e trabalhava como jornalista na seo literria do dirio El Imparcial, a mais prestigiosa publicao da poca, fundado por seu av materno, Eduardo Gasset, monarquista liberal. Jos Ortega y Gasset cresceu no meio jornalstico, membro de uma famlia na qual a vida pblica letras e poltica possua ressonncia imediata. Com 19 anos, publica seu primeiro artigo. Essas circunstncias familiares pesaram de modo decisivo em suas preocupaes com os problemas sociais e culturais da Espanha, que o conduziram algumas vezes prtica poltica e a considerar-se como a servio de seu pas. Seu gosto pelo jornalismo e sua preferncia pela imprensa como meio de exposio de suas ideias, bem como sua preocupao com a elegncia literria, tiveram sua origem, a meu ver, no contexto familiar. Em 1891, aos 8 anos de idade, ingressa como aluno interno no colgio dos jesutas em Miraflores del Palo (Mlaga), onde permanece at 1897. Inicia seus estudos universitrios em direito e filosofia na Universidad de Deusto (1897), tambm dirigida pelos jesutas,
7 Para uma informao ampla e detalhada, so de grande interesse duas obras do seu conhecido discpulo, Julin Maras: Ortega: circunstancias y vocacin (Madri: Revista de Occidente, 1973); e Ortega: las trayectorias, (Madri: Alianza Universidad, 1984). Outra fonte inestimvel o testemunho de sua filha, Mara Ortega, Ortega y Gasset, mi Padre (Barcelona, Planeta). 8 Uma viso geral dessas influncias encontra-se em S. Rbade, Ortega y Gasset, Filsofo. Hombre, Conocimiento y Razn (Madri, Humanitas, 1983, p. 37-49). A obra de Pedro Cerezo, j citada, oferece um estudo mais detalhado, sendo de especial interesse os captulos IV e VI.
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prosseguindo depois na Universidade Central de Madri, onde se forma em filosofia (1902) e obtm o doutorado (1904) com a tese Los terrores del ao mil: crtica de una leyenda. Faz crticas ao estilo e contedo negativistas da educao jesutica, intolerncia desses religiosos e, sobretudo, aos seus limitados conhecimentos e incompetncia intelectual9. Tambm foram decepcionantes as experincias universitrias de Ortega em Madri. Qualifica como medocre o ensino que recebeu ali10. Com ou sem fundamento, Ortega descreve de modo negativo o panorama da educao que obteve. Para compreender a funo educadora de Ortega, convm considerar, alm das circunstncias familiares e escolares, a atmosfera psicolgica da sociedade espanhola naquele momento, pois ele se sente como participante de uma gerao que despertou intelectualmente no terrvel ano e 1898, e que, desde ento, no presenciou sequer uma hora de satisfao, nem um dia de glria ou plenitude11. De fato, 1898 uma data-chave. Pelo tratado de paz de Paris, a Espanha renuncia a seus direitos de soberania sobre Cuba que, mais tarde, tornar-se- Estado livre, e cede Porto Rico, as Filipinas e a ilha de Guam aos Estados Unidos. A perda das colnias enche os espanhis de tristeza, angstia e pessimismo. A atividade intelectual hispnica centra-se no chamado problema da Espanha, que engloba, na verdade, uma srie de problemas. Esses problemas so analisados e os valores histricos submetidos mais severa crtica. Cada autor, seja qual for seu campo de atividade, procura, segundo suas caractersticas e seu temperamento, a explicao do caso Espanha e as causas da decadncia. nesse perodo crtico que se desenvolve um movimento cientfico, artstico e filosfico que valer Espanha uma notoriedade
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Al Margen del Libro A.M.D.G., v.1, pp. 532-534. Una Fiesta de Paz, v.1, p.125. Vieja y Nueva Poltica, v.1, p.268.
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mundial que ela no experimentava desde o sculo XVI12. Seria impossvel enumerar aqui tantos nomes proeminentes, mas podemos afirmar que a Espanha de hoje comea com a gerao de 1898, inovadora em todos os aspectos, especialmente no que tange uma nova maneira de apreender a realidade nacional e as questes intelectuais. Ortega partilha com essa gerao a dor e a amargura relacionadas ao que ele considera a prostrao espanhola. Ao lado dessa gerao, procura fazer um diagnstico, quer ver com clareza as causas do que ocorre na cultura, na educao, na poltica e na cincia espanholas. Contudo, se essa gerao canta liricamente seu pesar e volta o olhar para a grandeza do passado, Ortega a ultrapassa, na medida em que afirma a esperana, a ao, o compromisso de transformar a dolorosa realidade espanhola. Seus olhos no se voltam para o passado, mas para o futuro, tal como esse futuro vislumbrado na Europa. Eis, ao que parece, a raiz do seu amor-dio pelo mais tpico representante da gerao de 1898, Miguel de Unamuno. Ortega tambm se distancia dessa gerao em razo de sua atividade, mais terica do que literria. E onde Ortega forjou seu arsenal terico? Essa pergunta nos leva ao quarto e ltimo aspecto de sua biografia. Fugindo mediocridade da minha ptria13, conforme suas prprias palavras, Ortega decide, em 1905, procurar as universidades alems, comeando pela Universidade de Leipzig, onde estuda Kant: Ali, tive a primeira e desesperada luta corpo a corpo com a crtica da razo pura, que tantas dificuldades oferece a uma cabea latina14; no ano seguinte, visita Nuremberg e estuda durante seis meses em Berlim, onde conhece Georg Simmel, professor que exerce certa influncia sobre ele. Sua experincia mais importante, porm,
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Ch. Cascals, Lhumanisme dOrtega y Gasset, Paris: Presses Universitaires de France, 1957, p.3. Una Primera Vista sobre Baroja, v. 2, p.118. Prlogo para Alemanes, v. 8, p.26.
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deu-se na terceira etapa de sua estada na Alemanha, em Marburg. Foi l, pela primeira vez, que teve dois importantes mestres, Hermann Cohen e Paul Natorp, conhecidos representantes do neokantismo. Marburg marcaria Ortega profundamente, no s do ponto de vista intelectual, no s com relao sua formao filosfica e pedaggica, mas tambm como ser humano. Para o tema que nos ocupa Ortega como educador , especialmente significativa a influncia de Natorp. Durante sua permanncia em vrios pases europeus, Ortega obtm excelente formao filosfica, entusiasma-se com o desenvolvimento cientfico e tcnico em curso e admira a tenacidade e a disciplina, particularmente dos alemes. Seu europesmo nasce de uma atitude interessada e crtica para incorporar o que possa ser incorporado, sem renunciar s caractersticas hispnicas. Regressando de Marburg, em 1908, nomeado professor de lgica, psicologia e tica na Escola Superior de Magistrio e, em 1910, ganha, em concurso, a ctedra de Metafsica na Universidade Central de Madri. Os contextos descritos so, a meu ver, as principais circunstncias nas quais Ortega teve de viver e com as quais precisou lidar. disso que se constituem sua vida, sua biografia verdadeira e concreta, em outras palavras, suas convices quando escreveu sua primeira obra pedaggica, em 1910. Contudo, o pensamento de Ortega continuar evoluindo no contexto das circunstncias que ter de viver, segundo ele mesmo nos lembrar, em 1932, aludindo ao que escrevera nas Meditaes do Quixote (1914):Eu sou eu e minha circunstncia. Essa frase, que surge em meu primeiro livro e que, em ltima instncia, condensa meu pensamento filosfico, no significa apenas a doutrina que minha obra expe e prope; minha prpria obra ilustra essa doutrina. Minha obra , por essncia e presena, circunstancial15.
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A una Edicin de Sus Obras, v. 6, p. 347.
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A interpretao que Ortega faz de sua prpria filosofia impede que a consideremos um sistema, menos ainda um sistema fechado. O pensamento de Ortega, focado no problema da Espanha, possui o dinamismo de uma busca incessante de solues, tanto no nvel da reflexo terica como no das estratgias de ao, o que exigiu dos especialistas notveis esforos para estabelecer as diferentes etapas dessa evoluo16. O desenvolvimento de seu pensamento manifesta-se nos escritos pedaggicos. Mais ainda, considero que trs deles so uma representao genuna de cada uma das fases do seu percurso intelectual. Sobre esses escritos concentraremos agora nossa ateno.A pedagogia idealista
Em Marburg, Alemanha, Ortega entrou em contato com o neokantismo, uma filosofia da cultura, da ordem objetiva e dos valores; um racionalismo crtico-transcendental que analisava os produtos da cultura moderna, a cincia, a arte, o direito, a tica, a poltica, para descobrir seus princpios de fundamentao e os critrios de sua validade. Alm disso, o neokantismo representava uma pedagogia vigorosa, capaz de orientar o homem, de transform-lo segundo um ideal que no era outro seno o ideal kantiano de uma humanidade cosmopolita. Segundo a concepo neokantiana do homem como realidade cultural, o verdadeiro crescimento pessoal est na adaptao do homem aos ideais; no ajuste dos comportamentos s normas, ao que deve ser feito; normas que, por sua vez, tm validade universal. O biolgico, o instintivo devem submeter-se ao superior, ao ideal.
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Jos Ferrater Mora distingue trs etapas: objetivismo (1902-1914); perspectivismo (19141923); raciovitalismo (1924-1955). Jos Gaos, seu principal discpulo antes da Guerra Civil Espanhola, determina quatro perodos: juventude (1902-1914); primera etapa da plenitude (1914-1923); segunda etapa da plenitude (1924-1936); e desterro (1936-1955). Classificaes similares foram propostas por Morn Arroyo e Pedro Cerezo, entre outros.
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A liberdade no espontaneidade, no apetite, no capricho, mas reflexo e educao, isto , respeito ativo aos valores universais. Essa filosofia da cultura e da educao, que promove a busca do objetivo, do universal, do genrico, parece ao jovem Ortega o sistema de pensamento capaz de orientar a soluo do problema da Espanha. Em contraste com a cultura alem, na Espanha predominam o espontneo, o subjetivo, os particularismos e sectarismos que levaram ao desperdcio de energias em confrontos internos, em gestos solitrios e na destruio por uns do que outros fizeram; da a lamentvel situao espanhola. Desse contato com a Europa, em particular com o neokantismo alemo, Ortega adquire a convico de que a salvao da Espanha, sua recuperao histrica, reside em sua reforma cultural. Pertence a essa fase do seu pensamento a primeira formulao estruturada sobre a educao. Trata-se de uma conferncia realizada em Bilbao em 12 de maro de 1910 La Pedagoga Social como Programa Poltico17. A conferncia inicia-se com a explanao das profundas deficincias da situao espanhola que j se arrastava havia trs sculos e cuja evidncia maior era o fato de a Espanha no constituir uma verdadeira nao. Para o neokantiano Ortega daquela poca, a Espanha no uma nao porque no existe como comunidade regulada por leis objetivas, fundamentadas na racionalidade, aceitas por todos, expresso dos deveres coletivos. A Espanha no uma nao porque seus cidados no aspiram realizao dos ideais objetivos da cincia, da arte, da moral, nos quais uma comunidade humana encontra a plenitude de seu desenvolvimento. Ao contrrio, a Espanha o pas do individualismo, do subjetivismo, onde, de maneira peculiar, cada um faz o que quer, sem se submeter a norma alguma que no seja o livre-arbtrio.
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La Pedagoga Social como Programa Poltico, v. 1, pp. 503-521.
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Reconhecer a ausncia de cultura como realizao coletiva de formas ideais, na vida espanhola, o primeiro passo para solucionar o problema da Espanha. Esse reconhecimento, pensa nosso autor, no pessimismo, mas um diagnstico verdadeiro que mostra a diferena entre o que e o que deve ser. Assumir conscientemente a realidade da situao espanhola certamente doloroso, mas nos incita a pensar tambm em como as coisas deveriam ser e nos insta a atingir essa realidade. A argumentao de Ortega apaixonada, mas rigorosa: h uma realidade problemtica a Espanha deficitria com relao ao que se entende por cultura, na Europa, ao que deve ser, sua culturalizao tal como se d na Europa e segundo a formulao neokantiana. Desde isso, a prpria conscientizao dessa situao problemtica, o aprofundamento desse diagnstico, permitiro vislumbrar igualmente a meta ideal que necessrio atingir e o processo para que seja atingida. A meta a transformao da realidade espanhola no sentido de alcanar as formas de cultura existentes na Europa. No processo para atingir essa transformao cultural, Ortega v a importncia da educao. Observa que o que os latinos chamavam eductio ou educatio era a ao de extrair uma coisa de outra, ou a ao de converter uma coisa menos boa em outra melhor. Embora no se detenha em precises terminolgicas, prope um conceito de educao que parece ter suas razes na educatio e que, em nossos dias, aceito em sua essncia; entende por educao o conjunto de aes humanas que tendem a fazer evoluir a realidade existente para um ideal. Estabelecido o conceito de educao, Ortega procura determinar as funes da pedagogia como cincia da educao, atribuindo-lhe claramente duas: a determinao cientfica do ideal, da finalidade da educao, e uma segunda funo, essencial, de encontrar os meios intelectuais, morais e estticos, mediante os quais
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se consiga polarizar o educando na direo daquele ideal. Uma vez que, pela educao, transformaremos o homem real, o que , no sentido do ideal, no que deve ser, a primeira tarefa consiste em responder seguinte pergunta: qual o ideal de homem que constitui o objetivo da educao, a exigir o emprego de determinados meios?. Essa a indagao central de sua conferncia. O homem, responde Ortega, no mero organismo biolgico; o biolgico somente um pretexto para o homem existir. O homem humano enquanto produtor de fatos segundo formas ideais; enquanto produtor da matemtica, da arte, da moral, do direito; o homem humano enquanto produtor de cultura. Em sua busca do objetivo da educao, do ideal-homem, Ortega afirma que o verdadeiro homem no o ser individual, isolado dos outros. Distingue em cada homem um eu emprico, com seus caprichos, amores, dios e apetites prprios, singulares; e um eu que pensa a verdade comum a todos, a bondade geral, a universal beleza, isto , distingue um eu emprico de um eu criador de cultura que um eu genrico. A cincia, a moral, a arte etc. so os fatos especificamente humanos e, portanto, uma pessoa verdadeiramente humana na medida em que participa da cincia, da moral e da arte de uma comunidade. O ideal de homem, meta da educao, o homem produtor de cultura, e produtor de cultura com os outros. Se esse o ideal de homem, a educao tem de dirigir-se no ao eu emprico, em que radica o singular, mas ao eu genrico que sente, pensa e quer, segundo aquelas formas ideais. Como consequncia desse raciocnio, a educao deve ser o processo pelo qual o biolgico ou natural do homem se ajusta ao reino das formas ideais e, assim, atua de acordo com as normas delas derivadas. Nessa primeira etapa, diante do binmio cultura-vida, o pensamento educativo de Ortega, influenciado por seus professores neo-kantianos, inclina-se claramente para o lado da cultura. No
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entanto, nosso pensador tem uma forte personalidade intelectual e interesses sociopolticos que, dificilmente, compatibilizam-se com o formalismo de seus mestres de Marburg. Na minha opinio, vale a pena fazer, nesse texto, algumas consideraes sobre certas particularidades de Ortega. Em primeiro lugar, ao mesmo tempo em que ele concebe o homem como ser social, ele lhe confere uma viso histrica. Ao ressaltar que, da natureza social do homem, o pedagogo, na relao educacional, encontra-se diante de um tecido social, no diante de um indivduo, Ortega afirma:No presente, o passado se condensa, ntegro; nada do que foi se perdeu; se as veias dos que morreram esto vazias, porque seu sangue veio fluir no leito jovem de nossas veias18.
Essa imagem literria denota uma viso do homem segundo a qual a experincia singular de uns e de outros se faz presente na configurao concreta de algumas pessoas, que no so a humanidade em geral. A evoluo ulterior do pensamento antropolgico de Ortega y Gasset ser marcada pela intensificao da concepo do homem como um ser que vai se fazendo de modo concreto, em seu devir biogrfico. A segunda particularidade presente na obra que comentamos aqui reside na importncia conferida por Ortega produo de fatos culturais. No meu entender, pode-se afirmar que h, em sua argumentao, uma obsesso pela prxis. Ortega est especialmente interessado no processo de construo da cultura como real e concreta produo de objetos. Para ele, a cultura trabalho, produo de coisas humanas, tarefa a realizar.Quando falamos de maior ou menor cultura, queremos dizer maior ou menor capacidade de produzir coisas, de trabalho. As coisas, os produtos so a medida e o sintoma da cultura19.
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Ib., p.514. Ib.., p.516.
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Da sua proposta de uma educao para o trabalho e pelo trabalho; e no um trabalho individual, mas em comum. Essa concepo, de acordo com sua viso terica, permite tambm superar os individualismos, as lutas fratricidas e a falta de cooperao entre os espanhis. Para um autor argentino,20 sua ideia de educao para o trabalho e pelo trabalho situa Ortega entre os promotores da educao ativa. Na nossa perspectiva de anlise, acredito que a preocupao fundamental de Ortega, para quem o problema da Espanha primordial, garantir a transformao cultural de sua sociedade e penso que ele concebe a pedagogia como a cincia dessa reconstruo social e cultural. E se lhe disserem que isso poltica, Ortega responde: A poltica tornou-se para ns pedagogia social, e o problema espanhol, um problema pedaggico21. Os pressupostos que analisamos aqui constituem uma filosofia da educao centrada na realizao cultural do homem enquanto membro do todo social. A ao poltica reduz-se, em ltima instncia, a uma ao cultural, a uma pedagogia social, porque, na vida social, na cooperao e na comunicao, o homem se realiza em sua condio cultural. Nesse primeiro momento, Ortega considera que a soluo do problema da Espanha est em sua reforma cultural mediante a educao. Partindo desse posicionamento, do compromisso intelectual que assume com relao transformao da sociedade espanhola, Ortega chegar, numa outra etapa, convico de que s haver salvao para a Espanha se for possvel contar com suas energias e possibilidades, com suas idiossincrasias e sua situao histrica. O Ortega neo-kantiano preconizava um homem produtor de cultura, realizador de formas ideais; um indivduo humano empenhado na construo de uma cultura vlida para toda a humanidade. Ortega vai
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MANTOVANI, 1962, p.61. La Pedagoga Social como Programa Poltico, op. cit. p.515.
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descobrindo que um indivduo assim uma abstrao e que o racionalismo uma forma de idealismo esquece o homem real e concreto que vive numa situao real e concreta. necessrio voltar os olhos para esse homem, a fim de que ele se mostre em sua radical realidade. necessrio superar a estreita viso do racionalismo. necessrio um novo modo de abordar o conhecimento do homem; o encontro de Ortega com a fenomenologia o ajudar em seu novo itinerrio intelectual. A partir de 1911, cresce sua insatisfao com a concepo do homem como ser cultural e esse distanciamento surge, claramente, nas pginas escritas em 1914.A pedagogia vitalista
Voltar os olhos para o homem mesmo, para seu ser real e concreto, mostra a Ortega que o ser do homem consiste em viver. A vida a realidade radical da qual preciso partir e com a qual se deve contar. Essa convico, que lhe impede de considerar a cultura como esfera autnoma e independente, torna-se pouco a pouco uma das chaves do seu pensamento filosfico, como nos recordar em sua maturidade:A primeira coisa que a filosofia deve fazer definir esse dado, definir o que minha vida, nossa vida, a vida de cada um. Viver o modo de ser radical: qualquer outra coisa e modo de ser est em minha vida, dentro dela, como pormenor dela e a ela referida22.
Na tenso vida-cultura, esta ltima perde a primazia que havia adquirido durante a fase idealista de Ortega e , de agora em diante, considerada como manifestao da vida. A cultura consistir em viver a vida em sua plenitude. Se a cultura consiste em viver plenamente, ento a vida, concebida como elementar, deve ser considerada como o princpio da cultura. O aprofundamento de sua reflexo levar Ortega interpretao da vida como criatividade. A mudana de rumo, na filo22
Qu es Filosofa?, v. 7, p.405.
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sofia orteguiana, do idealismo para o vitalismo, obviamente no alheio s influncias de suas leituras filosficas, que no cabe analisar nesse momento. Mas tal mudana deve-se, fundamentalmente, sua reflexo sobre a situao espanhola. Ortega, que postulara para a reforma sociopoltica da Espanha sua culturalizao, de acordo com o modelo europeu, percebe que, para salvar a Espanha, precisa contar com as energias que nela existem; ao voltar os olhos para a realidade do seu pas, depara com o fato de que suas caractersticas e peculiaridades esto na afirmao vigorosa da vida imediata e elementar. Nessa fase da evoluo do seu pensamento, Ortega escreve o ensaio Biologa y pedagoga23, no qual expe suas ideias sobre a educao a propsito da polmica suscitada por uma lei que prescrevia a leitura de Dom Quixote na escola primria. Ortega assume uma premissa fundamental: preciso educar para a vida e, como no se pode ensinar tudo, necessrio delimitar aquilo a que a educao deve circunscrever-se prioritariamente. Sua concepo teleolgica da ao, que aparece em sua etapa idealista e que ele nunca abandonar, leva-o a interrogar-se sobre a natureza da finalidade da educao. Se partimos do princpio de que necessrio educar para a vida, qual a vida essencial com a qual a educao deve preocupar-se? O xito da educao depender da resposta, certa ou errada, a essa pergunta. Ortega considera que a vida, em seu sentido mais radical, a vida elementar, espontnea, que ele chama a natura naturans e no a natura naturata. Ela a vida como fora criadora, como substrato biolgico do qual procedem todos os impulsos e energias que fazem o homem agir. a essa vida que deve prestar ateno, prioritariamente, a educao primria; depois, nos nveis superiores, ser a hora de educar tendo em vista a civilizao e a cultura, especializando a alma do adulto.23
Ensayos Filosficos. Biologa y pedagoga, v. 2, pp. 271-305.
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Nosso autor lana mo de diversos argumentos para defender sua tese. O primeiro que nos organismos biolgicos h funes mais vitais do que outras. As mais radicalmente vitais so as no especializadas, as no mecnicas e, por isso, as que representam a vida genuinamente; por sua falta de especializao, podem dar respostas a situaes plurais, diversas e cambiantes; podem resolver no s uma tipologia de situaes, mas situaes das mais variadas tipologias. O segundo argumento que essa vida original, radical, realmente a criadora de cultura. A cultura e a civilizao, de que tanto nos envaidecemos, so uma criao do homem selvagem e no do homem culto e civilizado24. Todas as grandes pocas de criao foram precedidas de uma exploso de selvageria. Se queremos ter uma cultura dinmica, que reflita realmente a plenitude humana, preciso centrar-nos no estudo, na anlise e potenciao dessa vitalidade primria que, pela exploso de si mesma, h de gerar novas formas de cultura. E, aqui, a pedagogia desempenha seu papel, uma vez que a proposta de Ortega, como ele prprio admite, est muito longe do naturalismo de Rousseau. A pedagogia deve procurar os meios de intensificar essa vida, e a educao consiste em aplic-los. No preciso deixar a criana desenvolver-se totalmente livre, a exemplo dos processos da natureza. As aes educativas so intencionais, reflexivas e perseguem uma meta: cooperar tecnicamente para a maximizao do potencial vital mais profundo das crianas. preciso orientar a educao, no para a aquisio de formas culturais, mas para que a prpria vida seja apropriada, para que o prprio poder vital cresa. Quais funes espontneas convm reforar? Ortega atrevese a enumer-las: a coragem e a curiosidade, o amor e o dio, a agilidade intelectual, o desejo de ser feliz e vencer, a confiana em
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Ib., p.280.
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si mesmo e no mundo, a imaginao, a memria.25 Tais funes so como as secrees internas que aumentam a atividade do organismo como um todo; quando alguma delas falha, o organismo no funciona. So para a psique o que os hormnios so para o corpo: substncias fundamentais, estimulantes. Ortega defende que a educao fundamental garanta a sade vital, pressuposto de qualquer outra forma de sade: O ensino elementar deve governar-se pelo objetivo final de produzir o maior nmero de homens vitalmente perfeitos;26 homens que sintam sua atuao espiritual brotar de uma torrente plena de uma energia alheia aos seus limites, aparentemente autossuficiente; homens cujas aes so como o transbordamento de sua abundncia interna. Embora Ortega parea defender um primitivismo naturalista, no o que faz, como o demonstram suas crticas a Rousseau. Tampouco favorvel a algum tipo de irracionalismo anticulturalista. Simplesmente revisou a importncia que conferira antes cultura como o princpio e o sentido da vida humana. Agora, ao contrrio, faz da cultura uma encarnao da vida, porquanto o sentido da cultura est precisamente em ser uma funo da vida. A vida no est a servio da cultura, mas a cultura est a servio da vida. O equilbrio vida-cultura rompe-se em favor da vida. a vida que confere valor cultura. Trata-se agora de autenticar e vivificar a cultura, sendo a vida o critrio dessa autenticao. Alm de realizar sugestiva exposio de duas funes bsicas dessa vida primignia, o desejo e os sentimentos, Ortega procura tambm indicar os procedimentos para a educao dessa vida essencial. Para intensificar seu impulso vital, a criana deve ser envolvida numa atmosfera de sentimentos audazes e magnnimos, ambiciosos e estimulantes. Um meio pedaggico relevante consiste em apresentar-lhe, mais do que os fatos, os mitos. Segundo Ortega, os25 26
Ibid., p.278. Ibid., p.292.
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mitos suscitam em ns as correntezas induzidas dos sentimentos que alimentam o impulso vital, mantm tona nosso desejo de viver e aumentam a tenso dos nossos mais profundos recursos biolgicos. Outro procedimento recomendado por Ortega o de educar as crianas, no como adultos, mas como crianas. No se trata de partir de um ideal exemplar de homem, mas de um modelo de infncia. Critica o modo como avaliamos as crianas segundo nossos critrios de adultos, pressupondo que elas se encontrem inseridas no mesmo meio vital em que estamos. A criana tem seu prprio ambiente vital de interesses, no utilitrios, a serem desenvolvidos. Alis, precisamente desse desenvolvimento que, com frequncia, nascem as mais ricas orientaes vitais do futuro adulto. Assim,o canto do poeta e a palavra do sbio, a ambio do poltico e os feitos do guerreiro so sempre ecos de um incorrigvel menino preso dentro do adulto.27
Os objetos que, para a criana, existem de modo vital, ocupamna e preocupam-na, prendem sua ateno, desencadeiam seus desejos, suas paixes e seus movimentos, no so objetos materiais quaisquer, mas objetos que, reais ou no, so desejveis em si mesmos. Por isso a criana se interessa tanto por histrias e fbulas. Nelas, purifica os aspectos da realidade para converter essa realidade numa paisagem que reflita seus desejos. A postura definitiva e madura de Ortega no essa, que acabamos de expor, mas a que ele adota a partir de 1930, quando busca um equilbrio entre vida e cultura. Uma espontaneidade vital, exterior s instituies, degenera em primitivismo irresponsvel, e instituies sem vitalidade degeneram em rotina e inrcia.Pedagogia da maturidade
Em seu artigo Un Rasgo de la Vida Alemana,28 Ortega nos diz que o indivduo dispe de possibilidades ilimitadas para ser uma27 28
Ibid., p.300. Un Rasgo de la Vida Alemana, vol.5, pp. 199-203.
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personalidade ou outra. Contudo, quando observamos mais de perto o homem concreto, notamos que suas verdadeiras possibilidades so limitadas, so aquelas que provm do contexto em que vive, um contexto cultural e social concreto, depositrio do que outros realizaram antes dele. A cultura e os objetos culturais surgiram sempre como aes individuais, porm, convertendo-se em objetos, perdem essa condio de realidades individuais e adquirem vida prpria. As possibilidades reais de um indivduo so, portanto, as que lhe ofereceram as instituies externas e que se lhe impem, constrangendo-o e limitando-o, mas que, por outro lado, tornam possvel a existncia de novos indivduos. A vida, como liberdade, encontra-se constantemente ameaada por aquilo mesmo que a torna possvel: a cultura. Por isso, deve voltar-se contra a cultura, desconfiar dela, mesmo se ela constituir precisamente o fundamento de sua segurana. Deve critic-la e transcend-la ininterruptamente, no no sentido da natureza, mas de novas configuraes culturais. Por isso, em suas aulas inaugurais na universidade, Ortega insistia com os alunos que deviam partir da cultura com a qual tinham contato, atuando como criadores de cultura, esforando-se em realizar uma anlise crtica dos elementos culturais, a fim de verificar se eram satisfatrios ou se, pelo contrrio, sentiam eles a necessidade vital de modific-los. Nisso consiste viver verdadeiramente, viver na cultura do seu prprio tempo.29 S podemos afirmar que deparamos com uma verdade, quando encontramos um pensamento que satisfaz uma necessidade sentida por ns. Se o estudante sente unicamente a necessidade de aprender o que os outros descobriram, no sentir nem prazer nem paixo, pois seu ponto de partida uma necessidade imposta, artificial, diferente da necessidade dos seres humanos que criaram um novo conhecimento em nome de uma necessidade vital. Da o interessante conceito de ensino de Ortega:29
Sobre las Carreras, vol.5, p.179.
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Ensinar , primria e fundamentalmente, mostrar a necessidade de uma cincia, e no ensinar a cincia cuja necessidade seja impossvel fazer com que o estudante sinta.30
necessrio, portanto, promover instituies educacionais dinamizadas pela inquietao de encontrar as respostas a problemas vitais experimentados pelos alunos, nas quais a liberdade, a democracia e a modernidade sejam as orientaes bsicas. Essas instituies so propostas num dos seus escritos mais conhecidos, Misso da universidade,31 no qual faz, em primeiro lugar, um diagnstico da universidade espanhola. O que a universidade atualmente? Sua resposta : um centro de ensino superior onde os filhos das famlias com boa posio financeira, no as dos operrios, so preparados para exercer as profisses intelectuais. Um centro, prossegue Ortega, cujos professores esto obcecados pela pesquisa cientfica e pela formao de futuros pesquisadores. Ortega critica essa universidade elitista, que no recebe todos os que poderiam e deveriam chegar ao ensino superior. Critica o seu limitado critrio de pesquisa, uma vez que confunde o ensino e a aprendizagem da cincia com a descoberta da verdade ou a demonstrao do erro. Critica, sobretudo, o modo como essa universidade abandonou o ensino da cultura, deixando de transmitir ideias claras e precisas sobre o universo, convices positivas sobre o que so as coisas e o que o mundo. Em outras palavras, critica uma instituio que no ensina a viver de acordo com as ideias mais avanadas do seu tempo. Mas qual a misso da universidade do nosso tempo? Ortega responde: transmitir a cultura, ensinar as profisses, realizar a pesquisa cientfica e formar novos pesquisadores. Assim formulada, a misso da universidade segundo Ortega parece trazer pouca novidade. No entanto, quando se pergunta sobre o critrio de priori30 31
Sobre el Estudiar y el Estudiante, vol.4, p.554. Misin de la Universidad, vol.4, pp. 311-353.
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dade que deve existir entre aquelas funes, a atualidade e o rigor de sua resposta chamam, ainda hoje, nossa ateno. De fato, est em jogo aqui a finalidade da universidade. Diz Ortega:Em vez de ensinar o que, segundo um desejo utpico, deveria ensinar-se, preciso ensinar apenas o que se pode ensinar, ou seja, o que se pode aprender.32
A inovao pedaggica de Rousseau, Pestalozzi e Frbel reside em que a prioridade no est no saber ou no mestre; a prioridade deve estar no aluno, e no aluno mdio. Ortega afirma que o princpio regulador do ensino universitrio deve ser o princpio da economia. Se a pedagogia e as atividades docentes tornaram-se uma profisso indispensvel a partir do sculo XVIII, foi graas ao grande desenvolvimento da cincia, da tecnologia e da cultura. Atualmente, para viver com segurana e conforto, o homem precisa aprender uma quantidade imensa de coisas e, ao mesmo tempo, possui capacidade individual extremamente limitada para aprender. A pedagogia e o ensino tm como razo de ser a necessidade de selecionar o que fundamental na aprendizagem e facilit-la. O ponto de partida deve ser o estudante, sua capacidade de aprender e suas necessidades para viver. E preciso partir do estudante mdio, transmitindo-lhe exclusivamente os conhecimentos indispensveis. Em outros termos, convm ensinar o que se requer para viver altura do seu tempo, e o que ele possa aprender com facilidade e plenitude. Nessa linha de raciocnio, Ortega estabelece as seguintes diretrizes:A universidade consiste, antes de mais nada, no ensino que o homem mdio deve receber; preciso fazer do homem mdio um homem culto, situando-o altura do seu tempo...; fazer do homem mdio bom profissional...; no h nenhuma razo suficiente para que o homem mdio deva ser um cientista.3332 33
Ibid., p.327. Ibid., p.335.
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O ponto no qual Ortega insiste que a universidade deve ensinar cultura, entendendo por cultura o sistema de ideias vivas que cada poca possui:Essas, que chamo de ideias vivas ou de que se vive, so, nem mais nem menos, o repertrio de nossas efetivas convices sobre o que o mundo e o que so nossos semelhantes, sobre a hierarquia dos valores que as coisas e as aes tm: ora mais valiosas, ora menos.34
O ser humano no pode viver sem reagir ao seu ambiente ou ao mundo a sua volta, criando uma interpretao intelectual deste ltimo e de sua possvel conduta no mundo. Essa interpretao constitui o repertrio de convices ou ideias sobre o universo e sobre si mesmo, que a universidade deve ensinar. certo que, em nossa poca, o contedo da cultura, na sua maior parte, provm da cincia; a cultura extrai da cincia o vitalmente necessrio para interpretar nossa existncia, mas h parcelas inteiras da cincia que no so cultura, mas pura tcnica cientfica. O ser humano precisa viver, e a cultura a interpretao dessa vida; e a vida, que o homem, no pode aguardar que as cincias expliquem tudo cientificamente. O homem, para viver sua vida, que urgncia, necessita da cultura como um sistema completo, integral e claramente estruturado do universo. E tal cultura deve ser a do seu tempo. Ensinar essa cultura na universidade requer professores com grande capacidade de sntese e de sistematizao. Em suma, e lanando mo das prprias palavras de Ortega, assim est delimitada a misso fundamental da universidade:Primeiro, entender-se- por universidade, stricto sensu, a instituio onde se ensina ao estudante mdio a ser um homem culto e bom profissional; segundo, a universidade no admitir qualquer impostura em seus usos, isto , s pretender que o estudante aprende aquilo que lhe pode ser exigido; terceiro, evitar-se-, por conseguinte, que o estudante mdio perca parte de seu tempo fingindo que vai ser cientista. Para esse fim, ser eliminado do centro da estrutura univer34
Ibid., p.341.
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sitria a pesquisa cientfica propriamente dita; quarto, as disciplinas de cultura e os estudos profissionalizantes sero oferecidos pedagogicamente racionalizados de uma maneira sinttica, sistemtica e completa , no da forma que a cincia abandonada a si mesma preferiria: problemas especiais, fragmentos de cincia, ensaios de pesquisa; quinto, o lugar que o candidato ocupa, na condio de pesquisador, no influir na eleio do professorado, mas sim seu talento sinttico e suas qualidades como professor; sexto, a universidade ser inexorvel em suas exigncias para com o estudante, se o rendimento de sua aprendizagem for reduzido ao minimum em quantidade e qualidade.35
Ortega tinha conscincia (e deixava isso claro) de que suas opinies sobre a pesquisa cientfica e a formao de cientistas seriam julgadas de modo negativo. O que ele denuncia o mito da pesquisa cientfica e seu ensino no quadro dos estudos regulares. Para que no tivssemos dvidas quanto sua posio, escreveu: A universidade diferente, porm inseparvel da cincia. Eu diria: a universidade , alis, cincia.36 A cincia o pressuposto radical para a existncia da universidade. dela que a universidade deve viver, pois a cincia a alma da universidade. Se deve estar relacionada cincia, a universidade precisa tambm manter contato com a vida pblica, com a realidade histrica, com o presente. A universidade deve estar aberta a toda a atualidade e participar dela enquanto tal, tratando os grandes temas do cotidiano do seu prprio ponto de vista cultural, profissional ou cientfico. Ento, conclui Ortega, a universidade voltar a ser o que foi em seus melhores momentos: um dos princpios motores da histria europeia. A partir de 1936, o problema da Espanha, que tanto preocupou Ortega, converte-se na tragdia da Guerra Civil Espanhola. Tem incio o exlio voluntrio de Ortega na Amrica e na Europa. Os prximos dezenove anos, at sua morte, so interpretados por alguns como
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Ibid., p.349. Ibid., p.351.
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uma etapa diferente do restante de sua vida. Seja isso verdadeiro ou no, o certo que seu radical compromisso poltico parece enfraquecer-se perante as novas circunstncias. Seu talento filosfico, contudo, produz excelentes obras como Ideas y creencias (1940), La razn histrica. 1 parte (1940), La razn histrica. 2 parte (1944), La idea de principio en Leibniz (1947), El hombre y la gente (1949) etc. Ao longo desses anos, produz apenas um texto pedaggico, Apuntes sobre una educacin para el futuro (1953), que escreveu para uma possvel participao sua na reunio organizada em Londres pelo Fundo para o Progresso da Educao. Na minha opinio, as contribuies desse texto para seu pensamento pedaggico so de escassa relevncia. Embora os escritos pedaggicos de Ortega sejam, a meu ver, manifestao significativa do seu pensamento filosfico, no encontramos neles uma exposio sistemtica; ser sistemtico no era mesmo caracterstica do nosso autor. Seus textos dedicados educao so mais numerosos do que os mencionados nesse perfil. Acredito ter analisado os trs mais importantes.Ortega atual*
A anlise do pensamento pedaggico de Ortega destaca duas motivaes bsicas. A primeira, que condiciona e confere sentido sua obra como um todo, a transformao da realidade sociocultural espanhola. A chamada questo espanhola atrair constantemente sua ateno e o far tomar iniciativas de todo tipo: criao da Liga de Educacin Poltica, da Agrupacin al Servicio de la Repblica, constantes contribuies nos assuntos pblicos mediante conferncias e artigos na imprensa, atividade parlamentar como deputado etc. A segunda motivao, relacionada anterior, a convico de Ortega de ter por vocao reformar e modelar a nova sociedade e o novo homem espanhol. Como se considera, um filsofo, realiza sua vocao fundamentalmente na medida em* No original o tpico se chama Dimenses de Ortega como educador. (Nota do editor)
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que oferece ideias propulsoras para tal transformao. A influncia de Ortega como educador mltipla.37 No mbito acadmico, a personalidade mais influente da filosofia espanhola do seu tempo. Ao seu redor, sob o influxo de sua filosofia e personalidade, constitui-se a chamada Escuela de Madrid. Manoel Bomfim, Garca Morente, Xavier Zubiri e Jos Gaos so, com Ortega, os titulares das ctedras de filosofia da universidade madrilena. Todo estudioso da cultura hispnica conhece a importncia desses nomes. Se a eles acrescentarmos os de Luis Recasns, Mara Zambrano, Joaqun Xirau e Julin Maras, todos de algum modo vinculados a essa escola, podemos admitir que o pensamento de Ortega, considerado por todos como mestre indiscutvel, ocupa lugar privilegiado na filosofia espanhola do sculo XX. A influncia orteguiana no se limitou aos professores e alunos, que o tinham como mestre do tempo de esplendor da filosofia incorporada pela Escuela de Madrid. Estendeu-se a outras personalidades da filosofia e da cultura espanholas do ps-guerra, como Jos Luis Aranguren e Pedro Lan Entralgo, entre outros, o que nos permite dizer que sua filosofia pertence tradio cultural da Espanha. No mbito pedaggico, sua influncia mais visvel foi sobre Lorenzo Luzuriaga, ligado a Ortega desde 1908, quando este ocupava a ctedra da Escola Superior de Magistrio de Madri. Pelos dados disponveis,38 parece que os estudos pedaggicos da Universidade Central de Madri foram criados por iniciativa de Ortega em 1932. Com relao aos programas de reforma educativa para desenvolver a pedagogia como disciplina cientfica, lembremos outro discpulo de Ortega, a quem j mencionamos, Joaqun Xirau, que trabalhou na Catalunha. Uma discpula, Mara de Maeztu, se37
J. L. Abelln, Historia Crtica del Pensamiento Espaol, Madri, Espasa Calpe, 1991, v. V (III), pp. 212-81. Zuloaga, La Pedagoga Universitaria segn Ortega y Gasset, in Homenaje a Jos Ortega y Gasset (1883-1983), Madri, 1986, pp. 23-42.
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gue os passos do mestre em Marburg e estuda pedagogia social com Natorp. Ela viajou por toda a Europa para conhecer as escolas novas, o que mais tarde lhe serviria para criar na Espanha um projeto de reforma dos mtodos de ensino. No contexto extrauniversitrio, Ortega realiza o que Luzuriaga chama de mltiplas fundaes,39 buscando claramente influenciar a sociedade espanhola com novas ideias. Entre tais fundaes destaca-se a Revista de Occidente, que pode ser considerada o ponto culminante de um processo durante o qual as tentativas e os fracassos foram uma constante. Suas experincias anteriores, nas atividades culturais e polticas, fizeram-no conceber a Revista de Occidente como plataforma de lanamento para a transformao cultural da Espanha. Parece ter fundado essa revista e editora do mesmo nome com o intuito de formar leitores que tivessem a perspectiva cultural que ele tinha e, em ltima anlise, para criar uma atmosfera cultural em que ele mesmo pudesse ser lido e discutido. Enfim, importante enfatizar a influncia educacional que Ortega exerceu nos pases do Cone Sul (Argentina, Chile e Uruguai), onde ele encontra uma comunidade que compartilha de seus mesmos valores e modos de sentir e onde seu prestgio se desenvolveria graas instalao, nessa regio, de vrios membros da Escuela de Madrid, exilados por ocasio da Guerra Civil Espanhola. Contudo, em Porto Rico que sua influncia parece maior: a universidade colocou em prtica alguns princpios expostos na obra que comentamos, Misso da universidade. Muitos escritos de Ortega foram ali utilizados como textos de estudo.
Luzuriaga, Las Fundaciones de Ortega y Gasset, in Homenaje a Jose Ortega y Gasset, Madri, 1958, pp. 33-50.39
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TEXTOS SELECIONADOS40
A reforma universitria (pp. 16-18)
A reforma universitria no pode reduzir-se nem fundamentar-se, em primeiro lugar, na correo de abusos. Reformar sempre criar novos usos. Os abusos tm pouca importncia, porque, ou so abusos no sentido mais natural da palavra, casos isolados e pouco frequentes de transgresso de boas prticas, ou so to frequentes, habituais, constantes e tolerados que nem sequer podem ser chamados de abusos. No primeiro caso, sero corrigidos automaticamente. No segundo, seria intil tentar corrigi-los, uma vez que sua frequncia e sua espontaneidade indicam que no so anmalos, mas o resultado inevitvel de maus usos, contra os quais, sim, devemos lutar, e no contra os abusos. Todo movimento de reforma limitada correo dos abusos grosseiros cometidos em nossa universidade desembocar certamente numa reforma por igual grosseira. O que importa so os usos. Mais ainda, um sinal claro de que as prticas de uma instituio so corretas est em que possa suportar, sem sofrer grandes abalos, boa dose de abusos, tal como o homem saudvel que capaz de suportar determinados excessos que destruiriam uma pessoa doente. Por outro lado, porm,
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Textos retirados do livro Misin de la Universidad y Otros Ensayos Afines, de 1930, em sua quarta edio, de 1965, pela Revista de Occidente, Madri. Os trechos selecionados foram traduzidos por Gabriel Periss.
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uma instituio no pode fundamentar-se em bons usos se no estiver devidamente orientada por sua misso. Uma instituio uma mquina. Sua estrutura e seu funcionamento devem estar predeterminados em vista do servio que ela prestar. Em outros termos, a base da reforma universitria consiste em ser plenamente fiel sua misso. Toda mudana, aperfeioamento ou retoque que se faam nessa casa, sem que se tenha pensado com clareza enrgica, com determinao e veracidade no problema de sua misso, sero trabalhos de amor perdidos. Se assim no se fizer, todas as tentativas de melhoria, mesmo aquelas que j se realizaram com a melhor das intenes, incluindo os projetos elaborados pelo prprio Conselho Universitrio ao longo dos ltimos anos, foram e sero sempre ineficazes e inteis. No conseguiro atinar com o nico elemento que, de modo suficiente e imprescindvel, faz com que um ser individual ou coletivo exista em plenitude. Para que um ser atinga tal plenitude, precisamos posicion-lo em sua verdade, precisamos concederlhe sua autenticidade, sem querer transform-lo naquilo que ele no , falsificando arbitrariamente o seu destino inelutvel. Dentre as tentativas feitas nos ltimos quinze anos, as melhores deixemos de lado as piores , em lugar de abordar diretamente, sem subterfgios, a questo para que existe a universidade, para que est a e por que deve estar?, optaram pela atitude mais cmoda e estril: olhar de esguelha para o que estava sendo feito nas universidades de pases que consideramos nossos modelos. No critico o fato de procurarmos informaes nesses pases. Ao contrrio, considero que devemos faz-lo, mas sem que isso nos exima de discernir e procurar originalmente nosso prprio destino (...).A misso da universidade (pp. 22-26)
Qual a misso da universidade? Para investigar essa questo, pensemos detidamente no que, de fato, a universidade significa40
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hoje, dentro e fora da Espanha. Apesar das diferenas que haja entre elas, todas as universidades europeias exibem, de modo geral, uma fisionomia homognea. Numa primeira aproximao, percebemos em vrios pases que a universidade a instituio na qual se encontram quase todos aqueles que cursam o ensino superior. O quase refere-se s escolas especiais, cuja existncia, paralela da universidade, ensejaria um problema tambm paralelo. Feita essa ressalva, podemos descartar o quase e reconhecer que na universidade se concentra a oferta de cursos de nvel superior. Contudo, descobrimos agora uma limitao mais importante do que a das escolas especiais. Os que esto no ensino superior no so todos aqueles que poderiam e deveriam estar. Quem frequenta a universidade so os jovens das classes abastadas. A universidade um privilgio dificil de justificar e defender. A presena dos operrios na universidade, por exemplo, um tema que permanece intacto. Por duas razes. Em primeiro lugar, se legtimo acreditar, como acredito, que devemos levar ao operrio o saber universitrio, porque esse saber valioso e desejvel. O problema de universalizar a universidade supe, portanto, determinar previamente em que consistem o saber e o ensino universitrios. Segunda razo: a tarefa de tornar a universidade acessvel ao operrio no tanto um problema da universidade, mas quase totalmente uma questo de Estado. Apenas uma grande reforma do prprio Estado efetivar a reforma universitria. Da o fracasso de todas as tentativas realizadas at agora, como a extenso universitria. O importante agora enfatizar que todos os que esto no ensino superior esto na universidade. Se no futuro esse nmero crescer, mais forte ainda sero os argumentos que apresento a seguir. Em que consiste esse ensino superior oferecido na universidade para uma legio imensa de jovens? Em duas coisas: a) no41
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ensino das profisses intelectuais; b) na pesquisa cientfica e na formao de futuros pesquisadores. A universidade forma o mdico, o farmacutico, o advogado, o juiz, o tabelio, o economista, o administrador pblico, o professor de cincias e letras para o ensino mdio etc. Alm disso, a universidade cultiva a cincia, pesquisando e ensinando a pesquisar. Na Espanha, essa funo criadora de cincia e formadora de cientistas ainda est reduzida ao mnimo, mas no por falha da universidade como tal ou por ela no acreditar que seja essa sua misso, mas porque ns, espanhis, estamos estigmatizados por uma notria falta de vocao cientfica e de qualidades para a pesquisa. Se na Espanha a cincia fosse praticada em abundncia, essa prtica se realizaria preferencialmente na universidade, como costuma ocorrer em todos os pases. Esse ponto serve de exemplo para no repetirmos o tempo todo que o persistente atraso da Espanha em todas as atividades intelectuais faz com que ainda estejam em estado embrionrio ou na condio de mera tendncia realidades que, em outros lugares, alcanaram pleno desenvolvimento. Para abordarmos de modo radical o problema universitrio, tal como estou comeando a fazer agora, essas disparidades entre universidades so irrelevantes. Basta-me o fato de que todas as reformas dos ltimos anos caracterizaram-se deliberadamente pelo propsito de ampliar em nossas universidades a pesquisa cientfica e a formao de cientistas, orientando a instituio inteira nesse sentido. No darei ateno s objees corriqueiras ou s de m-f. notrio que nossos melhores professores, os que mais influenciam no processo das reformas universitrias, pensam que nossa instituio deve equiparar-se nesse ponto ao que se vem realizando em outros pases. o suficiente para mim. O ensino superior consiste, portanto, em profissionalizao e pesquisa. Sem enfrentar, agora, o tema, observemos de passagem a nossa surpresa ao ver juntas e fundidas duas atividades to
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dspares. Porque, sem dvida, ser advogado, juiz, mdico, farmacutico, professor de latim ou de histria num colgio de ensino mdio so coisas bem diferentes do que ser jurista, fisiologista, bioqumico, fillogo etc. Aqueles correspondem a profisses prticas, e estes a atividades puramente cientficas. Por outro lado, a sociedade precisa de muitos mdicos, farmacuticos, pedagogos, mas apenas de um pequeno nmero de cientistas. Se precisasse realmente de muitos cientistas seria catastrfico, porque a vocao para a cincia especialssima e rara. Surpreende, por isso, a juno entre o ensino profissional, que para todos, e a pesquisa cientfica, que para muito poucos. Mas adiemos ainda essa questo por mais algum tempo. No haver no ensino superior algo alm da profissionalizao e da pesquisa? primeira vista no descobrimos uma terceira possibilidade. No entanto, analisando minuciosamente os currculos dos cursos ministrados, percebemos que quase sempre se exige do aluno que, alm da aprendizagem profissional ou do trabalho de pesquisa, estude disciplinas de carter geral como filosofia e histria.Universidade e liderana (pp. 31-32)
A sociedade precisa de bons profissionais juzes, mdicos, engenheiros , e por isso temos o ensino profissional na universidade. Mas antes disso, e mais do que isso, precisa garantir a capacitao em outro tipo de profisso: a de mandar. Em toda sociedade h aqueles que mandam, seja um grupo ou classe, sejam poucos ou muitos. Mais do que o exerccio jurdico de uma autoridade, eu entendo por mandar a presso e a influncia que, de modo difuso, o corpo social recebe. Hoje em dia, o mando exercido nas sociedades europeias pelas classes burguesas, cujos integrantes, em sua maior parte, so profissionais. As classes burguesas preocupam-se, portanto, em que esses profissionais, alm de possurem um conhecimento especfico relativo sua profis43
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so, sejam capazes de viver e influenciar vitalmente segundo a exigncia dos tempos. Por isso, inevitvel criar, de novo, na universidade, o ensino da cultura ou do sistema das ideias vivas do nosso tempo. Essa a tarefa universitria fundamental. Nisso a universidade deve consistir, antes de qualquer outra coisa.A universidade e ensino da cultura (pp. 34-36)
No h outra soluo: para orientar-se corretamente no meio da selva da vida, preciso ser culto, preciso conhecer a topografia, os caminhos ou mtodos. Ou seja, preciso ter uma ideia do espao e do tempo em que se vive, ter uma cultura atual. Ora, essa cultura ou recebida ou inventada. Quem tiver a fibra necessria para comprometer-se a, sozinho, inventar essa cultura, fazendo por sua prpria conta o que a humanidade fez ao longo de trinta sculos, ser a nica pessoa com direito a negar que a universidade se encarregue, como prioridade, do ensino da cultura. Infelizmente, esse nico ser que poderia opor-se minha tese com fundamento seria... Um louco. Foi necessrio aguardar o incio do sculo XX para assistirmos a um espetculo incrvel, o espetculo de peculiar brutalidade e agressiva estupidez com que se comporta um homem que sabe muito de uma determinria rea do conhecimento e ignora inteiramente todas as outras. A profissionalizao e o especialismo, no devidamente contrabalanados, despedaaram o homem europeu que, por isso mesmo, se encontra ausente de todos os lugares onde pretende e precisaria estar. No engenheiro est a engenharia, que apenas uma parte e uma dimenso do homem europeu. Este, contudo, que um integrum, no est em seu fragmento engenheiro. E o mesmo ocorre em todos os outros casos. Quando as pessoas dizem que a Europa est despedaada, acreditando empregar uma expresso rebuscada e exagerada, esto dizendo uma verdade maior do que podem imaginar. Com efeito, o hoje visvel des-
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moronamento da nossa Europa resultado da invisvel fragmentao que o homem europeu tem sofrido progressivamente. A grande tarefa que devemos realizar, quanto antes, se assemelha a montar um quebra-cabea. necessrio reunir as partes dispersas disjecta membra , reconstruindo a unidade vital do homem europeu, conseguir que cada indivduo ou evitemos utopismos que ao menos um bom nmero de indivduos torne-se, cada um por si, esse homem ntegro. Quem mais poderia realizar essa tarefa seno a universidade? A nica soluo acrescentar s tarefas que a universidade j se dispe a desempenhar, esta outra, imprescindvel e de suma importncia. Por isso, fora da Espanha, difunde-se com grande empenho um movimento para cujo sucesso o ensino superior deve tornar-se ensino da cultura ou transmisso nova gerao do sistema de ideias sobre o mundo e o homem que alcanou a maturidade na gerao anterior. Em ltima anlise, o ensino universitrio surge-nos integrado por estas trs funes: 1) Transmisso da cultura. 2) Ensino das profisses. 3) Pesquisa cientfica e formao de novos cientistas.Universidade e autenticidade (pp. 37-38)
(...) O pecado original consiste em no ser autenticamente o que se . Podemos desejar ser o que quisermos, mas no lcito fingir que somos o que no somos, consentir no autoengano, habituarmo-nos mentira substancial. Quando o modo de agir de uma pessoa ou de uma instituio falso, dele brota uma desmoralizao ilimitada, da qual mais tarde decorre o aviltamento. impossvel aceitar a falsificao de si mesmo sem perder o autorrespeito. Por isso j dizia Leonardo da Vinci: Chi non pu quel che vuol, quel che pu voglia (Quem no pode o que quer deve querer o que45
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pode). Esse imperativo leonardesco deve ser assumido por aqueles que iro dirigir radicalmente a implantao de toda e qualquer reforma universitria. Somente uma vontade apaixonada de ser o que estritamente se pode criar alguma coisa. No s no mbito universitrio. Toda vida nova tem de ser feita com uma matria cujo nome autenticidade prestem ateno nisso, caros jovens, caso contrrio ficaro perdidos, como j comeam a ficar. Uma instituio em que se finge dar e exigir o que no pode nem exigir nem dar uma instituio falsa e desmoralizada. No entanto, esse princpio do fingimento inspira todos os planos e a estrutura da universidade atual. Por isso, acredito que inevitvel virar a universidade do avesso ou, em outras palavras, reform-la radicalmente, partindo do princpio oposto. Em vez de ensinar segundo um desejo utpico, deveria ensinar-se, necessrio que se ensine apenas o que se pode ensinar, ou seja, o que se pode aprender.A gnese do ensino (pp. 40-44)
(...) Por que a espcie humana realiza atos econmicos, de produo, administrao, cmbio, poupana, negociao etc.? Por uma nica e espantosa razo: porque muito do que desejamos e precisamos ter no existe em absoluta abundncia. Se tudo aquilo de que temos necessidade estivesse fartamente disponvel, no teria passado pela cabea do ser humano fazer tantos esforos econmicos. O ar, por exemplo, no costuma gerar ocupaes que possamos chamar de econmicas. Contudo, basta que o ar se torne escasso de algum modo, e imediatamente surgem atividades vinculadas economia. Pensemos num grupo de crianas dentro de uma sala de aula. Se a sala pequena, o ar no suficiente para os que l esto, o que provoca um problema econmico, obrigando a que se construam escolas maiores e, por consequncia, mais caras.
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Embora haja no planeta ar de sobra, nem todo ar possui a mesma qualidade. O ar puro s existe em determinados lugares da terra, a certa altura acima do nvel do mar, sob determinado clima. Ou seja, o ar puro escasso. Esse simples fato provoca uma intensa atividade econmica entre os suos hotis, sanatrios , que, lanando mo da escassa matria-prima de seu ar puro, fabricam sade diariamente. A coisa, repito, de uma simplicidade espantosa, mas inegvel. A escassez o princpio da atividade econmica, e por isso, faz alguns anos, o economista sueco Gustav Cassel renovou a cincia econmica com a lei da escassez. Se existisse o movimento contnuo no haveria necessidade da fsica, disse Einstein muitas vezes. Onde no h atividades econmicas tambm no existe a cincia da economia. Ora, com o ensino ocorre algo semelhante. Por que existem atividades docentes? Por que o ser humano se ocupa e se preocupa com a pedagogia? Os romnticos davam a essas perguntas as respostas mais claras, comoventes e transcendentes, fundindo nelas tudo o que humano e boa poro do divino. Para eles, as coisas eram sempre tratadas verborragicamente como algo extraordinrio, exorbitante, melodramtico. Ns, porm certo, meus jovens? , preferimos com simplicidade que as coisas sejam to somente e primeira vista o que so, e nada mais. Gostamos das coisas em sua nudez. No tememos o frio e as intempries. Sabemos que a vida e certamente ser difcil. Aceitamos sua crueza. No tentamos sofisticar o destino. A vida dura nem por isso deixa de ser magnfica. Pelo contrrio, se dura, slida, enxuta: tendo e nervo. A vida , sobretudo, despojada. Queremos despojamento e limpeza em nosso relacionamento com as coisas. E por esse motivo que as desnudamos e, nuas, so banhadas pelo nosso olhar. Queremos ver o que elas so in puris naturalibus.
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O ser humano se ocupa e se preocupa com o ensino por uma razo to simples quanto severa e to severa quanto lamentvel. Para viver com firmeza, desenvoltura e honestidade preciso saber enorme quantidade de coisas. E o fato que a criana e o jovem tm uma capacidade limitadssima de aprender. Se a infncia e a juventude durassem cada uma cem anos, ou se a criana e o jovem possussem memria, inteligncia e ateno em dose praticamente ilimitada, no haveria atividade docente. Todas aquelas razes comoventes e transcendentais jamais teriam obrigado o homem a dar consistncia a um tipo de existncia humana que se chama professor. A escassez, a limitao da capacidade de aprender, o princpio da instruo. Precisamos nos preocupar com o ensino na medida exata da dificuldade para aprender. Teria sido por acaso que a atividade pedaggica s entrou em erupo em meados do sculo XVIII e desde ento no deixou de crescer? Por que isso no aconteceu antes? A explicao simples: foi nessa poca que se deu a primeira grande colheita da cultura moderna. Em pouco tempo, o tesouro de efetivo saber humano aumentou gigantescamente. A vida, entrando em cheio no novo capitalismo, graas s recentes invenes, adquiriu grande complexidade e exigiu um crescente conjunto de tcnicas. Porque se tornava imprescindvel saber muitas coisas, num volume que ultrapassava a capacidade de aprender, intensificou-se e ampliou-se tambm a atividade pedaggica, o ensino. Ao contrrio, quase no h ensino nas pocas primitivas. Para que, se pouco h para ensinar, se a faculdade de aprender supera em muito a matria assimilvel? H capacidade de sobra. So poucos os saberes: algumas frmulas mgicas e ritualsticas para fabricar utenslios trabalhosos por exemplo, a canoa , ou para curar doenas e esconjurar os demnios. isto o que h para ensinar. Mas precisamente por ser to pouco, qualquer um, sem grandes esforos, poderia aprender. E por isso verificamos um fenmeno
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surpreendente, que acaba por confirmar minha tese do modo mais inesperado. De fato, nos povos primitivos, o ensino aparece de modo invertido. A funo de ensinar quem diria? consistir em ocultar. Aquelas frmulas sero guardadas como um segredo de poucas pessoas, transmitido como algo misterioso. que todos poderiam aprender de modo imediato. Da o fato universal dos ritos tcnicos secretos.O princpio da economia do ensino (pp. 44-45)
(...) Hoje, mais do que nunca, o excesso de riqueza cultural e tcnica ameaa transformar-se numa catstrofe para a humanidade. A cada nova gerao torna-se mais difcil ou impossvel absorv-la. urgente, portanto, instaurar a cincia do ensinar, seus mtodos, suas instituies, partindo de um princpio humilde e despojado: a criana ou o jovem um discpulo, um aprendiz. E isso significa que no pode aprender tudo o que se deveria ensinar a ele. Eis o princpio da economia do ensino. Essa considerao, como no poderia deixar de ser, sempre esteve presente na ao pedaggica, mas somente pela fora das coisas e de modo secundrio. Jamais se fez dela um princpio, talvez por no possuir tom melodramtico, no falar de coisas complicadas e transcendentes. A universidade, tal como a vemos fora da Espanha, mais do que na Espanha, um bosque tropical de ensinamentos. Se a eles acrescentamos o que, conforme dizia antes, parece imprescindvel o ensino da cultura , o bosque cresce at cobrir o horizonte da juventude, horizonte esse que deve estar iluminado, aberto, deixando visveis os incndios que provocam comportamentos radicais. A nica forma de remediar essa situao investir contra essa imensido, usando o princpio da economia como um machado. Em primeiro lugar, portanto, podar sem contemplaes. O princpio da economia no sugere apenas que seja preciso economizar, ensinar menos, mas implica tambm que a organiza49
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o do ensino superior, a construo da universidade, partam do estudante, e no do saber ou do professor. A universidade tem de ser a projeo institucional do estudante, cujas dimenses essenciais so: o que ele , com diminuta capacidade para adquirir saber, e o que ele precisa saber para viver.O estudante mdio e o que se pode aprender de verdade (pp. 46-47)
preciso partir do estudante mdio e considerar como ncleo da instituio universitria, como seu tronco ou figura primeira, to somente aquele corpo de ensinamentos que rigorosamente pode ser exigido, ou, em outras palavras, aquele saber que um bom estudante mdio pode realmente aprender. Repito que essa a universidade em seu sentido primeiro e estrito. Veremos mais tarde como a universidade deve ter outras dimenses no menos importantes. Agora, o importante no fazer confuses, distinguindo com energia os diferentes rgos e funes da grande instituio universitria. E como determinar o conjunto de ensinamentos que deve constituir o tronco ou o minimum de universidade? A resposta que devemos submeter essa incrvel multido dos saberes a uma dupla seleo: 1) Preservando somente aqueles saberes estritamente necessrios para a vida do homem que hoje estudante. A vida efetiva e suas inevitveis urgncias o ponto de vista que deve dirigir a podada inicial. 2) O que foi definido como o estritamente necessrio ainda tem de ser reduzido ao que de fato o estudante pode aprender com tranquilidade e plenitude.Distino entre profisso e cincia (pp. 49-52)
Devemos, antes de tudo, distinguir profisso de cincia. Cincia no uma coisa qualquer. No cincia adquirir um microsc-
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pio ou varrer o cho de um laboratrio, mas tambm no explicar ou aprender o contedo de uma cincia. Em sentido prprio e autntico, cincia to somente pesquisa: levantar problemas, trabalhar para resolv-los e formular uma soluo. Alcanada essa soluo, tudo o que se venha a fazer com ela no mais cincia. Por isso, no cincia aprender uma cincia e ensin-la, bem como no cincia utiliz-la ou aplic-la. Talvez seja conveniente mas com reservas que o homem encarregado de ensinar cincia seja ele prprio um cientista. Mas, sendo rigorosos, no necessrio e, de fato, existiram e existem professores de cincias formidveis que no so pesquisadores, que no atuam como cientistas. Basta que saibam sua cincia. Mas saber no pesquisar. Pesquisar descobrir uma verdade ou seu contrrio, demonstrando um erro. Saber simplesmente inteirar-se bem dessa verdade, possu-la uma vez que tenha sido produzida, obtida (...). Dentre as coisas que o ser humano faz e produz, a cincia uma das mais elevadas. E , diga-se claramente, algo mais elevado do que a universidade, encarada como instituio docente. Porque a cincia criao, ao passo que a ao pedaggica se prope unicamente a ensinar essa criao, transmiti-la, injet-la e digeri-la. to elevada a cincia, que delicadssima e queiramos ou no exclui o homem mdio. Implica uma vocao peculiarssima e rara na espcie humana. O cientista o monge moderno. Pretender que o estudante normal seja um cientista uma pretenso ridcula que acabou por contrair (as pretenses se contraem como as gripes e outras infeces) o vcio do utopismo, to caracterstico das geraes passadas. No algo que se deva desejar, nem mesmo idealmente. A cincia uma das coisas mais altas, mas no a nica. H outras realidades ao seu lado to dignas quanto ela, e no h motivo para que descarte essas outras e queira ocupar todos os espaos. Alm disso, a cincia pertence ao mais elevado; a cincia, mas no o cientista. O homem de cincia um modo de
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existncia humana to limitado como outro qualquer, e at mesmo mais do que outros modos imaginveis e possveis. (...) O valioso e maravilhoso o que esse homem limitadssimo segrega: a prola. A prola, e no a ostra que a produz. No faz sentido idealizar nem apresentar como ideal que todos os homens se dediquem cincia. Precisamos compreender todas as condies prodigiosas, umas, outras perversas que normalmente tornam possvel o surgimento do cientista.Ser profissional (pp. 53-55)
Quem tiver vocao para ser mdico, no queira flertar com a cincia: far cincia sem substncia. mais do que suficiente ser bom mdico. A mesma coisa com relao ao professor de Histria no ensino mdio. No uma falha obrigar esse futuro professor, na universidade, a acreditar que se tornar um historiador? O que se ganha com isso? apenas perda de tempo fazer que ele estude as tcnicas necessrias para a cincia da Histria, uma vez que ele ser professor de Histria, e deveria dedicar-se a ter uma ideia clara, estruturada e simples do panorama geral da histria humana que ser sua misso ensinar. Tem sido desastrosa a tendncia de tornar a pesquisa algo predominante na universidade. Essa tendncia provocou a eliminao do principal, a cultura, e impediu que se cultivasse intensamente o propsito de formar profissionais ad hoc. Nas faculdades de medicina, deseja-se que se ensine fisiologia de altssimo nvel ou primorosa qumica... Mas talvez, em nenhuma faculdade do mundo, algum se ocupe seriamente em pensar em que consiste ser, atualmente, um bom mdico, qual deve ser o mdico do nosso tempo. A profisso, que depois da cultura o mais urgente, deixase ao deus-dar. Mas o prejuzo provocado por essa confuso recproco. Tambm a cincia sofre quando se aproxima utopicamente das profisses.
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O pedantismo e a ausncia de reflexo fomentaram esse vcio de cientificismo de que a universidade padece. Na Espanha, essas duas atitudes deplorveis comeam a se tornar obstculos gravssimos. Qualquer p-rapado que estagiou por seis meses num laboratrio ou numa sala de aula na Alemanha ou nos Estados Unidos, qualquer pobre-diabo que fez uma descobertazinha cientfica, volta sua terra natal convertido em novo-rico da cincia, num parvenu da pesquisa. Sem ter refletido quinze minutos sobre a misso da universidade, prope as reformas mais ridculas e pedantes. E ao mesmo tempo incapaz de ensinar sua disciplina, pois no a conhece como deveria conhecer. preciso, portanto, sacudir a rvore das profisses para que dela caia o excesso de cincia, ficando apenas o necessrio, e as profisses possam ento ser ensinadas, algo que hoje est completamente abandonado. Nesse ponto, tudo por ser feito. Uma engenhosa racionalizao pedaggica permitiria ensinar as profisses de modo muito mais eficaz e completo, em menos tempo e com muito menos esforo.Vida humana e cultura (pp. 56-60)
Nos ltimos cinquenta anos, a medicina deixou-se atropelar pela cincia, e, infiel sua misso, no soube afirmar devidamente seu ponto de vista profissional. Cometeu o pecado de toda essa poca: no aceitar seu destino, desviar o olhar, querer ser o outro, no caso da medicina, querer ser cincia pura. No confundamos, portanto. A cincia, ao entrar na profisso, tem de desarticular-se como cincia, para organizar-se de acordo com outro centro e outro princpio, como tcnica profissional. E se isso verdadeiro para a cincia, tambm o para o ensino das profisses. Algo semelhan