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8/11/2019 Os Bens Comuns_modelos de Gesto Dos Recursos Naturais
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Os benscomuns
modelo de gesto
dos recursos
naturais
Commons
a model formanaging natural
resources
N606/2012
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Os benscomuns
modelo de gesto
dos recursosnaturais
Commonsa model for
managing natural
resources
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A revistaPasserelletem por objetivo divulgar e valorizar as experincias, as anlises
e as propostas de diversos atores de mudanas sociais. Cada nmero rene e faz
dialogarem contribuies oriundas de associaes e ONG, mdias, sindicatos, cida-
dos e pesquisadores sobre um determinado tema.
A revistaPasserelle publicada, habitualmente, por ocasio dos encontros Mercredis
de la Coredem, que perseguem a mesma finalidade: a criao de espaos livres
de debates, convergncias e propostas.
Todos os nmeros da revista esto disponveis on line:
www.coredem.info
CoredemA Coredem um espao de compartilhamento de conhecimentos e prticas dos e
para os atores de mudana. Cerca de vinte organizaes, redes, compartilham desde
j suas informaes e anlises para facilitar o acesso on lineaos seus documentos.
A Coredem aberta a organizaes, redes, movimentos e mdias que fazem de suas
experincias, propostas e anlises ferramentas a servio das sociedades solidrias,sustentveis e responsveis.
RitimoA revistaPasserelle publicada pela Ritimo, rede de informao e documentao
em prol da solidariedade e do desenvolvimento sustentvel. A Ritimo acolhe o
pblico, divulga campanhas cidads e organiza eventos e cursos em 90 locais na
Frana. A Ritimo tambm est empenhada na difuso de informao e documen-
tao na Internet atravs de seu portal de informao internacional disponvel emquatro lnguas, o Rinoceros, sitede experincias cidads, do sitedph e da pgina
da Coredem.
www.rinoceros.org, www.d-p-h.info, www.ritimo.org
A iniciativa Coredem apoiada pela Fundao Charles Lopold Mayer para o Pro-
gresso do Homem:
www.fph.ch
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Passerelle is a journal dedicated to promoting and fostering the experience,
reflections and proposals of the many individuals and groups involved in positive
social change. Each issue is an attempt to weave together various contributions
from NGOs, civil society groups, media, trade unions, social movements, academics
and citizens around a specific issue.
Each new issue of Passerelle is often published in conjunction with public confer-
ences (in France or elsewhere), which pursue a similar objective: creating a space
for dialogue, mutualisation and building common ground between promoters of
social change.
All issues are available online at:
www.coredem.info
CoredemCoredem is an online platform dedicated to mutualising the knowledge and practices
of agents of social change. About 20 organisations and networks are currently
involved in the project, which is all about making their informational resourcesand documents easier to access and share, using, for instance, a specific search
engine. Coredem is open to any organisation, network, social movement or media
who conceive the information, experience and proposals they produce as building-
blocks for fairer, more sustainable and more responsible societies.
RitimoPasserelle is a publication of Ritimo, a French network for information and
documentation on international solidarity and sustainable development. In 90locations throughout France, Ritimo members are involved in: maintaining public
information centres on global issues; organising civil society campaigns at local
and national scale; developing training sessions, school activities and public events.
Ritimo is actively involved in producing and disseminating documents and infor-
mation online in several languages, through its international information portal
rinoceros, its citizen experience database dph and through the Coredem website.
www.rinoceros.org, www.d-p-h.info, www.ritimo.org
The Coredem initiative is supported by the Charles Lopold Mayer Foundationfor the Progress of Humankind:
www.fph.ch
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SumrioIntroduo 6
PORQUE BENSCOMUNS? 9
Rede de Vida 10
SILKE HELFRICH
Bens comuns e Bem viver 16
CNDIDO GRZYBOWSKI
Questes sobre os bens comuns 20
ALAIN LIPIETZ
A reinveno dos comuns fsicos e dos bens pblicos sociais 27na era da informao
PHILIPPE AIGRAIN
TERRA, GUA, PESCA, SEMENTES 36
Propriedade da terra: 37um questionamento conceitual agora incontornvel
MICHEL MERLET
O comum das guas, a cidadania das guas 43e a segurana das guas
BUENAVENTURA DARGANTES, MARY ANN MANAHAN,
DANIEL MOS AND V. SURESH
A questo da sobrecapacidade e dos direitos de pesca 51
Resposta ao Livro Verde das Pescas da Comisso Europeia
ALAIN LE SANN
Sementes: os direitos coletivos dos camponeses, dos jardineiros 55
e das comunidades contra os direitos de propriedade intelectualGUY KASTLER
A grande compresso: geopirateando o restante dos comuns 63
PAT MOONEY
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ContentsIntroduction 72
WHY THE COMMONS? 75
Web of life 76
SILKE HELFRICH
Commons and the Good Life 81
CNDIDO GRZYBOWSKI
Questions about the Commons 85
ALAIN LIPIETZ
Reinventing physical commons and social public goods 92in the information era
PHILIPPE AIGRAIN
LAND, WATER, FISHERIES, SEEDS 100
Land Ownership: 101A Fundamental Critique of Its Key Concepts is Necessary
MICHEL MERLET
Water Commons, Water Citizenship and Water Security 106BUENAVENTURA DARGANTES, MARY ANN MANAHAN,
DANIEL MOS AND V. SURESH
Overcapacity and Fishing Rights 113
A Response to the European Commissions Green Book on fisheries
ALAIN LE SANN
Seeds: The Collective Rights of Farmers, Gardeners 117and Communities versus Intellectual Property Rights
GUY KASTLER
The big squeeze: Geopirating the remaining commons 124
PAT MOONEY
Lista de sites / List of websites 131
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6
6
INTRODUOOs comuns,um modelo de futuro
OLIVIER PETITJEAN
A
o longo da histria, as sociedades inventaram e desenvolveram, princi-
palmente em escala local, modos de gesto coletiva dos recursos naturais
visando a assegurar sua sobrevivncia e sua prosperidade: os comuns.
Tratava-se, em certos casos, de administrar a relativa raridade desses
recursos e de prevenir os conflitos que essa raridade poderia gerar; muitas vezes,a escolha de um tipo de gesto correspondia simples constatao de que este
permitiria que uma maior quantidade de recursos disponveis fosse mais bem apro-
veitada, preservando-os, ao mesmo tempo, para as geraes futuras e garantindo,
desse modo, as condies da perpetuao e da renovao de suas sociedades.
Essas formas de gesto sobreviveram, evoluindo at hoje, inclusive nos pases do
Norte. No entanto, os modelos dominantes de desenvolvimento (desde o capitalismo
das grandes empresas at ao capitalismo de Estado) tenderam a destruir delibera-
damente ou, ao menos, a marginalizar essas formas de gesto, apresentadas comoarcaicas. Na realidade, esses comuns esto muito longe de serem ineficientes
em termos de gesto e preservao dos recursos naturais, a no ser que sejam
considerados segundo os critrios de riqueza e desenvolvimento utilizados hoje
para medir os limites ambientais e sociais.
Os trabalhos aqui reunidos tm por objetivo demonstrar, atravs da apresentao
de experincias concretas e de anlises oriundas de diversas redes e organizaes
da sociedade civil militante, que os comuns so um modelo de futuro para enfrentaras situaes de crise social e ambiental observadas em todo o planeta e os desafios
globais, como a mudana climtica. Um modelo que oferece muito mais garantias
em termos de proteo da integridade do mundo natural, de sustentabilidade,
de democracia e de justia social que os modelos atualmente privilegiados pelos
governos, pelas grandes empresas e pelas instituies internacionais.
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INTRODUCTIONOS COMUNS, UM MODELO DE FUTURO
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Nestas ltimas dcadas, o tema dos comuns tambm assumiu uma importncia
primordial no campo do saber, da cultura, da informtica, da comunicao e at
mesmo da sade, diante do desenvolvimento e do fortalecimento da propriedade
intelectual em prol de algumas grandes empresas multinacionais.
Seja l o que possa parecer, existem passarelas entre esses dois campos dos comuns,
materiais e naturais de um lado, imateriais e culturais do outro. Em primeiro lugar e
de modo muito simples, existem inspirao e fecundao recprocas entre diferentes
formas e diferentes modelos de criao e governana dos comuns. Em seguida,
o campo da propriedade intelectual passa a se estender a uma parte significativa
desses prprios recursos naturais atravs da artificializao e da privatizao das
sementes, da biopirataria e das patentes sobre os organismos vivos. impossvel
separar a parte material da biodiversidade (as plantas e os animais e o seu meio
ambiente) de sua parte imaterial (os conhecimentos tradicionais das comunidades
que os mantiveram). Inversamente, a propriedade intelectual tambm se torna um
fator de privatizao de bens comuns, como a gua ou o clima, a partir do momento
em que sua gesto se torna cada vez mais dependente de inovaes tecnolgicas
(tecnologias limpas, tratamento e dessalgamento da gua etc.).
Enfim, os comuns naturais no devem ser necessariamente pensados em termos
de diviso (partilha de um bolo), mas assim como no campo do imaterial e do
conhecimento em termos de multiplicao: as comunidades cuidam dos recursosnaturais, asseguram sua renovao e, ao compartilh-los, elas multiplicam seus
usos e seus usurios.
Hoje, estamos sendo continuamente entretidos com as vrias crises que ameaam
nosso planeta crise climtica, crise alimentar, crise da gua, crise da pesca...
Os recursos esto se rarefazendo, anunciam-nos, sem que se pergunte se essa
rarefao no estaria relacionada com um modelo particular de desenvolvimento.
A dimenso dos problemas imporia um recurso cada vez mais frequente s
solues que so, elas mesmas, a origem dessas crises: o desapossamento dascomunidades locais, a extenso da esfera mercantil, o salto no escuro tecnolgico,
a concentrao dos poderes em benefcio de grandes atores polticos, cientficos
e, sobretudo, econmicos resumindo, um prosseguimento da privatizao dos
comuns.
Esse processo j foi amplamente iniciado. Os comuns no pararam de perder terreno
ao longo do sculo XX, mas esse declnio se acelerou na ltima dcada. Em nome
da gesto racional da pesca, da gua, das terras agrcolas ou da atmosfera, novasexpropriaes vm acontecendo em todo o planeta. Territrios so confiscados em
nome da luta contra o desmatamento, e suas florestas primrias so substitudas por
plantaes. Os camponeses se veem obrigados a aceitar sementes melhoradas, com
seu lote de adubos e tratamentos fitosanitrios. A gua e as terras agrcolas so
apropriadas por grandes empresas em nome de seu desempenho pretensamente
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INTRODUCTIONOS COMUNS, UM MODELO DE FUTURO
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superior uma superioridade que, quando existe, provm da no assuno da
renovao dos recursos naturais e de um uso intensivo do carbono fssil sob todas
as suas formas (adubos, transportes etc.).
Muitos atores gostariam que o encontro Rio + 20 servisse apenas para legitimaressa lgica de privatizao com a etiqueta da economia verde. Trata-se, com a
financiarizao dos recursos naturais, de consagrar de modo definitivo o reino
sem compartilhamento da propriedade privada, para assim se impor diante das
resistncias que emergiram de todas as partes contra a mercantilizao acelerada
da vida. Por isso nos pareceu necessrio preparar uma nova edio deste caderno,
cuja primeira verso foi publicada em francs h dois anos. De l para c, cresceu
o nmero de organizaes da sociedade civil e de movimentos sociais que se
apropriaram da temtica dos bens comuns, e passarelas esto se erguendo entre
setores e combates aparentemente distanciados, que vo desde sementes at os
softwareslivres.
indubitvel que os comuns devem evoluir no mesmo ritmo que o mundo. A realidade
das interdependncias faz com que nem sempre seja suficiente abordar os problemas
em escala unicamente local. Os comuns do futuro devem ser, em parte, defendidos
e preservados, em parte, reconstrudos e, em parte, inventados, tomando-se por
base a experincia acumulada. Em alguns casos, isso implicar que as populaes
do Sul ensinem novamente s populaes do Norte o que estas, em parte, perderamde vista. A partir de agora, o fortalecimento das trocas entre sociedades civis,
movimentos sociais e comunidades titulares de bens comuns naturais ou culturais,
o reconhecimento de sua capacidade de auto-organizao e de inovao social,
a inveno de polticas pblicas em harmonia com os comuns devem estar na
ordem do dia.
Tambm preciso que novas articulaes entre o local e o mundial sejam construdas
para que os comuns sejam fortalecidos e desenvolvidos em prol, ao mesmo tempo,
das sociedades locais que deles dependem e do planeta como um todo. Os recentesencontros internacionais sobre o clima demonstraram de modo retumbante como
o comum mundial se tornou uma realidade assim como mostraram de modo
igualmente manifesto a incapacidade do atual modelo interestatal de assumir a
responsabilidade sobre esse comum. A conferncia da ONU h de marcar um avano
em direo a uma maior integrao e a um maior reconhecimento do modelo dos
bens comuns no sistema internacional e no o grande retrocesso que consistiria
em aceitar que os comuns naturais fossem definitivamente colocados nas mos
de um punhado de grandes empresas transnacionais.
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PORQUE
BENSCOMUNS?
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PARTE IPORQUE BENSCOMUNS?
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10
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Rede de VidaSILKE HELRICH
Silke Helrich co-fundadora de commons-blog:
http://commonsblog.wordpress.com. Ela responsvel pelo
escritrio regional da Fundao Heinrich Bll na Amrica Latina,editou vrios livros coletivos sobre os bens-comuns.
Quando falamos dos comuns, do que estamos falando?Um navio de cruzeiro faz escalas de porto em porto. No convs encontram-se
algumas cadeiras do tipo espreguiadeira, em nmero trs vezes menor do que
o de passageiros. Nos primeiros dias de viagem, as espreguiadeiras mudavam
de dono continuamente. Quando algum se levantava, a cadeira era consideradavaga, pois as toalhas de banho e outros smbolos de ocupao no eram reconheci-
dos como tais. Essa regra se mostrou apropriada para aquela situao especfica.
E funcionou bem, porque era simples: o uso era gratuito, mas de curto prazo!
Isso nos leva diretamente a um dos princpios de uma economia e de uma sociedade
que se baseia em bens comuns: Usar? Sim! Abusar? No!
Dessa forma, mesmo em nmero limitado, as espreguiadeiras no eram recursos
escassos.
Mais tarde, depois de zarpar de um porto em que novos passageiros embarcaram,
essa ordem sofreu um colapso. Os recm-chegados passaram a ocupar as cadeiras
e a reivindicar sua posse permanente. Assim, a maioria dos outros passageiros
no teve oportunidade de relaxar em uma espreguiadeira. Resultado: a escassez
predominou, surgiram conflitos, e dos passageiros a bordo sentiram-se pior do que
antes. (Basedo em H. Popitz,Phnomene der Macht [Fenmenos do poder].)
O que essa histria nos pode ensinar? Em primeiro lugar, que todos os comunsso formas de prosperidade compartilhada; ou, como diz Wolfgang Sachs: quando
falamos dos comuns, falamos de um segredo escondido de nossa prosperidade.
Tal mensagem forte, mas simples. Os comuns so uma rede de vida, afirma
Vandana Shiva. Na verdade, os comuns so a rede da vida em sua esfera natural,
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social, cultural e digital. Quando falamos dos comuns, falamos de qualidade de vida,do nosso futuro e do futuro de nossos filhos.
O problema que os comuns esto em toda parte, mas muitas vezes ficam invisveis
para ns. Podem ento se perder e, consequentemente, cair no esquecimento.
Eles se perdem pela fora bruta (ou seja, por ns mesmos, como no episdio do
navio), ou pela fora do dinheiro (ou seja, pelo mercado), ou pela ao do capito
(isto , pelo Estado). O resultado desse processo uma eroso dos comuns.
Assim, a verdadeira tragdia dos comuns (uma conhecida metfora cunhada porG. Hardin) que s tomamos conscincia deles e de seu enorme valor para ns
quando esto quase desaparecendo.
Sempre me perguntam: o que exatamente so os comuns?Temos o costume de fragmentar a complexidade em definies curtas, cientficas
e, supostamente, objetivas.
Algumas das teorizaes mais inovadoras sobre os comuns foram feitas por ElinorOstrom. Ela e suas colegas insistem em afirmar que no existe uma lista mestra
ou uma definio nica de comuns. Cada comum produto de uma circunstncia
histrica singular, de uma cultura local, de determinadas condies econmicas e
ecolgicas, e assim por diante.
No dia 9 de dezembro de 2009, durante uma tempestade de neve, os frequentadores da Times Square fizeram uma de guerra de bolade neve. Mesmo com o trfego reduzido por causa do tempo, acho que uma cena dessas no teria acontecido sem as medidas tomadasno vero passado em benefcio dos pedestres, afirma o fotgrafo Zokuga (cc-by-sa).
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PARTE IPORQUE BENSCOMUNS?
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Em vez de uma definio nica, devemos examinar o que todos os comuns tm
em comum.
O que a defesa da biodiversidade tem em comum com a luta por softwares e
hardwares livres?
Por que a batalha pelo acesso ao conhecimento e cultura a mesma daquela
por acesso gua e contra a mudana climtica?
Os comuns nos permitem unificar em pensamento o que est separado em nosso
esprito, mas que constitui uma unidade.
1.Todos os comuns compartilham uma funo. Os comuns so essenciais para ns,
sejam os naturais, os sociais ou os comuns do conhecimento: Os comuns naturais
so necessrios para nossa sobrevivncia, enquanto os comuns sociais garantem
a coeso social, e os comuns culturais, por sua vez, so indispensveis para dirigir-
mos nossas paixes com autonomia. (fonte:Manifest: Gemeingter strken. Jetzt!
[Manifesto: Fortalecimento dos comuns. J!])
2.Todos os comuns tm uma arquitetura: ou seja, podemos v-los como sistemascomplexos nos quais diversos componentes interagem. claro que essas arquite-
turas diferem muito entre si, mas todas se baseiam em trs elementos genricos
fundamentais.
Vejamos rapidamente alguns exemplos concretos do primeiro elemento: existe a
biodiversidade, a gua, nosso cdigo gentico, os algoritmos e as tcnicas culturais
que utilizamos para produzir conhecimento como ler e escrever; notas musicais
e ondas sonoras para transmitir msica, ou o espectro eletromagntico para trans-mitir informaes; o tempo de que dispomos, as regras do jogo, as informaes,
o conhecimento de que precisamos para conseguir um diagnstico mdico ou o
conhecimento compilado por milhes que wikipedianos, o cdigo digital dentro de
um programa de computador ou o silncio.
Elinor Ostrom
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E a capacidade atmosfrica de absorver emisses de CO2: todos esses so recursos
comuns. Todos ns temos o mesmo direito de utilizar tais recursos.
Um recurso comum o primeiro elemento fundamental da arquitetura dos comuns.
Qual o segundo?
Esta foto tem a legenda: Minha primeira cadeira guardadora de vaga para estacionar.
Existe, em muitos bairros de Boston, um ritual de inverno: quando comeam a cair os
primeiros flocos de neve, os engradados, as latas de lixo e as cadeiras saem das
casas. So usados para proteger o que alguns residentes insistem em chamar deseus espaos na rua. Pode-se pensar: mas os espaos no so deles quer dizer,
quem dono da rua?
Trata-se ainda de um comum, afirma Elinor Ostrom, porque os residentes, que
formam uma determinada comunidade, compartilham um entendimento comum do
modo como utilizar um recurso. Assim, em muitos bairros de Boston (no em todos),
entende-se que se voc limpar um espao na neve com uma p, voc ganha o direito
de estacionar ali at que a neve derreta. Voc assinala esse direito colocando uma
cadeira naquele espao. Novamente, como no exemplo do navio, a soluo consentirdireito de uso (temporrio) ao invs de direito exclusivo de propriedade privada.
Em outras palavras, a posse temporria diferente da propriedade eterna. Todos
podem tomar posse de um comum, desde que no o leve para longe dos outros
nem das geraes futuras!
A comunidade, o grupo de pessoas que compartilha um recurso comum, eis o nosso
segundo elemento fundamental. No caso da atmosfera e de outros comuns globais,esse grupo toda a humanidade.
Na verdade, deveramos falar dos comuns como verbo, no como substantivo. No
se trata da gua ou da atmosfera ou do cdigo por eles mesmos. Trata-se de ns,
das decises que tomamos.
Source: RodBegbie(cc-by-nd-sa)
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Para citar Peter Linebaugh: No h comuns sem comunizao.
O exemplo da vaga para estacionar demonstra maravilhosamente como um comum
pode ser idiossincrtico, diz meu colega David Bollier. Na Internet, onde os recursos
so bits intangveis de cdigos e de informaes, a governana dos comuns assumeformas muito diferentes. Cada comunidade define suas prprias regras. E esse o
terceiro elemento fundamental da arquitetura de um comum: um conjunto de regras
ditadas, na medida do possvel, pelo prprio grupo.
Uma sociedade com base em comuns ser fundamentada em regras criadas de
modo a manter e recriar automaticamente nossos comuns.
O que est errado e como mudar isso?Quem conhece este homem, levante a mo!
E este outro?
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Qual a razo da diferena?
Todos ns devemos muito a Tim Bernes-Lee. Contudo, a maioria de ns no o
conhece, nem por nome, nem por foto. Por outro lado, conhecemos bem o papel
de Bill Gates na economia atual.
Em 1989, Tim Berners-Lee criou a linguagem HTML (Hypertext Markup Language),
usada na descrio para pginas da Internet, e o respectivo protocolo HTTP.
Berners-Lee no patenteou suas ideias, nem suas implementaes tcnicas e, ainda,
garantiu que o World Wide Web Consortium (W3C) adotasse apenas padres no
patenteados.
Essa abordagem reflete uma ideia central dos comuns: a ideia de compartilhar, bem
como a importncia de abrir mo de controlar o que as pessoas fazem. As pginas
da Web so destinadas s pessoas, afirma Berners-Lee.
Ele contribuiu para os comuns de forma muito significativa e bem sucedida. Mas
o problema que nossa ideia de sucesso est ligada a velhos paradigmas, a saldos
contbeis, presena na mdia e a estratgias de negcios, independente de sua
contribuio para os comuns.
Se quisermos que os comuns tenham um lugar de destaque em nossa sociedade,
a ao dos atores econmicos, do Estado e do indivduo deve passar a ser medidacom base na contribuio que trazem aos comuns (e no ao PIB).
Quem quer que contribua para os comuns, em vez de apenas se valer deles, merece
prestgio e reconhecimento social. (fonte:Manifest: Gemeingter strken. Jetzt!)
Por essas razes, precisamos urgentemente de novas ideias e de novas histrias
para o sculo XXI.
H muitas maneiras de contribuirmos para os comuns, se focalizarmos radicalmenteem:
- Produo descentralizada, possibilitada por novos nveis de trabalho em rede com
ferramentais digitais.
- Cooperao em nvel local e global.
- Diversidade de recursos, comunidades, configuraes e regras.
- Relacionalidade que remete seguinte ideia: Eu preciso dos outros, e os outros
precisam de mim.
Tais so as ideias centrais que sustentam a mudana para uma sociedade funda-
mentada em comuns.
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Bens comunse Bem viverCNDIDO GRZYBOWSKI
Cndido Grzybowski socilogo e diretor do Instituto Brasileiro
de Anlises Sociais e Econmicas (Ibase)
A crise climtica virou senso comum. Com isso, vivemos um daqueles momentos
raros da histria humana em que possvel instaurar um debate sobre os prprios
fundamentos do nosso modo de vida. Basta extrair do senso comum o bom senso
transformador, no exato sentido que lhe deu Gramsci, falando da constituiode movimentos irresistveis de transformao com capacidade de conquista de
hegemonia na sociedade reconhecimento e convencimento poltico e cultural da
legitimidade e justeza da causa por amplos setores no interior da sociedade civil,
o bero da cidadania.
A civilizao dominante em que a riqueza de um povo medida por ter sempre
mais e mais bens, pela renda per capita, pela acumulao e crescimento do PIB foi
feita a pau e fogo, literalmente, durante alguns sculos da recente histria humana.
Conquista e colonizao, com escravido de povos inteiros; revoluo industrial e ummodo de vida baseado no produtivismo e consumismo sem limites; imperialismos e
guerras, mudando de mos e territrios, foram se sucedendo na medida da necessi-
dade, para garantir a dominao da tal civilizao, at hoje. A globalizao capitalista
das ltimas dcadas virou referncia para praticamente toda a humanidade.
Apesar do seu fascnio, conquistando coraes e mentes quase sem fronteiras, o fato
que o estilo de vida dessa civilizao tem a excluso social e a destruio ambiental
como pressuposto incontornvel. Da a importncia do senso comum sobre a criseambiental. Comea a surgir a conscincia que assim no d, o planeta no suporta.
Seriam necessrios cinco planetas para a humanidade inteira, os 7 bilhes que somos,
terem o nvel mdio dos norteamericanos. Pior, o tal footprint a pegada ecolgica
aponta que o planeta no teria recursos para prover a humanidade inteira se o
padro fosse a mdia brasileira. O jeito mudar. Mas eticamente no d para salvar
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o planeta e esquecer a humanidade. Como conciliar uma agenda de justia social e
justia ambiental? Eis a grande questo para a cidadania e a democracia. Esse o bom
senso a extrair como agenda transformadora no momento histrico que vivemos.
Crise da civilizaoAtrs da crise climtica precisamos mostrar a prpria crise de civilizao. Temos que
comear questionando os princpios e valores que embasam a ideia da qualidade de
vida produzidos pelo produtivismo e consumismo. Mais, temos que reconstruir o
elo perdido com a biosfera e a tica, que a cincia e a tecnologia romperam. indis-
cutvel o enorme poder de domnio da natureza e da vida pela cincia e tecnologia
materializadas em meios de produo e na industrializao de todos os setores da
atividade humana. Mas seu avano se deu s custas da natureza, usando-a de formadestrutiva, no sustentvel, em termos ambientais e em termos sociais. Essa civilizao
intensiva em carbono e matria est provocando o desastre climtico. Precisamos
comear por descarbonizar, desmaterializar, relocalizar a economia produzir
aqui, com as possibilidades daqui, para consumir aqui. Trata-se de parar de buscar
o crescimento a todo custo e se voltar mais felicidade humana, reencontrar-se e
reinserir-se como parte de toda a vida natural e do seu ciclo regenerativo. Estamos
diante de um imperativo tico, da vida no planeta, de toda a vida, desta e de gera-
es futuras. A condio sair de uma civilizao do ter e acumular e buscar o bemviver, com todos os direitos humanos para todos os seres humanos, respeitando os
direitos da prpria me natureza, patrimnio comum da vida.
A mudana de mentalidades e prticas traz ao centro da questo os bens comuns,
os bens que so de toda a coletividade. O bem viver tem como pressuposto o
Parque Calumet, Illinois, EUA (Foto: EPA)
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PARTE IPORQUE BENSCOMUNS?
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compartilhamento dos bens comuns, como condio da vida. Organizar a sociedade
em torno aos bens comuns revalorizar a coletividade como condio da prpria
sustentabilidade. Cabe coletividade zelar pelo acesso de todos(as) e pela conser-
vao e uso sustentvel de seus bens comuns. Mais, a participao em igualdade
de condies de todos(as) os(as) integrantes da coletividade, democraticamente,
que garantir o carter de bens comuns e do bem viver coletivo. Estamos diante de
uma juno fundamental entre bases da vida e democracia, entre justia ambientale justia social, com participao ativa da cidadania.
So bens comuns o que recebemos como dom da natureza: a gua e a chuva, as
nascentes, os rios e os mares, os ventos e o sol, o clima e a atmosfera como um todo,
a biodiversidade, os solos e sua fertilidade, os minerais. A lista imensa e o modo de
acesso e uso deles uma questo fundamental da qualidade de vida, com sustenta-
bilidade e justia, na perspectiva do bem viver. Alguns so finitos, como os recursos
minerais, entre eles o carvo mineral, o petrleo e o gs, fruto de decomposio de
matria orgnica ao longo de milhes de anos. Outros so em estoque dado, comoa gua. Outros, como o sol e os ventos, so recursos ilimitados.
Ocorre que os bens comuns naturais, como patrimnio de toda humanidade, esto
desigualmente distribudos no planeta. Isso marca as possibilidades e as diferentes
culturas dos povos. Mas impe uma questo tica e de justia: como compartir entre
todos e todas os bens comuns naturais? Um absurdo inventado pela humanidade e
particularmente expandido pelo capitalismo capturou grande parte dos bens naturais
como propriedade de indivduos, grupos e povos. Na origem, propriedade dos maisfortes, transformada em direito garantido pelas leis e tribunais.
Alguns bens comuns so nicos, como as belezas naturais e os grandes ecossistemas
que regulam o prprio clima do planeta, como as grandes florestas tropicais, as
estepes, os plos, as cordilheiras geladas. A sua diviso ou mau uso pode levar
Favela Dona Marta,Rio de Janeiro(Foto: exfordy, cc-by)
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destruio, afetando o conjunto da vida e da humanidade. A sua gesto como
patrimnio da humanidade incontornvel. Mas tal imposio tambm necessria
na explorao e uso de energia fssil, na medida que a sua queima descontrolada
e desigual afeta o clima de todos, revela injustia climtica.
Manifestaes culturaisBens comuns, porm, no so s naturais. A genialidade coletiva da humanidade
gestou, ao longo do tempo, bens comuns de fundamental importncia para o bem
viver: as diferentes manifestaes culturais, as lnguas, as filosofias e as religies,
a educao, a informao e a comunicao, a cincia e a tcnica. So bens comuns
ilimitados, que quanto mais se compartem mais crescem. Eles so a fronteira de
expanso do bem viver, da felicidade humana.
Esses bens comuns so ameaados pela propriedade intelectual, um artifcio do
capitalismo para tornar escasso e vendvel o ilimitado. O exemplo mais notvel,
no momento, o que se passa com a revoluo das tecnologias de informao e
comunicao, em particular internet e software. A luta entre software livre e software
proprietrio Linux contra Microsoft entre o bem comum e a propriedade
intelectual. Extensivamente, se pode dizer que, na comunicao, a mdia em geral
est diante da possibilidade de expanso ilimitada da mdia cidad, livre, pautada
pelo bem comum, versus mdia proprietria, dos donos privados dos meios.
CidadesA tragdia que se abateu sobre o Rio de Janeiro deve nos fazer pensar sobre como
tratamos a cidade. As cidades so um bem comum em permanente mudana e, a
seu modo, bens nicos. J temos as reconhecidas cidades histricas, tratadas como
patrimnio cultural da humanidade. Mas as cidades, todas, so bens comuns, bens de
todos(as) os(as) seus(suas) moradores(as). Por isso, legtima a reivindicao do direito
cidade para todos(as) que nela vivem. No basta considerar as vias de comunicao,
as ruas e avenidas e as praas e parques como bens pblicos fundamentais, como os
nicos bens comuns das cidades. As capacidades a existentes, as instituies criadasao longo do tempo, a sinergia criadora do coletivo, enfim, so muitos os aspectos que
tornam a cidade um bem coletivo, comum, de todos e todas. Seu usufruto coletivo,
o compartir a cidade, s aumenta seu valor como bem comum.
Mas existem os problemas, no s os evidentes como os que acompanhamos
durante a tragdia do Rio , mas os relativos a privilgios, excluses, segregaes,
enfim, prticas privatistas, discriminatrias e individualistas, assim como polticas
pblicas orientadas segundo os interesses dos mais poderosos.
A cidade como um bem comum e territrio nico, como stio natural em simbiose
com a construo humana ao longo de geraes, o fundamento de uma nova
economia e um novo poder, localizados, para construir as bases do bem viver,
democrticas e sustentveis.
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Questes sobreos bens comunsALAIN LIPIETZ
Alain Lipietz economista, militante doLes Verts, o partido verdefrancs, e foi deputado europeu entre 1999 e 2009.
Este artigo, tirado de uma interveno apresentada no Frum Social
Mundial de Belm (janeiro de 2009), reproduzido aqui com a gentil
autorizao do autor. Ele foi publicado em formato resumido no
nmero de janeiro de 2010 da revistaEsprit.
Comentando uma obra coletiva sobre os bens comuns oriunda das redeslatino-americanas, Alain Lipietz ressalta o desafio da articulao dos comuns
entendido aqui como um certo tipo de relaes sociais baseadas numa
lgica de comunizao com as relaes mercantis e com o Estado.
A obra coordenada por Silke Helfrich1 absolutamente notvel. No apenas pela
profundidade terica das snteses, mas tambm pela variedade dos exemplos, dos
estudos de casos de bens comuns: o patrimnio gentico, os lagos, as florestas,
o espectro eletromagntico, o saber indgena, a atmosfera, as tcnicas da inform-
tica... Percebe-se bem que essa obra o resultado do trabalho de toda uma rede,implementado por Silke em sua atividade de responsvel pelo escritrio regional da
fundao Heinrich Bll na Amrica Latina. Ainda que essa rede no tenha nascido
propriamente no Frum Social Mundial, ela uma ilustrao e um exemplo tpico
daquilo de que o FSM capaz.
De minha parte, eu havia organizado um seminrio no Parlamento Europeu sobre
o mesmo tema partindo da pergunta: Por que lutamos pela gratuidade, pela no
patentitibilidade dos elementos de algoritmo nos softwarese, ao mesmo tempo,buscamos defender os povos indgenas contra a biopirataria, a pilhagem sem
remunerao de seu conhecimento sobre a biodiversidade? Esse livro esclarece
esse debate de forma magistral.
Comearei por elogi-lo tanto quanto eu puder, depois, formularei algumas crticas
que se pretendem construtivas.
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Os bens comuns, coisas ou relaes sociaisQuais lies devem ser tiradas dessas muitas contribuies? Duas, fundamen-
talmente.
Os bens comuns no so coisas, mas relaes sociais. Ou, para se mais exato, as
coisas s quais eles dizem respeito (materiais ou imateriais, pastagem ou espao dosconhecimentos) no so seno muito raramenteres nullius, ou seja, bens que no
pertencem a ningum e que, portanto, podem ser superexplorados e destrudos.
Aqueles que ns conhecemos e que, por isso mesmo, no so destrudos, sempre
foram regulados quanto ao seu acesso e uso pelas relaes sociais: formas de
propriedade, de autoridade, regras consuetudinrias. O artigo do ecologista Garret
Hardin, publicado em 1968 na revista Science, que tornou clebre seu nome, The
Tragedy of the Commons, , portanto, totalmente equivocado. O que ele escreve
(sobrepastagem dos campos comunais) pode ter acontecido, mas, certamente,
no por falta de regras consuetudinrias. Isso no impede que existam recursos
comuns que se esgotam por falta de regulao, como os bancos de peixes ou a
capacidade de reciclagem dos gases de efeito estufa pela atmosfera. Mas, em geral,
a tomada de conscincia sobre essa dilapidao acaba levando a sociedade a criar
uma regulao.
Esses modos de regulao dos bens comuns so extremamente diversos, primeiro,
porque eles se aplicam a recursos muito diferentes (dos bens mais materiais aos mais
imateriais) e porque cada recurso pode ser administrado de diferentes maneiras.Os bens comuns so o reino da diversidade. O livro nos mostra exemplos dessa
diversidade atravs de vrios estudos de casos e snteses.
Acrescentemos que os autores, cuja simpatia em relao aos bens comuns evidente,
no escondem que esse modo de gesto de um recurso no a melhor soluo,
a mais eficiente em todas as circunstncias, nem mesmo no que diz respeito
propriedade privada. Ou que, ao menos, seu modo de regulao pode necessitar
ajustes srios.
A etimologia profunda de comumMas no estou aqui para fazer publicidade desse livro, embora eu o considere um
verdadeiro textbook para militantes e estudantes, mas sim para critic-lo, ou seja,
para ressaltar os pontos fracos e, assim contribuir para o avano.
Minha primeira observao, o que mais me irrita, a insistncia da maioria dos
artigos em considerar que a palavra commons de origem inglesa e at mesmo
anglo-sax! Ela no inglesa, mas francesa e, para se mais exato, normanda, o que duplamente importante.
Quando os normandos de Guilherme, o Conquistador tomaram a Inglaterra em 1066,
eles impuseram ali uma forma j aperfeioada de feudalismo. Evidentemente, eles
se expressavam em francs, ou seja, numa mistura de palavras de origem latina e,
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secundariamente, germnica. No feudalismo, os bens coletivos ou de uso pblico
tm dois nomes conforme seu proprietrio: comum ou comunal, para a proprie-
dade dos camponeses, e banal, para a propriedade do senhor (essencialmente,o moinho, o forno de po e as florestas). Assim, comum um termo jurdico do
feudalismo e um termo de origem latina.
Primeiramente, um comentrio sobre seu carter feudal. Ainda que os camponeses
(servos ou livres) possussem terras em comum alm da gleba qual estavam ligados
e as terras do senhor, nas quais eles deviam realizar corveias, essa possesso no os
impedia de ter que dividir o fruto delas com o senhor sob a forma de tributo (a talha).
A relao social de comum articulada, supradeterminada e dominada pela relao
feudal. Uma organizao social como o feudalismo, assim como o capitalismo, nuncase reduz a uma nica relao, ela uma articulao de relaes sociais, entre as
quais algumas podem nos parecer mais progressistas que outras, sem deixarem
de ser, ao mesmo tempo, auxiliares de uma forma de dominao.
E o comum , certamente, uma das peas mais permanentes e, potencialmente,
as mais progressistas de todas as formas de organizao social. a que preciso
evocar a origem latina da palavra. Comum vem demunus, que significa, ao mesmo
tempo, dom e encargo. Em outras palavras, receber ummunuscomo dom se verobrigado a oferecer outro dom em contrapartida.Munus, portanto, a expresso
nodal daquilo que o grande antroplogo Karl Polanyi chama de reciprocidade.
Para Polanyi, existem trs formas de socializar o trabalho dos indivduos humanos:
a troca (eu lhe dou para que voc me d), a redistribuio (o Estado tira de cada um
Derbyshire, Reino Unido(Foto: melody, cc-by-nc-nd)
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para dar a todos) e a reciprocidade: eu dou, porque confio que, quando eu precisar,
a sociedade me dar. Da palavramunusderiva, evidentemente, comum (de co,
que significa com): o sistema dos dons e encargos que rege o que a comuni-
dade tem em comum. Essa comunidade tem, em geral, um sistema de direo
poltica que lhe prprio: a municipalidade. Cipal vem de caput, que significachefe, cabea. Esse chefe tem a obrigao de agir com munificncia, oferecer
comunidade socorro, festas e monumentos.
Karl Marx chamou de comunismo um modo de produo, superior ao socialismo
(a cada um segundo o seu trabalho), regido pela regra de cada um na medida de
suas capacidades, a cada um de acordo com suas necessidades. Do socialismo ao
comunismo, passa-se, portanto, essencialmente, da redistribuio reciprocidade.
Marx, que entendia bem que a reciprocidade era muito anterior troca mercantil e
ao Estado (os quais no aparecem verdadeiramente seno ao cabo de vrios milnios
de revoluo neoltica, na Sumria e no Nilo), falava de um comunismo primitivo
e sonhava com um comunismo da abundncia. Ns, por nossa vez, lidamos com
comuns que, como vimos anteriormente, articulam-se com a dominao poltica (por
exemplo, feudal) e com o mercado, na maioria das vezes, em posio dominada.
Houve, sim, uma tragdia dos comuns, mas ela foi o contrrio do relato de Hardin.
As terras comunais se estenderam com o desmatamento da floresta europeia at
o incio do sculo XIV. Quando a peste negra sobreveio, a Europa no tinha maisreservas para explorar segundo esse mtodo, e a misria era latente por toda parte.
A peste, propagada pelas guerras feudais, aniquilou dois teros da populao
europeia. Esta levou dois sculos para se reerguer, mas as formas de valorizao
das terras haviam mudado: a revoluo agrria, a rotao trienal e a estrumao
dos solos no podia se satisfazer com as regras de gesto consuetudinrias que
proibiam, de fato, que um campons fertilizasse seu campo para colheitas futuras.
Ela exigia regras de gesto muito diferentes e, de fato, a propriedade ou, ao menos,
a posse privada das terras. Os camponeses mais ricos impuseram em seu proveito
o movimento das enclosures.
Poder poltico e bens comunsOutra dificuldade desse livro que, implicitamente, ele ope e at mesmo procurar
isolar os bens comuns, com sua regulao pela reciprocidade, do Estado e do
mercado. Infelizmente, isso impossvel no conjunto complexo constitudo por toda
e qualquer sociedade. Como acabamos de ver, um bem comum, como os prados
comunais da Idade Mdia, estava subordinado a um poder poltico externo, o do
senhor. O mesmo acontece com um osis do Saara que regule a distribuio de seupoo: ele mesmo est inscrito em um Estado que o engloba, dominado, eventual-
mente, por uma casta de guerreiros ou de mercadores caravaneiros etc.
Mais importante ainda, a regulao de um bem comum , muitas vezes, confiada a um
apndice poltico, a um Estado local, seja ele um xam, um cacique, um conselho
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de ancios, uma municipalidade etc. Esses poderes polticos que regem os bens
comuns podem ser, eles mesmos, extremamente hierrquicos. Por exemplo, a famlia,
que a comunidade de base mais antiga, est organizada, qui desde sempre,
segundo as relaes sociais patriarcais: dominao dopater familiassobre as mulheres
e os homens mais jovens, das mulheres mais velhas sobre as jovens noras etc.
A interao de um bem comum numa sociedade mais ampla, situada sob a autori-
dade de um poder poltico de maior extenso coloca, evidentemente, a questo da
pertena ao bem comum. Implicitamente, nesse livro, considera-se, por exemplo,
que a Amaznia pertence, por um lado, aos povos indgenas que tiram dela seus
recursos (sua biodiversidade) de modo sustentvel e, por outro, humanidade inteira,
j que a Amaznia um poderoso estabilizador do clima e uma reserva mundial de
gua doce. E o Brasil nisso tudo?
Quando, s vsperas da ECO-92, eu estava fazendo algumas conferncias em Porto
Alegre, vi pichadas nos muros frases como A Amaznia nossa. Yankees fora!.
Uma palavra de ordem que se dirigia s estrelas de Hollywood que foram levar
seu apoio aos povos indgenas e ideia da Amaznia como bem comum da huma-
nidade. De fato, eu fiquei chocado com o fato de habitantes do Rio Grande do Sul,
a maioria deles de origem italiana e alem, pretenderem afirmar sua propriedade
sobre a Amaznia, que fica a milhares de quilmetros ao norte! Todavia, tampouco
estou de acordo com os colonos da Meia-Lua (piemonte amaznico da Bolvia) quepretendem reservar para si os ricos recursos em hidrocarburetos de seu subsolo,
sem dividir os lucros deles resultantes com o resto da Bolvia, quando esses mesmos
colonos desceram da Sierrah cerca de cinquenta anos, depois de terem explorado
dela os minerais.
No mximo, poderamos dizer que o subsolo da Meia-Lua pertence aos guaranis
em virtude da Conveno 169 da OIT, mas nem essa conveno nem os artigos 15
e 8-j da Conveno sobre a Biodiversidade reservam a eles o acesso e a fruio
exclusiva desse subsolo. O Estado o guardio (custodian) dele e deve tratarde obter o consentimento previamente esclarecido da comunidade local se a ele
conceder acesso, dividindo com essa comunidade os lucros dele provenientes.
o que chamamos hoje de regime ABS (Access & Benefit Sharing). A partir do
momento em que o Estado existe como aparelho de redistribuio, normal que os
lucros resultantes da explorao de um recurso comum local sejam redistribudos
em escala nacional. Do mesmo modo, alis, normal que o Estado e a comunidade
internacional assumam uma parte do fardo representado pelo encargo de cuidar,
no plano local, de um bem comum de interesse global.
Bens comuns e relaes mercantisComo acabamos de ver, as regras de acesso, a diviso dos lucros e dos encargos de
um recurso comum podem representar uma acumulao de interesses comunitrios
diversos, e os conflitos que disso podem assumiro, decerto, uma importncia cada
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vez maior ao longo do sculo XXI. Acabamos de indicar, incidentalmente, um modo
de designar essa diviso como diviso dos lucros. O que, implicitamente, articula a
regulao dos bens comuns com as relaes monetrias e, atravs disso, pode-se
pensar, com as relaes de trocas mercantis. As coisas so mais complexas.
Primeiramente, nem tudo que relao de dinheiro relao de troca mercantil. Uma
multa por estacionamento irregular no espao urbano comum no uma relao
mercantil! Do mesmo modo, o dote que acompanha a circulao das filhas ou dos
filhos (segundo os regimes matrimoniais locais) no representa verdadeiramente umavenda dos filhos ou das filhas ou a compra de um marido ou de uma esposa (ainda
que Jac tenha tido que trabalhar muito tempo para Labo antes de se casar com sua
filha, Raquel, isso designa mais relaes patriarcais do que relaes mercantis).
A reciprocidade tem uma palavra pra designar a forma de dom monetrio que
recompensa um encargo (munus): a re-mun-erao. A remunerao no nem
um salrio nem um preo, mesmo que seja parecida com eles.
Tomemos, por exemplo, a forma atualmente mais direta, poltica e at mesmoburocrtica de gesto desse bem comum que a atmosfera e de sua capacidade
de reciclar os gases de efeito estufa: a atribuio de cotas de emisso de gs de
efeito estufa. Na Unio Europeia, essa atribuio feita pelos Estados s diversas
indstrias. Ela pode ser gratuita, mas tambm existem cotas pagas: vendidas em
leilo ou adjudicadas (ecotaxas). Em seguida, as cotas podem ser trocadas, de
modo que os que fizeram um esforo especial para reduzir sua poluio revendem
suas cotas excedentes aos que no fizeram esse esforo. Poderemos dizer que dar
cotas em funo das poluies efetivas habituais (grand fathering, mtodo do av) mais comunitrio que coloc-las em leilo, o que equivaleria a mercantilizar
a atmosfera? Os deputados europeus verdes consideram, ao contrrio, que o primeiro
mtodo equivale a enrijecer os direitos adquiridos dos mais poluidores, tornando-os
uma verdadeira enclosuredos bens comunais. Eles lutam, portanto, contra os
governos produtivistas e de direita para que uma parte cada vez maior das cotas
Mato Grosso, Brasil(Foto: leoffreitas, cc-by-nc-sa)
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seja leiloada. Nesse caso, a compra de cotas deve ser considerada como uma multa
sobre a poluio e a revenda de cotas liberadas pelo esforo de produzir limpo
deve ser tida como uma remunerao.
ConclusoAquelas e aqueles que amam os bens comuns e a reciprocidade destacaro, com razo,
os perigos que sua articulao necessria com a poltica e o Estado, com o dinheiro
e as relaes mercantis faz recair sobre eles. Essa prudncia no deve conduzir ao
isolamento dos bens comuns em relao ao resto do mundo, ao reino do Estado e
do mercado. O Estado e o mercado no so cadveres que podemos fechar num
caixo e jogar ao mar. Eles continuaro, durante muito, muito tempo, contaminando
e ameaando com sua lgica fria as relaes de reciprocidade, que tm por funoregular os bens comuns, e tudo que podemos fazer tentar reduzir sua importncia.
O que podemos esperar fazer com que as relaes de reciprocidade se tornem
cada vez mais importantes diante das relaes de troca e de autoridade.
O Frum Social Mundial tem por divisa Um outro mundo possvel. Mais uma
vez, trata-se da frase de um poeta francs surrealista e comunista, Paul luard. No
nos esqueamos do verso que se segue a essa divisa: Um outro mundo possvel/
Mas ele est dentro deste.
NOTES
[1] HELFRICH, Silke (org.). Genes, Bytes y Emisiones: Bienes Comunes y Ciudadana. So Salvador/Cidade do Mxico, 2008. Disponvel em: HTTP://boell-latinoamerica.org/download_es/Bienes_Comunes_total_Ediboell.pdf (cf. as verses em alemo e ingls no fim do arquivo).
Frum Social Mundial 2009, Belm, Brasil (Foto: Nicolas Haeringer, cc-by-nc-sa)
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A reinvenodos comuns fsicose dos bens pblicos sociais
na era da informaoPHILIPPE AIGRAIN
Philippe Aigrain analista e militante dos bens comuns informacionais
e do conhecimento. Ele fundou a sociedade Sopinspace,
especializada no debate pblico e na colaborao atravs da rede.
Este artigo foi publicado no nmero 41 (primavera de 2010) da revista
Multitudes: multitudes.samizdate.net. Ele reproduzido aqui com
a gentil autorizao do autor e dos editores da revista.
Num contexto de fortalecimento agressivo dos direitos de propriedade
intelectual, surgiu uma primeira coligao dos bens comuns nos anos
1990 e 2000, reunindo setores to diversos quanto o dos softwares, o da
cultura ou o das sementes. Pode essa coligao, hoje, se estender defesa
do meio ambiente e promoo do desenvolvimento humano?
Um novo continente dos bens comunsH 60 anos, o advento da informtica, das tecnologias informacionais (na biologia,
por exemplo) e, depois, das redes universais, como a Internet, deram vida nova aos
bens comuns. Essa afirmao pode surpreender. No estaramos numa era em que
a informao e os conhecimentos esto sendo transformados em mercadorias?
No estaramos assistindo, nos ltimos 30 anos, a uma extenso e a um enrijecimento
permanente dos monoplios de propriedade (patentes, copyrighte direitos autorais,
direitos proprietrios sobre as bases de dados)? No estaramos vendo o capitalismoinformacional dos softwaresproprietrios, das mdias e da edio centralizada e da
indstria farmacutica gerar margens de lucro inusitadas?
No entanto, antes dessas reaes proprietrias, a informatizao se traduzia,
sobretudo, por uma maior acessibilidade e possibilidade de reutilizao dos dados,
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conhecimentos ou mtodos de clculos, que neles esto representados em forma
informao. Os anos 1950 a 1970 puderam ser descritos como a poca da emer-
gncia silenciosa dos bens comuns, com uma forte cultura de compartilhamento e
de acessibilidade1. Por natureza, a informao separvel de seu suporte pode ser
reproduzida ao infinito. quase impossvel fech-la num domnio de propriedade,principalmente se essa informao tiver que permanecer utilizvel em um produto.
Essa a contradio em que se fechou a indstria fonogrfica quando quis impedir
a cpia das gravaes, conservando, ao mesmo tempo, para seus consumidores, a
possibilidade de escut-las2.
fcil explicar o aparente paradoxo de indstrias poderosas que se apoia sobre
monoplios de reproduo da informao (softwares, mdias, indstria farmacutica
e de sementes) no mesmo momento em que esses monoplios so enfraquecidos
pela difuso das tecnologias. evidente que os monoplios informacionais so frgeis,
mas os lucros que eles permitem obter no so comparveis aos das indstrias
tradicionais. O desatrelamento total entre o preo de venda e o custo de produo
uma perspectiva irresistvel para os investidores. A partir dos anos 1970, oIndustry
Adivsory Committee on Trade Negotiations, comandado, na poca, pelas multinacionais
IBM, Monsanto e Pfizer, concebeu o projeto de uma globalizao de monoplios
ampliados e enrijecidos por patentes ecopyrights. Foi a assinatura do acordo TRIPS3,
em 1994, que concretizou esse projeto.
Uma primeira coligao dos bens comuns4
A resistncia de alguns atores da sociedade civil a esse enrijecimento da apropriao
foi particularmente intensa e conduziu a um primeiro reconhecimento do que
existe em comum... entre diferentes tipos de bens
comuns. O permetro (entre 1994 e 2005) dessa
resistncia reuniu os movimentos dos softwares
livres, das criaes compartilhadas, do acesso
aos conhecimentos e os movimentos de acesso
aos medicamentos e dos direitos dos fazendeiroscontra as indstrias sementeiras e os OGM.
O reconhecimento mtuo desses diferentes
movimentos realizou-se no afrontamento com
adversrios semelhantes e que tinham se reco-
nhecido, eles mesmos, como aliados. Uma carac-
terstica essencial dos atores dos bens comuns
informacionais que eles esto engajados naconstruo de bens comuns, ao menos, na
mesma medida em que o esto na defesa desses bens comuns contra a apropriao.
Foi na segunda metade dos anos 1990 que a amplitude dessa construo voluntria
dos bens comuns apareceu aos olhos de todos, com a tomada de conscincia sobre
a importncia dos softwareslivres. Ainda que o projeto dos softwareslivres tenha
(Imagem: Mickipedia, cc-by-nc-sa)
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sido formulado 15 anos antes, durante muito tempo, eles foram considerados, fora
de seu crculo, como um modelo marginal. Progressivamente, tomou-se conscincia
de que eles constituam a prpria base da infraestrutura da Internet e da rede e de
que seu modelo de inovao e de cooperao tinha um alcance geral em toda a
esfera da produo de artefatos informacionais (ou seja, de expresses, obras, dadose ferramentas que podem ser representados em forma de informao). Alguns
anos depois, o alcance do modelo de produo cooperativa pelos pares baseado
nos bens comuns5 foi demonstrado em campos muito diversos: enciclopdias
livres, como a Wikipdia e outros projetos, publicaes cientficas e dados de livre
acesso, expresses e criaes compartilhadas sob licenas Creative Commonsou
Art Libre, redes de sementes camponesas, novos mecanismos de inovao para os
medicamentos.
As afirmaes positivas de um projeto compartilhado foram se desenvolvendo
muito progressivamente; para isso, foi preciso reconhecer o que existe de comum
entre um softwaree uma semente (a informao) e, ao mesmo tempo, o que h
de profundamente diferente entre eles: a informao pura, que s faz referncia
a uma mquina abstrata, no caso dos softwares, e a informao gentica, que s
se expressa num ambiente fsico particular, no caso da semente, por exemplo.
O amadurecimento das aes dessa primeira coligao dos bens comuns levou
tempo, mas , hoje, fato estabelecido. Alm disso, novas vises afirmativas e novos
relatos foram produzidos, designados como novos domnios pblicosou comunsinformacionais, defendidos contra a tragdia dos cercamentos6e promovidos pela
colocao em primeiro plano dos direitos intelectuais positivos, em preferncia aos
direitos restritivos (direitos de proibir). James Boyle foi o primeiro a reunir essas
vises em seu artigo, A Politics of Intellectual Property: Environmentalism for the
Net?7, no qual ele prev que o reconhecimento dos comuns do conhecimento
pode trazer uma recomposio poltica to importante quanto a que culminou no
ambientalismo a partir de 1970.
Contudo, a questo dos limites dessa redescoberta e dessa reinveno dos comunscontinua aberta. Poderia ela dar novo vigor aos bens comuns fsicos (ar, gua, meio
ambiente, clima) e aos bens pblicos sociais (educao, sade pblica, reduo das
desigualdades, espaos pblicos urbanos)? Como poderia ela se unir aos esforos
daqueles que tentam defend-los e reinvent-los num contexto hostil?
Do ambiental ao socialTanto para os bens comuns ambientais quanto para os bens pblicos sociais, os
ltimos trinta anos do sculo XX foram uma poca de contraste. Ao longo desse tempo,eles foram reconhecidos como nunca, mas com um limite vigoroso aos efeitos desse
reconhecimento em razo da dominao do economismo (a reduo ao econmico) e
do fundamentalismo mercantil desse perodo. Ao fim dos esforos iniciados em 1972,
em Estocolmo, a biodiversidade, o clima, de modo mais geral, a sade e a integridade
do sistema terrestre, mas tambm o direito ao desenvolvimento e a reduo da
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pobreza foram reconhecidos como bens comuns ou como objetivos compartilhados
mundiais por ocasio dos encontros de Nova York e do Rio, em 19928.
Esse reconhecimento dos bens comuns fsicos e dos bens pblicos sociais no caiu
do cu. Nos anos 1980, tinha se construdo uma resposta intelectual ao modeloda tragdia dos comuns. Garrett Hardin, em seu artigo de 1968 9, afirmava que
os bens comuns so frgeis diante da presso de usos exacerbados por razes
demogrficas ou econmicas. Segundo Hardin, diante desse perigo de destruio
ou de superexplorao, era preciso ou transform-los em propriedade privada, de
modo a garantir que eles fossem defendidos e mantidos por seus proprietrios, ou
recorrer gesto pblica, que ele julgava ineficiente e corrompida por natureza.
Os trabalhos de Elinor Ostrom11mostraram que Hardin havia negligenciado uma
terceira forma de gesto, diferente da gesto proprietria e da gesto pblica: a gesto
dos bens comuns pelas comunidades de usurios. Ostrom mostrou10que esse tipo
de gesto variava em suas formas conforme os diferentes bens comuns (terras de
pastagem, florestas, gua, recursos de pesca) e que, em geral, ela eficaz quando
no h destruio externa.
Contudo, esse reconhecimento dos bens comuns foi desconstrudo ao mesmo tempo
em que se instaurava devido a um contexto ideolgico e institucional desfavorvel.
Somente a Conveno sobre a Diversidade Biolgica traz a previso de uma corte
arbitral que a torna juridicamente vinculante. A maioria dos outros textos anterior-mente mencionados de natureza decorativa ou, em todo caso, no tem um impacto
to forte quanto os acordos ligados Organizao Mundial do Comrcio. Diversos
grupos de interesses em muitos setores se mobilizaram para rejeitar o emprego
de noes fortes de bem comum e de patrimnio comum da humanidade e para
substitu-las pela noo de bem pblico mundial, que simplesmente desconsidera a
questo dos regimes de propriedade e da natureza dos atores-garantidores. Essas
tenses foram particularmente sensveis no campo da gua, onde o Conselho Mundial
da gua se ope ao reconhecimento da gua como bem comum, defendido, por
exemplo, por Riccardo Petrella, e descreve o acesso gua como uma necessidadevital e no como um direito humano12. De modo menos reduzvel influncia dos
grupos de interesses econmicos, surgiram tenses entre a atribuio do statusde
bem comum planetrio a certos recursos, como as florestas (consideradas como poos
de carbono), e s necessidades de desenvolvimento de pases desfavorecidos.
Alm do esgotamento do fundamentalismo mercantil e proprietrio devido
evidente nocividade das polticas aplicadas em seu nome, a difuso do conceito
de desenvolvimento humano desempenhou um papel importante na consolidaodo reconhecimento ainda frgil dos bens comuns. Os indicadores de desenvol-
vimento humano, concebidos nos anos 1990, no podem ser reduzidos a uma
nica medida econmica13. A viso integrada do desenvolvimento humano que os
sustenta possibilitar, no futuro, o reconhecimento da relao entre os bens comuns
(ferramentas e recursos educativos de livre acesso e uso, medicamentos genricos,
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acesso s informaes produzidas pelos organismos pblicos, meio ambiente
saudvel, espao urbano) e os bens pblicos sociais essenciais (educao, sade,
justia social, boa governana, moradia). Colocar o desenvolvimento em primeiro
plano tambm permitir superar as oposies pensadas unicamente em termos
de confrontos entre pases. Sob sua bandeira podero se reunir as associaes dedefesa dos bens comuns no Norte e as associaes preocupadas com o desenvol-
vimento no Sul.
Assim surgiu um incio de aliana entre defensores do acesso aos conhecimentos
e sustentadores da justia social mundial ou do desenvolvimento. Recentemente,
uma coligao de ONG do Norte e do Sul, de pases emergentes (Brasil, ndia,
Argentina, Chile etc.) e de pases em desenvolvimento relacionou os bens comuns
informacionais com o desenvolvimento de uma nova maneira.
Disso resultou a adoo de uma agenda para o desenvolvimento na Organizao
Mundial da Propriedade Intelectual e o lanamento de trabalhos sobre novas formas
de estmulo inovao e de compartilhamento mundial do esforo de pesquisa na
Organizao Mundial da Sade. Esses progressos esto longe de ter reequilibrado
as aes desses organismos, que continuam sob influncia de interesses privados
poderosos. Mas eles constituem uma reviravolta que suscita preocupaes visveis
nos defensores da globalizao proprietria. Mais recentemente, durante os encon-
tros sobre o clima, surgiram novas coligaes entre os sustentadores de polticasfortes para limitar a contribuio humana para a mudana do clima e defensores
da justia social planetria.
Assim sendo, a poca est madura para que uma nova escola de pensamento poltico
se cristalize em torno de uma abordagem conjunta dos comuns e dos bens pblicos
sociais. O restante deste texto explora duas grandes questes com as quais essa
escola de pensamento ter que se confrontar.
A governana moderna dos comuns e dos bens pblicos sociaisOs comuns informacionais, assim como os comuns fsicos, so de uma imensa
diversidade. Diversidade do statusque eles se do e que, hoje, assumem a forma de
licenas ou termos de uso, mas que podemos entender como verdadeiras consti-
tuies dos bens comuns14. Mas tambm diversidade da governana dos projetos
que alimentam os bens comuns, diversidade das organizaes que deles so
garantidoras, diversidade das relaes entre bens comuns e atividades econmicas
que os utilizam e, s vezes, contribuem para eles. Os bens comuns informacionais
so um verdadeiro laboratrio de novos mecanismos de governana, entre os quaispodemos citar dois exemplos importantes:
- O processo de reviso da licena livre GNU GPL, que rene atores de naturezas
e poderes muito diferentes (de grandes empresas, como IBM e Intel, a projetos de
desenvolvimento comunitrios, usurios administrativos e contribuidores indi-
viduais)15. Todos esto interessados na existncia e na eficcia da licena como
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constituio de um bem comum, mas seus interesses so muito diversos e exercem
presses sobre o contedo da licena que, s vezes, so contraditrias.
- A governana interna Wikipdia, que, contrariamente ideia caricatural de umagesto anrquica, implantou toda uma srie de regras e mecanismos para a proteo
das caractersticas essenciais da enciclopdia livre.
Ao mesmo tempo, a governana dos bens comuns fsicos e dos bens pblicos sociais
deve se adaptar a novas condies. Ainda que muito ricos, os mecanismos tradicionais
de gesto comunitria sofrem de limites que fazem necessrio seu reagenciamento.
De fato, eles repousam sobre a adeso estvel dos indivduos comunidade e sobre
uma delimitao relativamente precisa de seus limites. Hoje, essas condies no estomais reunidas, em razo do processo de ampliao das trocas, mas tambm devido
vontade prpria de emancipao dos indivduos. As pertenas so renegociadas
permanentemente: os indivduos so sempre partes ativas em comunidades, capazes
de investir nelas suas energias, mas no pertencem a elas ou, quando pertencem,
isso costuma ser sinal de um confinamento mais imposto do que reivindicado.
Manifestao contra as patentes sobre os softwares, Bruxelas (Foto: Han Soete, cc-by-nc-sa)
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H muito tempo que os comuns informacionais so confrontados com essas situaes
tpicas da era digital. Quando se trata de decises sobre bens autenticamente no rivais,
como os softwareslivres, formas de gesto comunitria so possveis. Os participantes
do desenvolvimento de um softwarelivre, quando esto insatisfeitos com sua orientao
ou organizao, podem duplicar o bem comum e continuar seu desenvolvimentoem outro contexto ou com outros objetivos. Isso explica o fato de uma diversidade
muito grande de formas de governana poder existir nesse caso, desde organizaes
hierrquicas, com cooptao (inclusive conduzidas por empresas) at organizaes
muito mais horizontais. Essa governana diversa e fluida no pode ser transferida
para os bens comuns fsicos ou sociais. O uso de um espao urbano pode estar em
tenso com outro, e esse espao no pode ser duplicado para torn-los compatveis.
Nessa tenso, o compartilhamento do bem comum pressupe uma negociao, uma
orientao de seu futuro e escolhas polticas compartilhadas cujas consequncias
afetaro a todos. Outros processos de governana dos comuns informacionais so
mais adequados para inspirar e tirar inspirao da governana dos comuns fsicos e
dos bens pblicos sociais. Trata-se daqueles que se relacionam com os recursos que
permanecem raros apesar da abundncia informacional ou que, por natureza, devem
ser compartilhados, como aqueles mencionados anteriormente: licenas, cdigos de
conduta ou termos de uso, o contedo de um artigo especfico. Atualmente, alguns
dispositivos esto sendo experimentados em campos muito diversos (inovao na rea
da biologia, acesso aos conhecimentos e cultura, cartas territoriais, planejamento
urbano, educao, sade pblica). Eles instauram processos participativos em etapas-chave: diagnstico, elaborao de programas, acompanhamento de implementao.
Hoje, a participao efetiva nesses processos limitada pela incerteza sobre sua influ-
ncia efetiva e pelo carter cronfago (consumidor de tempo) das formas tradicionais
de participao (reunies, atelis). As tecnologias informacionais permitiro a constru-
o de uma alternncia entre os tempos flexveis de interao assincrnica possvel
com a informtica e a Internet e os tempos intensos de interao presencial?
As relaes entre comuns e economia e a reinveno do social
A organizao das relaes entre comuns e economia um dos desafios polticosmais importantes de nossa poca. Mesmo entre aqueles que reconhecem o valor
dos bens comuns, modelos bastante diversos se confrontam quando se trata de
estabelecer uma relao entre eles e a economia monetria.
Existem quatro grandes modelos, e est claro que o equilbrio entre esses modelos
deve ser debatido e experimentado em relao a cada tipo de bem comum ou de
bem pblico social:
- o investimento privado e os estmulos fiscais que visam a favorec-lo ou a orient-lo;
- a comunizao das condies de existncia de um bem comum entre os seususurios;
- o imposto e as polticas pblicas que visam a assegurar diretamente a existncia
de um bem comum ou de um bem pblico social;
- a distribuio (explcita ou de facto16) de rendas de existncia ao conjunto dos
contribuidores potenciais para os bens comuns.
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Contudo, mesmo no campo unicamente dos bens comuns informacionais, existem
diferenas que justificam um tratamento diferenciado de setores diferentes. Quanto aos
softwareslivres, parece ser vivel um equilbrio que repouse sobre uma combinao doprimeiro (investimento privado com estmulos) e do ltimo modelo (contribuio distri-
buda dos indivduos), com uma contribuio das polticas pblicas, principalmente,
de pesquisa, que, muitas vezes, subestimada. Quanto aos conhecimentos cientficos,
o papel excessivo concedido ao investimento privado (muitas vezes, s expensas dos
contribuintes) no incuo nos mecanismos de cercamento e de orientao empo-
brecedora que se desenvolveram. Em matria de criaes culturais, parece que o que
se deve privilegiar uma combinao de todos os modelos, contanto que um papel
muito forte seja atribudo comunizao societria portadora de diversidade cultural,
que o papel do investimento privado seja enquadrado de modo a impedir pretensesde restrio do acesso cultura como bem comum visando s necessidades de mode-
los comerciais monopolsticos e que a governana dos financiamentos pblicos da
cultura se torne (novamente) objeto de debate poltico e de deciso democrtica.
No campo dos bens comuns fsicos e dos bens pblicos sociais, existe uma diversidade
das relaes com o econmico. Contudo, parece necessrio confinar a o papel do
investimento privado:
- ao fornecimento de certos recursos (por exemplo, construo, infraestrutura detransporte, inovao farmacutica ou, mais amplamente, tecnolgica, mas com
garantias diante dos excessos de controle proprietrio sobre sua orientao) e de
certos servios que contribuem para os bens pblicos sociais;
- economia de utilizao das externalidades positivas dos bens comuns (servios
de valor acrescentado que explorem a existncia dos bens comuns).
Jersey City Terminal, Nova York (Foto: Erica Marshall of muddyboots.org, cc-by-nc-sa)
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Em outros termos, a orientao da proteo, da manuteno e da produo dos
bens comuns fsicos e dos bens pblicos sociais parece ter que reservar um lugar
particular a uma combinao entre atores societrios (comunizando seus recursos)
e uma ao pblica regenerada por novas governanas democrticas. A construo
efetiva dessa governana dos bens pblicos sociais tornada mais complexa pelofato de no se poder pensar somente em termos de statusdos atores: um comrcio
s margens de um espao pblico poder contribuir para a qualidade desse espao,
enquanto um mobilirio urbano instalado por uma coletividade atravs de uma
licitao apoiada na atribuio de espaos publicitrios poder, de fato, privatizar
uma dimenso do espao pblico. Assim, a governana deve estar atenta a efeitos
quantitativos sutis sem, com isso, recair numa microgesto administrativa.
Em resumo, o canteiro da reinveno dos bens pblicos sociais e dos bens comuns
fsicos est diante de ns. Ele promete ser complexo, mas aquele de uma nova
era democrtica.
NOTES
[1] Cf. Lmergence silencieuse des biens communs internationnels.In: AIGRAIN, Philippe,Cause commune: linformation entre bien commun et proprit. Paris: Fayard, 2005, pp. 73-79.
Disponvel em: paigrain.debatpublic.net/?page_id=60[2] Escutar uma gravao digital pressupe acessar a informao correspondente. Impedir que esseacesso possa ser utilizado para fins de cpia dessa gravao pressupe a instalao de um controle toextremo de todos os usos que suas consequncias foram veementemente rejeitadas pelos consumidores.[3] Acordo sobre o Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comrcioou Acordo TRIPS (do inglsAgreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights).[4] AIGRAN, Philippe.Pour une coallition des biens communs. Libration, Paris, 25 de agosto de 2003.Disponvel em: paigrain.debat-public.net/docs/bienscommuns.pdf[5] A expresso de Yochai Benkler. Cf. Coases Penguin or Linux and the Nature of the Firm.Yale Law Journal, Yale, junho de 2002.[6] Essa alterao do ttulo do artigo de Garett Hardin, The Tragedy of the Commons (Science, n 162,pp. 1243-1248, 1968) tambm uma redescoberta dos trabalhos de Karl Polanyi, em 1944:La grandetransformation. Aux origines politiques et conomiques de notre temps. Paris: NRF/Gallimard, 1983.[7] Duke Law Journal, n 87, 1997.
Disponvel em: www.law.duke.edu/shell/cite.pl?47+Duke+L.+j.+87+pdf[8] Cf. a Conveno sobre a Diversidade Biolgica: www.cbd.int/convention/convention.shtm;a Conveno-Quadro das Naes Unidas sobre a Mudana do Clima: http://unfccc.int/resource/docs/convkp/convfr.pdf e a Declarao do Rio sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento: www.un.org/french/events/rio92/rio-fp.htm[9] HARDIN, Garrett. Op. cit.[10] Recentemente agraciada com o Prmio Nobel de Economia.[11] OSTROM, Elinor. Governing the Commons: The Evolution of Institutions for Collective Action.Cambridge: Cambridge University Press, 1990.[12] LAIM, Marc, Eau: repenser le dbat public-priv. Disponvel em: blog.mondediplo.net/2009-11-04-Eau-repenser-le-debat-public-prive.[13] Ainda que o Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento ceda presso calculandoum ndice de desenvolvimento ponderado nico e uma classificao associada.
[14] Ver, por exemplo, o prembulo da licena de software livre GNU GPL:www.fsf.org/licensing/licenses/gpl.html.[15] AIGRAIN, Philippe, The Process of Revising the GNU GPL. Disponvel em: eolevent.eu/sites/default/files/EOLE%202008%20%E2%80%94%20%Philippe%Aigrain%20%E2%80%94%20The%20pro-cess%20of%20revising%20%the%20OGNU%20GPL.pdf[16] Aqui, entende-se como renda de existncia de facto uma situao em que todos disponham de umarenda que assegure sua subsistncia e sua existncia social, bem como de tempo livre que lhe permitacontribuir para os bens comuns, sem que isso tenha passado necessariamente pela instituio de umarenda mnima de existncia geral.
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TERRA,
GUA,PESCA,SEMENTES
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Propriedade da terra:um questionamentoconceitual agora
incontornvel
Aterra, por remeter a certo territrio, por abrigar recursos naturais, sempre
encerra uma parte irredutvel de comum. A propriedade absoluta da terra
aparece, portanto, como um mito prejudicial que deve ser substitudo pela
ideia de um conjunto de direitos sobre a terra de diversos tipos, associados
a formas de gesto comum dos recursos.
A terra, um bem diferente dos outros
A terra tem, ao menos, duas especificidades:1.Os direitos sobre a terra relacionam-se com um espao, um territrio. No
possvel destruir nem deslocar uma poro da crosta terrestre. Logo, a propriedade
da terra no pode ser assimilada propriedade de um objeto qualquer. De fato, os
direitos sobre um territrio se referem s relaes com os outros homens que podem
transitar por esse espao ou utilizar os recursos que ele contm.
MICHEL MERLET
Michel Merlet diretor da associao AGTER,Amliorer
la Gouvernance de la Terre, de lEau et des Ressources Naturelles.
Ele realizou muitas misses de avaliao sobre as polticas fundirias
e a gesto dos recursos naturais em muitos pases da Amrica Latina,
frica, Europa e sia.
Este texto constitudo de trechos dePolticas fundirias e reformas
agrrias, um documento global de propostas sobre essas questes.
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PARTIE IITERRA, GUA, PESCA, SEMENTES
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2.A terra tem como particularidade o fato de conter recursos naturais que no so
o fruto de um trabalho humano. Assim, por exemplo, a fertilidade natural no a
mesma em todos os lugares; a cobertura vegetal espontnea tambm pode ser
valorizada; o subsolo pode conter gua, minerais... Isso no deixa de ser verdade mesmo
que outra parte desses recursos possa provir tambm do resultado do trabalhoacumulado pelas geraes de agricultores (a fertilidade no apenas natural).
Os direitos sobre a terra se referem, portanto, s relaes com os outros homens que
podem transitar por esse espao ou utilizar os recursos nele existentes. A relao
dos homens com o fundirio , assim, por essncia, uma relao social, uma relao
entre os homens em torno da terra. Por essa razo, a terra foi uma das principais
categorias utilizadas pela economia poltica desde suas origens: as diferentes teorias
da renda fundiria exprimem essa especificidade1.
No entanto, hoje, os direitos sobre a terra so vendidos e comprados em muitos
lugares mundo afora. Assim, nesse sentido, a terra se tornou uma mercadoria, mas
uma mercadoria que no pode ser assimilada s mercadorias que foram mesmo
produzidas para serem vendidas. por isso que, a partir de 1944, Karl Polanyi passou
a falar de mercadoria fictcia.
A propriedade absoluta do solo, um mito que no inocente
Em La gestation de la proprit2
, Joseph Comby explica que a propriedade dosolo nunca pode ser absoluta: uma ideia simples, mas cujas implicaes so de uma
importncia extrema. Mesmo nas sociedades que inventaram o direito de propriedade
absoluto, este no pode ser aplicado ao solo. (Cf. direito de caa na Frana, por
exemplo, em propriedades privadas, ou muitos limites impostos construo pelas
normas locais...).
O direito de propriedade, no que diz respeito ao aspecto fundirio, no seno a
propriedade de um direito ou de um conjunto de direitos; e um proprietrio no ,
entre todos aqueles que tm direitos, seno aquele que aparece como quem tem omaior nmero de direitos. Muitas hipteses so, ento, possveis; os direitos podem
se sobrepor ou at mesmo entrar em contradio. Este o caso na frica, mas
tambm na maioria das sociedades indgenas e at mesmo, de um modo menos
evidente, mas, no entanto, real, nos lugares onde a propriedade individual domina
(Europa, Amrica Latina). Ainda que os ttulos fundirios sejam apresentados,
na maioria das vezes, como o meio de fixar os limites das parcelas, mais a natureza
dos direitos que eles significam para aqueles que os detm do que a superfcie do
terreno que lhes confere um possvel valor de troca.
Se a propriedade absoluta no existe, teramos que falar, ento, de transformao
de certos direitos sobre a terra em mercadoria e no da terra em si.
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A fbrica do diabo3Essas observaes liminares nos permitem entender melhor por que o mercado
e o desenvolvimento capitalista no conseguem resolver sozinhos os problemas
fundirios no interesse da maioria. Surge da um certo nmero de consequncias
totalmente fundamentais, ainda que, s vezes, evidentes.
Assim como a terra e os direitos ligados a ela, muitos outros bens, e, em particular,
todos aqueles ligados aos organismos vivos, tampouco so verdadeiras mercadorias,
no sentido empregado por Polanyi, cujos mercados poderiam se autorregular.
Podemos encontrar fenmenos de renda sobre muitos bens, e os preos de muitas
mercadorias no so fixados apenas pelos mercados, mas evoluem tambm em
funo das lutas sociais. Logo, os preos so tambm a representao de relaes
de foras.
Por conseguinte, a tentao de tratar os fenmenos econmicos independentemente
da sociedade, constituindo por si ss um sistema distinto ao qual todo o resto do
social deveria ser submetido, no pode ser seno uma iluso cujas consequncias
dramticas e os perigos j patentes h 50 anos aparecem, hoje, sob formas novas
e ainda mais preocupantes com os dogmas neoliberais e a globalizao.
Essa loucura que Polanyi acreditava findada e que, segundo sua anlise, fora a
origem dos profundos desequilbrios econmicos e sociais da primeira metadedo sculo XX, com a crise dos anos 30 e a ascenso do fascismo, voltou ao primeiro
plano e se estendeu ao planeta como um todo, fazendo pesar uma ameaa crescente
sobre o futuro da humanidade4.
Administrao dos direitos fundirios e arbitragem dos conflitosSe as relaes com o fundirio so, antes de tudo, relaes sociais, lgico que
aparecem contradies e conflitos entre pessoas e entre grupos sociais ao longo
das evolues histricas. Os conflitos so inelutveis num sistema social, j que este
no est fixado de modo definitivo, mas, pelo contrrio, encontra-se em transforma-o constante. Eles podem ser at mesmo salutares ou necessrios, como ressalta
Etienne Le Roy, insistindo sobre o fato de que o que grave, num conflito... o fato
de ele no ser solucionado e poder degenerar em litgio, depois, em drama, ao ponto
de se tornar mortfero5.
Portanto, para no perdermos o essencial, devemos conduzir uma reflexo que
possa ligar a apreenso das formas de organizao social no nvel local de modo
permanente com a considerao do fundirio. Assim, impossvel abstrair ossistemas de direitos fundirios das instncias encarregadas de sua atualizao e
das instncias de arbitragem e resoluo de conflitos.
No nvel mundial, existem sistemas de administrao dos direitos fundirios muito
diversificados, que esto ligados a processos histricos especficos. Conforme os
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PARTIE IITERRA, GUA, PESCA, SEMENTES
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conjuntos culturais, as pocas, as modalidades de herana, mecanismos de redis-
tribuio peridica da terra e das riquezas, a existncia de direitos mltiplos etc...
deram origem a sistemas de administrao e de gesto do fundirio mais ou menos
centralizados e cujos fundamentos no so idnticos. Essas diferenas tambm se
encontram no prprio mago dos pases desenvolvidos e no correspondem de
modo algum a uma demarcao entre sociedades desenvolvidas e subdesenvolvidas,
ou entre modernidade e arcasmo. Assim, na Europa, existem vrios sistemas de
publicidade fundiria, de Registros de Propriedade que podem coexistir sem queisso represente um problema insolvel6.
Tambm existem sistemas de regulao de conflitos muito diferentes de acordo
com as sociedades. (...) Contrariamente ao que frequentemente admitido,
no existe soluo nica e padronizada no nvel mundial para os sistemas de
informao sobre os direitos, nem no que se refere s instncias de resoluo
de conflitos. (...)
Um questionamento conceitual agora incontornvelA Tragdia dos comunais frequentemente evocada para justificar a necessidade
de uma apropriao privada dos recursos, fazendo-se referncia ao artigo publicado
por G. Hardin em 1968. Segundo esse autor, todo recurso limitado cuja posse
coletiva tende a ser administrado de um modo no sustentvel at o esgotamento
de suas capacidades, pois cada um tem interesse em tirar dele o mximo de proveito
antes que outro o faa em seu lugar. No entanto, o problema no a existncia em
si de bens comuns, mas sim a ausncia de regras e mecanismos para assegurar sua
gesto em conformidade com o interesse geral.
Essa reflexo sobre a gesto dos bens comuns deve ser conduzida em diferentes
escalas: nos nveis local, regional, nacional. Mas, hoje, evidente que ela tambm deve
se estender ao nvel dos conjuntos regionais multinacionais e, s vezes, planetrios.
Nessa perspectiva, a questo fundiria constitui uma das grandes questes mundiais,
Soja e floresta,Mato Grosso, Brasil(Foto: le