12
Análise Social, vol. XVI (61-62),1980-l.º-2.º,259-270 Manuel Braga da Cruz Os católicos e a política nos finais do século XIX Um dos aspectos menos conhecidos da vida política portu- guesa no último quartel do século xix é o da organização polí- tico-social dos católicos, com as suas polémicas internas, as suas intervenções eleitorais e as suas tentativas de organiza- ção partidária. De tais factos me proponho aqui brevemente ocupar, não só pela importância que assumiram na época em que se desenrolaram, como também pela decisiva repercussão que viriam a ter no desenvolvimento político global do País do primeiro quartel do século xx. O problema da específica intervenção de católicos na vida política só veio a pôr-se em Portugal, tal como aliás no estran- geiro, com a instauração do regime democrático liberal e do sistema político de partidos. Mais ainda: como reacção a essa mesma instauração. O liberalismo viera retirar ao catolicismo o primado ideo- lógico e político que este detivera no antigo regime, obrigando-o a disputar, no domínio da concorrência, a defesa dos seus in- teresses institucionais e das suas posições doutrinais. Com efeito, com a expropriação das ordens religiosas, a Igreja católica perdera boa parte da base económica do seu poder, afectada também na sua expressão política pela crescente intromissão reguladora do poder político na esfera religiosa e pela supressão efectiva de prerrogativas de privilégio. A se- cularização laicizante das sociedades liberais, operada pela expansão do moderno racionalismo burguês, fez perder à Igreja o domínio das instituições produtoras da ideologia e o controlo sobre as massas católicas. Outrora, a recuperação da hegemonia abalada fizera-a a igreja católica, ora através dos órgãos da sociedade civil, nomeadamente pelas ordens religiosas ou movimentos de massa pietistas, ora através do apoio da sociedade política, sobretudo mediante o recurso ao braço secular. Nas sociedades liberais, criadas pelas revoluções burguesas, a Igreja compreende que são outras as condições dessa recuperação. De força ideológica mundial, a Igreja passa a ser apenas uma força subalterna e o * Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa. Gabinete de Investigações Sociais. 259

Os católicos e a política nos finais do século XIX

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Os católicos e a política nos finais do século XIX

Análise Social, vol. XVI (61-62), 1980-l.º-2.º, 259-270

Manuel Braga da Cruz

Os católicos e a políticanos finais do século XIX

Um dos aspectos menos conhecidos da vida política portu-guesa no último quartel do século xix é o da organização polí-tico-social dos católicos, com as suas polémicas internas, assuas intervenções eleitorais e as suas tentativas de organiza-ção partidária. De tais factos me proponho aqui brevementeocupar, não só pela importância que assumiram na época emque se desenrolaram, como também pela decisiva repercussãoque viriam a ter no desenvolvimento político global do Paísdo primeiro quartel do século xx.

O problema da específica intervenção de católicos na vidapolítica só veio a pôr-se em Portugal, tal como aliás no estran-geiro, com a instauração do regime democrático liberal e dosistema político de partidos. Mais ainda: como reacção a essamesma instauração.

O liberalismo viera retirar ao catolicismo o primado ideo-lógico e político que este detivera no antigo regime, obrigando-oa disputar, no domínio da concorrência, a defesa dos seus in-teresses institucionais e das suas posições doutrinais. Comefeito, com a expropriação das ordens religiosas, a Igrejacatólica perdera boa parte da base económica do seu poder,afectada também na sua expressão política pela crescenteintromissão reguladora do poder político na esfera religiosae pela supressão efectiva de prerrogativas de privilégio. A se-cularização laicizante das sociedades liberais, operada pelaexpansão do moderno racionalismo burguês, fez perder à Igrejao domínio das instituições produtoras da ideologia e o controlosobre as massas católicas.

Outrora, a recuperação da hegemonia abalada fizera-a aigreja católica, ora através dos órgãos da sociedade civil,nomeadamente pelas ordens religiosas ou movimentos de massapietistas, ora através do apoio da sociedade política, sobretudomediante o recurso ao braço secular. Nas sociedades liberais,criadas pelas revoluções burguesas, a Igreja compreende quesão outras as condições dessa recuperação. De força ideológicamundial, a Igreja passa a ser apenas uma força subalterna e o

* Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa. Gabinetede Investigações Sociais. 259

Page 2: Os católicos e a política nos finais do século XIX

catolicismo, de concepção «total» do mundo, de uma sociedadeno seu todo, torna-se, como observou um dia António Gramsci,concepção «parcial» de uma parte da sociedade \ Não é já aIgreja a ditar as condições e os meios de intervenção, mas sima aceitar o terreno e os instrumentos de acção que lhe dita eoferece o adversário. A «questão religiosa» tornou-se «questãopolítica». Daí a necessidade da intervenção política e de umpartido. A Igreja representa-se partidariamente no sistemapolítico liberal, ao lado de outras forças ideológicas e políticas,disputando com elas o controlo e a posse do poder político e,através dele, o controlo ideológico das massas. E no terreno dasociedade civil disputa com elas também o exercício dos direitosde associação, expressão e informação. Para tanto, faz accionarno meio secular da democracia política e cívica o seu corpolaical. De organização clerical e hierocrática, a própria Igrejaé forçada a conceber-se como «comunidade de fiéis».

Em Portugal, a primeira tentativa de organização autónomae laical de católicos para intervir correctivamente no estado decoisas criado pelo liberalismo remonta ao ano de 1843, com acriação efémera da chamada Sociedade Católica Promotora daMoral Evangélica em Toda a Monarquia Portuguesa, que tinhacomo objectivos a recristianização moral do País, o relança-mento da missionação colonial e a formação do clero. Apesarde se afirmar de carácter exclusivamente religioso e assisten-cial e de rejeitar qualquer pretensão política, o seu apareci-mento bem cedo provocou controvérsias de cunho marcada-mente político, fazendo emergir, ao lado da intransigência doslegitimistas, o grupo de católicos que viriam a ser apelidadosde constitucionalistas. O que os primeiros contestavam aoaparecimento de semelhante tentativa, promovida pelos segun-dos, era precisamente o aspecto prevalecentemente laical daorganização, com a consequente autonomia do poder eclesiás-tico, como também o carácter supostamente democrático doseu funcionamento. No fundo, porém, o que estava em causaera a transigência com a nova ordem liberal, que traduzia oquerer-se trabalhar no quadro por ela criado, e sobretudo apretensão de alguns católicos de desvincular a «recuperaçãoreligiosa» da «recuperação política», acabando por prevalecera posição dos que teimavam em considerar indissociável a«questão religiosa» da «questão dinástica». Por isso teve efé-mera duração a Sociedade Católica2.

A reacção dos católicos ao regime liberal prosseguirá, po-rém, sob a forma de reivindicação dos direitos de expressãoe de associação, dando lugar ao aparecimento da primeiraimprensa católica e às primeiras tentativas de reingresso no

1 Cf. António Gramsci, Cuardemi del cárcere, Turim, Einaudi, 1975,vol. I, pp. 116-117, e vol. III, pp. 2079-2103.

* Para um tratamento mais desenvolvido deste facto, como dos quea seguir se referem, consulte-se o trabalho As Origens da DemocraciaCristã em Portugal e o Salazarismo (Lisboa, GlS-Presença, 1980), querecentemente publiquei, sobretudo o cap. ii: «Do antiliberalismo ao com-

260 promisso».

Page 3: Os católicos e a política nos finais do século XIX

País das primeiras ordens religiosas, a pretexto de motivosde carácter assistencial.

No entanto, a irredutível oposição legitimista ao regimemanifestava-se incapaz de satisfazer as reivindicações católicasde liberdade religiosa e de impedir a continuação das intro-missões reguladoras do poder político na esfera religiosa. Talineficácia levou crescentemente uma fracção do mundo cató-lico a aceitar o repto do sistema, para, a partir do seu interior,colher resultados mais positivos. Diferenciando no liberalismoa «ideologia» do «sistema político», para, de acordo com asinstruções romanas, repudiar a primeira e acatar de factoo segundo, esses católicos, bem cedo acusados de liberais, vãoensaiar novas formas de organização e intervenção, destinadasa pôr termo à letargia do movimento católico em prol das suasreivindicações.

Assim surgiram em Portugal, nos começos da década de 70,as chamadas associações católicas, a primeira das quais noPorto, fundada em 1870, da qual viria a ser figura proeminenteo conde de Samodães e à qual outras em breve se seguiram,nomeadamente em Braga, Guimarães e Lisboa, criadas em 1873,e no Funchal, no ano imediato. Confinando embora a sua actua-ção quase praticamente à realização de actos de culto e deconferências de apologética católica, viriam porém a ter umadecisiva importância no desenvolvimento político do movimentocatólico.

Com efeito, foi por iniciativa de tais associações católicasque os primeiros congressos católicos se promoveram no País.Neles serão tomadas decisões relevantes, como o lançamentoda primeira imprensa católica não legitimista, onde sobressaiA Palavra, do Porto, e sobretudo o esboço da primeira organi-zação católica destinada a intervir em eleições.

Foi de facto na sequência do I Congresso dos Escritores eOradores Católicos, realizado no Porto na viragem de 1871para 1872, que o jornal A Palavra viria a ser fundado. Nassuas páginas se iniciou, por um lado, esse esforço de compati-bilização do catolicismo com o sistema político liberal e, poroutro lado, a tentativa, daí decorrente, de organizar os cató-licos para intervirem especificamente na vida política. Poroutras palavras, foi A Palavra quem abriu caminho em Por-tugal, ao aparecimento do catolicismo liberal e de um partidocatólico, ou seja, à formação de um movimento social e políticodemocrático e cristão.

A ideia da formação de um partido católico surgiu, comefeito, da necessidade, sentida pelos católicos, de resolver a«questão religiosa» aberta pela instauração do liberalismo ede, para tanto, reunir as forças do mundo católico no domínioda chamada «política religiosa», que deveria, em princípio,aproximar quantos professavam idênticas convicções religiosas,relegando para segundo plano as divergências relativas àquestão do regime e à «questão dinástica», que dividiam asociedade portuguesa e, com ela, a própria Igreja. 261

Page 4: Os católicos e a política nos finais do século XIX

Mas, além destas razões, não terão sido alheias ao desen-cadear de tais movimentações influências que vinham tambémdo estrangeiro. Desde as instruções expressas do Vaticano, queaconselhavam os católicos portugueses a associarem-se paraa defesa dos interesses da Igreja em Portugal—e de que obreve de Pio IX Máximas sine intermissione, de 23 de Fevereirode 1872, é a demonstração mais evidente —, até às experiênciasde organização que, com êxito, se iam levando a cabo noutrospaíses. Na Alemanha, sobretudo, fora fundado em 1870 o par-tido do Centro Católico e em 1871 a Wolksverein der deutschenKatholiken, que lhe serviria de suporte social, para fazer faceao Kulturkampf bismarkiano. De 25 % dos lugares do Reich-stag obtidos já em 1874, o Zentrum tornar-se-ia em 1881 umaforça maioritária do parlamento alemão. Na Bélgica, o partidocatólico ganhava as eleições e subia ao poder em 1870. NaItália criava-se em 1874 a Obra dos Congressos e dos ComitésCatólicos. No Brasil agitava-se já em 1875 a ideia da criaçãode um partido católico. E em França, nessa mesma décadade 70, desenvolviam-se os círculos católicos de operários, àimagem do modelo alemão.

Além de tais influências, advindas do mundo católico inter-nacional, outras razões ainda se devem registar no âmbitonacional. Recorde-se, com efeito, que foi no início dessa décadade 70 que ocorreram as primeiras greves de relevo em Lisboae no Porto e nos seus meados se fundaram quer o PartidoSocialista Português (1875), quer o Partido Republicano(1876).

O Partido, cuja criação se vai discutir em Portugal nosfinais da década de 70, mais não visa, porém, que a união doscatólicos no domínio estritamente político, para a defesa dosinteresses religiosos da Igreja. O seu objectivo não é aindaa subida ao Governo, mas apenas a influência política juntodas esferas de decisão legislativa, nomeadamente o Parlamento.O seu projecto não é ainda o de reordenar globalmente a so-ciedade, mas apenas o de entrar na cena política como parteinteressada, para, como «grupo de pressão», rectificar tantoquanto possível as condições políticas de exercício da actividadereligiosa. Mais do que disputar a posse do Estado, o que estáno centro das preocupações dos lançadores da iniciativa éapenas a resolução da «questão religiosa», mediante o pressio-namento político para a rectificação da legislação e da actuaçãodiscricionária do executivo em matéria religiosa. Está-se aindalonge do tempo em que, perante a nova ameaça socialista, aIgreja deslocará a sua actuação da resolução da «questão reli-giosa» — provisoriamente saldada pelo ralliement— para ada «questão social» e lançará as bases de um movimento social,disposta a bater-se com ele por um reordenamento da sociedadeno seu todo.

A primeira proposta de criação de um partido católico emPortugal surgiu em A Palavra de 23 de Novembro de 1878,

262 publicada pelo P.e José Vitoríno Pinto de Carvalho, sob o

Page 5: Os católicos e a política nos finais do século XIX

título de «Projecto de programa para a organização do PartidoCatólico». Havia já tempo que, nas páginas do mesmo diárioportuense, ele vinha denunciando a falta em Portugal de umpartido católico que, à semelhança do da Bélgica, da Alemanhae do México, fosse, «na hora do perigo, a salvaguarda dosinteresses mais caros da Religião e da Pátria». E nesse sentidoexortava os católicos portugueses:

«É preciso que, inteiramente desprendidos de paixõespartidárias, dentro da lei fundamental do Estado, usemosdos nossos direitos de cidadãos, não para derrubar os pode-res constituídos, mas para, à força de perseverantes esfor-ços, fazer predominar neles as ideias religiosas3.»

A orientação não era, pois, subversiva ou antiliberal. Pelocontrário, procurava dar perspectiva católica ao sistema demo-crático parlamentar que importava respeitar.

No Projecto de Programa, o partido é definido como «asso-ciação de homens de todas as classes da sociedade» profes-sando, não só os princípios católicos em matéria religiosa,mas também —dizia-se— «o sistema político monárquicorepresentativo, representado pela dinastia da Sr.a D. Maria ii,de saudosa memória». Propunha como objectivo fundamentaldos deputados a eleger a protecção da «Religião, Pátria, Rei eLiberdade» (sublinhado nosso) 4.

Tal proposta viria a ser duramente atacada pelos legiti-mistas, já que outra coisa não visaria, segundo eles, senão«sustentar a dinastia da Carta» 5, e rejeitada também pelospróprios constitucionalistas. O conde de Samodães, por exemplo,que os legitimistas teimavam em ver como «eminência parda»do projecto, viria a público demarcar-se dele, manifestando asua discordância da ideia de pôr na chefia do partido o rei,que, segundo ele, deveria ser «superior às denominações dospartidos», bem como à de chamar «católico» ao partido, pois,sendo católica a Nação —argumentava—, católicos deveriamser também todos os partidos. Como contraproposta, avançavasim a ideia de criar, não propriamente um partido católico, masantes um partido conservador, que «proclamasse como partefundamental do seu programa a independência da Igreja nasua acção providencial» 6. Nesse sentido viria mesmo o líderincontestado dos católicos constitucionalistas a envidar esfor-ços, três anos mais tarde, no Porto, conjuntamente com outrasforças conservadoras da capital. Sugeriu igualmente que secriasse no campo católico o que chamou partido católico activo,ou seja, a reunião dos vários parlamentares católicos perten-centes aos vários partidos existentes para concertarem actua-ções no domínio da política religiosa.

8 A Palavra de 24 de Setembro de 1878.4 A Palavra de 23 de Novembro de 1878.8 A Nação de 4 de Junho de 1880.6 A Palavra de 29 de Novembro de 1878. 263

Page 6: Os católicos e a política nos finais do século XIX

Vasta foi a polémica gerada em torno da ideia pouco habil-mente lançada por aqueles que passariam a ser ironicamenteapelidados de «vitorinos». Nela tomaram parte os principaisórgãos da imprensa católica, sobretudo A Nação e A Palavra.E os efeitos, longe de serem os pretendidos com a propostade unificação política dos católicos, saldaram-se antes por umagravamento das contradições políticas no mundo católicoportuguês.

Foi preciso esperar alguns anos ainda para, no seguimentodos primeiros congressos católicos de Lisboa, em 1881 e 1882,assistir ao aparecimento da primeira organização política cató-lica — a União Católica Portuguesa— e à primeira partici-pação de uma organização nas eleições7.

Já dissemos atrás que os primeiros congressos católicosrealizados no País, chamados Congressos dos Escritores eOradores Católicos, tiveram lugar no Porto e em Braga, res-pectivamente em 1871-72 e 1878. Promoveram-nos as associa-ções católicas locais e não tiveram outros resultados de vultosenão a fundação, como conclusão do primeiro, do diário cons-titucionalista A Palavra.

Estes congressos de Lisboa, de que se conhece a realizaçãode pelo menos três, entre 1881 e 1883, surgiram da preocupa-ção de resolver as dissensões no campo católico e de promovera tão desejada, mas discutida, união dos católicos para inter-virem no terreno político. Foram seu promotores e principaisintervenientes figuras como D. António de Almeida, o Dr. Men-des Lajes (pioneiro do associativismo operário católico emPortugal, como fundador e presidente que foi da AssociaçãoProtectora dos Operários de Lisboa, em 1878), Fernando Pe-droso, Donoso de Mendonça, D. José de Saldanha Oliveira eSousa e, sobretudo, o P.e Sena Freitas, polemista e escritor.

Serviu o primeiro congresso de Lisboa, de 1881, para con-vencer os legitimistas da necessidade da união dos católicos,que, inflectindo a táctica, procurariam, a partir de então,chamar a si a direcção da dinâmica imparável que o congressoacelerara nesse sentido. De uma posição defensiva, os legiti-mistas passaram à ofensiva, tentando controlar o processo deunificação e organização política dos católicos. Mais ainda:procurando evitar que dele adviesse qualquer enfraquecimentopara o Partido Legitimista.

De facto, quando, no final do segundo congresso, em Junhode 1882, se funda a União Católica Portuguesa, de âmbitonacional, e a Associação Católica de Lisboa, ao nível local,apesar do formal equilíbrio moderador entre as duas facçõesrepresentado na direcção desta última, os legitimistas conse-guiam controlar já a iniciativa pela mão experiente do Dr.Carlos Zeferino Pinto Coelho, esvaziando-a por dentro do signi-

7 Dizemos «primeira participação de uma organização católica» por-que nas eleições de 1881 já se haviam apresentado, embora não «orga-nizadamente», candidaturas católicas no Porto, nomeadamente as deMons. Silva Ramos, Dr. Santos Monteiro e Dr. Almeida Pinho.

Page 7: Os católicos e a política nos finais do século XIX

ficado que os impulsionadores da ideia lhe haviam pretendidoatribuir.

O objectivo fundamental que se propôs a União Católica foio de «defender, por todos os processos lícitos e legais, masprincipalmente pela apresentação de deputados católicos noParlamento Português, os elevados interesses da causa cató-lica, como base fundamental dos mesmos interesses morais esociais do País». Admitia como membros «todos os católicos,sem excepção alguma das opiniões políticas que os estremem»,desde que adiram à doutrina do «magistério infalível daIgreja», isto era, aos dogmas «formulados no Símbolo deNiceia» e aos princípios consignados no Syllabus «e na encíclicaQuanta cura, que os acompanha»8.

Do ponto de vista organizativo, o «centro directivo» daUnião Católica foi estabelecido em Lisboa. Os católicos doPorto, que aliás se haviam já marginalizado destes congressosem Lisboa, vêem desse modo dificultada a possibilidade deimprimirem dinamismo e orientação a nascente organização.A União Católica quase não passou, porém, da pura consti-tuição formal. Chegou, é certo, a suscitar alguma preocupaçãono campo adverso, como o demonstra a crítica que lhe moveuTeófilo Braga, acusando-a de constituir «um evidente ataqueà jurisdição do episcopado» e uma «violação da disciplina daIgreja». As suas actividades resumiram-se, no entanto, quaseexclusivamente às que em seu nome desenvolveu o P.e SenaFreitas, que, percorrendo o País, chegou a criar núcleos daUnião em Faro, Portimão e Funchal.

A primeira e única participação eleitoral da União Católicasaldou-se por um rotundo fracasso. Nas eleições de 1884, desti-nadas a convocar a Constituinte, da qual viria a sair o SegundoActo Adicional à Carta Constitucional, a União Católica apre-sentou, embora com a oposição legitimista, as candidaturas deSena Freitas e de D. José de Saldanha no Porto e também deSena Freitas em Braga, as quais não lograram alcançar, res-pectivamente, mais de 141 e 59 votos no primeiro círculo e734 votos no segundo.

O aspecto irrisório de tais resultados atribuíram-no os legi-timistas a insignificância da expressão do catolicismo liberal,que ficava desse modo demonstrada. E serviu aos constitucio-nalistas para defenderem de novo a tese do conde de Samodães,de criar, não um partido católico, mas antes um partido conser-vador no campo político e uma União Católica, sem carácterpartidário, no campo religioso. Na realidade, porém, revelavaa debilidade e a incipiência da tentativa de levar os católicos,enquanto tais, a intervir partidariamente na vida política na-cional.

Entretanto, em 1878 ascendera ao pontificado Leão XM,que vinha imprimindo à Igreja novos rumos de política religiosa

8 «Programa da União Católica em Portugal», in O Progresso Cató-lico, n.° 18 (4.° ano), 15 de Julho de 1882. 265

Page 8: Os católicos e a política nos finais do século XIX

e social. Numa carta encíclica dirigida aos bispos portuguesesa 14 de Setembro de 1886 — a Per grata nobis — denunciavaa instrumentalização política da religião e da questão religiosacomo obstáculo quer à melhoria das relações entre o Vaticanoe Lisboa, quer ao avanço da organização das forças católicas.Esta crítica papal estimulou de novo o unionismo católico, querenasce esparsa e desordenadamente. Aqui e ali surgem peloPaís apelos a união, como, por exemplo, o Manifesto dos Cató-licos de Santo Tirso a Todos os Católicos do Reino, lembrandoa necessidade de «levar ao Parlamento homens dignos, indepen-dentes, católicos» 9.

No entanto, só no início da década de 90 se vai assistir denovo ao relançamento de iniciativas de organização política doscatólicos, sobretudo após a publicação da famosa carta deLeão XIII aos bispos franceses Au milieu des sollicitudes, de16 de Fevereiro de 1892, preconizando orálliement dos católicoscom a República. Consistia a política do ralliement na reco-mendação de abandonar a oposição aos regimes liberais erepublicanos, para passar a combater apenas a legislação nocivaaos interesses e à doutrina da Igreja, devendo para isso oscatólicos procurar a concertação de esforços e pôr de parteas divergências partidárias. Assentava essa política em doisprincípios básicos: o da afirmação da contingência e relatividadedas formas de governo das sociedades e o da distinção entreinstituições políticas dos regimes e a legislação por elas ema-nada. Os católicos deveriam prestar obediência aos poderespúblicos estabelecidos, em nome da considerada imutável ne-cessidade de autoridade política postulada pelo «bem comum»,devendo abandonar por isso quaisquer veleidades subversivasou insurreccionais. Da mesma maneira, deveriam eles «combater,por todos os meios legais e honestos, os abusos progressivosda legislação»10. Numa palavra: os interesses morais e reli-giosos da Igreja deveriam os católicos antepô-los, e nuncasubordiná-los, aos interesses políticos partidários.

O impacte da política leonina do ralliement foi grande emPortugal. Veio marginalizar definitivamente no terreno políticoreligioso o legitimismo, já secundarizado no terreno políticocivil, e colocar os católicos perante novas relações de forçacom o poder político. Da hostilidade, por vezes frontal, outrasvezes surda, passar-se-á estrategicamente à recuperação pelopressionamento. A oposição cede o lugar à negociação. E noterreno social levará o catolicismo a novas preocupações pe-rante a eminência de novas ameaças. Referimo-nos ao desen-volvimento das ideias e do movimento socialista, que suplantao liberalismo nas preocupações da Igreja. Em Portugal, essedesenvolvimento conseguirá, nos começos da década de 90, obtera legalização das associações de classe, a 28 de Fevereiro de1891. A Igreja passa então a preocupar-se também, e de uma

• A Palavra de 10 de Outubro de 1886.266 10 Traduzida por A Nação de 27 de Fevereiro de 1892.

Page 9: Os católicos e a política nos finais do século XIX

maneira cada vez mais dominante, com os destinos das novasmassas operárias.

Vejamos como se preparou proximamente e se traduziu naprática esse impacte do rálliement em Portugal. Em 1889 eem 1891 realizaram-se respectivamente no Porto e em Bragaos dois Congressos Católicos da Província Eclesiástica deBraga. O segundo viria a ser o maior e mais importante detodos os congressos católicos até então realizados, não só pelaautoridade que a inovadora presença de seis bispos lhe empres-tou e pela afluência que registou, como sobretudo pela matu-ridade organizativa demonstrada e pelos efeitos que desen-cadeou. Pelas preocupações patenteadas nas intervenções enas conclusões, o congresso de Braga criou de facto condiçõespara que o rálliement fosse acolhido e adoptado como políticaoficial dos católicos portugueses e assinalou efectivamente oinício da viragem do movimento católico do antiliberalismo parao anti-socialismo. Constituiu, por fim, um marco assinalávelno desenvolvimento do unionismo católico, já que entre outrosresultados do congresso sobressai o entendimento entre osbispos para, de acordo com as directrizes expressamente dadaspor Leão XII , realizarem entre si reuniões periódicas, emordem à «convocação não só de sínodos diocesanos e provinciais— dizia o papa —, mas também dum concílio nacional» ".

As primeiras reacções à carta leonina do rálliement vieramsobretudo do clero. Em Outubro desse ano de 1892, numaDeclaração do Clero ao Arcebispado de Braga, um elevadonúmero de padres aderiram publicamente às directrizes deLeão XII . Nos meses seguintes, os cleros de Guimarães e deBragança assinalavam idênticas declarações. E, nas eleições de1893, o Centro da União do Clero Bracarense tomou a iniciativade retomar a apresentação de candidaturas católicas, fazendoconcorrer, embora sem êxito, por Barcelos o então bispo deHimera, mas futuro bispo do Porto, D. António Barroso.

Também os bispos passaram à concretização do rálliement.Dando cumprimento às instruções papais, reuniram-se em Lis-boa em Novembro de 1894 para concertar a actividade da Igreja.Dias depois, numa famosa intervenção na Câmara dos Pares,saldavam um novo compromisso com o poder político. Pela vozautorizada do bispo de Coimbra, Bastos Pina, manifestaram osbispos satisfação ao Governo pela forma como vinha correspon-dendo crescentemente aos apelos por eles formulados no Parla-mento sobre questões religiosas e eclesiásticas. E, num gestosem precedentes, é reconhecido o envolvimento político da Igrejacom o «antigo regime», bem como a desconfiança do «novoregime» democrático e liberal para com a hierarquia católica.«Foi gravíssimo o erro cometido pela classe eclesiástica», con-fessou o bispo de Coimbra na tribuna de S. Bento, «quando,

* Chronica do Segundo Congresso Catholico da Provinda Eclesiásticade Braga Inaugurado na Sua Metrópole no Dia 6 de Abril de 2891, Braga,Tip. Lusitana, 1892, p. 265. 267

Page 10: Os católicos e a política nos finais do século XIX

no período das lutas civis, se meteu no campo das refregaspartidárias. O partido triunfante, como represália, emborainjusta, guerreou a Igreja. Felizmente, porém, esses tempospassaram, e hoje todas as coisas estão preparadas para que,entre o Estado e a religião possa haver uma completa e satis-fatória harmonia.» 12

A repercussão de tais gestos acabará por se traduzir nacriação do Centro Católico, em 1894. Lançaram a ideia o mesmobispo de Coimbra e Quirino de Jesus, tendo-a procurado con-cretizar os homens do directório do Correio Nacional, recém--fundado em 1893, em Lisboa. Eram eles os conselheiros BarrosGomes, Jerónimo Pimentel, Jacinto Cândido, Casal Ribeiro e omarquês de Pombal.

O Correio Nacional vinha desde a fundação dando particulareco às novas orientações papais, em matéria religiosa e social.Fora aliás para esse efeito fundado, de acordo comas indicaçõessaídas do congresso de Braga. Nas suas páginas se começou aadvogar a criação de uma organização católica que, à seme-lhança dos movimentos católicos europeus da época, assentassenum vasto movimento social, e não só nas passivas forçaseleitorais católicas. Não seria um mero partido eleitoralista,mas um movimento mais vasto de alcance social, embora com asua tradução política num «centro parlamentar». «O CentroParlamentar», explicava-se, «poderá compor-se de pares edeputados independentes, mas também de pares e deputadospertencentes a quaisquer partidos militantes, devendo apenasnotar-se que o núcleo de acção deverá respeitar o poder cons-tituído» 1S. O Centro poderia assim, segundo o conde de Samo-dães, agora também paladino da nova ideia, reunir inclusive«todos os dirigentes dos partidos». Procuraria impedir «asmedidas que forem opostas aos ensinamentos da Igreja» emodificar as já tomadas no passado, «de modo a restabelecera liberdade da Igreja».

A morte de Barros Gomes e de Casal Ribeiro, por um lado,e o encerramento das Cortes por Hintze Ribeiro, em 1895, poroutro, entre outras vicissitudes, fizeram, porém, fracassar taliniciativa. O projecto era o de criar no Parlamento um centrosupra e interpartidário, destinado a conseguir satisfazer asreivindicações católicas em matéria de política religiosa naesfera legislativa, e o de lançar na sociedade civil um vastomovimento social que lhe servisse de apoio. Não o entenderam,porém, todos quantos com ele se mobilizaram. E em 1895, de-turpando o entendimento global da proposta dos homens doCorreio Nacional, isto é, privilegiando o momento eleitoralsobre o carácter social do partido, apresentam-se às urnas noNorte do País, nas eleições administrativas de 17 de Novembro,várias candidaturas católicas em nome do Centro Católico. NoPorto, de novo os nomes de Sena Freitas e D. José de Saldanha,

a Correio Nacional de 28 de Novembro de 1894.268 13 Correio Nacional de 4 de Setembro de 1894.

Page 11: Os católicos e a política nos finais do século XIX

além do de D. Tomás de Vilhena (presidente da recém-fundadaAssociação da Mocidade Católica de Lisboa); e em Viana doCastelo, os de Fernando Pedroso e do Dr. Luís José Dias.A experiência conheceu irrisórios resultados. Era a últimatentativa de intervenção eleitoral católica do século xix.

Seria preciso esperar alguns anos para que um movimentoe um partido surgissem de facto. O primeiro será desencadeadoa partir de 1898, com a criação do Círculo Católico de Operáriosdo Porto, protótipo dos que, até 1910, se vão espalhar peloPaís. O segundo surgirá em 1903, não como partido expressa-mente confessional, mas como partido conservador de inspira-ção católica: foi o Partido Nacionalista, liderado por JacintoCândido, Jerónimo Pimentel e o conde de Bertiandos. Se essemovimento social católico constituiu efectivamente um impor-tante suporte do partido político, nem por isso todos os cató-licos sociais a este se enfeudaram. Mantiveram-se autónomosos que viriam a ser os primeiros genuínos democratas cristãosportugueses, à frente dos quais estava Francisco José de SousaGomes, professor da Universidade de Coimbra. Com ele, váriosuniversitários lançariam em 1901 o Centro Académico de De-mocracia Cristã de Coimbra, a partir do qual, já depois de 1910,se irá desencadear o movimento juvenil que conduzirá à for-mação, em 1917, do partido do Centro Católico Português. Seráeste o primeiro partido católico a dispor de representaçãoparlamentar. Dele fez parte, e por ele subiu ao poder, Salazar,em 1928.

Movimenta das candidatas a «deputados católicos» no século XIX

Eleições

1881

1884

1892

1895

Círculo

Porto

BragaPorto

Barcelos

Porto

Viana doCastelo

Candidatos

Mons. Silva RamosDr. Santos MonteiroDr. Almeida Pinho

P.e Sena FreitasP.e Sena FreitasD. José SaldanhaOliveira e Sousa

D. António Barroso(bispo de Himera)

P.e Sena FreitasD. José de SaldanhaD. Tomás de Almeida

M. de VilhenaFernando PedrosoLuís José Dias

Organização

Não tinham

União CatólicaPortuguesa

Centro daUnião do Clero

Bracarense

Centro Católico

269

Page 12: Os católicos e a política nos finais do século XIX

De quanto expusemos resulta claramente que a ideia deformar um partido católico obedeceu sempre à preocupaçãode enfrentar sobretudo a «questão religiosa». Sempre que estase reabriu, foi de um partido que os católicos procuraramlançar mão para a resolver. Quando, pelo contrário, essa «ques-tão religiosa» cedeu lugar, entre as preocupações da Igreja,à «questão social», os instrumentos de resolução privilegiadospassaram a ser outros. O partido cede também a primazia dasatenções católicas ao movimento social. O terreno preferencialde intervenção desloca-se da sociedade política para a sociedadecivil.

Nunca os católicos conseguiram articular equilibradamenteuma ou outra preocupação. Daí que as intervenções no domíniopolítico se tenham revelado ineficazes, porque desprovidas deuma base no domínio social, e as iniciativas desencadeadas aonível social não tenham conseguido resultados de relevopor lhes faltar a correspondente política indispensável. O mo-vimento católico foi por isso sempre, desde os começos doliberalismo até ao advento do Estado Novo, um movimentopendular, ora mais caracteristicamente político, ora social.Perpassado de insanáveis contradições, conheceu sempre fortesoposições internas e externas. Obrigado por isso a flutuantescompromissos, nunca adquiriu autonomia consistente. Daí quese tenha revelado também impotente para enfrentar as derra-deiras tentativas de instrumentalização por parte do salaza-rismo, tentativas que o levariam finalmente à dissolução.

270