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Copyright © 2009 Ondjaki.

Coordenação geralJosé Eduardo Agualusa

EditorEduardo Coelho

Editora assistenteCarolina Casarin

CapaLeandro Collares

Projeto gráficoRico Lins

Foto

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Daniel Mordzinski — Pernas parasonhos arejados

EditoraçãoLeandro Collares (SelêniaServiços)

Geração de ePubSelênia Serviços

Ondjaki.Os da minha rua / Ondjaki.

– Rio de Janeiro : Língua Geral,2007. – (Coleção ponta de lança)

ISBN 978-85-60160-23-51. Contos angolanos

(português). I. Título. II. Série.

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Índices para catálogo sistemático:1. Contos angolanos (português)

869.3

Todos os direitos desta ediçãoreservados àLíngua Geral Livros Ltda.R. Jardim Botânico, 600/gr. 501-503Rio de Janeiro - RJ 22461-000Tel: (21) 2279-6165Fax: (21) 2279-6151www.linguageral.com.br

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ponta de lança

A presente coleçãopretende dar a conhecer aosleitores brasileiros vozesnovas, ou ainda poucoconhecidas, algumas geradasmuito perto de si, outrasvindas de longe, de África,da Ásia, da Europa, todas,

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porém, expressando-se nonosso idioma. Vozes que sãotestemunho da vitalidade dasculturas de línguaportuguesa, e em particulardas literaturas desses países,e também da extraordináriariqueza da nossa língua e domuito que nos aproxima. Nãose entende o Brasil sem aÁfrica ou Portugal, damesma maneira que não seentende Angola ou Cabo

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Verde sem a participação doBrasil. Venha partilharconosco esta aventura. Aporta está aberta. A casa ésua.

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para os da minhacasa.

para a tiarosa. para otio chico.para o avôaníbal. paraa avó júlia.para oscamaradasprofessoresángel e

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maría.para o avômbinha.para a avóagnette.para os da minhainfância.

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para a ray.

não seesqueçamque vocês,as crianças,são as flores dahumanidade

palavras docamaradaprofessorángel

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sumário

O voo do JikaA televisão mais

bonita do mundoO KazukutaJerri Quan e os

beijinhos na bocaOs óculos da CharlitaA professora

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Genoveva estevecá

A ida ao NamibeO homem mais magro

de LuandaO último Carnaval da

VitóriaA piscina do tio

VictorOs quedes vermelhos

da TchiManga verde e o sal

também

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Bilhete com foguetãoAs primas do Bruno

ViolaO portão da casa da

tia RosaOs calções verdes do

BrunoO bigode do professor

de GeografiaNo galinheiro, no

devagar do tempoUm pingo de chuvaO Nitó que também

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era SankarahNós choramos pelo

Cão TinhosoPalavras para o velho

abacateiro

Para tingir a escrita debrilhos lentos e silenciosos(troca de cartas)

Glossário

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Do autor

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o voo do jika

O Jika era o maisnovo da minha rua. Assim: oTibas era o mais velho,depois havia o Bruno Ferraz,eu e o Jika. Nós até às vezeslhe protegíamos doutros maisvelhos que vinham fazerconfusão na nossa rua.

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O almoço na minhacasa era perto do meio-dia.Às vezes quase à 1h. Ao12h15min, o Jika tocava àcampainha.

— O Ndalu tá? —perguntava à minha irmã ouao camarada António.

— Sim, tá.— Chama só, faz

favor.Eu interrompia o que

estivesse a fazer, descia.

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— Mô Jika, comé?— Ndalu, vinha te

perguntar uma coisa.— Diz.— Hoje num queres me

convidar pra almoçar na tuacasa?

— Deixinda irperguntar à minha mãe.

Entrei. O Jika ficouansioso na porta, aguardandoa resposta. Quase sempre aminha mãe dizia sim. Só se

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fosse mesmo maka de poucacomida, ou muita gente quejá estava combinada para oalmoço. Se a avó Chicaviesse, ia trazer também aHelda, e assim já não ia dar.Mas normalmente a minhamãe dizia mesmo “sim”. Eficava a rir.

— A minha mãe disseque podes.

— Ah é? — elepareceu surpreendido. — E a

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que horas é que vocês vãoalmoçar?

— Ao 12h30min, Jika.— Então vou pedir na

minha mãe.Deixei a porta aberta.

O Jika devia voltar semdemora quase nenhuma.Gritou contente, cá de baixo,na direção da janela doquarto da mãe dele:

— Maaaaãe, a tia Sitame convidou pra almoçar na

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casa dela. Posso?— Podes. Mas vem

mudar essa camisa suada.O Jika deu uma

esquindiva, fingiu que játinha mudado, veio a corrernuma transpiração respirada.Contente. Olhos do miúdoque ele era. Fosse o melhorprograma da semana dele. Eeu, mesmo miúdo candengue,fiquei a pensar nas razões doJika não gostar nada de

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almoçar na própria casadele.

O Jika estavahabituado à muita gasosa.Nesse tempo, se houvessegasosa na minha casa erapara dividir. Como éramostrês, eu e duas irmãs, quandoo Jika vinha almoçar, até adivisão corria melhor. Elepor vezes queria fugir desseritual:

— Tia Sita, posso

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beber uma gasosa sozinho?— Sozinho, bebes na

tua casa — a minha mãerespondeu. — Aqui divide-se.

Depois do almoço, oJika disse que ia à casa delebuscar “uma coisa”. Eufiquei à espera, no portãoaberto. Prometeu nãodemorar. Voltou com a talcoisa escondida debaixo dobraço, e entramos

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rapidamente na minha casa.Subimos ao primeiro andar,fomos até ao quarto da minhairmã Tchi, e saltamos davaranda para uma espécie detelhado. Aproximamo-nos daberma. Lá em baixo estava arelva verde do jardim. OJika abriu um muito, muitopequenino guarda-chuvaazul.

— Põe a mão aqui —ensinou-me. — Agora

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podemos saltar.— Tens a certeza? —

olhei para baixo.— Vamos só.Saltamos.A infância é uma coisa

assim bonita: caímos juntosna relva, magoamo-nos umbocadinho, mas sobretudorimos. O Jika teve outraideia.

— Calma só, môNdalu. Vou na minha casa

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buscar um maior.— Não, Jika, desculpa

lá. Vais saltar sozinho, eu jánum vou saltar mais deguarda-chuva.

— Nem num bemgrande que tenho, daquelesda praia, antissol e tudo,colorido tipo arco-íris?

— Nem esse!O Jika ficou

desanimado. Sem outraspropostas para brincadeiras

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perigosas, decidiu ir paracasa. Ao cruzar o portão,falou ainda:

— Posso te perguntaruma coisa?

— Diz, Jika.— Amanhã num queres

me convidar pra almoçar natua casa?

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a televisão maisbonita do mundo

Sempre que erapara ir a algum lugar dedemorar, o tio Chico diziaque íamos à “casa andeia”.Nunca percebi aquilo. Erauma dica dos mais velhos.

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Nem mesmo a tia Rosa faziasó o favor de me explicar.Nada. Todos riam e euapanhava do ar. Nessa noiteo tio Chico falou:

— Dalinho, vamos àcasa andeia.

Deviam ser umas 7h danoite e fazia frio de cacimbofresco.

Isso da “casa andeia”muitas vezes era entãoficarmos sentados num bar

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com os mais velhos a beberum monte de cerveja e acomer quase nada. Se haviaoutras crianças eu ainda iabrincar, mas normalmentenem já isso. Os homensconversavam, a tia Rosatambém bebia, ficava muitotempo calada. Eu brincavaum pouco se houvesse jardimou mesmo rua. Depoissentava-me no colo da tiaRosa e começava a “encher

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o saco”, como dizia o tioChico. Começava aperguntar se já íamosembora, dizia que tinha sonoe fome, só me respondiamque estava quase a chegar ahora de irmos. E vinhammais cervejas. Muitas mais.

A cerveja era a bebidapreferida do tio Chico. Acerveja em muita quantidade,para dizer bem as coisas. Otio Chico era uma pessoa que

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podia beber muita cerveja enão ficava bêbado, podiamesmo conduzir o carro delenas calmas. Só não podiamisturar. Um dia o tio Chicomisturou vinho e uísque edepois mandou parar o carroque o filho dele ia aconduzir, começou a meabraçar e a falar à toa. Eufiquei com vontade de chorarmas a tia Rosa veio me dizerque aquilo era normal. Mas

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se fosse só cerveja, acho queninguém aguentava o tioChico. Um dia, num desseslanches de fim de tarde,enquanto eu comia, ele, oamigo dele e a tia Rosavarreram assim uns 39 coposde cerveja.

Desta vez o tio Chicodisse que íamos à “casaandeia” mas era só a brincar.No caminho eu ouvi ele dizerà tia Rosa que íamos à casa

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do Lima buscar umascadeiras para o quintal. OLima era um senhor muitomagrinho que também bebiabem, tinha os olhos sempre abrilhar e a boca sempre a rir.Era simpático o Lima, edevia ser amigo do tio Chicoporque o tio Chico gostavade lhe chamar “o sacana doLima”. Chegamos à casa dosacana do Lima numa ruabem escura que era preciso

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cuidado quando andávamospara não pisar nas poças deágua nem na dibinga doscães. Eu ainda avisei à tiaRosa, “cuidado com asminas”, ela não sabia que“minas” era o código para ococó quando estava assim narua pronto a ser pisado.

O Lima veio abrir aporta, os olhos delebrilhavam muito e trazia jána mão uma Nocal bem

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gelada. Passou a garrafa paraa mão esquerda e apertou amão de todo o mundo,mesmo da tia Rosa, e a mãodele estava muito gelada.Isso era bom na casa doLima, as bebidas estavamsempre a estalar, eu assimme imaginei já a saborearuma Fanta bem gelada. E mederam mesmo.

Ainda estávamos noquintal, o Lima mostrou ao

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tio Chico as tais cadeirasencomendadas. O Limavendia mobílias muito feias,com um aspecto assim decadeiras que os mais velhosadormecem quando estão nacasa de alguém com umfuneral e o morto também. Eunão gostava dos móveis queo Lima vendia, mas aquelascadeiras até que eram fixes,pintadas de uma cor claracom fitas assim de um

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plástico verde. Da cor dacadeira comprida, verdetambém, que estava sempreno quintal da minha casa.Mas o tio Chico não gostoumuito, disse que estavam malsoldadas e que aquilo eraperigoso. O Lima riu, mas otio Chico não estava abrincar.

— Ó meu sacana, jáviste se eu sento aí a minhasogra e ela cai no chão,

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como é que vais ficar quandoeu te der essa notícia?

O Lima transpirava.Passou a mão na testa, olhoua cadeira.

— A malta dá um jeitonisso depois, não tepreocupes. Entra, Chico.

Entramos todos, masaté tenho que dizer aqui umacoisa. Nessa altura, emLuanda, não apareciammuitos brinquedos nem

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coisas assim novas. Entãonós, as crianças, tínhamossempre o radar ligado paraqualquer coisa nova. Malentramos no quintal, vi umacaixa de papelão bem grandee restos de esferovite nochão. Isso só podia significaruma coisa: havia materialnovo naquela casa, podia serfogão, geleira ou outra coisaqualquer, e mesmo acho queera essa a razão de estar toda

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gente com bebidas na mão.Eu tinha pensado isso tudo,mas calado e, quandoentramos, entendi: na estante,havia uma televisão novatipo um bebé daquelesacabados de nascer. Osolhos do Lima brilharammais ainda:

— Olha lá estamaravilha, Chico.

Foi buscar com a mãoainda fresca da cerveja um

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manual de instruções dentrode um plástico que cheiravaa novo. Eu já nem ligueimais à gasosa, fiquei a olhara estante com bué de fotos dafamília do Lima.

Mandaram-nos sentar.O Lima carregou no botão enada. Ele transpirava. Ficoutriste de repente. Mexeu natomada, acendeu e apagou aluz da sala. O tio Chico coma cerveja dele. A tia Rosa de

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braços cruzados. Eu à esperada imagem a qualquermomento. Olhei o cinzentoda televisão e umas trêsluzes apareceram de repentecomo se fossem um semáforomaluco e tive a certeza queaquela era mesmo atelevisão mais bonita domundo. Fez um ruído tipo umanimal a respirar e acendeudevagarinho. Não conseguificar calado e disse bem

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alto: “Chéeeeeee, essatelevisão é bem esculú!”, etodos riram do meu espantoassim sincero: era a primeiratelevisão a cores que eu viana minha vida.

A imagem apareceubem nítida e cheia de cores.Era lindo e eu nunca tinhareparado que umapresentador de televisãopodia vestir uma roupa comtantas cores. Lembro-me

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ainda hoje: estava a dar onoticiário em língua nacionaltchokwe. Ninguém entendianada, baixaram o som. A tiaRosa disse-me “fecha aboca, vai entrar mosca”, etodos riram outra vez. Nãome importei.

Falaram de novo dascadeiras. O Lima dizia tudoque sim, que podia serresolvido. Mexeu nos botõesda televisão e a cor ficou

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ainda mais viva. Na imagemtudo já estava misturado,parecia um quadro molhadocom aguarelas bemexageradas. Pensei nos meusprimos, a essa hora lá nacasa da Praia do Bispo, coma televisão da avó Agnette apreto e branco, e aqueleplástico azul que até hojenão sei para que servia.Quando eu contasse datelevisão a cores exageradas

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na casa do Lima, os primosiam me acreditar, ou seráque todos iam rir e mechamar de mentiroso comforça?

Fiquei com inveja dosfilhos do Lima, que todosdias iam ver cores naquelatelevisão a cores: atelenovela Bem-amado como Odorico e o Zeca Diabo, oVerão azul com o Tito e oPiranha, os bonecos

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animados do Mitchi, oGustavo com três fios decabelo e até a Pantera Cor-de-Rosa com o cigarro bemcomprido. “Tudo a cores,como uma aguarela bembonita”, pensei, enquanto atia Rosa me fazia festinhasna cabeça.

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o kazukutapara otioJoaquim

Nós estávamossempre atentos à queda dasnêsperas, das pitangas e das

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goiabas, e era mesmo porgritarmos ou por corrermosque o Kazukuta acordavaassim no modo lento de virnos espreitar, saía da casotadele a ver se alguma fruta iasobrar para a fome dele.

Normalmente elecomia as nêsperas meiocansadas ou de pele jáescura que ninguémapanhava. Mexia-se sempredevagarinho, bocejava, e era

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capaz de ir procurar umbocadinho de sol para lheacudir as feridas, ou entãomesmo buscar regresso nacasota dele. Às vezes,mesmo no meio dasbrincadeiras, meio distraído,e antes de me gritarem comforça para eu não estar assimtipo estátua, eu pensava que,se calhar, o Kazukutanaquele olhar dele deramelas e moscas, às vezes,

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ele podia estar a pensar.Mesmo se a vida dele era sóestar ali na casota, sair eentrar, tomar banho demangueira com água fraca,apanhar nêsperas podres evoltar a entrar na casotadele, talvez ele estivesse apensar nas tristezas da vidadele.

Acho que o Kazukutaera um cão triste porque éassim que me lembro dele.

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Nós não lhe ligávamosnenhuma. Ninguém brincavacom ele, nem já os maisvelhos lhe faziam só umafestinha de vez em quando.Mesmo nós só queríamosque ele saísse do caminho enão nos viesse lamber com ababa dele bem grossa depingar devagarinho e asferidas quase a nuncasararem. Acho que oKazukuta nunca apanhou

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nenhuma vacina, se calharele tinha alergia ou medo,não sei, devia perguntar aotio Joaquim. Também oKazukuta não passeava narua e cada vez andava só adormir mais.

Um dia era de tarde evi o tio Joaquim dar banhoao Kazukuta. Um banho dedemorar. Fiquei espantado: otio Joaquim que ficava atétarde a ler na sala, o tio

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Joaquim que nos puxava asorelhas, o tio Joaquimsilencioso, como é que elepodia ficar meia hora a darbanho ao Kazukuta?

Lembro o Kazukuta aadorar aquele banho, deveser porque era um banhosincero, deve ser porque otio punha devagarinho frasesao Kazukuta, e ele depois iaadormecer. Kazukuta:lembro bem os teus olhos

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doces a brilhar tipo um marde sonhos só porque o tioJoaquim — o tio Joaquimsilencioso — veio te darbanho de mangueira e tefalou palavras tranquilasnum kimbundu assim comcheiros da infância dele.

E demorou. Jáestávamos quase a parar anossa brincadeira. Porqueafinal a água caía nos pelosdo Kazukuta, e os pelos

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ficavam assim coladinhos aocorpo, e virados para baixocomo se já fossem muitopesados, e a água acabou,não tinha mais, e mesmo semfechar a torneira o tioJoaquim, com a mangueiraainda a pingar as últimasgotas dela, e no regresso doKazukuta à casota, depoisdaquele abano tipo chuviscode nós rirmos, o tio Joaquimdeu a notícia que tinha

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demorado aquele tempo todopara falar:

— Meninos, a tiaMaria morreu.

Até tive medo, nãodaquela notícia assim muitoséria, mas do que alguémperguntou:

— Mas podemoscontinuar a brincar só maisum bocadinho?

O tio largou amangueira, veio nos fazer

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festinhas.— Sim, podem.Vi um sorriso

pequenino na boca do tioJoaquim. Às vezes eleaparecia no quintal sem fazerruído e espreitava a nossabrincadeira sem corrigirnada. Olhava de longe comose fosse uma criança quietacom inveja de vir brincarconosco.

O tio Joaquim era

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muito calado e sorriadevagarinho como se nuncasoubesse nada das horas edas pressas dos outrosadultos. O tio Joaquimgostava muito de dar banhoao Kazukuta.

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jerri quan e osbeijinhos na boca

para aIrene,MateuseJackieChan

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O Mateus gostavamuito de vir à nossa casa —fim da tarde — porque aIrene muitas vezes estava láà espera dele. Ouvi muitasvezes outras pessoas dizeremque a minha mãe era boapessoa e a Irene tambémdizia “a tua mãe é um amor”,isso porque a minha mãedeixava a Irene ficar na salado meio com as portasfechadas a dar beijinhos na

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boca do Mateus.Eu não conseguia

entender aquilo muito bemmas parece que o pai daIrene não gostava que eladesse beijinhos na boca doMateus. Ouvi dizer que o paidela não gostava de negro,eu até via muitos negros lána casa dele a beberem ecomerem com ele e todos arirem juntos. Não sei. Secalhar um rapaz negro a dar

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beijinhos na boca da Irene jáera uma coisa diferente.

Quando o Mateuschegou eu já tinha vestido asbermudas azuis e uma camisabranca entalada. O cintotambém. A minha mãe tinhame obrigado a tomar banho,cortar as unhas e esfregarbem os pés, ela era muitosimpática, não me obrigava apentear o cabelo e tinha-seesquecido das orelhas. O

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Mateus entrou, mexeu-me nocabelo como eu não gostavaque fizessem e depoiscumprimentou o meu pai.

— Queres ir ali prasala do meio, Mateus? —todo mundo riu, ele ficoubem atrapalhado. A Irenedemorou pra chegar masdepois apareceu. Ela estavabem bonita com um vestidobranco daqueles que o ventogosta de levantar nos filmes.

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Saímos os três. A pé.Ainda não estava muitoescuro, subimos pela zonaverde, demos encontro com amaternidade onde eu nasci,depois o hospital Militar e olargo 1o de Maio.

— Sabes que eucostumo vir aqui noscomícios, Irene? — ela disseque sim só pra medespachar, ia toda contentede mãos dadas com o

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Mateus, davam beijinhos naboca e riam toda hora. Euainda não sabia qual era asurpresa.

Atravessamos umpequeno descampado e viuma espécie de casa bemgrande toda pintada dumacor tipo Pantera Cor-de-Rosa. Na entrada havia buéde gente a imitar assim unspontapés de karaté e naparede um poster bem grande

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dum chinês bem pequenino abater em bué de muadiês. Lidevagar a soletrar numadificuldade de palavrasc o mp r i d a s : A grandedesfora, a Irene riu mas oMateus não, e falou comcalma:

— É “desforra”, temdois érres. Então, já sabesler? — perguntou, enquantocomprava os bilhetes daprimeira vez que eles dois,

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de mãos dadas, me levaram aum cinema verdadeiro.

Chamava-se CineAtlântico e era a maior salacom a maior quantidade decadeiras e uma tanta gente afazer barulho que nunca maiso filme começava. Eu olhavaaquele mundo todo novo: ocinema sem paredes de lado,as árvores e as andorinhas,umas poucas nuvens no céubem escuro de quase noite, e

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a tela toda branca se acendeude luz brilhante antes mesmode as luzes se apagarem eaquela toda gente fazer umsilêncio de espera e logodepois assobiar forte para afuga geral dos passarinhosquando todos começaram agritar “Jerri Quan!, JerriQuan!”. Bateram palmas e eutambém.

Olhei para o lado e aIrene tinha a cabeça dela no

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ombro do Mateus, os doisolhavam o ecrã de mil corescom as letras numa línguasuspeita tipo os desenhos daminha irmã caçula, e embaixo a tradução: A grandedesforra. O Mateus, no meiodos assobios e gritaria,olhou para mim, eu griteitambém “a grande desforra”,com dois érres bemcarregados, “agora dissebem, né?”, e ele fez que sim

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com a cabeça.O filme começou e era

bem bom. Afinal Jerri Quanera o nome do artista e elebatia male!, ninguém lheaguentava, o nome dobandido careca era Kisse equando soltaram o tio doJerri, depois da corrida depatins, o Kisse levou só buéde pontapés na cabeça atédesmaiar. Vi o filme quasetodo sem olhar para os

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lados, nunca tinha visto umecrã assim tão grande e osom também era bem cuiante,única coisa foi que quandoderam aquelas letras no fimsenti que tinha sido bemferrado pelos mosquitos.

Voltamos para casa.Fui o caminho todo a imitaros golpes e pontapés do JerriQuan na última luta que eleaté deu beijinho na careca doKisse antes de ele cair já

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tipo bêbado sem forças. OMateus só ria.

Entrei em casa, fuicontar o filme às minhasirmãs e aumentei já lá o queera meu. O Mateus foi com aIrene para a sala do meio. Aminha mãe mandou-me ir lálevar dois copos de sumoTang. Quando entrei elestavam a dar aquelesbeijinhos na boca bemdemorados. O telefone tocou.

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Saí a correr, fui atender.A minha mãe ralhou-

me bué depois dessetelefonema, mas não foimesmo de propósito. É quenós, as crianças, gostamos deresponder só assim sempensar muito no que afinalvamos dizer. O pai da Ireneperguntou onde eu tinha ido.Eu disse a verdade. Se tinhagostado. Eu disse que eramuito bonito e que muitas

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pessoas já tinham lido sobreaquilo nalgum jornal porquefalavam das cenas antes deelas acontecerem. Eletambém perguntou se eu tinhaido com os meus pais. Eudisse que não. Então o pai daIrene perguntou com quem eutinha ido ao Cine Atlântico.

E eu disse.

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os óculos dacharlita

Todas as filhas dosenhor Tuarles viam muitomal. Durante o dia, comohavia luz do sol, não senotava tanto, mas a partir das5h30min da tarde todas elas

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recusavam jogar“escondidas” porque tinhammedo de não encontrarnenhum dos escondidos.

Perto das 5 era hora dolanche. A avó Agnette — oua tia Maria — vinha até àvaranda e gritava o nome deum de nós. Alguém berrava“abuçoitos” e o jogo sofriaesse intervalo de irmosbeber chá aguado ou comermeia banana com pão. As

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filhas do senhor Tuarles nãolanchavam. Ficavam no muroda casa delas à espera. Sedemorássemos muito já nãoqueriam continuar nenhumjogo.

A Charlita era a únicaque tinha uns óculos muitogrossos, muito amarelos emuito feios. Elas eram cinco— as filhas do senhorTuarles. A Charlita além deser a dona dos óculos era

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também a única que já tinhaido a Portugal com o própriosenhor Tuarles, numadeslocação que tinha dadomuito que falar na Praia doBispo.

Depois do lanche o Solia embora de repentemente.Os soviéticos abandonavama obra do Mausoléu eficávamos ali, no muro quedividia a casa da avóAgnette da casa do senhor

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Tuarles. Passavam tambémmuitos trabalhadoresangolanos. Depois passava ocamião com uma torneiraatrás a jorrar bué de águapara acabar com a poeira. APraia do Bispo era um bairrocheio de camiões: passavaesse camião da água, ocamião da gasolina, ocamião do lixo e o camiãodo fumo dos mosquitos.Todos esses camiões davam

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alegria e tinham uma músicaprópria que nós gritávamosenquanto corríamos atrásdeles.

A noite chegava. Aconversa no muro aquecia.Dois ou três ficavam aestigar, os outros riam só. OPaulinho contava filmes doBruce Lee, do Trinitá e dosninjas enquanto, num outromuro, atrás da trepadeira, oGadinho espreitava a nossa

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infância de riso eatrevimento. O Gadinho era“testemunha”, não podiabrincar quase nada nem ir afestas. Nem mesmo receberprendas como um bolo deanos que lhe quisemos sóoferecer.

Se entrássemos poralguma razão na sala dosenhor Tuarles,encontrávamos todo o mundocom o rabo afundado nuns

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cadeirões muito grandes eantigos. A mulher do senhorTuarles, os filhos rapazes dosenhor Tuarles e a mãe damulher do senhor Tuarles.

As filhas ficavamsentadas perto, muito pertoda televisão. Quando digoperto, estou a falar de doisou três palmos entre a caradelas e o ecrã. De vez emquando o senhor Tuarlesgritava para se afastarem

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para os lados:— Deem espaço,

porra. Eu também quero ver.A mulher do senhor

Tuarles, a dona Isabel, nãodizia nada. A mãe da mulherdo senhor Tuarles, a avóMaria, dizia alguma coisaem kimbundu e depois ria.Nós tremíamos.

As filhas passavam osóculos entre elas. Cada umavia dois minutos e os óculos

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mudavam de rosto. Erabonito de ver. Quando nãotinham os óculos na cara,tapavam o rosto quase todo edeixavam um buraquinhoapenas, “para ver melhor”,diziam. Mas se a novelaaquecesse numa parte assimmais entusiasmante, o senhorTuarles gritava “deemespaço, porra”, e a Charlita,por ser a dona, voltava a pôros óculos na cara. E ria.

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Todas as filhas dosenhor Tuarles viam muitomal. Mas a Charlita — quetinha os óculos grossos,amarelos e feios — ria deser a única da casa queconseguia ver bem astelenovelas e os sorrisos nasbocas nítidas de todas aspersonagens.

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a professoragenoveva esteve cá

Depois do almoçoo pai e a mãe sempredescansavam. O meu pai,logo a seguir à refeição,gostava de comer qualquercoisa doce e depois ia

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dormir um bocadinho. Aminha mãe, que dava aulas àtarde, também tinha essehábito de adormecer ali nosofá, nem que fosse só por15 minutos.

Mas era sábado, nãotínhamos ido à praia. O meupai e a minha mãe foramdormir juntos. Eu e a manaTchi ficamos na sala, ajiboiar, à espera queacontecesse alguma coisa. E

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aconteceu mesmo: tocaram àcampainha.

Espreitei pela cortinada sala. Era a professoraGenoveva, colega da minhamãe na escola onde ela davaaulas. Fazia muito calor. Aprofessora Genovevatranspirava muito e tinha umacara preocupada.

— Não vou abrir — aminha irmã já tinha gritado.

— Nem eu! — eu

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recusei a seguir.— Mas eu pedi

primeiro.A mana Tchi ficou

deitadinha no sofá, a rir. Eutinha que ir falar com aprofessora Genoveva. Abri aporta do corredor, e um bafoquente tocou-me na cara.Olhei e vi bem, era mesmoela. Peguei na chave,aproximei-me do portãopequenino. Abri a porta.

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— Boa tarde,camarada professora.

— Tás bom, filho? —ela perguntou, e passou amão toda suada no meuqueixo, como eu não gostavaque ninguém fizesse.

— Sim, tudo bem.— A mãe? — ela

perguntou devagarinho.— A mãe tá deitada.— Ó filho, não podes

chamar a mãe? Eu preciso

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muito de falar com ela.Isso de “eu preciso

muito de falar com ela” erauma frase que eu já conheciade outras pessoas. Mesmo eujá tinha sido ralhado muitasvezes pelo meu pai, só porter-lhe acordado na conta deumas pessoas chatas quetinham vindo lhe incomodar.Uma vez eu fui acordar omeu pai, “pai, tá lá em baixoo camarada João, veio pedir

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cigarros”, e o meu pai disseassim meio a dormir“cigarros, a bardamerda!”,mas não podia dizer isso aocamarada João, então mentique o meu pai estavamaldisposto e eu não tinhaconseguido lhe acordar.Também às vezes a minhamãe dizia para eu ir de novoaté ao portão pequeninodizer que a mãe estava alavar a cabeça e ainda ia

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demorar uns 45 minutos. Masnaquele sábado eu nemprecisava de inventarnenhuma estória.

— ProfessoraGenoveva, eu não possoacordar a minha mãe.

— Ó filho, mas eupreciso mesmo de falar comela.

— Mas ela foi-sedeitar porque tava muitoincomodada.

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— Ah sim?— Sim, é que ela hoje

acordou com a menstruação,tava cheia de dores.

A professoraGenoveva fez uma caramuito estranha, parecia quetinha dores de menstruaçãotambém. Limpou o suor datesta, do queixo, mas nãoadiantou muito porquecontinuava toda molhada.

— Hoje de manhã a

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minha mãe acordou cheia dedores. A professora sabecomo é — encostei-me noportão —, quando aparece amenstruação, depende muitodas mulheres, mas algumastêm muitas dores. A minhamãe nem sempre, mas destavez tá cheia de dores. Tomoudois comprimidos para asdores antes do almoço, masquando acabou de almoçarainda tinha dores e disse-me

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que se ia deitar a ver se lhepassava a moinha.

A professoraGenoveva transpirava muito.Olhava pra mim com osolhos muito abertos, não seio que lhe estava a acontecer.Fiquei um bocadinhopreocupado.

— Quer um copo deágua, camarada professora?— perguntei.

— Não, filho — ela

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gaguejou. — Diz só à mãe,quando ela acordar, que aprofessora Genoveva estevecá.

— Tá bem, eu digo.Não leve a mal eu não iracordar a mãe, mas sabecomo é, estas dores damenstruação, é sempreassim, a minha mãe poracaso não fica muitos diascom a menstruação, é dois outrês dias, mas o primeiro dia

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é sempre o pior, mesmo comos comprimidos…

— Sim, filho — elagaguejou mais. — Dá asmelhoras à mãe.

— Sim, mas não sepreocupe, isso depois passa,é normal nas mulheres.

A professoraGenoveva parecia que seestava a sentir mal. A bocadela não fechava edesapareceu rápido como se,

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de repente, não quisessemais falar comigo.

Voltei para dentro. Amana Tchi perguntou o queeu tinha estado ali a falarcom ela e eu contei.

— Pois é, a mãe noprimeiro dia de menstruaçãofica sempre cheia de dores.

— Sim, eu sei, eudisse-lhe isso mesmo, masela parece que não acreditou.

Ficámos um bocadinho

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ali a ver mais televisão.Estava a dar aquelas cenasdo circo chinês que játínhamos visto umasquinhentas vezes. Acabamospor adormecer.

O telefone tocou, e nósdois, bem ensonados, quasenão conseguíamos atender.Quando consegui lá chegar elevantei o auscultador, aminha mãe já tinha atendido,e falava com a professora

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Genoveva. Então desliguei otelefone cá de baixo.Passado um bocadinho aminha mãe desceu. Já estavaacordada mesmo. A minhamãe deu um beijinho à manaTchi, depois veio me fazerfestinhas.

— A Genoveva ligou-me assustada, diz que tu lhedeste uma lição sobre amenstruação — a minha mãeria.

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— Ela esteve aqui equeria que eu te acordasse.Eu expliquei que tavasincomodada.

— Eu sei, filho, eupercebi.

— Mas também, elaescusava de te ligar pra tecontar isso tudo. Assimacordou-te à mesma!

— Não faz mal.Ficamos a ver

televisão. O ar-condicionado

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funcionava mal. Fazia muitocalor. O meu pai desceudepois. Antes de seaproximar abriu o armário ecomeu um chocolatepequenino. A minha mãepassou a mão na barriga,coitada, devia estar comcólicas. Dei-lhe um beijinhoe fiquei ali, quieto, pertodela, a fazer-lhe festinhastambém.

Ficamos o resto da

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tarde na sala, a jiboiar. Erasábado e não tínhamos ido àpraia.

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a ida ao namibe

Fomos num aviãobem pequenino. Íamosp a s s a r 15 dias noutraprovíncia. Era o sítio ondetinha nascido o meu pai:chama-se Namibe. O meuavô disse-me que sechamava Moçâmedes.

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Para mim os nomes nãointeressavam muito. O queme deixava mais curioso éque me disseram que láhavia um deserto, e eu játinha aprendido na escolaque era a província deAngola que tinha avestruzesque corriam bué rápido,tinha gazelas e a famosaWelwitchia mirabilis , aplanta mais bonita de todosos desertos do mundo.

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Quando saímos doavião já fazia bué de frio.Estávamos no mês de agosto,mês do cacimbo para todasas crianças que gostam desentir aquela geada das 5h datarde, e mês das piorescrises de asma para mim.Mas aquela província era tãobonita e gostei tanto de terpassado aquelas duassemanas na casa do primoBeto que nem tive nenhuma

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crise. Foi muito bomconhecer a província doNamibe.

Os dois primeiros diasficamos na cidade, na casadesse primo do meu paichamado Beto. Como toda agente lhe chamava “primoBeto”, eu também cheguei nasala e chamei-lhe de primoBeto. Todos os mais velhosriram, só a minha mãe nãoriu. Mas depois passou-me

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logo essa atrapalhaçãoporque vi, pela primeira vezna minha vida, esses caroçosque eles chamavam de“tremoços”. Por algumarazão o meu pai ainda nãotinha me chamado para eu virprovar. É que eu era assimum pouco estraga-tudo nessaaltura, e o meu pai já deviadesconfiar mais ou menos oque eu ia fazer com os taistremoços.

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Disseram para euprovar, não gostei do sabor.Mas pelo formato, e tambémpor causa da experiência queeu já tinha com as fisgas lána minha rua de Luanda, vique aquele tremoço davamasé para ser disparado sóassim apertando com osdedos. Fui lá fora treinar naárvore e quando voltei à salajá tinha a pontaria bemafinada. A primeira vítima

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foi a minha irmã, a segundafoi uma velha que estava lásentada e que era muda.Fiquei todo satisfeito porquepensei que ela não fosse mequeixar. Mas era uma velhaqueixinhas e o meu pai pôs-me de castigo.

O resto dos diaspassamos na quinta do primoBeto. Aí gostei muito de terconhecido uma horta com umpequeno lago, onde

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arrancávamos o tomate dochão, lavávamos e comíamoslogo ali. Também umamenina muito bonitachamada Micaela ensinou amim e à mana Tchi a comerbatata-doce crua, que erauma maravilha. Comíamos abatata-doce e, se tínhamossede, atacávamos o tomate.Voltávamos os três para aquinta, ao fim do dia, e eudava corrida aos perus.

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Também nunca tinhaconhecido um peru assim deperto com os gritos dele tãoengraçados de glu-glu.

O pai da Micaela, oprimo Zequinha, foi muitosimpático e ensinou-me duastécnicas de caçar rolas, umaera pôr visgo nas árvores eesperar os pássarospousarem, e a outra, que eugostei mais, era usar a armade chumbo para tentar caçar

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alguma coisa. Digo “tentar”porque a minha pontaria nãoera lá muito boa, entãodediquei-me mais à técnicada cola branca na árvore.

De manhãacordávamos cedinho e eratudo muito frio e muitobonito. Eu usava aquelecasaco azul bem antigo que aminha mãe me deu, e quetinha um tecido bem maciotipo veludo que eu adorava

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tanto. Matabichávamosdevagar. Os mais velhosfalavam devagar.Combinaram ir à caça. Aminha irmã riu, baixinho, enão disse a ninguém, mas eusei que ela viu a maneiracomo eu olhava para aMicaela. É que a Micaelaera muito bonita.

Podíamos brincar demanhã e até perto da hora doalmoço. Ajudávamos a pôr a

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mesa, e depois do almoço eue a mana Tchi tínhamos queestudar um bocado. Haviatambém um livro, sobre ocomportamento do corpohumano, que a minha mãedividiu em dez partes paraeu e ela lermos umbocadinho todos os dias.Quando chegou o capítulodas relações sexuais eugostei muito daquelasfotografias do homem

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deitado todo nu com amulher, e da parte que diziaque, para fazer um filho, “ohomem introduziasuavemente o pénis navagina da mulher”. Eu nuncaqueria avançar esse capítulo.A minha mãe é muito queridaporque ela sabia que játínhamos passado aquelecapítulo mas deixou-merepetir a lição.

Um dia, ao fim da

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tarde, o Sol estava muitobonito assim todo amareloquase bem torrado. O meupai tinha ido à caça com oprimo Beto e o primoZequinha também. A manaTchi estava a descansar e aminha mãe a ler. Euperguntei à Micaela se elaqueria dar uma volta comigoali pela quinta. Ela disse quesim. Mas a volta foi muitorápida, e eu perguntei se ela

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queria dar outra volta. Elariu e disse que sim. Comonão queríamos dar outravolta, sentamo-nos numaspedras mais distantes dacasa e eu tinha muitavergonha mas também muitavontade de lhe perguntar seela queria namorar comigo.E ela disse que sim. Então,talvez para comemorar,demos mais duas voltas àcasa, mas já de mãos dadas.

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Na província doNamibe eu conheci aavestruz, as gazelas, ummontão de pássaros, odeserto, e nesse dia à noite,o meu pai e os primos delecaçaram um olongo. Aquilo éque foi ficar de boca aberta:eu nunca tinha visto umanimal tão grande e tãopesado, e também nuncatinha visto umas armas tãocompridas. O primo

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Zequinha disse que atépodiam matar elefantes comaquelas balas, eu pensei quenão era verdade, mas o meupai disse-me que sim.

No último dia demanhã é que o meu pai selembrou de tirar fotografias atodos. Eu também aproveiteiuns pássaros que o primoZequinha já tinha conseguidomatar, pus todos assim nochão perto dumas pedras e

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fui buscar a arma de chumbo.Fiz um poster de joelho nochão estilo filme de cobói eo meu pai tirou uma foto queeu tenho até hoje, tambémcom chapéu que me ficavagrande mas que tinha assimaquele estilo do Trinitá.

Gosto muito dessasfotos todas que tiramos naprovíncia do Namibe, temuma muito bonita da minhamãe bem distraída a fumar

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um cigarro, tem a foto domeu pai perto do olongo queeles tinham caçado, mas,para dizer mesmo a verdade,a foto mais bonita é uma quetou eu, a Micaela e a manaTchi. A Micaela está bonita,eu até que estou posterado,mas a mana Tchi, com o fatoolímpico vermelho tambémdesse tecido fofo tipoveludo, a mana Tchi é queestá mais bonita: com o riso

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bem lindo e, assim quase asair da foto, os doispuxinhos, bem grandes, aprender o cabelo todo pretodela. A mana Tchi.

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o homem maismagro de luanda

—Mascaístedasescadasou foiassimacidentedecarro?—Não,

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pá.Foi oChicoquemedeuumapertão.

palavrasdoVaz,diasdepoisdo

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apertão

A casa do tio Chicotinha talvez a cerveja maisdeliciosa de Luanda. Osmais velhos é que falavamisso, antes e depois debeberem umas quantas. Eu ea tia Rosa tínhamos mais aocupação de abrir a porta eir buscar essa tal deliciosacerveja.

Não me lembro bem se

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os toques eram diferentes ounão, mas o tio Chico sabiaquem estava no portão pelomodo como a campainhatocava. As pessoas iamchegando.

— Ó Rosa, traz aí unstorresmos e o jindungomalandro.

Dois toques rápidos “éo Osório, vai abrir,Dalinho”, um toque suavetipo tímido “é o Mogofores,

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e vem com sede”, toquelongo e palmas “é o Lima, óRosa dá aí um jeito”, a mesaenchia-se de copos decerveja, aperitivos e sobras,quitetas, kitaba, camarões,chouriço, a televisão sempreligada e pessoas de todas ascores que vinham beber dosbarris de cerveja do tioChico.

O tio Chico gostava defazer obras no quintal, acho

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eu. Ao lado da enormegaiola de rolas ele construiudois quartos. Pensei que eraquarto de gente, afinal erapara guardar carne, peixe e obarril de cerveja que ficavalá dentro. Um quarto era tipogeleira, o outro era arca decongelar tudo.

Naquele tempo o tioChico tinha um contato parair buscar barris de cerveja epodia haver maka se não

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houvesse aquela botijafininha de dar pressão aosfinos. Ficava tudo dentro doquartinho-geleira. Cá forahavia a torneira da cerveja eum banquinho para eu chegarlá e poder encher os copos.Eu então gostava bué dessaminha missão de finos.

No quintal do tio Chicoeu já não contava os finos,era perda de tempo. Depoisdo fino 77 as pessoas riam

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muito e já não havia quasetorresmos no pires. Os olhosbrilhavam mais e eu até jápodia contar anedotas semgraça nenhuma que todosriam mesmo só à toa.

A campainha tocou. Sóque o tio Chico não dissequem era. Olhei logo nadirecção do portão, parasaber se ia já a correr abrir.O Lima pousou o copo. OMogofores parou de rir,

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ainda por cima arrotou sempedir desculpa. O Osóriopuxou as calças para cimacomo sempre gostava defazer mesmo que o cinto jáestivesse perto do sovaco. Atia Rosa também esperou. Acampainha tocou mais. Eu jásó mexia os olhos.

— Vai lá ver — o tioChico falou.

— O miúdo não vaisozinho — a tia Rosa

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agarrou-me no braço.Os outros ficaram com

cara de não-sei-quê. Erasempre assim, se houvesseuma pequena maka entre a tiaRosa e o tio Chico, todosparavam de beber. A tiaRosa levantou-se, fomosjuntos. Era o Vaz.

O Vaz era um senhormuito alto, também camba dotio Chico, talvez o homemmais magro de Luanda.

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— Boa noite, donaRosa, o senhor Chico tá? —A tia abriu o portão para eleentrar.

No quintal já haviabarulho de novo. Todosriram quando o Vaz entrounessa maneira desajeitada decumprimentar as pessoas.

— Ó meu sacana, entãotu não sabes tocar acampainha como deve ser?

O Vaz não disse nada,

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cumprimentou todos e no fimaproximou-se com receio dotio Chico.

— Não me digas quetás outra vez com medo deme apertar a mão?

Não sei, eu era só umacriança dessas a olhar osmais velhos, mas muita gentenão gostava assim muito decumprimentar o tio Chico.

— Anda cá, meusacana, andas a tocar a

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minha campainha com toquessecretos, tu quase que entraspela racha do muro.

O Vaz, com medo,chegou perto do tio Chico.Quando foi abraçado, o tioChico fez questão de lhe darum apertozito. As costas doVaz fizeram um ruído tipoestalido de portaenferrujada.

— Ó Dalinho, traz aíum fino bem tirado pra este

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sacana do Vaz.Atravessei o quintal

com o copo de vidro na mão,na direção da torneira dacerveja pendurada naparede. Na cozinha aberta,cá fora, a tia Rosa, com oavental dela azul e bonito,com chinelas abertas eantigas, fritava maistorresmos e controlava opeixe grosso no forno.Durante muitos anos, para

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mim o mundo teve o cheirodaquele quintal maluco: ascervejas, as comidas e asmãos da tia Rosa aemprestarem cheiros decozinha aos meus cabelosdespenteados.

De longe olhei o Vazfazer caretas de dor. Tentavadisfarçar, mas desconseguia.Trouxe-lhe o fino bemgelado e ele bebeu tudoassim num gesto de matar a

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dor.— Tavas cheio de

sede, meu sacana.Depois do jantar, as

filhas do tio Chico já tinhamido dormir e a telenovelaestava quase a acabar.Acordei com a voz doSinhôzinho Malta a dizer“tou certo ou tou errado...?”,e o telefone tocou. O tioChico atendeu. Primeiroficou preocupado, depois riu

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devagarinho.— Tá bem, tá bem,

espero que corra tudo bemcom esse sacana.

Eu e a tia Rosa tambémqueríamos saber do caso. Otio andou devagar, depropósito. Sentou-se.

— Ó Rosa, vai-me lábuscar um fino, filha — o tioChico fechou as janelas dasala, recebeu o copo e bebeude penalty. — À saúde do

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Vaz — ainda disse, enquantoia para o quarto.

A tia Rosa apagou aluz da sala e fomos juntospara o quarto.

— O sacana do Vaz táno hospital, tem duascostelas partidas.

Eu ainda queriaperguntar se isso de costelasera o quê, mas já era tarde.

— Amanhã vamos láver o gajo, e tu podes mexer

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na manivela da cama,Dalinho.

O tio apagou ocandeeiro, enquanto a tiaRosa fez-me uma festinha nabochecha e endireitou olençol, como fazia sempre hátantos anos, para osmosquitos não me ferraremnos braços e não meatrapalharem nos meussonhos de falar durante anoite.

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o último carnaval davitória

A vida às vezes écomo um jogo brincado narua: estamos no últimominuto de uma brincadeirabem quente e não sabemosque a qualquer momento

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pode chegar um mais velho aavisar que a brincadeira jáacabou e está na hora dejantar. A vida afinalacontece muito de repente —nunca ninguém nos avisouque aquele era mesmo oúltimo Carnaval da Vitória.

O carnaval tambémchegava sempre de repente.Nós, as crianças, vivíamosnum tempo fora do tempo,sem nunca sabermos dos

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calendários de verdade. Paranós segunda-feira era um diade começar a semana deaulas e sexta-feirasignificava que íamos terdois dias sem aulas. Depoisas datas eram assimisoladas: Carnaval daVitória, dia do trabalhador,dia um das crianças, fériasgrandes, feriado daIndependência e o Natal como fim de ano também já a

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chegar. O carnaval tinha queser anunciado pelos maisvelhos, como se nós, ascrianças, vivêssemos numavida distraída ao sabor daescola e da casa da avóAgnette.

O “dia da véspera docarnaval”, como dizia a avóNhé, era dia de confusãocom roupas e pinturas aserem preparadas, sonhadase inventadas. Mas quando

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acontecia era um dia rápido,porque os dias mágicospassam depressa deixandomarcas fundas na nossamemória, que alguns chamamtambém de coração. Natelevisão passava o grandedesfile do Carnaval daVitória e, na Praia do Bispo— o bairro poeirento da avóNhé —, formávamos umgrupo pequenino que, comum apito gritante, fazia uma

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passeata de quase 45minutos.

Havia que ir até àbomba de gasolina,atravessar a rua comcuidado, passar perto dacasa do Xana, esse Xana quetodo mundo dizia que tinhaum jacaré no quintal dele, irpelo passeio da Andreia, aamiga bonita da minhaprima, cumprimentar a tiaAdelaide no portão, esperar

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que o Paulinho tambémviesse, e entrar no bairro daKinanga, passando pelo cine,apitando sempre forte, dandoa volta na igreja e voltandopela rua principal outra vez,a olhar as ruas com cuidadopor causa dos carros quevinham com velocidadeconduzidos pelos bêbadosdo Carnaval da Vitória.

Ao chegar a casa secalhar a tia Maria e a avó

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Nhé tinham preparado umlanche magrinho, combanana, pão, umas fatias bemfininhas de bolo feito commetade da receita normal,ngonguenha para quemquisesse, quatro rebuçadosduros e antigos que ninguématacava, um pires pequenode arroz-doce só com cheirode canela, alguma paracuca ea gasosa “batizada”, que erauma gasosa misturada com

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água, de modo que umagarrafa de Fanta ou Coca-Cola, depois de batizada,desse para três ou quatrocopos. A tia Maria vinha dacozinha com o prato dearroz-doce ainda a polvilharo restinho de canela que saíado frasco, a rir, e a fazerestranhos movimentos naboca com a placa de dentestoda velha que ela usava.Não podíamos rir: a avó Nhé

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tinha proibido todos os netosde estigarem a tia Marianesse gesto dela da placa, etinha dito que a tia Maria era“boazinha”. Nós ríamos àsescondidas, porque a tiaMaria era muito gorda etinha o hábito de pôr osdedos também gordos paraprovar todas as comidasquando a avó Nhé não estavaa olhar.

As nossas mães faziam

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de propósito para nos deixarlá na casa da avó Nhé no diado Carnaval da Vitória. Àsvezes até fico a pensar queno dia do carnaval era a dataem que eu via os primostodos, mais até que no Natal.

Quando entrávamospara vir lanchar, as roupas eas pinturas eram já só umresto de coisas penduradas,azuis suados e vermelhostristes nas bochechas da

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prima Naima e da manaTchi. As “Arletes”, como aavó chamava o grupo dasfilhas do senhor Tuarles, àsvezes vinham tambémlanchar conosco, mas a tiaMaria dava-lhes cada olhadaque elas quase nem tinhamcoragem de tirar comidanenhuma. Acho que a tiaMaria só gostava dascrianças que eram de casa eprincipalmente não queria

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que outras criançascomessem as coisas que elatinha preparado. A tia Mariaera muito gorda e passavamuitas horas na cozinha, detal maneira que já ninguémgostava de lhe dar beijinhonas bochechas a cheirar acebola e à margarinadaquelas latas vermelhas.

Além da avó Nhé e datia Maria, estava também aavó Catarina, toda vestida de

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preto e muito caladinha, como lenço escuro a tapar ocabelo todo branquinho. Elaera muito calada e tinhasempre aquele hábito depassar o dia todo a abrir efechar as janelas do quartodela, mas, na altura doCarnaval da Vitória, ela eraboa a dar ideias parainventar máscaras. “A Naimapode ser a bailarina”, diziacom a voz dela muito

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apagada como se fosse umapessoa que ainda não tinhapercebido que afinal já tinhamorrido há muitos anos, “aTchissola pode ficar a fada”,e ia para o quarto dela ver setinha deixado as janelasabertas, trazia mais umaroupa, um lenço, uma ideia,“o Amilcar vai mascaradode polícia”. O Amilcaradorava que lhe chamassemo senhor Polícia, ficou

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vaidoso com a camisa azul eo lenço no pescoço, tinha atéuma pistola de madeira queparecia dos filmes doTrinitá.

Quando entramos parao lanche, na televisão estavaa dar, em direto, o desfile doCarnaval da Vitória. Eu nãogostava de arroz doce, amana Tchissola atacou o meupires. Ficamos todos a ver odesfile e era um mês de

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março. O locutor deu algumainformação errada sobre ocarnaval, e um dos primosdisse que não era assim, queaquele era o Carnaval daVitória porque a 27 demarço se comemorava o diaem que as forças armadastinham expulsado o últimosul-africano de soloangolano, e bué de gentecomeçou a estigar porque alinão estávamos em nenhuma

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aula e não queriam lição dehistória. Mas eu pensei que omeu primo tinha razão.

Estávamos nessadistração de risos e gasosasbatizadas, quando a avóCatarina veio me pedir oapito. Eu tinha esquecido delhe entregar o apito. Naqueletempo, antes de sairmos decasa para o nosso desfile decrianças mascaradas, adisputa era quem ia levar o

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apito na boca. Esse que tinhao poder de apitar fazia a vezdaqueles que, no desfile deverdade, vão à frente amarcar o ritmo do grupo.Nesse ano, não sei porquê,ninguém tinha mostradovontade de apitar, e a avóCatarina tinha me dado oapito. Eu fiquei contente enervoso, porque se eu nãoapitasse bem mais tarde iamme gozar durante bué de

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semanas. Mas correu tudobem.

Agora, devagarinho esempre falando baixo, a avóCatarina veio me pedir oapito.

— Dá-me o apito,filho, que eu tenho de ir lá acima ver se deixei as janelasabertas.

Ela parecia ter pressa.Procurei nos bolsos, nada nocasaco, nada na calça. Fiquei

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atrapalhado, pousei o copocom o restinho da gasosaaguada do batismo.

— Espera só, avó —levantei a calça, encontrei oapito escondido na meia.Tinha medo de ser roubadoporque já tínhamos voltadopara casa quando estavaescuro.

Dei-lhe o apito e elafez uma coisa que faziapoucas vezes: sorriu e fez-

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me um carinho na bochecha.Nunca disse aos meusprimos porque iam me gozar,mas eu não sabia que a mãoassim toda enrugadinha daavó Catarina era tão suave.Fechei os olhos. Quando osabri, ela já não estava lá: aavó Catarina era muitorápida a desaparecer.

Levantaram o som datelevisão. O camaradalocutor estava a conversar

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com alguém e ouvimoscomentários de aquele sermesmo o último Carnaval daVitória.

Lá fora, o camião daágua passou a largar água nopasseio da avó Nhé que tinhasempre muita poeira porcausa das obras doMausoléu. Muitos miúdosbrincavam de correr pertodesse camião e um soviéticodizia palavras que ninguém

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entendia mas acho que eleestava a dizer disparates nalíngua dele.

Como não podiaapanhar poeira, por causa daasma, fui para o quintal. Ovento voava devagar, asfolhas da figueira faziam umruído que era mais umsegredo que um barulho. Lálonge, na rua principal, ouvio barulho da Honda 1100 doJoão Serrador a passar. Os

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dois jacós na gaioladisseram bué de disparatesporque estavam assustadoscom o barulho da mota e sóhavia uma coisa a fazer: fuiaté ao tanque da roupa ondetinham deixado uma águaazulada por causa do sabão,molhei as mãos e sacudi pradentro da gaiola. Os jacóslambiam o corpo comvontade. Mesmo vendo osolhos deles tão alegres,

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nunca entendi como é que osabor do sabão azul lhesacalmava mais que umcarinho.

Isto foi em fins demarço. No último Carnavalda Vitória.

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a piscina do tiovictor

para otioVictorquenosdavaprendasdo diapara a“Buraquinhos”

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Quando o tio Victorchegava de Benguela, ascrianças até ficavam comvontade de fugar à escola sópara ir lhe buscar noaeroporto dos voos dasprovíncias. A maka é que elechegava sempre a horasdifíceis e a minha mãe nãodeixava ninguém faltar àsaulas.

Então era em casa, àhora do almoço, que

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encontrávamos o tio Victor.E o sorriso dele, gargalhadatipo cascata e trovãotambém, nem dá paraexplicar aqui em palavrasescritas. Só visto mesmo, sóuma gargalhada dele já davapara nós começarmos a rir àtoa, alegres, enquanto eleiniciava umas magiasbenguelenses.

— Isto, vocês deLuanda nunca viram — abria

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a mala onde tinha rebuçados,chocolates ou outras prendasde encantar crianças, mais obaralho de cartas paramagias de aparecer edesaparecer o Ás de Ouros,também umas camisasposteradas que nós, “os deLuanda”, não aguentávamos.

À noite deixávamos elejantar e beber o chá que elegostava sempre depois dasrefeições. Devagarinho, eu e

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os primos, e até algunsamigos da rua, sentávamosna varanda à espera do tioVictor. É que o tio Victortinha umas estórias deBenguela que, é verdade,nós, os de Luanda, até nãolhe aguentávamos naquelaimaginação de teatro falado,com escuridão e algunsmosquitos tipo convidadosextra.

Eu já tinha dito ao

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Bruno, ao Tibas e ao Jika,cambas da minha rua, queaquele meu tio era muitoforte nas estórias. Mas oprincipal, embora ninguémtivesse nunca visto só umafoto de admirar, era apiscina que ele disse quehavia em Benguela, na casadele:

— Vocês de Luandanão aguentam, andam aqui abeber sumo Tang!

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Ele ria a gargalhadadele, nós ríamos com ele,como se estivessem milcócegas espalhadas no arquente da noite.

— Nós lá temos umapiscina enorme — fazia umapausa dos filmes, nós deboca aberta a imaginar a talpiscina. — Ainda por cima,não é água que pomos lá —eu a olhar para o Tibas,depois para o Jika:

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— Não vos disse?O tio Victor continuou

assim numa falafantasmagórica:

— Vocês aqui daequipa do Tang nãoaguentam..., a nossa piscinalá é toda cheia de Coca-Cola!

Aí foi o nosso espantogeral: dos olhos dos outros,eu vi, saía um brilho tipofósforo quase a acender a

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escuridão da varanda e aassustar os mosquitos. Nós,as crianças, de boca abertanuma viagem de línguasalivada, começamos a rir deespanto e gargalhamos, o tioVictor também, depoisrebentamos numa salva depalmas que até a minha mãeveio ver o que se estava apassar.

Agora já ninguém meperguntava nada, falavam

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diretamente com o tio Victor,queriam mais pormenores dapiscina e ainda saber sepodiam ir lhe visitar um diadestes.

— Vai todo mundo —o tio Victor riu, olhou paramim, piscou-me o olho. —Vem um avião buscar a maltade Luanda! Preparem aroupa, vão todos mergulharna piscina de Coca-Cola, nóslá não bebemos desse vosso

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sumo Tang…— Ó Victor, para lá de

contar essas coisas àscrianças — a minha mãechegou à varanda.

Ele piscou-lhe o olho econtinuou ainda maisentusiasmado.

— Não tem makanenhuma, pode ir toda maltada rua, temos lá em Benguelaa piscina de Coca-Cola... Oscantos da piscina são feitos

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de chuinga e chocolate!Nós batemos palmas

de novo, depois estreamosum silêncio de espantonaquelas quantidades dedoce.

— A prancha de saltaré de chupa-chupa demorango, no chuveiro saiFanta de laranja, carrega-senum botão e ainda saiSprite… — ele olhava aminha mãe, olhos doces

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apertados pelas bochechasde tanto riso, batemospalmas e fomos saindo.

Quando entrei de novoem casa, fui lá para cimadizer “boa noite” a todos.Passei no quarto do tioVictor, ele tinha só uma luzdo candeeiro acesa.

— Tio, um diapodemos mesmo ir na tuapiscina de Coca-Cola?

Ele fez assim com o

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dedo na boca, para eu fazerum pouco-barulho.

— Nem sabes domáximo… No avião que vosvem buscar, as refeições sãotodas de chocolate com umaspalhinhas que dão voltas tipomontanha-russa e lá emBenguela há rebuçados nasruas, é só apanhar — e ficoua rir mesmo depois deapagar a luz. Até hoje fico aperguntar onde é que o tio

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Victor de Benguela ia buscartantas gargalhadas para rirassim sem medo de gastar oreservatório do riso dele.

Fui me deitar, antesque a minha mãe meapanhasse a conversaràquela hora. No meu quartoescuro quis ver, no teto, umaágua que brilhava escura etinha bolinhas de gás quefaziam cócegas no corpotodo. Nessa noite eu pensei

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que o tio Victor só podia seruma pessoa tão alegre echeia de tantas magiasporque ele vivia emBenguela, e lá eles tinhamuma piscina de Coca-Colacom bué de chuinga echocolate também. Vi,também no teto, o jeito deele estremecer o corpo eesticar os olhos em lágrimasde tanto rir.

Foi bonito: adormeci,

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em Luanda, a sonhar a noitetoda com a província deBenguela.

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os quedesvermelhos da tchi

Os quedes eram daTchi, minha irmã mais velha.Estavam abandonados numapoeira fina atrás da porta dacasa de banho. No diaseguinte havia comício no

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l a r g o 1o de Maio. Aconcentração era na minhaescola Aplicação e Ensaios,à s 7h da manhã. A minhamãe mandou-me ir preparara farda.

Camisa azul-clarinha,calção azul-escuro. Tudolimpinho e engomado.Cheirava àquela naftalinaboa que trazia cheiros deantigamente. É um bocadinhoassustador, mas mesmo

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quando somos crianças oantigamente já fica lá longe.

Fui à casa de banho,atrás da porta, aí ondeficavam pendurados ossapatos que já ninguémligava. Vi os quedesvermelhos da Tchi, que elanunca gostou muito, só tinhausado durante uns tempos edepois ficaram ali a ganharpoeira. Limpei devagarinhoa parte da frente e até um

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bocadinho das solas com umpano do pó que sempreficava ali na casa de banho.Experimentei os quedes,confirmei o que já sabia: nãome serviam bem, aleijavam-me no dedo grande e nomindinho também. Mas só oposter, ché!, até num vale apena!

Ainda desci, para dizerà minha mãe que estava tudopreparado.

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— Meias também? —ela perguntou.

— Meias, vejo jáamanhã de manhã.

— E sapatos?— Já tá — mas não

disse quais eram.— Então vai ver se o

teu cantil tá limpo.Na cozinha, encontrei o

meu cantil antigo. Tinhamdado aqueles cantissoviéticos na segunda classe,

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acho eu, e como eram feitoslá para aqueles frios daUnião Soviética, eram unscantis que em vez demanterem a água gelada, lheaqueciam masé bué. Entãonós já tínhamosdesenvolvido uma técnica:enchíamos o cantil de águaou sumo e deixávamos ocantil dormir na arca, poruma noite. De manhã, iamesmo assim, congeladito, a

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derreter à medida que amanhã avançava, semprecom o líquido puramentegelado. Era um cantil verde-escuro, que não dava paraconfundir, era soviéticomesmo, duro, resistente, quedurava anos. Fazia lembraras akás que eu vi numdocumentário na televisão,disseram que se podeenterrar uma aká porquarenta anos e desenterrar

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que ela ainda funciona. OCláudio disse que o primodele, que é comando, jáconfirmou que isso éverdade.

D i a 1o de maio, DiaInternacional doTrabalhador: quase nãohavia barulho na minha rua,só alguns gatos, os guardasda casa do Jika iam-sedeitar, pousavam as akás nochão, lavavam-se ali numa

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torneira no jardim de trás. Omeu pai acordou-me cedo,mais cedo do que tínhamoscombinado. Matabichamosjuntos, nesse momento que euadorava: o meu pai abria asportas grandes da janela dasala, e víamos o abacateiroque se espreguiçava paraacordar também. Eu e o meupai matabichávamos comtodos os cheiros da manhã.

Fui lá acima, vesti-me,

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calcei os quedes vermelhosda Tchi. A minha mãe aindanão tinha acordado, entãoaproveitei e calcei mesmoassim sem meias, para nãoapertar tanto. Mesmo assimdoía.

— É o quê? — o meupai perguntou, quando entreide novo na cozinha para tiraro cantil da arca.

— Nada, tou pronto —disse, contente.

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Os meus primos nãogostavam muito de ir aocomício do Dia Internacionaldo Trabalhador. Nem eraobrigatório, a camaradaprofessora disse que só iaquem quisesse, mas euadorava os comícios naquelaaltura. Nem sei explicar bemporquê. Era tudo especial,acordarmos cedo, fazermosformação, cantarmos o hino,e irmos juntos, mais ou

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menos organizados, até aol argo 1o de Maio, sim, olargo chamava-se mesmo 1o

de Maio.Cheguei à escola bem

cedo. Os pés doíam-me,magoavam-me em váriospontos, até já me doía a partedo calcanhar também. Maseu estava bem estiloso, eaguentava. Sentia umfresquinho nas costas, era ocantil completamente

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congelado. Bons cantis,esses soviéticos, desde quese conhecesse essa técnicade congelar no dia anterior.E fomos.

No largo 1o de Maioestava uma tanta genteacumulada, bué de escolas jáem formação, numa curva,todos direitinhos, à esperada vez de marchar. Natribuna, bem lá em cima,estava o camarada

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presidente, duma camisaazul-clara e um lenço brancoa fazer adeus aos pioneirosque passavam. Às vezespenso que o camaradapresidente, lá em cima e tãolonge, não devia ver o povomuito bem.

Chegou a nossa vez.Um camarada também aí nummicrofone tipo escondidoaquecia a multidão:

“Pioneiros de

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Agostinho Neto, naconstrução do socialismo...”

e nós gritávamos,suados, contentes, meio a rirmeio a berrar

“Tudo pelo Povo!”ele continuava“Um só Povo, uma

só...?”nós de novo“Nação!”Passamos mesmo em

frente ao camarada

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presidente, e ainda vi aPaula Simons e o Ladislau,namorado da minha primaFatinha, a falarem nummicrofone que eles punhamassim no ombro tipo carteiradas meninas, estavam agravar uma reportagem, eusei, uma vez eu já tinha ido àrádio Nacional e tinham meexplicado aquilo tudo.

Quando acabou ocomício, ainda nos deram um

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sumo bué malaico combolachas, mas as bolachaseram boas, nem sei para quêque levei cantil se sempreme esquecia de beber a talágua congelada no diaanterior. Depois“desmobilizamos”, como acamarada professora dizia.Fui para casa. Chegueicansado, mas foi bom, tinhame divertido, e no caminhopara casa ainda houve tempo

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para ouvir e aprender umasestigas novas com unsmiúdos que também voltarampara o meu bairro.

Quando cheguei aoportão, a minha mãe estavalá.

— Correu tudo bem?— Sim, foi bem fixe,

vi a Paula Simons e o Lau,com os microfones da Rádio.

— E o camaradapresidente?

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— Sim, também tavalá.

— Foste com essesquedes vermelhos, filho?

— Sim, mãe.Pensei, não sei porquê,

que ela fosse me ralhar, osquedes eram da minha irmãTchissola. Mas não, ela riu,disse para eu mudar a roupaque eu estava todo suado.

Tirei os quedesvermelhos, tinha os dedos

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grandes, os mindinhos e oscalcanhares todos irritados.E cheirava muito a chulé.Eram, para dizer a verdade,uns quedes que não davamjeito nenhum, mas eu gostavadeles. Não sei bem porquê.Mesmo dos comícios,também não sei porquê queeu gostava tanto de ir aoscomícios. Mas ia. Fardaazul, ténis vermelhos, e ocantil soviético na mochila.

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Antigamente, eu ia.

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manga verde e o saltambém

para amadalenakamussekele.paraosprimos.

Eupossoir nadespensagamar

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sal,mas amakaé queovossoprimoémuitoqueixinhas.Quemvai lheconvencer?

palavras

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daMadalenaKamussekele

Uma pessoaquando é criança pareceque tem a boca preparadapara sabores bem diferentessem serem muito picantes dearder na língua. São misturasque inventam uma poesiamastigada tipo segredos defim da tarde. Era assim,

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antigamente, na casa daminha avó. No tempo daMadalena Kamussekele.

O Sol ainda quase nãotinha ido embora. Ali,mesmo em frente à casa daavó Nhé, havia muita poeirados camiões comtrabalhadores soviéticos.Todos saíam do trabalhocom fatos azuis e capacetesamarelos. Eram as obras domausoléu que estavam a

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construir para o camaradapresidente Neto. O mausoléuque nós chamávamos de“foguetão” pois parecia umfoguetão que ia mesmo voar.

Estávamos sentados nomuro. Era já nosso hábitofazer assim uma pausa de veraquela tanta gente saircontente. O trabalho deve seruma coisa muito chataporque todo mundo ri quandosai do trabalho. Éramos

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ainda alguns: nós, os primos,os da casa do senhor Tuarlese até o Gadinho e o Paulinho.

Quando a Madalenachegou com dois sacos decompras, nós espreitámos:óleo, duas garrafas; saboneteazul, três barras; lata dechouriço, duas; açúcar, umsaco; fósforos, quatro caixas;sal grosso, dois sacospequenos.

Foi esse o azar da

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Madalena, na imaginação denós todos ao mesmo tempo:nessa tarde tínhamosapanhado bué de mangasverdes na casa da donaLibânia. A Madalena entrou,foi arrumar tudo na despensae depois nos encontrou jácom o plano.

— MadalenaKamussekele — o Paulinhofalou. — Não dá para nosdesenrascares num bocado

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de sal grosso?— Kamussekele é a tua

tia, tás a ouvir? — aMadalena não gostavadaquele apelido forçado queo meu primo Nitó tinha lheaplicado. Isso porque elatinha um rabo assim“sobressaído”, como dizia oNitó.

Mas depois a Tchi e aNaima falaram bem com aMadalena. Nos dois sacos de

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sal grosso era só tirar láduas mãozinhas que nem a tiaMaria ia dar conta. Haviabué de manga verde, e a avóe a tia tinham ido numa missaurgente dum enterro deúltima hora. Éramos bué, aofim da tarde com bandasonora dos camiões e osgritos dos trabalhadoressoviéticos. Éramos bué aolhar assim para aMadalena. Ela olhou para

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mim.— Não vais fazer

queixinhas? — todos meolharam num silêncio deespera. Fiquei fraco.

— Eu? Nem pensar.O grupo dos rapazes

foi buscar as mangasescondidas no galinheiro dacasa do senhor Tuarles. Asmeninas — mais a Madalenaque não queria serKamussekele — foram

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gamar sal grosso nadespensa da tia Maria.

Trouxeram sal nasmãos bonitas em concha comcheiro assim duma praiasecreta. O Paulinho tinha umcanivete e cortou as mangasaos bocadinhos. Cada umpegava num pedacito demanga verde, misturava como sal e comia devagar. Entregargalhadas pequeninas,íamos dividindo o momento

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e a tarde, os olhares e osarrepios, os sons gulosos e asujidade das mãos quepingavam esquebras de sucopara as formigas beberem.Eram risos ao fim da tardecom banda sonora doscamiões e restos de sol sópossíveis de acontecer commanga verde na boca,anestesiada com o saborsalgado do sal grosso,melhor porque roubado.

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Afastei-me aos poucos.Fui lavar as mãos, vi que ashoras tinham passado a puxara hora do jantar. Avisei aMadalena:

— É melhor pores amesa do jantar senão a avóainda te ralha.

Ela, bem armada sóporque estava naresponsabilidade de virbuscar mais sal grosso,respondeu mal:

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— A conversa aindanão chegou na casa de banho.

Todos riram. Mesmoos meus primos.

Na televisão estava adar desenhos animados daPantera Cor-de-Rosa e derepente sem avisaremcomeçaram a dar DomQuixote e Sancho Pança,que todo mundo adorava —mas também não fui lhesavisar. O telefone tocou. Era

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a avó Nhé.— Ó filho, chama a

Madalena.— A Madalena tá lá

fora no muro, avó — lhequeixei.

— E a mesa tá posta?— Não, avó — queixei

de novo.Ainda ouvi a avó dizer

à tia Maria “quandochegarmos a casa, aMadalena vai-me ouvir”,

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depois desligou. Tambémnão fui avisar.

Chegaram, a avó e a tiaMaria, vestidas de preto equase tristes, mas a falaremdas roupas das outrassenhoras, e de quem tinhachorado com vontade, equem fingia só tipo“lágrimas de crocodilo”,como diz a avó Nhé. Ficaramzangadas com a Madalenaporque o jantar estava

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atrasado, a mesa não estavapronta e ainda havia pingosde manga no chão.

— Comeram manga?— perguntaram.

— Sim. Manga verde— queixei.

— Manga verde? — aavó já a gritar. — ÓMadalena, foste tu que destemanga verde aos miúdos?

— Não fui eu,madrinha.

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— É verdade, avó. AMadalena só deu o salgrosso — queixei de novo.

A Tchi e a Naima meolharam com cara de más,fingi que não vi. Queixeimesmo. Ainda disse que aMadalena tirou sal dascompras e foi lá dentro maisvezes.

Começamos a jantar. Atia Maria veio buscar umcinto que guardava na gaveta

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da sala e começou a bater naMadalena. A avó foitambém. Nós comíamos asopa. Todos olhavam paramim a me culparem com osolhares deles. Ouvia-se bemna sala o assobio do cintoritmado com o choro cantadoda Madalena.

— Tás a ouvir? —alguém perguntou.

— Não — respondi.— O choro da Madalena

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ainda não chegou na casa debanho.

No tempo da Praia doBispo, ninguém então podiame confiar num segredo demangas verdes com sal.

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bilhete comfoguetão

comumbeijinhopara aPetra

Foi no tempo da

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terceira classe.Quando a Petra entrou

na sala já deviam ser umas3h da tarde. Lembro-medisso porque sabíamos maisou menos as horas pelomodo como as sombrasinvadiam a sala de aulas.

A Petra tinha o tom depele escuro, bem bronzeado,e vinha com umas roupasbem bonitas que se fosse aminha mãe não me deixava

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vestir assim num dia normalde aulas. Uma mochila todacolorida como quaseninguém tinha naquela época.Então eu acho que tudoaconteceu em poucosminutos, assim muito derepente.

Já não conseguiaprestar atenção à aula e aMarisa, que sentava nacarteira ao lado, reparou queeu estava toda hora a olhar.

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A delegada de turma tambémviu. E a Petra também.

Na hora do intervalo oCláudio veio me buscar paraeu ser defesa na equipa delede futebol e eu disse quenão. O Helder, queorganizava a outra equipa,até me prometeu posição deavançado mas eu recusei.Fiquei todo intervalo na sala,na minha carteira, a rasgar asfolhas onde eu tentava

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escrever um bilhete para aPetra.

Depois do intervalotodos voltaram comrespiração depressada e osuor do corpo a molhar asroupas, alegres tambémporque a camaradaprofessora Berta disse queainda ia demorar. Deuordens à delegada parasentar todo mundo e apontarnuma lista o nome dos

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indisciplinados.Primeiro houve aquele

silêncio assim de cincominutos que todos têm medode ficar na lista e ninguémquase se mexe. Depoiscomeçaram a desenhar, jogarbatalha naval e tentar pedircom-licença à delegada parafalar com alguém. O meubilhete estava pronto,dobrado, mas eu não sabia sedevia ou não dar o bilhete à

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Petra.A Marisa olhava para

mim como quem perguntavaalguma coisa. E essaresposta que ela queria compalavras ou um olhar, eutambém não tinha para mim.Mesmo sem ter ido jogarfutebol, eu suava na testa enas mãos.

Fiz sinal à delegadaque queria falar com ela,mas ela disse que não. A

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Marisa disse-me então queela podia ir.

— Entrego a quem?— À Petra.A Marisa nem esperou

eu ter acabado bem dedecidir, tirou-me o bilhete damão e foi a correr. O meuolhar acompanhou a Marisana corrida em direção àPetra. De repente me deuuma tristeza enorme quandoa vi passar além da Petra e

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entregar o papel já meioaberto à delegada de turma.

A delegada mandoutodos fazerem um silêncioque eu não conseguia engolirna minha garganta dura. Erao meu fim. Como é que eu iaenfrentar os rapazes depoisdaquele bilhete para a Petraa dizer que ela tinha “umestojo bonito com cores doCarnaval da Vitória e amochila também, pele tipo

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mousse de chocolate e unsolhos que, de longe,pareciam duas borboletasquietas e brilhantes”?

Cruzei os braços nacarteira, escondi a cabeça,fechei os olhos, e pelos risoseu ia entendendo o que sepassava ali. Quando elaacabou de ler, houve umsilêncio e eu sabia que adelegada devia estar a olharpara o desenho. Como eu não

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sabia desenhar quase nada,tinha feito um pequenofoguetão desajeitado porqueachei que fazer florestambém já era de mais. Adelegada riu numagargalhada só dela, bem alto.A Marisa quis saber o queera. Ela amarrotou o bilhetee guardou no estojo.

— Ele desenhou um“fojetão”.

— Um “fojetão”?!

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Aí confirmei na minhacabeça que aquela meninanão podia ser nossadelegada: ela não sabia ler o“gue”, e eu tinha a certezaabsoluta de ter escrito“foguetão”. A camaradaprofessora Berta entrou e euestremeci, pensei que fossemme queixar do bilhete, masnada, todos estavam parados,como borboletas!, issomesmo, borboletas quietas.

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No fim da tarde, aPetra foi logo embora semfalar com ninguém, e osrapazes da minha turmaforam bem simpáticos,ninguém me estigou e até oFilomeno, que era tãocalado, deu-me uma pancadaleve nas costas que euentendi tudo sem ele ter ditonada com a boca. Cheguei acasa muito confuso e umpouco triste, mas já não

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queria falar mais do bilhete.— Correu bem o dia?

— a minha mãe me deu umbeijinho.

— Sim, foi bom —tirei a mochila das costas. —Mãe, “foguetão” não é com“gue”, como na palavra“guerra”?

— Claro que sim,filho.

Olhei devagar para ela.Fiquei a sorrir. A minha mãe

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também tem uns olhos assimenormes bem bonitos deolhar.

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as primas do brunoviola

para oBrunoFerraz

As festas na casa doBruno Viola tinham sempre

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muitos bolos e salgados,música bem alta, boajantarada tipo feijoada ouchurrasco, e muita, muitagasosa. Mas nós, os rapazesda rua Fernão Mendes Pinto,gostávamos mesmo era dasprimas do Bruno. O BrunoViola tinha umas primasmuito bonitas.

Uma tinha o cabeloassim bem liso e loiro, vinhado Bairro Azul com umas

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saias bem curtas que todomundo queria dançar slowcom ela. Primeiro era oBruno que mesmo sendoprimo sempre gostava dedançar apertado com asprimas dele. Lembro atéhoje: os cabelos delacheiravam a um amaciadorde abacate que uma pessoano meio da dança até quaseque ficava nas nuvens. Essecheiro se misturava com o

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perfume que a mãe delatambém usava. A camisa erapreta e branca às riscas comum ursinho mesmo em cimada mama esquerda dela. Asaia era jeans azul pré-lavado, que nessa épocaestava na moda. O Bruno játinha dançado com ela, oTibas também. Era a minhavez e eles ficaram cheios deinveja porque puseramaquela música do Eros

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Ramazzotti que durava 11minutos.

O meu nariz perdia-seentre o pescoço suado dela eos cabelos loiros,compridos. Às vezes é sóassim, um gajo apanha esseslow bem comprido que dátempo de falar bué com adama. Todos a olharem paramim na minha sortedemorada, até as pernas jáme doíam do cansaço de

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estar a dançar tãodevagarinho com a prima doBairro Azul.

Outras primas tambémestavam na festa: a Filipa,que era da nossa idade; aEunice, mulata linda ecambaia, que tinha vindo doSumbe; e a Lara, que era umpouco mais velha, já tinha asmamas grandes como asmulheres adultas, também jápunha perfume de mais

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velha, e era uma moça quetinha viajado muito, acho eu,porque estava toda hora afalar de Paris. Então foi isso:enquanto eu dançava amúsica do Eros Ramazzotti,a Lara olhou para mim comum olhar bem estranho. Eufechei os olhos, dei umbeijinho disfarçado nopescoço da prima do Bruno.Um sabor salgado me ficouna boca e eu gostei.

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A música acabou, abrios olhos. A prima do BairroAzul sorriu para mim, mas euduvidei que aquilosignificasse alguma coisa.Ela estava muito doce nosorriso dela, mas acho queela gostava mesmo era doTibas. Fui buscar umagasosa, era uma Fantadaquelas bem cor de laranjaque até inchava a língua. Amúsica tinha parado,

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estavam nos preparativos do“parabéns a você”. Vi a Laraolhar de novo para mim.

O Pequeno, um miúdotambém da minha rua,imitava muito bem a voz daLara. Era uma voz diferente,para uma rapariga, difícilmesmo de imitar ou deexplicar. Mas pode-se dizerque era uma voz grossa,muito grossa e rouca. E oPequeno imitava assim a

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Lara: “Ó pá, eu já fui aParis, pá, vocês conhecemParis?” Ele fazia a vozgrossa e a malta toda ria, nãoera preciso dizer nada, todomundo imaginava a pessoaque falava assim.

A Lara olhava paramim, eu olhava para a Filipa,e o Tibas falava com a primado Bairro Azul. A Filipa,irmã da Lara, era muitobonita, e até na rua diziam

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que eu e ela tínhamos denamorar, mas isso aindanunca tinha acontecido. Mas,sim, eu achava a Filipa muitobonita, tinha uma pele escuratipo indiana dos filmes quemuitos rapazes da minha ruaficavam atrapalhados a olharpara ela. Começaram acantar os parabéns. Todomundo olhava para o centroda mesa onde estava o bolohorroroso e cheio daquele

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glacê adocicado que enjoa.Eu ouvi a voz, lá longe, dooutro lado, perto da bombade água e da bananeira, achamar o meu nome. Ouvimesmo bem, mas fingi quenão era comigo.

A voz continuava. Erauma voz grossa tipo uminstrumento de tocar jazz,primeiro baixinho. Depois,naquela parte que se canta“hoje é dia de festa, cantam

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as nossas almas”, e todomundo já grita bem alto, aLara me ameaçou com a vozdela:

— Vem cá, não tás aouvir?

Tive que ir.A bomba de água

disparou, fez um barulhoesquisito. A Lara estavasentada numas escadas quejá tinham sido invadidas portrepadeiras enormes. Fez-me

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sinal com a mão para eu mesentar perto dela. Tinha aspernas meio abertas comofazem os rapazes, sentadanuma posição que a minhaavó Agnette me disse que asmeninas nunca se deviamsentar. E falou-me com a vozgrossa:

— Anda cá, senta-teaqui perto de mim.

Eu olhei lá para dentro,não consegui ver ninguém.

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Estava escuro e o lugar sócheirava à trepadeira e aoperfume pesado da Lara. Elaapertou-me no braço, quandoeu ia sentar, e sentou-me nocolo dela. Não falou nada,ficou só a respirar perto daminha cara. Tinha tambémum suor molhado nopescoço.

— Dá-me um beijo naboca... — ficou a olhar paramim com uma cara quieta. —

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Com a língua também.Puseram música de

novo, uma música bemanimada, que chamávamosde “Alice Stein”, mas queera na verdade uma músicados Kassav. Eu transpirava,aquela já era uma situaçãomuito séria, a Lara era muitoassanhada, até diziam que játinha feito malcriado comrapazes mais velhos. Euestava bem atrapalhado, ela

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me segurava no braço comforça.

— Dá-me lá umlinguado — ela disse com avoz mais rouca e a fechar osolhos.

Uma pessoa quando écriança às vezes não sabeque é bom ter medo e deixarcertas coisas acontecerem.Não sei como seria o tal“linguado”, mas tive medoque a Lara, com a voz dela e

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as mamas grandes e osperfumes franceses, tivemedo que a Lara me beijassede um modo que eu nemsabia bem qual era.

A mãe do Bruno mechamou para eu comer obolo horroroso com glacê eeu gritei logo acusando olugar:

— Tou aqui, tia Luna.O Tibas e a prima do

Bairro Azul vieram com um

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pires e uma fatia enorme queeu tive mesmo de comer.Muita gente se aproximoudas escadas das trepadeiras.A Lara sentou-se de outramaneira, endireitou o vestidoe o cabelo. Do meu pirestirava pedaços de bolo quecomia muito devagar, echupava os dedos cheios deglacê branco sem parar deolhar a minha boca.

O Bruno Viola tinha

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umas primas muito bonitas.

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o portão da casa datia rosa

para atiaRosa.para otioChico

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Só sei que eu nuncafui à creche. Tentaramdurante uns dias, mas euchorava o tempo todo.Quando a minha mãe ia mebuscar mais cedo,encontrava-me com os olhosbem inchados. Por isso,desde bebé, eu sempre fiqueina casa da tia Rosa. Passavalá as tardes com as filhasdela a ouvir os discos doRoberto Carlos. Ela era

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minha madrinha, mas paramim sempre foi a “tia Rosa”.

Anos depois, naquelatarde, os meus pais levaram-me à casa da tia Rosa. O meupai conduzia distraído,mudando as estações dorádio conforme lhe apetecia.Eu olhava a cidade pelajanela do carro, desdepequeno que eu gostava defazer isso, ficar a olhar aspessoas na rua, o modo como

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se mexiam, como mexiam asmãos, ou como estavamvestidas, e imaginar a estóriada vida dessas pessoas. Aminha mãe ia calada, muitocalada. Tão calada que eupensei que ela estava triste.

O meu pai parou ocarro e houve um silêncioestranho. Ninguém falounada. Nem eu. Acheiestranho não ter ali foranenhum carro do tio Chico.

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O tio Chico era o marido datia Rosa. O portão estavadestrancado, e lá dentro, agaiola enorme das rolas nãotinha rolas.

A mãe saiu do carro,deu a volta, abriu-me aporta. Disse alguma coisaque uma certa tristeza já nãodeixou ouvir bem.Atravessei a rua comcuidado, empurrei o portão.Havia qualquer coisa

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apertada dentro do meupeito, e uma vontade delágrimas nos meus olhos,mas eu nem sabia se podiafalar. Também não entendiaaquela vontade de chorar,mas achei que estava a entrarnum lugar frio apesar do solque fazia. A minha mãe ficouno portão. Eu entrei.

Cheguei perto dasgrades da gaiola. Prendi asmãos nos buraquinhos

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pequeninos e quase possojurar que ouvi o barulho dasrolas quando, ao fim datarde, eu e a tia Rosavínhamos lhes dar comida.Parece que elasadivinhavam, começavam avoar, a dançar, a brincar, atia Rosa ria uma gargalhadapequenina que ela tinhasempre guardada só paramim, abria a porta, euentrava lá para o meio da

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confusão. Distribuía comida,muito mais comida do queaquela que as rolasprecisavam, e a tia Rosadeixava. A tia Rosa deixava-me fazer tudo. Outros maisvelhos diziam que a tia Rosame estragava com mimos,mas eu não sei nada disso.Ficávamos ali a brincar comas rolas, eu apanhava osovos e entregava à tia Rosa.E, sem eu saber, estávamos

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também à espera que o tioChico chegasse do trabalho.

A porta da gaiolafechava. As rolas ficavammais calmas, como os bebés,quando comem: primeirocalam-se, depois adormecemdevagarinho encostados nachucha das mamãs. Só que asrolas não usam fraldas,faziam cocó no chão dagaiola e era preciso cuidadoquando se entrava ali.

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Depois ficávamos no portão.O portão aberto. Eu e a tiaRosa à espera do tio Chico.A tia Rosa, lembro-me muitobem, não dizia “tio Chico”,ela sempre dizia “ti Chico”.A mãe do João Valentepodia passar ecumprimentar. Ou entãooutra senhora da rua de trás.Eu com vergonha encostava-me às pernas da tia Rosa.Ela ria de novo. “É muito

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envergonhado…”, dizia, eme puxava mais contra ela.Lembro como se fosse agora:com a mão meio bruta meiolenta, ela coçava o meucabelo. Só que a tia Rosanão sabia que me dava sono.

— Aí mesmo, tia,tenho comichão.

— Aqui?Depois coçava já com

as duas mãos, e depoiscomeçava a fingir que estava

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a procurar piolhos. Não hámelhor coçadela de cabeçado que essa, quando pareceque estão a procurar piolhos.Não tenho a certeza, masacho que eu adormecia depé. A mão da tia Rosamergulhada nos meuscabelos — e as vozes delasa falarem por cima de mim.Até que o tio Chico chegavae entrávamos lá para oquintal.

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Assim o Sol já tinhaido embora. As rolasadormeciam ou calavam-se.O tio Chico dizia para eubuscar um fino ali naquelatorneira de parede onde saíacerveja. O tio Chico gostavamuito de cerveja como todasas crianças gostavam degasosa. A tia Rosa tinhaposto um banquinho embaixo da torneira da cervejapara eu chegar lá e tirar os

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finos.— Ndalu..., vamos? —

a minha mãe perguntou.Eu tinha umas quantas

lágrimas assim nos olhos, etive vergonha que ela meperguntasse “o que foi?” e eunão soubesse explicar nada.Olhei lá para dentro, nadireção do quintal. Quaseouvi de novo a voz da tiaRosa chamar-me para jantar.Eu tinha que jantar cedo,

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pois os meus pais vinham-mebuscar depois. Mas a minhamãe não perguntou nada.Tocou-me nas costas, muitodevagarinho, como se tivessecuidado para não me sacudirmuito. Acho que elapercebeu que se mesacudisse muito podiam cairmais lágrimas.

Tive que sair. Não meapetecia sair dali, de umadas casas da minha infância

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de tantas brincadeiras. Masnão me apetecia estar ali sema tia Rosa e sem o tio Chico.Olhei o pequeno lago quasena saída, e também não vi oscágados. Nem vozes, nembarulhos de vizinhança.Nada.

Quando a minha mãefechou o portão, aquelebarulho fez um estrondo bemmaior. Eu já estava no carroe começaram a vir muitas

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lágrimas. Quando eu era tãocriança eu não entendiamesmo as lágrimas. O portãoficou fechado. A gaiola dasrolas toda aberta. As rolasdeviam estar longe. Secalhar elas também nãogostavam de estar maisnaquela gaiola sem a tiaRosa para tomar conta delas.

A minha mãe nãoolhava para mim. O meu paisintonizou o rádio numa

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estação que tocava, para asrolas, para a tia Rosa, para otio Chico e para mim, umamúsica do Roberto Carlos:“por mais que eu faça, nãoadianta, você nem nota,minha existência; e os diaspassam correndo, vou acabarte perdendo, e os diaspassam correndo, vou acabarte perdendo...”

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os calções verdesdo bruno

Até a camaradaprofessora ficou espantada einterrompeu a aula quando oBruno entrou na sala. Nãoera só o que se via namudança das roupas, mas

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também o que se podiacheirar com a chegadadaquele Bruno tão lavadinho.

No intervalo, em vezde irmos todos brincar acorrer, cada um ficou sóespantado a passar perto doBruno, mesmo a fingir que ialá fazer outra coisa qualquer.A antiga blusa vermelhatinha sido substituída poruma camisa de manga curtaesverdeada e flores brancas

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tipo Hawai. Mas o maisespantoso era o Bruno nãotrazer os calções dele verdesjustos com duas barrasbrancas de lado. A pelecheirava a sabonete azullimpo, as orelhas não tinhamcera, as unhas cortadas elimpas, o cabelo lavado echeio de gel. Até os óculosestavam limpos. Tortos maslimpos.

Lá fora a gritaria

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continuava. O Bruno, aocontrário dos últimos seisanos de partilha escolar,estava mais sério e maistriste.

Fiquei no fundo dasala. Eu era grande amigo doBruno e mesmo assim nãoconsegui entender aquelatransformação. Olhei o pátioonde as meninas brincavam“35 vitórias”. Na porta, umacontraluz do meio-dia

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iluminava a cara espantadada Romina. Eu olhava aRomina, o sol na porta e oBruno também.

O mujimbo já tinhacirculado lá fora e eu nemsabia. Havia uma explicaçãopara tanto banho eperfumaria. Parece que oBruno estava apaixonadopela Ró. A mãe do Brunotinha contado à mãe doHelder todos os

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acontecimentos incríveis datarde anterior: a procura dumbom perfume, o gel nocabelo, os sapatos limpos ebrilhantes, a camisa debotões. A mãe do Brunodisse à mãe do Helder, “foiele mesmo que me chamoupara eu lhe esfregar ascostas”.

Depois do intervalo oBruno passou-mesecretamente a carta.

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Começava assim:

Romina: nosúltimos dias já nãoconsigo lanchar pãocom marmelada emanteiga, e mesmoque a minha mãe façabatatas fritas nuncatenho apetite decomer. Ainda por cimade noite só sonho comos caracóis dos teus

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cabelos tipo cacho deuva...

A carta continuavabonita como eu nunca soubeque o Bruno sabia escreverassim. Ele tinha a caraafundada nos braços, pareciaadormecido, eu lia a cartasem acreditar que o Brunotinha escrito aquilo mas oserros de português erammuito dele mesmo. Era uma

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das cartas de amor maisbonitas que ia ler na minhavida, e eu próprio, anos maistarde, ia escrever uma cartade amor também muitobonita, mas nunca tão sinceracomo aquela.

A camarada professoraera muito má. Veio a correr eriu-se porque eu tinhalágrimas nos olhos. Pegou nacarta e rasgou tudo empedacinhos tão pequenos

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como as minhas lágrimas eas do Bruno. A Rominadesconfiou de alguma coisa,porque também tinha osolhos molhados.

O sino tocou. Saímos.Era o último tempo.

No dia seguinte, comum riso que era também detristeza e uma espécie desaudade, o Bruno apareceucom a blusa dele vermelha eos calções verdes justos com

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duas riscas brancas de lado.Deu a gargalhada dele queincomodava a escola toda eveio brincar conosco.

Na porta da sala, umacontraluz amarela do meio-dia iluminava a cara bonitada Romina e os olhos delamolhados com lágrimas deternura. E o Bruno também.

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o bigode doprofessor degeografia

O camaradaprofessor de Geografia eraum homem baixinho com umabarriga redonda e um bigodemuito fininho tipo dos

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artistas dos filmes. Falavaquase sempre baixo e tinhapouca paciência nas aulas.Um dia no intervalo atéalguém disse que ele nãogostava de nós. Não sei.

Naquele dia o Joel e oNuno estavam mais parvosdo que o habitual. E ocamarada professor deGeografia não gostava nadadas nossas parvoeiras tipoestigas de gozar com os

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professores. Fazia muitocalor e as aragens todastinham desistido deatravessar a nossa sala deaulas.

O momento foi dessesassim inesperados: ninguémpode saber quando umacoisa estranha vai acontecer.A irritação de um professorou de um aluno, ou dos dois,é um mistério. Mesmo, paramim, as crises de asma

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repentistas da minha colegaLuaia também eram demistério e susto.

E aconteceu.O camarada professor,

de pé, no quadro, de costaspara nós. Na camisaesverdeada de quase todasquintas-feiras um suor játinha virado mancha escura.O Joel estigou:

— Ché, o camaradaprofessor tipo que tem o

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mapa de África desenhadono porta-bagagens!

Todos rimos. Ocamarada professor pousou ogiz no quadro e deu-nos umaolhada de mandar calar.Trememos.

No quadro, pela mãodele transpirada, umproblema qualquer estava aser apresentado. Quando eleescreveu “setenta minutos”,o Nuno iniciou a fala dele:

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— O camaradaprofessor não pode dizersetenta minutos — e riu bemalto. — Diz-se 1h10min.

O resto da turma já nãoriu. O suor no “mapa deÁfrica” tinha aumentado. Ogiz foi largado da mão suadae caiu de repente no chão —mil pedacinhos do nossomedo — num estrondo quasenenhum mas que eu podiaaqui dizer que foi ruidoso. O

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camarada professor virou-se.Até nos pareceu que obigode dele também estavairritado conosco. O Nunoparou de rir e teve medo.

Os passos do camaradaprofessor foram lentos até àporta. As mãos delefecharam a porta comestrondo e susto de filme deterror — e o calor também.Deve ter sido espanto o quesentimos quando ele falou:

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— Ó seus filhos daputa, vocês tão a brincar comesta merda ou quê?

Desde a pré-cabungaaté à sétima classe, eu nuncatinha ouvido um professordizer um disparate em plenasala de aulas. O medo estavaconosco.

O camarada professorandou devagar e sentou-se nasecretária dele. Apontou odedo para um qualquer, mas

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era como se fosse atingir asala toda. Ainda bocejou esentimos o cheiro da bebidaque sempre lheacompanhava.

— Pensam que a merdado salário que me pagamaqui é suficiente pra vosaturar? Ahn? E não vale apena irem fazer queixinhasnos vossos pais.

Fez uma pausa terrívelde filme de suspense.

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— Vocês tenham muitocuidado... Muito cuidadomesmo.

Nós a tremer. O temponão queria passar.

— Se um dia desteslerem no jornal que oprofessor de tal matou umaspessoas..., não tenhamdúvidas: sou eu mesmo!Ouviram bem, seus filhos daputa?

A tarde estava quieta

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sem passarinhos de fazer umbocadinho de barulho. Nada.O medo era tanto queninguém engolia cuspe paranão fazer ruído com a bolada garganta. O camaradaprofessor olhou o relógio ebocejou mais uma vez.Quando o sino tocou ninguémse mexeu.

— Podem sair — eledisse, devagarinho.

Um a um, certinhos

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tipo num quartel, fomossaindo.

O camarada professor,assim meio triste, foi oúltimo a abandonar a sala.Tinha as costascompletamente ensopadas desuor, numa mancha que nãofazia mais desenho nenhum.

Uma luz bemencarnada de sol faziabrincadeira de brilhos norosto, nos olhos, nos bigodes

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dele. O camarada professorde Geografia tinha o bigodedos maus dos filmes.

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no galinheiro, nodevagar do tempo

Parafazerascontasecontarodinheiro,émelhorchamara

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Charlita.Ela éaúnicaque vêbemcomosóculosdela.

palavrasda avóMaria,enquanto

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vendiakitabacomjindungo

Quando partiram,a Charlita ia contente comum vestido muito limpinhomas que não era novo, e osóculos dela no rosto a sorrirenquanto fazia adeus a todosda Praia do Bispo. Pareciaque já estava há muito tempo

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na Tuga, mas os da casa delafalavam em três semanas.Naquele tempo o tempoentão passava devagar e, ànoite, nós íamos vertelenovela na casa do senhorTuarles. Como o senhorTuarles não estava, ninguémdizia “deem espaço, porra”,porque essa frase era muitodele.

As irmãs todas daCharlita andavam

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desanimadas com atelenovela porque a Charlitatinha ido a Portugal, com osenhor Tuarles, e tinhalevado os famosos óculosfeios. A Áurea, irmã daCharlita, ainda pediu paraela emprestar os óculosnaquelas semanas, poisestavam a passar os últimoscapítulos da telenovelaRoque Santeiro, mas aCharlita não podia deixar os

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óculos porque ia precisardeles em Portugal para fazerexames das vistas. Naqueletempo dizíamos “as vistas”.Eu estava lá na tarde que osenhor Tuarles disse à donaIsabel que tinha conseguidouma “junta médica” para ir àTuga tratar as vistas daCharlita.

— Mas a Charlita é aúnica que já tem óculos,podias ter conseguido

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alguma coisa para a Arlete,que é a mais velha.

— Podia, mas nãoconsegui — o senhor Tuarlesrespondeu, e subiu asescadas a assobiar a músicado lobisomem dessa mesmatelenovela.

Nós ficamos calados.A dona Isabel olhou para aArlete e depois para aCharlita.

— Não faz mal. Vai

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uma de cada vez.Fomos todos lá fora

espalhar a notícia. ACharlita ia a Portugal numavião bem grande que faziabué de barulho e voava buéde horas sem parar para pôrgasolina. Ela ia lá ver aslojas de Portugal, comprarroupas bonitas, comer bué degelados e ia ao médico dasvistas, quem sabe mesmoiam lhe dar uns óculos novos

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e aqueles óculos amarelos efeios iam sobrar para asoutras quatro irmãs. Essaestória era antiga no bairroda Praia do Bispo: eramcinco irmãs, todas viammuito mal e só a Charlitatinha uns óculos feios masque davam para ver bem astelenovelas brasileiras.

Durante essas semanasnão houve notícias do senhorTuarles e da Charlita. A

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telenovela estava quase aacabar e, apesar das irmãsdela ficarem atentas ao som— olhando a televisão demuito perto —, no fim doepisódio nós íamos semprelá fora, sentar no muro econtar todo o episódio outravez. Eu gostava muito dessemomento porque todo mundomodificava a novela, mexianas conversas dospersonagens, inventava

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novas situações, e as irmãsda Charlita deliravamcontentes ou confusas comessas versões angolanas datelenovela.

Às vezes, alguémpunha assim um pensamentoalto, “será que a Charlita tácontente lá na Tuga?”, e esseera um tema de conversa quedurava, cada um punha a suaversão, uns imaginavam elacom novos brinquedos

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oferecidos pelo própriomédico das vistas, outrosfalavam das vistas dela jáarranjadas, alguém dizia queisso era mentira pois asvistas da Charlita eramestragadas de nascença,“talvez então uns óculosnovos e bem potentes tipobinóculos”, outros falaramde lojas grandes com bué deroupas coloridas, mas aArlete foi ficando mais séria

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e disse uma frase queassustou todo mundo:

— Se lá tiveremmuitos bares, a Charlita vaivoltar com os mesmosóculos.

Todo mundo ficousilencioso só nuns ruídos dematar os mosquitos queestavam a nos picar naspernas.

A dona Isabel chamouas filhas para dentro de casa,

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o Paulinho saiu também acorrer e a avó Nhé veio nosralhar de estarmos ali nomuro até tão tarde, “masvocês gostam de dar debeber aos mosquitos, ouquê?”, e rimos porque a avóNhé gostava de dizer essasfrases dela assim tipo dastelenovelas.

Antes de adormecerperguntei à avó se aquele barali perto do hospital Maria

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Pia, que afinal se chamahospital Josina Machel, seaquele bar era do senhorTuarles e a avó disse quesim. Depois perguntei se elaachava que ele ia bebermuito lá nos bares dePortugal e a avó disse que naTuga não era como aqui e acerveja, por mais que sebebesse, era difícil deacabar.

Passaram mais dias.

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Nessa semana já estavam aanunciar mesmo os últimoscapítulos do Roque Santeiro.Fiquei triste e, de tarde, aGeny — irmã da Charlitaque às vezes brincavacomigo de arco e flecha tipoRobin dos Bosques — veiome chamar para brincar e eutive que lhe dizer que nãotinha vontade, porque estavaa pensar no fim datelenovela.

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— Mas essa acaba edepois começa outra — aGeny falou, enquanto afiavaum pau fininho para ser aflecha dela, depois se calharíamos acertar nas galinhas datia Maria e nos morcegosque andavam a atacar amangueira.

— Outra novela? —olhei para ela sem vontademais de brincar. — E essanovela por acaso dá a

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música do padre quando tátriste porque gosta da filhado Sinhôzinho Malta? Essanova telenovela tem cenas dadona Lulu a se olhar noespelho com os olhos todospintados porque ela gosta domarido da dona da boate,mas tem medo que o Zé dasMedalhas chegue a casa elhe bata? E os discursos doprofessor AstromarJunqueira que afinal deve

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mesmo ser o lobisomem? Eos beijos do Roque com aviúva Porcina da boca bemgrande? E as prostitutas darua da Lama que vão àigreja? E nessa outra novelao Sinhôzinho Malta temcoleção de perucas quechamam de capachinho?Ahn? Tu sabias que esse atoro nome dele verdadeiro éLima Duarte e que ele é quefazia de Zeca Diabo na

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telenovela do Bem-amadocom o Odorico Paraguaçú,chefe de Sucupira com umcemitério bem difícil deinaugurar?

— O quê?! — a Genyguardou as coisas dela e foiembora a reclamar que euandava a falar bem à toa.

Ninguém falava noutracoisa. O assunto era só o fimda telenovela RoqueSanteiro e ainda por cima

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uma colega da escola leunuma revista que o Roque,no fim, não ficava na cidadede Asa Branca, e pior, que oZé das Medalhas ia morrerafogado. Só sei que fiqueibem triste a pensar na mortedo Zé das Medalhas.

A avó Nhé veio mechamar para lanchar. Nahora do lanche todos podiambeber chá preto, menos eu,porque diziam que o chá

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preto fazia mal e que eu era“nervoso”. A Madalenaentrou com a notícia que mecortou todos essespensamentos:

— A Charlita e osenhor Tuarles chegam hojeà noite.

Todos ficaramcontentes, eu também,coitada da Charlita sechegasse uns dias depois dofim da telenovela, além de

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perder o último capítulo, iater que acreditar nas nossasversões bem aumentadas.

O Sol se pôs atrás dasobras dos soviéticos. Omesmo de sempre: a poeirado fim da tarde e o soviéticoa conduzir o camião-cisternaque deitava água na rua paraacalmar o pó. Os nossosgritos a gozar com ele e osgritos dele, em soviético,que parecia um português

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mastigado e cuspido aocontrário. A rua ficou úmidaa deitar um cheiro de sol noalcatrão que tremiarefrescado.

Todos cá foraesperavam o senhor Tuarlese a Charlita que tinham ido aPortugal. A avó Maria, mãeda dona Isabel, a donaIsabel, os dois filhos, asquatro filhas. A minha avó navaranda com a tia Maria.

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Nós, os primos. O Gadinhono quintal dele, o Paulinho eaté o Xana na esquina da ruadele. Nas pernas, um montede mosquitos que sempreacordavam àquela hora danoite. O cheiro da figueira,da goiabeira e das mangasroídas pelos morcegos.Ninguém falava e só a Áureafungava do nariz mas nãoconseguia recolher o ranhoque lhe brilhava nas narinas.

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A Charlita vinha nobanco de trás. O senhorTuarles vinha muito sentadono banco da frente e umsenhor desconhecidoconduzia um Lada amarelocom o tubo de escape roto. Obarulho animou a malta.Deram a volta longe, dooutro lado da bomba degasolina, e batemos palmascomo se fosse um filme. Osmosquitos afastaram-se com

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o movimento mas depoisvoltaram devagarinho. Eu vi:no banco de trás, com osolhos tristes e enormes, aCharlita trazia exatamente omesmo vestido de floresremendado no sovaco dolado esquerdo e, na cara, osmesmos óculos amarelos,grossos e feios com que, nosdias seguintes, haveria dever os últimos capítulos datelenovela Roque Santeiro.

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As palmas pararam. Ocarro travou em frente à donaIsabel. A Charlita não semexeu. O senhor Tuarlesabriu a porta comdificuldade e saiu do Ladaamarelo. Os filhos da donaIsabel foram tirar a mala doporta-bagagens. A Charlitanão se mexeu. Ninguém sabiao que dizer e, para dizer averdade, aquele momentolembrava o dia em que o Zé

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das Medalhas chegou a casae encontrou a mulher dele,dona Lulu, com a cara todapintada de cores fortes, oslábios inchados de um bâtonbonito e um vestido justo quetransformava a dona Lulunuma mulher de corpo todoapetitoso. O Zé dasMedalhas deu-lhe uma cargade porrada e trancou-lhe noquarto, onde ela ficou achorar a noite toda perto do

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espelho.Ninguém disse nada.

Ficamos a olhar os olhosmuito encarnados do senhorTuarles, que olhava os olhosmuito parados da donaIsabel. Abriram a porta e aCharlita saiu devagarinho.Eu tinha visto bem: o mesmovestido, os mesmos óculos eaté as mesmas sapatilhas.

— Deem espaço, porra— o senhor Tuarles gritou

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com lábios inchados eescuros.

Nós fugimos. Nessanoite não fomos à casa dadona Isabel ver a telenovelaporque a avó Nhé nãodeixou. Jantamos, vimos anovela ali mesmo e fiqueioutra vez triste quando ocamarada locutor confirmouque faltavam apenas doisepisódios para o fim doRoque Santeiro.

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Demos encontro nomuro. Todas as filhas dosenhor Tuarles apareceram,menos a Charlita. O Paulinhofoi quem teve mesmocoragem de fazer asperguntas e a Arlete foirespondendo como sabia mastodo mundo captou que elasabia muito pouco. Saídevagarinho dali.

Imaginei, não seiporquê, que a Charlita podia

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estar num lugar onde só nósdois gostávamos de ir àsvezes: no galinheiroabandonado da casa dela,com restos de milho duroespalhados pelo chão.Estava escuro.

— Também vais meperguntar de Portugal? — elachorava pela voz mais quepelos olhos.

— Não, Charlita, sóqueria te contar os episódios

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que tu não viste com os teusóculos.

Contei-lhe do padreque gostava da filha doSinhôzinho, falei da morte doJoão Ligeiro quando houvetiroteio na fazenda do Roque,o jagunço do Sinhôzinhotinha recebido dinheiro parair embora de vez, a Mocinhatinha dado um corte noprofessor AstromarJunqueira, a Ninon tinha

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beijado o lobisomem numanoite de Lua cheia, a Rosalyia casar com um fazendeirorico e o Zé das Medalhasandava desconfiado e mesmomuito triste.

— O meu pai, lá emPortugal — ela ia falar, maseu atropelei as palavras delae inventei um monte decoisas sobre a telenovela,misturei os personagens comos do Bem-amado, da Sinhá

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Moça, da Vereda tropical , ecoisas impossíveisaconteceram assim relatadasnaquela noite, no galinheiroabandonado da casa dosenhor Tuarles.

A Charlita riu.Limpou no vestido os

óculos amarelos, grossos efeios. Olhou a Lua quasenova a querer imitar umbrilho pequenino. Um galocantou muito enganado nas

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horas.Naquele tempo o

tempo então passavadevagar.

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um pingo de chuva

Eu acho que nuncacheguei a dizer a ninguém,talvez só mesmo à Romina,mas na minha cabeça eusempre escondia estepensamento: as despedidastêm cheiro. E não é cheirobom tipo chá-de-caxinde, ou

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as plantas a darem ares dumaprimeira respiração nafrescura da manhã, entresilêncios e cacimbosmolhados. Não. Despedidatem cheiro de amizadecinzenta. Nem sei bem o queisso é, nem quero saber. Nãogosto mesmo de despedidas.

Um dia nós, os donosso grupo, quasesilenciosos, tínhamoscombinado encontro na

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escola Juventude em Luta,depois do almoço. Os maisatrasados, como sempre,eram o Bruno e o Cláudio.As meninas já tinhamchegado, ficamos ali nocampo de futebol a olhar aescola quase vazia.

Como num filme,sempre me acontecia isso: euolhava as coisas e imaginavauma música triste; depoisquase conseguia ver os

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espaços vazios encherem-sede pessoas que fizeram parteda minha infância. Derepente um jogo de futebolpodia iniciar ali, a bola etudo em câmara lenta, um diavou a um médico porque eudevo ter esse problema desempre imaginar as coisasem câmara lenta e tervergonha de me dar umavontade de lágrimas ali aopé dos meus amigos. A

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escola enchia-se de criançase até de professores, pessoasque tinham sido da minhasegunda classe, da terceira,até lembrava de repente oexame da quarta classe como texto “Oriana e o peixe”.Quando alguém me tocava noombro, as imagens todasdesapareciam, o mundoganhava cores reais, sonsfortes e a poeira também.

— Tás a ouvir?! —

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alguém dizia.Eu tinha que fingir que

sim e engolir com os olhostodas as lágrimas. A escolaestava vazia e, sem ninguémdizer nada, todos tínhamosmedo daquela sensação. Ofim da sétima classe: aincerteza sobre quem aindaíamos encontrar no anoseguinte. As pautas já tinhamsaído, todos tínhamospassado com boas notas e

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muitos estavam contentes porcausa das férias grandes. Eunão.

Chamaram-me, parairmos andando. Já tinhamchegado todos. Tínhamoscombinado encontro naescola Juventude em Luta,para depois do almoço irmosaté à casa dos camaradasprofessores Ángel e María.Aquilo tudo cheirava adespedida até mais não.

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— Não sentem ocheiro? — brinquei.

— Só se for da tuacatinga — o Bruno disse.

Todos riram. Eutambém. Embalei-menaquelas gargalhadas paraolhar bem para eles, paraeles todos, os meus colegasda sétima classe, e quasetodos também tinham sidomeus colegas desde asegunda até à quarta. Bons

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tempos. Uns traziam lanche,outros não; uns tinham bola ecarrinhos bonitos, outrosnão; todos vínhamos vestidoscom o fardamento azul, demodo que no intervalo aescola ganhava uma gritariatoda azul de crianças aquererem aproveitar aquelesvinte minutos de liberdade emaluqueira. Os asmáticos,como eu, voltavamtranspirados para a sala de

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aulas, com falta de ar, atossir, e eram ralhados pelacamarada professora Berta.No dia seguinte corríamosoutra vez.

Chegamos à casa doscamaradas professoresÁngel e María. O camaradaprofessor não estava vestidocom a calça militar dele,tinha uma camisa creme tipo“goiabera” e uma calça justa.A camarada professora

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María tinha a cara todapintada, com exageromesmo, mas eu não queriaque ninguém lhe gozasseporque vi nos olhos dela aolhar para nós que ela queriasó estar bonita a disfarçar atristeza dela.

— A camaradaprofessora tá muito bonita —a Petra disse, as outrasmeninas concordaram. Eutambém. O Bruno olhou com

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cara feia, mas conseguiucontrolar-se, não riu nemestigou.

Era uma tarde quasebonita numa cor amarela ecastanha que o Sol tinhaposto dentro do apartamentopequeno deles. Serviram chápara nós, um chá aguado masdoce, cheio de ternura.Quase ninguém tinhapalavras de falar — nemeles, nem nós. Depois o

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camarada professor Ángelexplicou-nos, com palavrasum bocadinho difíceis, que amissão deles em Angolatinha terminado e que se iamembora muito em breve. OBruno coçava a garganta eolhava para a janela, tambémimpressionado com as coresdaquele amarelo-sol. APetra, a Romina e eu vimos acamarada professora Maríachorar escondida na cozinha

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e tivemos de fazer força paraparar as lágrimas. Ocamarada professor Ángelcontinuava a falar e, semquerer, dizia coisas que nosemocionavam muito. Nasdespedidas acontece isso: aternura toca a alegria, aalegria traz uma saudadequase triste, a saudadesemeia lágrimas, e nós, ascrianças, não sabemosarrumar essas coisas dentro

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do nosso coração.A Romina tirou da

mochila dela um frascobonito e grande, cheio decompota de morango. Ocamarada professor Ángeldeixou de conseguir falar.Todos nós sabíamos queaquela era a prenda dedespedida que eles podiamapreciar mais, e a mãe daRomina tinha feito umembrulho todo simples e

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bonito que só pela tampavia-se logo que era acompota da delícia deles. Asmãos da camaradaprofessora María tremiam aoagarrar as mãos do maridodela como se, naquele gesto,eles conseguissem agarrar asmãos de todos os alunos queeles tinham ensinado aqui emAngola.

Quando chegamos láem baixo, o Sol já tinha ido

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embora. O céu queriacomeçar a ficar escuro e,muito atrás de todas asnuvens que podíamos ver,um resto de encarnado vivoiniciou a despedida dele.

Lá em cima na janela ocamarada professor Ángeltinha a mão dele no ombroda camarada professoraMaría, e dava-lhe beijinhosna bochecha para ela nãochorar tanto.

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Um pingo de chuva,sozinho, caiu-me na cabeça,nessa que foi a última vezque vimos aquelescamaradas professorescubanos.

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o nitó que tambémera sankarah

para oSankarah.paraos doMutu

Na minha escola

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Juventude em Luta nuncamais as aulas iniciavam. Aminha mãe já estava a ficarpreocupada, e meteu cunhaatravés do Nitó para eu sertransferido para o Mutu YaKevela. Escola afamada debrincadeiras perigosas, tipo“estátua”, bem violenta só,“bacalhau”, na hora dointervalo, estigas perigosas elutas no fim das aulas. Eumesmo cambuta e duns

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óculos na cara vi o meufuturo arruinado naquelatransferência assimrepentina. Mas teve de ser.

O Bruno já tinhadesaparecido. Muita gentecom medo do atraso noinício das aulas já tinhamudado os filhos para outrasescolas. A minha turmaquase sempre junta desde aterceira classe tinhacomeçado a desfazer-se toda

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tipo uma onda rebentada nascalemas brutas de agosto.

Esse meu primo Nitóera professor de inglês noMutu Ya Kevela. Eu nãosabia e ele fez-me asurpresa. Era de manhã,quase ainda cedo, eu estavanum nervosismo de cólicas,já depois de matabichar. Eleapareceu numa lambretanova em folha para me levarà escola. A coisa já mudava

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de figura.— Adolfo — como ele

me chamava em brincadeirae ternura só dele. — Sobesó, hoje vais ver quem é oboss do Mutu.

Descaímos logo nazona verde, cortamoscaminho a descer numa areiade derrapa perigosa eesquindiva nos buracos doesgoto. Saímos quase naMaianga. Duma rapidez

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esculú estávamos quase achegar ao Mutu. O Nitó meavisou:

— Aqui na escola, souo “stôr Sankarah”.

— Yá, tá fixe.Nome dele de registo

era Nilton. De família, eraNitó. Mas das damas e daescola dele, mesmo dasaulas que dava na escolaportuguesa e tudo, era “stôrSankarah”. Ché, grande

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poster! Entramos no Mutu, eunuma timidez das paredesnovas e um primeiro andartodo desconhecido. O Nitófez a banga dele: foi mesmona sala do subdirector buscarum livro do ponto, e aindadisse a outros professores,“este aqui é meu ndengue”.Gostei. Apresentou-me oscorredores perigosos:

— Aqui é melhor nãovires, principalmente no

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turno da tarde.Eu ia só decorando.

Subimos até ao primeiroandar, ele bateu à porta,quase sem esperar entrou nasala 2. Espanto foi só de euver uma turma inteira,cinquenta pessoas,levantarem de prontidão erespeito: “Bom diaaaaa,camaradaaaaa,professooooor!” Ché!, KotaSankarah.

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Falou com umaprofessora que estava lá. Elasorria para ele nuns lábiosde facilidade e admiração. Asala toda me olhou. Eu seriao número 51. A professorame mandou escolher umlugar. Olhei em jeito deavaliação sem querermostrar medo. O stôrSankarah falava com ela,num gesticular de poucasmãos. Vi um rapaz de cara

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mansa sentado numa carteirasozinho. Quarto lugar naterceira fila a contar daporta. Sentei.

— Sou o Paulo — elefalou.

— Sou o Ndalu —respondi.

Então o stôr Sankarahse despediu da professora.Lembro do caminhar delenesse dia, e agora relacionoas coisas: andava devagar e

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bangoso tipo filme decâmara lenta, fato todobranco, duma gravata azulescura quase veludo, assimera o dia de estreia da motodele. E mesmo numa de gestodiscreto, ainda para todaturma ver, piscou-me o olhoe com a mão fez-me um sinalde nenhum entendimento.Código familiar ou quê. Omáximo. E saiu.

Um ar de confiança me

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encheu o peito, enquanto osolhares e os comentários secruzavam todos na minhadireção quieta. Desarrumeium caderno de improviso,escrevi também o sumáriodos outros já avançados naaula. Era aula de inglês. E aprofessora quis me desafiarnuma de avaliação:

— So, Sankarah toldme you are good in english.Is he your friend?

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— No, teacher. He ismy cousin.

— Ok. Welcome toMutu Ya Kevela.

— Thank you.Mas a conversa tinha

pegado mal na atenção dosoutros. Um de trás, bembigue só, alto e gordo,segredou num outro para euouvir também:

— Hum!, temos queaquecer o novato.

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Eu até pensei queestava já a ser prometidonuma boa carga de porrada,mesmo sem ter tido tempo dearranjar makas. Mas não,estavam só a falar de me“aquecer” num jogo deestátua. No intervalo algunsvieram falar comigo. De queescola eu tinha vindo. Qualera mesmo o meu nome. Umperguntou se eu era primo dostôr Sankarah, disse que sim.

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— Ele é bem armado!Mas eu estava só a

pensar nos meus colegastodos da Juventude em Luta.Quase uma vontade delágrimas me queria aparecernos olhos, e eu não podiabandeirar. Uma rapariga comvoz esganiçada e penteadomeio maluco chegou perto edisse:

— É mentira, nãoligues, o stôr Sankarah é

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bem fixe.Eu quis também pensar

isso. Até imaginei o Nitó adescer o eixo viário acaminho da escolaportuguesa, fato branco egravata azul, estilo lambretade filme italiano a preto ebranco. E o sorriso dele,esse já sem ser estilo defilme tipo país mais nenhum,mas esse sorriso delesimples, aberto, tipo

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angolano mesmo.— Ndalu!, pay

attention.— Sorry, teacher.— How did you come

to school this morning? Bycar or by foot?

Pausei num sorriso demagia e encantamento, coisafamiliar mesmo. Acho queela não ia acreditar se eu lhedissesse a verdade.

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nós choramos pelocão tinhoso

para aIsaura.para oLuísB.Honwana

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Foi no tempo daoitava classe, na aula deportuguês.

Eu já tinha lido essetexto dois anos antes masdaquela vez a estória meparecia mais bem contadacom detalhes queatrapalhavam uma pessoa sóde ler ainda em leiturasilenciosa — como acamarada professora deportuguês tinha mandado.

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Era um texto muitoconhecido em Luanda: “Nósmatamos o Cão Tinhoso.”

Eu lembrava-me detudo: do Ginho, da pressãode ar, da Isaura e das feridaspenduradas do Cão Tinhoso.Nunca me esqueci disso: umcão com feridas penduradas.Os olhos do cão. Os olhos daIsaura. E agora de repenteme aparecia tudo ali denovo. Fiquei atrapalhado.

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A camarada professoraselecionou uns tantos para aleitura integral do texto.Assim queria dizer queíamos ler o texto todo derajada. Para não demorarmuito, ela escolheu os queliam melhor. Nós, os daminha turma da oitava,éramos 52. Eu era o número51. Embora noutras turmastentassem arranjar alcunhaspara os colegas, aquela era a

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minha primeira turma ondeninguém tinha escapado deser alcunhado. E alguns eramnomes de estiga violenta.

Muitos eram nomes deanimais: havia o Serpente, oCabrito, o Pacaça, a Barata-da-Sibéria, a Joana Voa-Voa, a Gazela — e o Jacó,que era eu. Deve ser porqueeu mesmo falava muito nessaaltura. Havia o É-tê, oAgostinho Neto, a Scubidú e

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mesmo alguns professorestambém não escapavam danossa lista. Por acaso acamarada professora deportuguês era bem porreira enunca chegamos a lhealcunhar.

Os outros começaram aler a parte deles. No início,o texto ainda está naquelaparte que na provaperguntam qual é e umapessoa diz que é só

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introdução. Os nomes dospersonagens, a situaçãoassim no geral, e a maka docão. Mas depois o textoficava duro: tinham dadoordem num grupo de miúdospara bondar o Cão Tinhoso.Os miúdos tinham ficadocontentes com essa ordemassim muito adulta, só umamenina chamada Isauraafinal queria dar proteção aocão. O cão se chamava Cão

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Tinhoso e tinha feridaspenduradas, eu sei que jáfalei isto, mas eu gosto muitodo Cão Tinhoso.

Na sexta classe eutambém tinha gostado buédele e eu sabia que aqueletexto era duro de ler. Masnunca pensei que umaslágrimas pudessem ficar tãopesadas dentro duma pessoa.Se calhar é porque umapessoa na oitava classe já

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cresceu um bocadinho mais,a voz já está mais grossa, jáficamos toda hora a olhar ascuecas das meninas“entaladas na gaveta”,queremos beijos na bocamais demorados e na dançad e slow ficamos todosagarrados até os pais e osprimos das moças viremperguntar se estamos comfrio, mesmo assim emLuanda a fazer tanto calor.

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Se calhar é isso, eu estavamais crescido na maneira deler o texto, porque comecei apensar que aquele grupo quelhes mandaram matar o CãoTinhoso com tiros depressão de ar era como ogrupo que tinha sidoescolhido para ler o texto.

Não quero dar essaresponsabilidade nacamarada professora deportuguês, mas foi isso que

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eu pensei na minha cabeçacheia de pensamentos tristes:se essa professora nosmanda ler este texto outravez, a Isaura vai chorar bué,o Cão Tinhoso vai sofrermais outra vez e vão rebolarno chão a rir do Ginho, quetem medo de disparar porcausa dos olhos do CãoTinhoso.

O meu pensamentoafinal não estava muito longe

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do que foi acontecendo naminha sala de aulas, notempo da oitava classe,turma dois, na escola MutuYa Kevela, no ano de 1990:quando a Scubidú leu asegunda parte do texto, osque tinham começado a rir sópara estigar os outroscomeçaram a sentir o pesodo texto. As palavras já nãoeram lidas com rapidez dedizer quem era o mais rápido

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da turma a despachar umparágrafo. Não. Uma pessoaafinal e de repente tinhamedo do próximo parágrafo,escolhia bem a voz de falar avoz dos personagens, olhavapara a porta da sala como sealguém fosse disparar umapressão de ar a qualquermomento. Era assim naoitava classe: ninguém lia otexto do Cão Tinhoso sem termedo de chegar ao fim.

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Ninguém admitia isso, eu sei,ninguém nunca disse, masbastava estar atento à voz dequem lia e aos olhos dequem escutava.

O céu ficou carregadode nuvens escurecidas. Olheilá para fora à espera de umatrovoada que trouxesse umachuva de meia-hora. Masnada.

Na terceira parte até acamarada professora

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começou a engolir cuspeseco na garganta bonita queela tinha, os rapazesmexeram os pés com nervosomiudinho, algumas meninascomeçaram a ficar de olhosmolhados. O Olavo avisou:“Quem chorar é maricasentão!”, e os rapazes todosficaram com essaresponsabilidade de fazeruma cara como se nadadaquilo estivesse a ser lido.

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Um silêncio muitoestranho invadiu a salaquando o Cabrito se sentou.A camarada professora nãodisse nada. Ficou a olharpara mim. Respirei fundo.

Levantei-me e toda aturma estava também com osolhos pendurados em mim.Uns tinham-se virado paratrás para ver bem a minhacara, outros fungavam donariz tipo constipação de

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cacimbo. A Aina e aRafaela, que eram muitobranquinhas, estavam com asbochechas todas vermelhas eos olhos também, o Olavoameaçou-me devagar com odedo dele a apontar paramim. Engoli também umcuspe seco porque eu já tinhaaprendido há muito tempo aler um parágrafo depressaantes de o ler em voz alta:era aquela parte do texto em

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que os miúdos já não têmpena do Cão Tinhoso equerem lhe matar a qualquermomento. Mas o Ginho nãoqueria. A Isaura não queria.

A camarada professoralevantou-se, veio devagarpara perto de mim, ficouquietinha. Como se quisesseme dizer alguma coisa com ocorpo dela ali tão perto.Aliás, ela já tinha dito, aome escolher para ser o

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último a fechar o texto, e euestava vaidoso dessaescolha, o últimonormalmente era o que lia jámesmo bem. Mas naqueledia, com aquele texto, elanão sabia que em vez de meestar a premiar, estava a mecastigar nessaresponsabilidade de falar doCão Tinhoso sem chorar.

— Camaradaprofessora — interrompi

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numa dificuldade de falar. —Não tocou para a saída?

Ela mandou seguir.Voltei ao texto. Um peso meatrapalhava a voz e eu nempodia só fazer uma pausa deolhar as nuvens porque tinhaque prestar atenção ao textoe às lágrimas. Só depois osino tocou.

Os olhos do Ginho. Osolhos da Isaura. A mira dapressão de ar nos olhos do

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Cão Tinhoso com as feridasdele penduradas. Os olhosdo Olavo. Os olhos dacamarada professora nosmeus olhos. Os meus olhosnos olhos da Isaura nos olhosdo Cão Tinhoso.

Houve um silênciocomo se tivessem disparadobué de tiros dentro da salade aulas. Fechei o livro.

Olhei as nuvens.Na oitava classe, era

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proibido chorar à frente dosoutros rapazes.

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palavras para ovelho abacateiro

Antigamenteaspessoaserampessoasdechegar.Nãosabíamosfazerdespedidas.

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palavrasda avóCatarina

Quando chegamosda praia, o céu estava àespera que as pessoas todasse recolhessem para poderordenar às nuvens quecomeçassem a largar umagrande chuva molhada, eraaté raro em Luanda naquele

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tempo fazer uma ventaniadaquelas, os baldes noquintal começaram a voar àtoa, os gatos nas chapas dezinco não sabiam bem ondeera o buraco de seesconderem, os guardas dacasa ao lado vieram a correrbuscar as akás que estavamencostadas no muro e oabacateiro estremeceu comose fosse a última vez que euia olhar para ele e pensar

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que ele se mexia para medizer certos segredos, nãosei o que o abacateiro medisse, não soube maisentender e pode ter sidonesse momento que no corpode criança um adultocomeçou a querer aparecer,não sei, há coisas que épreciso perguntar aos galhosde um abacateiro velho,cumprimentei o guardaenquanto corria no quintal a

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segurar os baldes quequeriam levantar voo, fuifechar a porta da casa debanho e da despensa, abomba de água disparou eassustei-me, o vento estava apôr-me nervoso, olhei amangueira com mangasverdes, olhei os galhos secosdo abacateiro, reparei noencarnado vivo das romãsbem madurinhas ali perto domamoeiro, olhei as uvas na

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videira e, enquanto olhava océu escuro, ainda pensei queera tão estranho aquelas uvasterem um sabor tão nítido amanga adocicada, fui fechara portinhola da casota ondeficavam as botijas de gás eainda recolhi duas toalhasque estavam na corda, volteia entrar na cozinha, com ocorpo a pingar de chuva esuor fresco, a t-shirt estavatão molhada que voltei lá

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fora para deixá-la jápendurada na corda, pareium pouco a deixar a chuvacair sobre a cabeça,fechando os olhos, escutandoo ruído que ela fazia cá forano mundo e dentro de mimtambém, queria ver quantospensamentos eu podiainventar — e pensar — aomesmo tempo que ouviaaquele ruído tipo música deuma orquestra bêbada, ri, ri

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sozinho quando abri os olhose vi a cadeira verde onde àsvezes, mas raramente,também o camarada Antóniogostava de ensaiar um sonodistraído, caiu a carga deágua que o céu tinhaprometido pela cor e pelovento soprado, enquanto aventania diminuía de repente,a chuva caía como umembrulho gigante de redes depesca que tivesse

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escorregado do armário deum pescador que estava lámuito em cima, nas alturas,era tanta água que mesmo vera casa do Jika estava difícil,o mundo parecia um desertomolhado naquela tarde, aindaconseguia ouvir, mas mal, ospassos dos guardas a correre, entre tantas cascatas deágua com a poeira davideira, do outro lado, tipofilme de western, um gato

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vesgo ficou parado em cimado outro telheiro a olhar paramim — seria o gato vesgoque eu tinha acertado no olhocom o chumbo da pressão dear? —, tive um pouco demedo, lá de dentro, aqualquer momento, a voz daminha mãe podia vir meperguntar se eu era malucode estar ali com aquelachuva toda a pedir mesmopara ter uma crise de asma

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complicada, ali fora o gatocalmo tinha ficado parado aolhar para mim, olhava maiscom o olho vesgo que com oolho que via bem, perto demim estava um ferroabandonado das obras dovizinho, sempre desconfieidos gatos calmos, não memexi, ele sim, devagarinho,saltou até perto das raízes damangueira, parou de novo,foi a andar muito devagar,

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parecia que para ele nãochovia e fazia um sol que lhecausava preguiça de partir,não me mexi, as mãosestavam na corda, como seeu estivesse preso com asmolas de estender a roupa, aágua caiu mais forte e detanto não ver nada tive medoque o gato voltasse àsescondidas e me atacasse,decidi entrar em casa,assustei-me com a voz da

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minha mãe — “o pai e euestivemos a falar sobreaquele assunto” —, o meucorpo todo molhado, penseique a minha mãe ia me ralharde eu estar a trazer a chuvapara dentro de casa,espalhando as gotas do meucorpo pelo chão limpo dacozinha, a mesma cozinhaantiga que todos nósdizíamos a rir que era docamarada António, a minha

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mãe tinha os olhos molhadostambém e um grande silêncioinvadiu a casa escolhendoesse espaço entre nós paraficar, eu olhava o chãopingado como se ele fossemuito mais distante, ouviacada gota cair no chão e aomesmo tempo pensei que nãodevia prestar atenção àquilo,pois outra coisa maisimportante estava prestes aacontecer — “tu há tanto

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tempo que falavas nisso, nósestivemos a falar” —, aminha cabeça viajava pelocorredor escuro porque faziaesse domingo cinzento dechuva e ninguém tinha aindaacendido as luzes, a minhacabeça deslocava-sedevagarinho e subia asescadas espreitandoprimeiro a sala onde a minhairmã mais nova tinhaacabado de adormecer com o

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corpo todo cansado da praiae a pele cheia do sal do mar,onde tínhamos passado quasetodos os sábados e domingosda nossa infância, eu subiaas escadas sem fazerbarulho, o meu pai podia terdecidido dormir um pouco esó acordar mais tarde paracomeçar com um café nacozinha e ir ver se natelevisão as equipasnacionais estavam a jogar

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futebol, o corredor lá emcima era um mar pesado desilêncios e isto não é poesiafalada, havia ali um silêncioque pesava se uma pessoa semexesse em qualquerdireção, parei, quieto, aescutar a tarde que chovia láfora, os ecos docomportamento dastrepadeiras e das árvoresenormes dos vizinhos, podiaquase desenhar essas árvores

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sem olhar para elas, a maiscambuta do lado esquerdo,na casa da tia Mambo, deviaser um abacateiro e eramaior que o nosso, tinhafolhas gordas e um cheirosempre poeirento mesmo quechovesse, e do lado direito,na casa da tia Iracema, haviauma árvore que imitava ouera mesmo um pinheiromuito alto e ligeiramentetorto onde os pássaros —

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não sei porquê — gostavamde fazer voo rasante quandotraziam minhocas na bocapara dar aos filhos quetinham acabado de nascer eficavam no telhado da tiaIracema a fazer barulho,parei, quieto, a escutar astrepadeiras, as árvores, umabuzina, algumas vozes, o cãodo Bruno a ladrar tão longe eo barulho da caneta da minhairmã mais velha a escrever

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os pensamentos dela dedomingo à tarde quandochove em Luanda, o que nãose ouvia era o gritinho dosfilhos desses pássaros que eunão disse mas sãoandorinhas, eles deviamestar a tremer de frio e demedo, todo mundo sabe, asandorinhas são como osgatos, não gostam nada dachuva, se calhar é por causado barulho dos trovões, não

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sei — “filho, assim a pingarainda te constipas” —, aporta do meu quarto estavaaberta e uma luz nenhumasaía dele entrando nocorredor a chamar-me, omundo cinzento espreitavapela minha janela, entendique havia uma nesga abertanos vidros e, por ali, todasas vozes da tarde, da chuva,da trepadeira, das árvores,entravam pelo meu quarto

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para me dar sinais estranhosque o meu corpo não sabiaaceitar, nem a minha cabeça,uma vontade de lágrimas mevisitou, cocei a pele dabochecha que era um gestoantigo para falar com asminhas vozes de dentro,pingava menos o meu corpo,o calção molhado deixeijunto à porta, entrei no meuquarto de tão poucos anos,fazia-me confusão entender

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porquê que eu vivia aquelequarto como um espaçoantigo, como se eu fosse umapessoa também deantigamente, e não era —via-se no espelho o meucorpo magro e a pele todaesticadinha a contornar osdedos da mão, os lábiosdesenhados quando eu osolhava sem compreender ascurvas deles, os olhos queeram mais difíceis de olhar

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porque me traziam aos olhosessa chuva de eles ficaremencarnados — “nóspensamos que, se érealmente o que tu queres,podes ir estudar para outropaís” —, pensei que lá nessepaís teria outro quarto, masnão este, o antigo, o doscheiros e das roupas e dasmúsicas e dos livros e dasescritas tristes e secretas, damala com os livros do

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Astérix, ou A náusea, ou oCem anos de solidão, ou os“gracilianos” como eu lheschamava, ou a camisaamarela-escura com manchaspretas e acastanhadas que omeu pai trouxe de Portugal e,desde que a vi, soube queamava esse tecido deacalmar os olhos que àsvezes choravam em frente aoespelho da incompreensão,porque o corpo mudava, a

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voz mudava, as mãos nocorpo mudavam, era visívelque eu preferia acordar maistarde que acordar mais cedo,era visível, para mim, queouvia barulhos e sentiacheiros que não podiadividir com ninguém, e a avóAgnette continuava apartilhar as noites comigo,contando, inventando,alterando as estórias todas,as de antigamente, as do

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presente e as outras, como seo tempo fosse o saco de arcom bolinhas que ela gostavade rebentar, como se, às 2hda manhã — entre risos decumplicidade, olhares defascínio que acendiam amadrugada, ternuras faladascomo se fossem verdades deofertar — ela me dissesse,devagarinho, com a vozconvicta e os factosarrumados caoticamente, que

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o futuro não era uma coisainvisível que gostava deficar muito à frente de nósmas antes — ela dizia comofrase de adormecimentomútuo —, antes um lugaraberto, uma varanda, talvezuma canoa onde é precisoenchermos cada pedaço deespaço com o riso dopresente e todas, todas asaprendizagens do passado,que alguns também chamam

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de antigamente — “assim apingar, ainda te constipas”—, a minha mãe disse comchuva nos olhos bemencarnados, o corpo delaencolhido a dar marcha atrásna cozinha, no trajeto que elatinha feito para virdevagarinho falar comigo,sem me ralhar por eu estar amolhar a cozinha, sem mefalar da asma e dosbrônquios, sem quase olhar

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para mim, eu também semquase saber como olhar paraela, como dizer — a ela e amim — que essa viagem,essa partida de ir embora, derepente me chegava fora dotempo, num terreno que iamuito além da dor e daslágrimas, num lugar quenenhum escrito meu podia terconseguido explicar nemnenhuma lágrima conseguiriaapagar, a minha mãe retirava

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devagar o corpo da cozinha,fiquei com os olhos postosnas gotas tombadas no chão,sem poder saber, nunca mais,o que era gota o que eralágrima, como se eu fosse umcego e naquele momentotodos os cheiros e todas asdores da infância mepesassem no corpo, e issoestava bem, era normal, masum peso me fechou os lábiose eu não soube o que dizer à

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minha mãe, talvez as frasesdela trouxessem pedido deresposta, talvez se eu tivessefalado nesse tempo fora domeu corpo ela me tivessedito, ou mostrado com osolhos, que aquele era, dequalquer modo, o tempodeles, dos meus pais, aítalvez os meus lábiosdissessem que esse tempo desabermos o momento departir tinha acontecido fora

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do meu próprio tempo, e quenos últimos anos eu haviaestado perdido, triste econfuso, num espaço tãogrande que afinal eramapenas duas cadeiras detecido encarnado, umasecretária, o armárioembutido, o sofá-camaencarnado que eu mesmotinha escolhido e usado essapalavra, “encarnado”, eriram porque era uma

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palavra de antigamente naboca de uma criança, esseespaço, com esse sofá-cama,com esse colchão fininho,com essas molas fracas,onde eu dormi tanto tempocom a avó Agnette, onde elame ensinou madrugadas edeu todas as estórias e odesdobrar de todos ostempos que quis dar, esseespaço enorme assim tãopequenino era apenas um

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quarto, com a enorme janelavirada para a trepadeira, queestava perto da poeira dela,que estava perto das flores,que estava perto da botija degás vazia, que estava pertodo contador de água, queestava perto da relva, queestava perto do cacto, queestava perto dos caracóis,que estavam perto daslesmas, que estavam perto dababa, que estava perto do

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portão pequeno, que estavaperto da caixa de correiobranca sem cartas, queestava perto da rua, queestava perto de mim — “setu queres ir para outro lugar,nós também achamos que é omelhor”.

Deixei os braçospousarem na madeirainchada e úmida, abri umpouco a janela a pensar que

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isso de olhar a chuva defrente podia abrandar o ritmodela, ouvi lá em baixo, navaranda, os passos da avóAgnette que se ia sentar nacadeira da varanda a apanharfresco, senti que despedir-me da minha casa eradespedir-me dos meus pais,das minhas irmãs, da avó eera despedir-me de todos osoutros: os da minha rua, sentique rua não era um conjunto

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de casas mas uma multidãode abraços, a minha rua, quesempre se chamou FernãoMendes Pinto, nesse diaficou espremida numa sópalavra que quase me doíana boca se eu falasse compalavras de dizer: infância.

A chuva parou. O maisdifícil era saber parar aslágrimas.

O mundo tinha aquelecheiro da terra depois de

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chover e também o terrívelcheiro das despedidas. Nãogosto de despedidas porqueelas têm esse cheiro deamizades que se transformamem recordações molhadascom bué de lágrimas. Nãogosto de despedidas porqueelas chegam dentro de mimcomo se fossem fantasmasmujimbeiros que dizemsegredos do futuro que eununca pedi a ninguém para

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vir soprar no meu ouvido decriança.

Desci. Sentei-me perto,muito perto da avó Agnette.

Ficamos a olhar overde do jardim, as gotas aevaporarem, as lesmas aprepararem os corpos paranovas caminhadas. Orecomeçar das coisas.

— Não sei onde é queas lesmas sempre vão, avó.

— Vão pra casa, filho.

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— Tantas vezes de umlado para o outro?

— Uma casa está emmuitos lugares — elarespirou devagar, meabraçou. — É uma coisa quese encontra.

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Para tingir a escrita de brilhos lentos e silenciosos(troca de cartas)

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querida ana paula

não sei exatamenteonde estás, isto pensandoque as frases que te queriaentregar implicariam saber atua localização geográfica,para depois equacionar aminha, mas logo entendi quenão, que eu podia dizer estascoisas de outro modo, assim

:escrevo-te de um certo

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sul,porque às vezes dentro

de nós faz sul

e acabo de fechar umlivro com aquela sensaçãoesquisita (humana?,metafísica?) que concluir umlivro traz — como se a pelese imbuísse de certofechamento, os olhospedissem calma à luz e os

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sons ficassem terrivelmentedelicados de se dizer e de seouvir

talvez esta carta seja oque eu não soube pedir aosoutros, alguns dias desilêncio

ou então ficartranquilo, vestindo — pordentro — roupas orientais,caminhar pela areia domussulo, que é também aareia da infância, estar

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simplesmente quieto a modosque deitado e, de verdade ounão, deixar-me sertrespassado pelas lesmas,saltitado por gafanhotos,aterrizado por helibélulas,sonhado por andorinhas,revisitado por falésias.

as do sul. as donamibe. as falésias que osolongos nunca visitaram. e omar.

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a missiva que te envioé o fechamento formal — jáse lê — de “os da minharua”, e talvez por isso estetexto-janela (para sair deantigamente) seja um caosde palavras em vez dosilêncio que eu pediria aosoutros e que aqui, por afetose inquietações revisitadas,aparece como mapa, bússolae onkhako

para saber sair deste

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certo sul.

como se tempo fosseum lugar

,como se infância fosse

um ponto cardealeternamente possível.

agora sim — mientrasespero missiva tua — buscoas rãs e invento

pelos poros

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uma espécie desilêncio.

ondjaki

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Ondjaki,

Também não sei ondeestou, meu muito e aindamenino, porque a minhalocalização geográfica ésempre um certo sul commontanha à volta e estejaonde estiver acerto osrelógios do mundo, asbússolas de dentro para estara sul mesmo quando atempestade e o frio me

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acinzentam a alma e o vento(ah este vento) me desorientaos passos. Fico cansada deprocurar lugar para me situara sul todos os dias paraencontrar as águas queconheço, reconhecer a manhãpelos cheiros, contornar asameaças e acender o fogo.Não deve ser este o sítiopróprio, nem o espaço abertoonde cresceram a Tchi, oNdalu, o Bruno, o Tibas.

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Agora me lembro, meumuito menino, que, a bemdizer, esse lugar já nãoexiste e ainda bem que oacabas de contar em livroporque as pessoas tenderão alembrar Sucupira, RoqueSanteiro e outros estranhos eimprováveis mundos e aesquecer as ruas ex-disto edaquilo onde cresciammiúdos aos gritos a ver omundo sem ninguém dar

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conta.

Um tempo em que acidade era a nossa casa,queríamos acreditar queandávamos a polir o futurode forma tão sensível comose habitássemos a cidade dedeus.

Pela primeira vez meapetece a palavra para tecontar dessa cidade que não

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era a minha, onde chegueiainda antes de ter idade paraa distância, o silêncio, asroupas orientais por dentro.Dava para desconfiar o mapaantigo escrito na cara com ainfância em cicatriz na testa.Apetece-me, pois a palavra,meu muito menino, para tedizer dessa cidade que setransforma do dia para anoite em cidades diferentes eoutras e outras. Não, a figura

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daquelas bonecas que seabrem para revelar uma maispequena e ainda mais uma euma até ao infinito não servea Luanda: cada cidade novatransborda da primeira,cerca-a de estranhasfronteiras com os seusmundos de ninguém e as suaslínguas próprias tão suaves esedutoras que noshabituamos a ouvir sempensar nas mensagens, nos

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avisos à navegação e nossinais. Assim se abriramjanelas e fecharam portaspara sempre. A surdez é umacoisa que acontece mesmoaos de bom ouvido.

Por isso me calo, meumuito menino, para celebraros teus contos. Tratas deantigamente com a doçuranecessária. As palavrasestão limpas e leem as linhas

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da cidade atentas já aosgrandes ruídos. Recuperasdas buganvílias os sopros eestás atento às acácias. O teulivro dá conta de comocrescem em segredo ascrianças. É o milagre dasflores do embondeiro:habitam o mundo em conchapor breves momentos e veematravés da luz o milagre daspequenas coisas: umalagartixa, os improváveis

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sapatos vermelhos de ummiúdo no comício doprimeiro de maio, as vozesdas estrelas. Inscrevem osublime nas cidadesimpossíveis, falam antes dofuturo, caminham sem pressapela água.

Tens razão, meu muitomenino, com as palavraspode-se aprender a sair deum tempo e de um lugar

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porque “a infância é umponto cardeal eternamentepossível”.

Cuida das rãs e de tiUm abraço da

ana paula

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Glossário

“Abuçoitos” (“pedirabuçoitos”): pedirlicença para seausentar de um jogo oubrincadeira.

“Goiabera”: camisa deestilo cubano.

Aká: metralhadora de fabrico

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russo (AK47).Banga: estilo, vaidade.Bangoso: estiloso, a “fazer

banga” (fazer estilo).Bem armado (“estar bem

armado”): estararrogante; não inspirarconfiança.

Bigue: corruptela do inglêsbig (grande).

Bondar: matar, atingir.Camba: amigo,

companheiro.

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Cambaia: de pernasarqueadas.

Cambuta: baixo(a).Candengue (do quimbundo

ndengue): criança.Cuiante: o que é muito bom.Ché: interjeição de espanto

ou júbilo.Chuinga: corruptela do

i ngl ê s chewing gum(chiclete).

Dibinga: fezes.Esculú: muito bom,

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corruptela de“exclusivo”.

Esquebra: excedente.Esquindiva: finta.Estigar: ridicularizar outrem

através de um criativoe bem-humorado jogode palavras.

Fugar: faltar às aulas.Jacó: papagaio.Jindungo: picante.Kitaba: espécie de pasta

feita com amendoim

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torrado.Kota: mais velho.Maka: conversa, questão,

disputa, caso, assunto.Malaico: que não é bom.Mô: meu.Muadiê: pessoa; tipo(a).Mujimbeiro: fofoqueiro.Mujimbo: boato, fofoca.N d e n g u e (quimbundo):

criança.Ngonguenha: mistura de

água com farinha de

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pau (farinha fina feita apartir da mandioca) eaçúcar.

Olongo: antílope de grandeporte, tambémconhecido por kudu-grande.

O n k h a k o (Nyaneka):sandálias.

Paracuca: amendoimtorrado, envolto emaçúcar, vendido na ruaem canudos de papel.

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Poster: estilo (“mandar” ou“ter” poster).

Pré-cabunga: última classeda pré-escola.

Quiteta: espécie de moluscocomestível.

Tuga: referente a cidadãoportuguês, ou aPortugal.

Welwitchia mirabilis : florexistente no Sul deAngola, na provínciado Namibe, cuja

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principal característicaé sobreviver no climaextremamente seco dodeserto graças às suasraízes extremamentelongas e profundas.

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agradecendo,à camarada professora

Angélica, Ana P. Tavares,Dada, Isabel G., Jujú e Sita,Renata F., Nuno Leitão,Andrea M.;

às músicas do RobertoCarlos, Luís Eduardo Aute,Sílvio Rodríguez, TheOpiates, Paulo Flores, WimMertens, Chet Baker,Rodrigo Leão, AdrianaCalcanhoto, Jorge Palma;

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às rolas na casa da tiaRosa, aos olongos noNamibe, à piscina de Coca-Cola, à MadalenaKamussekele, aos olhos doCão Tinhoso, aos olhos daIsaura, aos cheiros e texturasdo velho abacateiro.

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umlivro oensinoua nãosabernada— agorajásabe.(manoeldebarros,oguardador

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deáguas)

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do autor

actu sanguíneu (poesia,2000)

Menção honrosa noPrémio António Jacinto(Angola)

momentos de aqui(contos, 2001)

o assobiador (novela,2002)

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há prendisajens com oxão (poesia, 2002)

bom dia camaradas(romance, 2003)

quantas madrugadas tema noite (romance, 2004)

Ynari, a menina dascinco tranças (infanto-juvenil,2004)

e se amanhã o medo(contos, 2005)

Prémio LiterárioSagrada Esperança 2004(Angola)

Prémio Literário

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António Paulouro 2004os da minha rua (estórias,

2007)

[email protected]/ondjaki

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outros livros destacoleção

a guerra dosbastardos de Ana PaulaMaia

sobre a neblina deChristiane Tassis

o evangelho segundo

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a serpente de Faíza Hayata luz do índico de

Francisco José Viegasas mulheres do meu

pai de José EduardoAgualusa

cão de cabelo deMauro Sta. Cecília

perdido de volta deMiguel Gullander

ódio sustenido deNelson de Oliveira

amor em segunda

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mão de Patrícia Reismorder-te o coração

de Patrícia Reisdicionário de

pequenas solidões deRonaldo Cagiano

Próximoslançamentos:

mandingas da mulatavelha na cidade nova deNei Lopes

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www.linguageral.com.br

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Sumárioponta de lança 8sumário 14o voo do jika 19a televisão mais bonitado mundo 31

o kazukuta 52jerri quan e osbeijinhos na boca 64

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os óculos da charlita 80a professora genovevaesteve cá 91

a ida ao namibe 110o homem mais magrode luanda 130

o último carnaval davitória 149

a piscina do tio victor 175os quedes vermelhos

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da tchi 192manga verde e o saltambém 213

bilhete com foguetão 233as primas do brunoviola 248

o portão da casa da tiarosa 268

os calções verdes dobruno 286

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o bigode do professorde geografia

297

no galinheiro, nodevagar do tempo 310

um pingo de chuva 347o nitó que também erasankarah 365

nós choramos pelo cãotinhoso 382

palavras para o velhoabacateiro 404

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Para tingir a escrita debrilhos lentos esilenciosos

445

Glossário 463do autor 475outros livros destacoleção 478