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9 1 JENNIE EM FUGA – S ó estou a dizer que não gosto dela – segredou a empregada de mesa com o cabelo esvoaçante. Foi um sussurro alto, facilmente ouvido pelo único cliente no Café Pleasant. Ele pergun- tou-se se a «ela» que estava a ser discutida seria outra empregada ou uma cliente habitual, como ele próprio. – Não sou obrigada a gostar dela, pois não? Se queres pensar de outra forma, estás à vontade. – Achei que era simpática – disse a empregada mais baixa, de rosto redondo, parecendo menos segura do que uns segundos antes. – Ela é assim quando o seu orgulho é ferido. Assim que se anima, a língua dela começa a lançar veneno outra vez. É ao con- trário. Já conheci muitas como ela, nunca se deve confiar nelas. – É ao contrário como? – perguntou a empregada de rosto redondo. Hercule Poirot, o único cliente no café pouco depois das sete e meia nesta noite de quinta-feira de fevereiro, sabia o que a empre- gada com o cabelo esvoaçante quisera dizer. Sorriu para si. Não fora a primeira vez que ela fizera uma observação astuta. – Qualquer pessoa pode ser perdoada por dizer uma palavra brusca numa situação apertada, eu própria o fiz, admito. E quando

Os Crimes do Monograma

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Os Crimes do Monograma

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JENNIE EM FUGA

– Só estou a dizer que não gosto dela – segredou a empregada de mesa com o cabelo esvoaçante. Foi um sussurro alto,

facilmente ouvido pelo único cliente no Café Pleasant. Ele pergun-tou-se se a «ela» que estava a ser discutida seria outra empregada ou uma cliente habitual, como ele próprio.

– Não sou obrigada a gostar dela, pois não? Se queres pensar de outra forma, estás à vontade.

– Achei que era simpática – disse a empregada mais baixa, de rosto redondo, parecendo menos segura do que uns segundos antes.

– Ela é assim quando o seu orgulho é ferido. Assim que se anima, a língua dela começa a lançar veneno outra vez. É ao con-trário. Já conheci muitas como ela, nunca se deve confiar nelas.

– É ao contrário como? – perguntou a empregada de rosto redondo.

Hercule Poirot, o único cliente no café pouco depois das sete e meia nesta noite de quinta-feira de fevereiro, sabia o que a empre-gada com o cabelo esvoaçante quisera dizer. Sorriu para si. Não fora a primeira vez que ela fizera uma observação astuta.

– Qualquer pessoa pode ser perdoada por dizer uma palavra brusca numa situação apertada, eu própria o fiz, admito. E quando

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estou feliz, quero que os outros também o estejam. É assim que deve ser. Mas depois há as pessoas como ela, que tratam os outros pior quando as coisas lhes correm de feição. É com essas que se tem de ter cuidado.

Bien vu, pensou Hercule Poirot. De la vraie sagesse populaire.A porta do café abriu-se de rompante e bateu contra a parede.

Uma mulher com um casaco castanho-claro e um chapéu casta-nho-escuro ficou à porta. Tinha cabelo loiro. Poirot não lhe conse-guia ver o rosto. A sua cabeça estava virada para olhar sobre o ombro, como se estivesse à espera que alguém a alcançasse.

Uns segundos com a porta aberta bastaram para que o ar frio da noite expulsasse todo o calor da pequena sala. Normalmente isto teria enfurecido Poirot, mas estava interessado nesta recém--chegada que entrara de forma tão dramática e que parecia não se importar com a impressão que causava.

Colocou a mão espalmada sobre a sua chávena de café com a esperança de conservar o calor da bebida. Este estabelecimento pequeno de paredes tortas em St. Gregory’s Alley, numa parte de Londres que estava longe de ser a mais salubre, fazia o melhor café que Poirot provara em qualquer parte do mundo. Não costumava tomar uma chávena antes de jantar, além de uma a seguir – na verdade tal ideia horrorizá-lo-ia em circunstâncias normais –, mas todas as quintas-feiras, quando vinha ao Pleasant, abria uma exce-ção à sua regra. Por esta altura, já considerava esta exceção semanal uma pequena tradição.

Havia outras tradições no café das quais gostava bastante menos: posicionar os talheres, o guardanapo e o copo de água cor-retamente na mesa, encontrando-os tortos ao chegar. Era óbvio que as empregadas achavam que era suficiente que as coisas estives-sem algures, em qualquer sítio, na mesa. Poirot discordava, e fazia questão de impor a ordem assim que chegava.

– Desculpe, menina, importa-se de fechar a porta, se vai entrar? – gritou a Cabelo Esvoaçante à mulher de chapéu e casaco casta-nhos, que agarrava a ombreira da porta com uma mão, ainda virada

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para a rua. – Ou mesmo se não for entrar. Quem está aqui dentro não quer congelar.

A mulher entrou. Fechou a porta, mas não se desculpou por tê-la mantido aberta durante tanto tempo. A sua respiração cortada era audível em toda a sala. Parecia não reparar que estavam outras pessoas presentes. Poirot cumprimentou-a com um «boa noite» suave. Ela virou-se parcialmente para ele, mas não deu qualquer resposta. Os seus olhos estavam arregalados de um medo estranho, suficientemente poderoso para prender outra pessoa, como um aperto físico.

Poirot já não se sentia calmo e satisfeito, como quando che-gara. A sua disposição tranquila fora despedaçada.

A mulher foi rapidamente até à janela e espreitou lá para fora. Não vai ver aquilo que procura, pensou Poirot para si. Fitando a escuridão da noite a partir de uma sala bem iluminada, é impossí-vel ver seja o que for com clareza, quando o vidro apenas reflete uma imagem da sala onde a pessoa está. No entanto ela continuou a olhar durante algum tempo, aparentemente decidida a observar a rua.

– Oh, és tu – disse a Cabelo Esvoaçante algo impaciente. – O que se passa? Aconteceu alguma coisa?

A mulher de casaco e chapéu castanhos virou-se.– Não, eu… – As palavras vieram como um soluço. Depois ela

conseguiu controlar-se. – Não. Posso sentar-me na mesa do canto? – Apontou para a que estava mais longe da porta da rua.

– Podes sentar-te em qualquer mesa, a não ser aquela onde o cavalheiro está sentado. Estão todas postas. – Lembrando-se de Poirot, a Cabelo Esvoaçante disse-lhe: – O seu jantar está a andar bem, sir. – Poirot ficou encantado por ouvir isto. A comida no Pleasant era quase tão boa como o café. De facto, quando pensava nas duas coisas juntas, Poirot achava difícil de acreditar o que sabia ser verdade: que todas as pessoas que trabalhavam na cozinha eram inglesas. Incroyable.

A Cabelo Esvoaçante virou-se para a mulher consternada.

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– Tens a certeza de que não se passa nada, Jennie? Parece que deste de caras com o Diabo.

– Estou bem, obrigada. Só preciso de uma chávena de chá forte e quente. O do costume, por favor.

Jennie dirigiu-se apressada a uma mesa no canto mais distante, passando por Poirot sem olhar para ele. Ele virou a sua cadeira ligeiramente para poder observá-la. Sem dúvida que se passava alguma coisa com ela; algo que não queria discutir com as empre-gadas do café, obviamente.

Sem tirar o chapéu ou o casaco, ela sentou-se numa cadeira que estava de costas para a porta, mas assim que o fez virou-se outra vez e olhou por cima do ombro. Tendo a oportunidade de estudar o seu rosto mais detalhadamente, Poirot calculou que tivesse cerca de quarenta anos de idade. Os seus olhos azuis grandes estavam arregalados e não pestanejavam. Pareciam, pensou Poirot, ter visto algo de chocante – «deste de caras com o Diabo», como comentara a Cabelo Esvoaçante. No entanto, que Poirot visse, não havia nada do género para Jennie contemplar, apenas a sala qua-drada com as suas mesas, cadeiras, o bengaleiro de madeira no canto e as prateleiras tortas que suportavam o peso de muitos bules de cores, padrões e tamanhos diferentes.

Aquelas prateleiras eram o suficiente para fazer uma pessoa estremecer! Poirot não via nenhuma razão para que uma prate-leira torta não pudesse ser substituída por uma direita, tal como não compreendia porque uma pessoa haveria de colocar um garfo numa mesa quadrada sem se certificar de que ficava paralelo com a linha direita da borda da mesa. No entanto, nem toda a gente tinha as ideias de Hercule Poirot; há muito que aceitara isso, tanto as vantagens como as desvantagens que isso lhe trazia.

Torcida na cadeira, a mulher, Jennie, fitava a porta com um ar descontrolado, como se esperasse que alguém entrasse de rompante a qualquer momento. Estava a tremer, talvez em parte por causa do frio.

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Não, Poirot mudou de ideias, não era de todo por causa do frio. Estava outra vez calor dentro do café. E, visto que Jennie estava decidida a observar a porta e no entanto se sentara de costas para ela e o mais longe possível, só havia uma conclusão sensata a tirar.

Pegando na sua chávena de café, Poirot levantou-se da mesa e dirigiu-se até onde ela estava sentada. Reparou que não tinha aliança de casamento.

– Permite que me sente consigo um bocadinho, mademoiselle? – Teria gostado de lhe endireitar os talheres, guardanapo e copo de água como fizera com os seus, mas controlou-se.

– Desculpe? Sim, suponho que sim. – O seu tom de voz reve-lou quão pouco se importava. Só estava preocupada com a porta do café. Ainda a observava avidamente, torcida na cadeira.

– É com prazer que me apresento. O meu nome é… ah… – Poirot interrompeu-se. Se lhe dissesse o seu nome, a Cabelo Esvoa-çante e as outras ouvi-lo-iam, e deixaria de ser o seu «cavalheiro estrangeiro» anónimo, o polícia reformado do continente. O nome Hercule Poirot tinha um efeito poderoso sobre algumas pessoas. Nas últimas semanas, desde que entrara num estado de hibernação muito prazenteiro, Poirot sentira pela primeira vez desde há muito o alívio de não ser ninguém especial.

Não poderia ter sido mais evidente que Jennie não estava inte-ressada no seu nome ou na sua presença. Uma lágrima escapara-lhe pelo canto do olho e descia a sua face.

– Mademoiselle Jennie – disse Poirot, esperando que ao utili-zar o seu nome próprio tivesse mais sucesso em chamar a sua aten-ção. – Eu fui polícia. Agora estou reformado, mas antes de me reformar, encontrei no meu trabalho muitas pessoas em estados de agitação semelhantes àquele em que se encontra agora. Não me refiro àqueles que estavam infelizes, apesar de esses serem abundan-tes em todos os países. Não, estou a falar de pessoas que acredita-vam estar em perigo.

Por fim, causara uma impressão. Jennie fixou os seus olhos arregalados e assustados nele.

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– Um… polícia?– Oui. Reformei-me há muitos anos, mas…– Então em Londres não pode fazer nada? Não pode… quero

dizer, não tem poder nenhum aqui? Para prender criminosos, nem nada assim?

– Correto. – Poirot sorriu-lhe. – Em Londres, sou um cava-lheiro idoso, a desfrutar a sua reforma.

Ela não olhara para a porta durante quase dez segundos.– Tenho razão, mademoiselle? Acredita estar em perigo? Olha

por cima do seu ombro porque suspeita que a pessoa que teme a seguiu até aqui e entrará pela porta a qualquer momento?

– Pode crer que estou em perigo! – Parecia querer dizer mais. – Tem a certeza que já não é nenhum tipo de polícia?

– De todo – assegurou-lhe Poirot. Não querendo que ela pen-sasse que não tinha qualquer influência, acrescentou: – Tenho um amigo que é detetive na Scotland Yard, se precisar de ajuda da polí-cia. É muito jovem, tem pouco mais de trinta anos, mas creio que chegará longe na polícia. Ele teria todo o gosto em falar consigo, tenho a certeza. Pela minha parte, posso oferecer… – Poirot parou quando a empregada de rosto redondo se aproximou com uma chávena de chá.

Entregando-a a Jennie, retirou-se para a cozinha. A Cabelo Esvoaçante também se retirara para lá. Sabendo como gostava de falar sobre o comportamento dos seus clientes habituais, Poirot calculou que estivesse nesse momento a tentar começar um debate animado sobre o Cavalheiro Estrangeiro e a sua visita inesperada à mesa da Jennie. Habitualmente Poirot não falava com nenhum dos outros clientes no Pleasant durante mais tempo do que fosse necessário. Exceto quando jantava lá com o seu amigo Edward Catchpool, o detetive da Scotland Yard com quem partilhava tem-porariamente uma casa de hóspedes, limitava-se à sua própria com-panhia, dentro do espírito de l’hibernation.

Os mexericos das empregadas do café não interessavam a Poi-rot; sentia-se grato pela sua ausência conveniente. Esperava que tornasse Jennie mais propensa a falar consigo com franqueza.

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– Teria todo o gosto em oferecer-lhe os meus conselhos, made-moiselle – disse ele.

– É muito gentil, mas ninguém me pode ajudar. – Jennie lim-pou as lágrimas dos olhos. – Desejava isso mais do que tudo! Mas é tarde de mais. Sabe, já estou morta, ou está-lo-ei em breve. Não me posso esconder para sempre.

Já estou morta… As palavras dela tornaram a sala fria de novo.– Por isso, não há ajuda possível – continuou ela –, e mesmo se

houvesse, eu não a mereceria. Mas… sinto-me um bocadinho melhor consigo sentado à minha mesa. – Abraçara-se a si própria, por conforto ou numa tentativa vã de impedir o seu corpo de tre-mer. Não bebera uma gota do seu chá. – Por favor fique. Nada acontecerá enquanto eu falar consigo. Pelo menos isso é algum consolo.

– Mademoiselle, isto é muito preocupante. Está viva agora, e temos de fazer o que for necessário para mantê-la viva. Por favor diga-me…

– Não! – os olhos dela arregalaram-se e encolheu-se na cadeira. – Não, não pode! Nada pode ser feito para impedir isto. Não pode ser impedido, é impossível. Inevitável. Assim que eu estiver morta, a justiça será feita, finalmente. – Olhou por cima do ombro na direção da porta outra vez.

Poirot franziu o sobrolho. Talvez Jennie se sentisse um pouco melhor desde que se sentara à sua mesa, mas ele sentia-se decidida-mente pior.

– Entendi bem? Está a sugerir que está a ser perseguida por alguém que a quer assassinar?

Jennie fixou os olhos azuis lacrimejantes nele.– Conta como assassinato se eu desistir e permitir que acon-

teça? Estou tão cansada de fugir, de me esconder, de estar tão terri-velmente assustada. Quero que acabe, se vai acontecer, e vai, porque tem de acontecer. É a única forma de corrigir as coisas. É o que mereço.

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– Não pode ser – disse Poirot. – Sem saber os detalhes da sua situação, discordo de si. O assassinato nunca pode ser correto. O meu amigo, o polícia, tem de deixar que ele a ajude.

– Não! Não pode dizer-lhe uma palavra disto, nem a ninguém. Prometa que não o fará!

Hercule Poirot não tinha o hábito de fazer promessas que não podia cumprir.

– O que poderá ter feito que mereça ser castigado com assassi-nato? Assassinou alguém?

– Se o tivesse feito não importaria! O assassinato não é a única coisa imperdoável, sabe? Imagino que nunca tenha feito algo ver-dadeiramente imperdoável, pois não?

– Mas a menina fê-lo? E acha que tem de pagar com a vida? Non. Isso não está certo. Se conseguir convencê-la a acompanhar--me até à minha casa de hóspedes, fica muito perto daqui. O meu amigo da Scotland Yard, Mr. Catchpool…

– Não! – Jennie saltou da cadeira.– Por favor sente-se, mademoiselle.– Não. Oh, já falei de mais! Sou tão estúpida! Só lhe contei

porque parece tão gentil, e achei que não podia fazer nada. Se não tivesse dito que estava reformado e era de outro país, nunca teria dito nada! Prometa-me isto: se eu for encontrada morta, dirá ao seu amigo polícia para não procurar o meu assassino. – Fechou os olhos e apertou as mãos. – Por favor não deixe que se ponham a abrir as bocas! Este crime nunca deve ser resolvido. Promete-me que dirá isso ao seu amigo polícia, e fará com que concorde? Se se importa com a justiça, por favor faça o que peço.

Correu na direção da porta. Poirot levantou-se com a intenção de a seguir e depois, reparando na distância que ela conseguira percorrer no tempo que demorara a sair da cadeira, sentou-se outra vez com um suspiro profundo. Era inútil. Jennie fora embora, pela noite dentro. Nunca a apanharia.

A porta da cozinha abriu-se e a Cabelo Esvoaçante apareceu com o jantar de Poirot. O cheiro ofendeu o seu estômago; perdera todo o apetite.

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– Onde está a Jennie? – perguntou-lhe a Cabelo Esvoaçante, como se ele fosse de alguma forma responsável pelo seu desapareci-mento. Na verdade, sentia-se realmente responsável. Se tivesse sido mais rápido, se tivesse escolhido as palavras com mais cuidado…

– Isto é o limite! – A Cabelo Esvoaçante pousou violentamente a refeição de Poirot na mesa e marchou de volta para a porta da cozinha. Empurrando-a, gritou:

– Aquela Jennie foi-se embora sem pagar!– Mas o que tem ela de pagar? – murmurou Hercule Poirot

para si.

Um minuto depois, após uma tentativa breve e sem sucesso de se interessar pelo seu bife com soufflé de vermicelli, Poirot bateu à porta da cozinha do Pleasant. A Cabelo Esvoaçante abriu uma frin-cha, não deixando ver mais do que a sua silhueta magra.

– Alguma coisa errada com a sua refeição, sir?– Permita-me pagar o chá que Mademoiselle Jennie abando-

nou – sugeriu Poirot. – Em troca, teria a bondade de responder a uma ou duas perguntas?

– Então conhece a Jennie? Nunca os vi juntos.– Non. Não a conheço. É por isso que lhe faço este pedido.– Então porque se sentou com ela?– Ela estava assustada, e muito aflita. Deixou-me perturbado.

Tinha esperança de poder ajudar.– Pessoas como a Jennie não podem ser ajudadas – disse a

Cabelo Esvoaçante. – Está bem, eu respondo às suas perguntas, mas primeiro faço-lhe eu uma: onde foi polícia?

Poirot não lhe fez notar que já fizera três perguntas. Esta era a quarta.

Ela olhou para ele com olhos semicerrados.– Algures onde falam francês, mas não foi em França, pois

não? – disse ela. – Já vi a cara que faz quando as outras raparigas dizem «o tipo francês».

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Poirot sorriu. Talvez não fizesse mal se ela soubesse o seu nome.– Chamo-me Hercule Poirot, mademoiselle. Da Bélgica. É um

prazer conhecê-la. – Estendeu a mão.Ela apertou-a.– Fee Spring. Euphemia, na verdade, mas todos me chamam

Fee. Se usassem o meu nome completo, nunca chegariam ao resto do que querem dizer-me, pois não? Não que isso me prejudicasse.

– Sabe o nome completo da Mademoiselle Jennie?Fee acenou na direção da mesa de Poirot, onde o seu prato

ainda fumegava.– Coma o seu jantar. Eu saio daqui a pouco. – Retirou-se abrup-

tamente, fechando a porta na cara dele.Poirot voltou para o seu lugar. Talvez aceitasse o conselho de

Fee Spring e fizesse mais um esforço com o bife. Que animador era falar com alguém que prestava atenção aos detalhes. Hercule Poirot não encontrava muitas pessoas assim.

Fee reapareceu prontamente com uma chávena na mão, sem pires. Bebeu um gole ruidoso enquanto se sentava na cadeira que Jennie deixara vaga. Poirot conseguiu não se retrair com o som.

– Não sei muito sobre a Jennie – disse ela. – Só o que apanhei de algumas coisas que ela disse. Trabalha para uma senhora que tem uma casa grande. É interna. É por isso que vem cá regular-mente, para buscar o café e os bolos de sua senhoria, para os janta-res finos dela, e as festas e essas coisas. Atravessa a cidade, disse-o uma vez. Há muitos clientes habituais que vêm de longe. A Jennie fica sempre para beber alguma coisa. «O do costume, por favor», diz ela quando chega, como se também fosse uma senhora. Supo-nho que essa voz é ela a fingir que é fina. Não é a voz com que nasceu. Talvez seja por isso que não fala muito, por saber que não consegue mantê-la.

– Desculpe – disse Poirot –, mas como é que sabe que Made-moiselle Jennie nem sempre falou assim?

– Já alguma vez ouviu uma empregada doméstica a falar assim direitinho? Eu não.

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– Oui, mais… Então é só especulação?Fee Spring admitiu rancorosamente que não sabia ao certo.

Desde que a conhecera que Jennie falava «como uma senhora fina».– Digo-lhe uma coisa sobre a Jennie: ela é uma rapariga de chá,

por isso tem algum juízo na cabeça, pelo menos.– Uma rapariga de chá?– Isso mesmo. – Fee cheirou a chávena de café de Poirot.

– Todos aqueles que bebem café quando podiam beber chá deviam fazer um exame à cabeça, se quer saber.

– Não sabe o nome da senhora para quem a Jennie trabalha, ou a morada da casa grande? – perguntou Poirot.

– Não. Também não sei o apelido da Jennie. Sei que ela sofreu um desgosto terrível há muitos anos. Ela disse-o, uma vez.

– Desgosto? Ela disse-lhe de que género?– Só há um género – disse Fee decisivamente. – Do género que

dá cabo do coração.– O que eu quero dizer é que há muitas causas de desgostos:

amor que não é correspondido, a perda de um ente querido numa idade tragicamente jovem…

– Oh, nunca ouvimos a história – disse Fee, com uma ponta de amargura na voz. – E nunca ouviremos. Uma palavra, desgosto, foi só isso que ela disse. Sabe, o que se passa com a Jennie é que ela não fala. Não a conseguiria ajudar se ela ainda estivesse sentada nessa cadeira, tanto quanto não a pode ajudar agora que ela fugiu. Ela fecha-se, é esse o problema da Jennie. Gosta de se abandonar ao desgosto, seja lá que desgosto for.

Fecha-se… A expressão despertou uma memória em Poirot, de uma quinta-feira no Pleasant há várias semanas, e de Fee a falar de uma cliente.

Ele disse:– Ela não faz perguntas, n’est-ce pas? Não se interessa por socia-

lizar ou por conversar? Não quer saber das últimas notícias das vidas dos outros?

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– É mesmo isso! – Fee parecia impressionada. – Não tem um pingo de curiosidade. Nunca conheci ninguém mais envolvido nas suas próprias preocupações. Simplesmente não vê o mundo nem os outros. Nunca pergunta como uma pessoa está, ou que tem feito. – Fee inclinou a cabeça. – O senhor é muito perspicaz, não é?

– Sei o que sei apenas de ouvi-la falar com as outras emprega-das, mademoiselle.

O rosto de Fee corou.– Surpreende-me que o senhor se dê ao trabalho de escutar.Poirot não queria envergonhá-la mais, por isso não lhe disse

que ansiava pelas suas descrições dos indivíduos que se habituara a considerar, coletivamente, «As Personagens do Café»… o Sr. Não É Bem Isso, por exemplo, que de cada vez que entrava pedia a comida e cancelava imediatamente o pedido porque decidira que não era bem isso que queria.

Agora não era a altura adequada para perguntar se Fee tinha um nome do mesmo tipo de Sr. Não É Bem Isso para Hercule Poirot, que usava na sua ausência, talvez um que fizesse referência ao seu bigode refinado.

– Então Mademoiselle Jennie não quer saber da vida dos outros – disse Poirot pensativo –, mas ao contrário de muitos que não se interessam pelas vidas e ideias das pessoas à sua volta, e que só falam de si próprios sem parar, ela também não faz isso… Não é assim?

Fee arqueou as sobrancelhas.– Tem uma memória poderosa. Acertou em cheio outra vez.

Não, a Jennie não fala de si própria. Responde a uma pergunta, mas não se demora na resposta. Não quer ser afastada durante muito tempo do que está na sua cabeça, seja lá o que for. O seu tesouro escondido… Mas não a faz feliz, aquilo em que pensa insistentemente. Há muito que desisti de tentar entendê-la.

– Pensa insistentemente no desgosto – murmurou Poirot. – E no perigo.

– Ela disse que corria perigo?

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– Oui, mademoiselle. Lamento não ter sido suficientemente rápido para a impedir de ir embora. Se alguma coisa lhe aconte-cer… – Poirot abanou a cabeça e desejou recuperar a sensação de contentamento com que chegara. Bateu no tampo da mesa com a palma da mão enquanto tomava a sua decisão. – Voltarei cá demain matin. Diz que ela vem cá frequentemente, n’est-ce pas? Encontrá--la-ei antes que o perigo o faça. Desta vez, Hercule Poirot será mais rápido!

– Rápido ou lento, não importa – disse Fee –, ninguém conse-gue encontrar a Jennie, nem que ela esteja à frente do seu nariz, e ninguém a pode ajudar. – Levantou-se e pegou no prato de Poirot. – Não vale a pena deixar a comida arrefecer por causa disso – con-cluiu.