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Versão On-line ISBN 978-85-8015-075-9Cadernos PDE
OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSENA PERSPECTIVA DO PROFESSOR PDE
Produções Didático-Pedagógicas
SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO SUPERINTENDÊNCIA DA EDUCAÇÃO
DIRETORIA DE POLÍTICAS E PROGRAMAS EDUCACIONAIS PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO EDUCACIONAL
ARNOLDO MONTEIRO BACH UNIDADE PEDAGÓGICA – PODCASTS: PROMOÇÃO DO CONTEÚDO LITERÁRIO NO ESPAÇO CIBERCULTURAL
PONTA GROSSA 2013
ARNOLDO MONTEIRO BACH
O USO DE PODCASTS NA PRODUÇÃO DE GÊNEROS LITERÁRIOS
Unidade pedagógica apresentada como requisito de avaliação parcial referente ao Programa de Desenvolvimento Educacional – PDE, promovido pela Secretaria de Estado da Educação – SEED – PR. Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG. Orientador: Prof° Dr. Fábio Augusto Steyer.
PONTA GROSSA 2013
SUMÁRIO 1 DADOS DE IDENTIFICAÇÃO.................................................................... 04 2 TEMA DE ESTUDO DA INTERVENÇÃO - O uso de podcasts na
disciplina de literatura............................................................................. 04
3 TÍTULO - Podcasts: promoção do conteúdo literário no espaço cibercultural ..........................................................................................
04
4 A SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX: DEIXA-SE O ROMANTISMO PARA ABRAÇAR A REALIDADE...............................................................
06
4.1 CONTEXTO HISTÓRICO.......................................................................... 06 4.2 OS ESTILOS LITERÁRIOS........................................................................ 09 4.2.1 PORTUGAL ............................................................................................... 10 4.2.2 BRASIL ......................................................................................... ............. 10 5 O ROMANCE REALISTA/NATURALISTA ................................................. 11 5.1 CARACTERÍSTICAS DO REALISMO/NATURALISMO ............................ 12 6 MACHADO DE ASSIS............................................................................... 13 6.1 OBRA DE MACHADO DE ASSIS.............................................................. 14 7 OFICINA LITERÁRIA ................................................................................ 19 7.1 CONTO 01 - A CARTOMANTE.................................................................. 20 7.2 CONTO 02 - A IGREJA DO DIABO........................................................... 30 8 AUDIOLIVRO...................................................................................... ...... 38 8.1 PODCAST ............................................................................................... 39 8.2 GRAVANDO PODCAST............................................................................ 39 8.3 TUTORIAL DO PROGRAMA AUDACITY.................................................. 39 9 CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................... 39 10 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................................... 46
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1- DADOS DE IDENTIFICAÇÃO
1- IDENTIFICAÇÃO
1.1- PROFESSOR PDE: Arnoldo Monteiro Bach
1.2- ÁREA: Língua Portuguesa
1.3- NRE: Ponta Grossa
1.4- PROFESSOR ORIENTADOR IES: Prof° Dr. Fábio Augusto Steyer
1.5- IES VINCULADA: Universidade Estadual de Ponta Grossa
1.6- ESCOLA DE IMPLEMENTAÇÃO: Colégio Estadual Dom Alberto Gonçalves -
Ensino Fundamental, Médio e Profissionalizante.
1.7- PÚBLICO OBJETO DA INTERVENÇÃO: Alunos do curso de formação de
docentes.
2- TEMA DE ESTUDO DA INTERVENÇÃO: O uso de podcasts na disciplina de
literatura.
3- TÍTULO:
Podcasts: promoção do conteúdo literário no espaço cibercultural.
JUSTIFICATIVA:
Atualmente vivemos um momento de grandes transformações sociais e
tecnológicas. Para alguns autores esse dado momento é conceituado com o
paradigma da sociedade da informação/ conhecimento. Uma sociedade que utiliza
as tecnologias da informação e comunicação em seu cotidiano, o fluxo de
informações é intenso, e “onde o conhecimento é um recurso flexível, fluido, sempre
em expansão e em mudança” (Hargreaves: 2003, p. 33) que tem como base usar a
informação e seus efeitos.
Assim, diante do exposto, surge a necessidade de repensar o espaço
escolar e as possibilidades de aprendizagem frente às tecnologias. A escola não
pode mais ficar alheia às transformações sociais, precisa compreender e incorporar
as tecnologias à prática pedagógica.
Portanto, a escola deve integrar as tecnologias de informação e
comunicação porque elas já estão presentes e são influentes em todas as esferas
da vida social. Assim, cabe à escola, “especialmente à escola pública, atuar no
sentido de compensar as terríveis desigualdades sociais e regionais que o acesso
desigual a estas máquinas está gerando.” ( Belloni: 2005, p.67 )
A popularização das tecnologias nos faz pensar em uma nova forma de
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organização da disciplina de Literatura, onde ocorra a inserção de métodos que
venham aproximar os alunos dos conteúdos propostos.
Logo, o uso de tecnologias como ferramentas pedagógicas possibilitará
o desenvolvimento de competências digitais nos educandos e maior interatividade
entre os conteúdos e o mundo globalizado em que vivem, incluindo
sociodigitalmente esses sujeitos.
Dessa forma, a unidade pedagógica que será desenvolvida no Colégio
Estadual Dom Alberto Gonçalves pretende utilizar podcast como ferramenta
pedagógica no ensino de Literatura. Assim, ao optar por utilizar o podcast como
ferramenta pedagógica, anseia-se despertar no aluno o papel de leitor ativo diante
do processo de leitura.
Nesta perspectiva, a leitura será desenvolvida de maneira
contextualizada, o que permitirá ao leitor-aluno desenvolver a reflexão sobre a
narrativa e o papel dos personagens, ampliando suas expectativas e possibilitando a
compreensão crítica e valor estético de um clássico literário.
Porém, para trabalhar o valor estético na literatura brasileira, utilizou-se
como norteador as diretrizes curriculares de Língua Portuguesa para o Ensino
Médio, onde se propõem a possibilidade de ensinar Literatura através de recorte
estético literário e temas pré-estabelecidos.
Nesse sentido, o recorte realizado para a confecção desta unidade
pedagógica ocorre com a seleção dos contos de Machado de Assis (A cartomante e
A igreja do diabo) o que permite trabalhar o evento estético da literatura. Assim,
como recurso metodológico propõe - se a produção de podcast no intuito de explorar
os contos machadianos, instigando o aluno-leitor a projetar-se na narrativa e
identificar-se com algum personagem.
O processo de reconhecimento, envolvimento na leitura, produção de
podcasts permitirá ao aluno reconhecer-se como coautor dos contos machadianos à
medida que ele narra e interpreta os clássicos de Machado de Assis.
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4 - A SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX: DEIXA-SE O ROMANTISMO PARA
ABRAÇAR A REALIDADE
O idealismo subjetivista deflagrado na figura feminina, a atmosfera
imaginária que permeava a inspiração dos autores e a imponência do sentimento
nacionalista sustentada por saudosistas do período romântico não mais
deslumbravam os intelectuais e leitores da época. Motivados pela busca da
realidade que protagonizava o novo cenário histórico-cultural, os indivíduos sociais
começam a agir e a pensar de maneira clarividente, objetiva. Utilizam explicações
sólidas e consistentes para seus justificar seus comportamentos e atos, questionam
e investigam outra forma
de reproduzir o que
sentiam e viviam,
desejavam extrair a
realidade como uma
fotografia.
4.1 CONTEXTO HISTÓRICO
Em meados do século XIX, a ciência avança a passos largos com o
aumento das produções científicas, principalmente na Europa. A partir de um
processo de racionalização, a pesquisa científica foi estimulada com a criação das
Associações para o Progresso da Ciência na Inglaterra e Estados Unidos. Os
propulsores desse avanço foram a Revolução Francesa (1789-1799) – promotora
das repúblicas e das democracias liberais ao redor do mundo e o instigador das
ideologias modernas – e a Revolução Industrial (1850-1870). Também, o capitalismo
se estrutura em moldes modernos com a formação de grandes complexos
industriais. A revolução industrial entra em uma nova fase – segunda revolução
Figura 1 O atelier do artista, 1855, de Jean Désiré Gustave Coubert (1819-1877). Oléo sobre tela. Gustave Coubert foi um pintor francês que retratou, principalmente, a vida camponesa da região onde morava. Nesta obra, o autoretrato é enfatizado em exposição no “Pavilhão do Realismo”. Fonte: WIKIPÉDIA FICHEIRO
7
industrial, marcada pela utilização do aço, do petróleo e da eletricidade. Há o
crescimento exponencial das estradas de ferro e dos navios a vapor. Assim, a
produção do aço, o transporte rápido e os custos de produção declinam. Os padrões
de vida das massas se desenvolvem de forma sustentada.
A grande importância dada ao pensamento científico, também chamado
de cientificismo – prioriza as ciências formais e
naturais como única fonte de explicação de tudo
que existe, influencia a filosofia e gera variadas
posturas ideológicas.
Ainda nesta época, surge o positivismo
do francês Augusto Comte (1798-1857), que
supervaloriza a ética humana a partir de seus
princípios, deixando de lado a temática
teológica ou transcendental, com sua proposta
de conciliar ordem e progresso, o que acabaria
virando o lema da bandeira republicana
nacional.
Acompanhando a vertente estética da
sociedade sem preocupação com o idealismo
dos indivíduos que a compõe, os alemães Karl
Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-
1895) publicam o Manifesto Comunista (21 de
fevereiro de 1848) e, com isso, fundam o socialismo científico. Estes autores
analisam e criticam o capitalismo. Para isso, negam a intenção espiritualista ou
religiosa que alterava o comportamento social.
Na Inglaterra, Charles Darwin (1809-1882) nega a origem divina da vida
com sua teoria da evolução das espécies (1ª edição em 1859). Darwin não se
considerava ateu, mas agnóstico. Predicado que justifica o árduo e incessante
trabalho de homologar a teoria da evolução humana – processo independente de
fatores comprobatórios – dada por meio de seleção natural e sexual, calcada na
observação e experimentação de elementos da natureza.
A organização em torno da produção agrícola e das múltiplas atividades
desempenhadas em função do eixo aristocracia/mão-de-obra escrava reflete
Figura 2 – A árvore da vida, 1879, por Ernest Haeckel´s (1834-1919) – biólogo alemão que ajudou a popularizar o trabalho de Charles Darwin. Ilustração apresentada em A Evolução do Homem. Retrata a visão do pensamento científico do século XIX: evolução como processo no qual o homem é o objeto. Fonte: WIKIPÉDIA FICHEIRO
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consideráveis transformações no setor político-social antes e após a década de
1880, dentre as quais se podem enfatizar:
- Intensidade acerca da campanha abolicionista a partir de 1850. A reunião dos
intelectuais da época, com o incentivo da imprensa, de maneira a renovar o
pensamento sobre o comportamento social inclinado à escravidão somada às fortes
declarações sobre direitos humanos colocaram em pauta a necessidade de rever o
conceito de sociedade que se apresentava na época.
- A Guerra do Paraguai (1864-1870) tem como consequência o pensamento
republicano – Partido Republicano fundado no fim desta guerra. Fato este que, anos
mais tarde, ganharia força e desenvolveria a prática republicana de se governar.
- D. Pedro II, em seu decadente poder monárquico, pouco interferia nos novos
processos políticos que eram moldados.
- A ascensão da economia cafeeira que baseada estava nos processos trabalhistas
de mão-de-obra assalariada – inclusive pelos imigrantes europeus que aqui
chegavam – foi a consequência de um ato legítimo a favor dos negros: A Leia Áurea,
de 1888.
Vamos por em prática o que aprendemos
1- O Romantismo está relacionado com o surgimento de um novo público leitor. Qual é essa classe? ___________________________________________________________________ 2- Assinale a alternativa em que se encontram características do movimento literário ao qual se dá o nome de Romantismo: A) predomínio da razão. B) busca de temas nacionais, sentimentalismo e imaginação. C) arte pela arte. D) desejo de expressar a realidade objetiva. E) imitação dos antigos gregos e romanos. 3- Marque a alternativa que não caracteriza a estética romântica: A) subjetivismo B) primado do sentimento C) culto à natureza D) pessimismo E) objetivismo 4- Faça uma linha do tempo do século XIX apontando os principais acontecimentos.
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4.2 OS ESTILOS LITERÁRIOS
Essa visão de mundo mais científica também influenciou as artes,
fazendo surgir os estilos realista e naturalista. Eles têm como característica principal
a representação baseada na observação. O artista passa a querer representar a vida
tal como ela é, enfatizando temas muitas vezes ligados às atividades comuns do
homem em detrimento dos temas históricos,
mitológicos e religiosos comuns ao
Romantismo.
O foco de interesse no sujeito
transmuta-se, de dentro para fora, do
interior para a realidade que o modela. As
classes sociais inferiores e as atividades
corriqueiras são objetos de análise e
fundamentação crítica. Símbolos do
Realismo na literatura europeia são escritores como os franceses Honoré de Balzac
(1799-1850) e Gustave Flaubert (1821-1880). Balzac investia pesadamente nas
descrições de objetos e roupas de seus personagens de maneira a apresentá-los ao
leitor. Não se preocupava com as ações desenvolvidas por esses, mas pelas
imposições discursivas. Por sua vez, Gustave Flaubert
ironiza e, ao mesmo tempo, moraliza os
comportamentos sociais. Aprofunda-se na análise
psicológica dos personagens e retrata com lucidez e
detalhamento as intenções humanas.
O Naturalismo, especificamente, se
diferencia do Realismo do qual deriva por sua
característica de cunho científico impregnada por uma
visão materialista do homem, da vida e da sociedade.
Ele considera que o homem é um ser natural e valoriza
seus instintos, priorizando a análise do coletivo acima
da do indivíduo. A inversão de perspectiva, agora, está
Figura 3 – Após o jantar em Ornans, 1849, de Jean Désiré Gustave Coubert (1819-1877). Oléo sobre tela. Fonte: WIKIPÉDIA FICHEIRO
Figura 4 – Casa dos Patudos, de Teixeira Lopes (família). A escultura desenvolveu-se tardiamente, em função dos persistentes traços românticos. O nu é evidenciado nas lapidações naturalistas. Fonte: WIKIPÉDIA FICHEIRO
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direcionada à influência do meio sobre o sujeito. As ações e intenções dos seres
sociáveis baseiam-se no modo como eles são afetados pelas reações. O desgaste
na análise psicológica, presente no Realismo, dá espaço ao fator sócio-histórico-
cultural.
4.2.1 PORTUGAL
Em Portugal, desde a década de 60 do século XIX,
os estudantes de Coimbrã acompanhavam o que acontecia
nos grandes centros europeus de cultura. Com o decorrer
dos anos, vão se aprofundando suas divergências com os
velhos mestres românticos de Lisboa. Em 1864, Teófilo
Braga (1843-1924) – político e escritor que introduziu o
Positivismo em Portugal - publica Visão dos tempos e
Tempestades sonoras, e Antero de Quental (1842-1891) –
poeta português, Odes modernas. São poesias
revolucionárias que demonstram preocupação com o
momento histórico vivido e com clara função social. O novo
estilo é duramente criticado pela velha escola de Lisboa. A
série de discussões literárias que começa, então, fica
conhecida como a questão Coimbrã.
Inúmeros folhetos circulavam em Portugal defendendo as novas ideias
realistas ou o Romantismo. A polêmica só terminou em 1871 com o ciclo de
conferências democráticas em que se discutiram as novas ideias correntes na
Europa. Na quarta conferência, intitulada O realismo como nova expressão de arte,
Eça de Queirós (1845-1900) atacou o Romantismo e defendeu os seus valores
realistas e o caráter de transformação social da literatura.
4.2.2 BRASIL
No Brasil, considera-se 1881 o ano inaugural do novo movimento
literário. Naquele ano, foram publicados O mulato de Aluísio Azevedo (1857-1913),
considerado o primeiro romance naturalista brasileiro, e Memórias póstumas de Brás
Figura 5 – O escritor José Maria de Eça de Queirós em 1882. Photographia Contemporanea em O contemporâneo, nº 108, Lisboa. Fonte: WIKIPÉDIA FICHEIRO
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Cubas de Machado de Assis (1839-1908), primeiro romance realista do país. O
período realista, portanto, abrange um período de importantes mudanças históricas
em nosso país como o fim da escravidão, em 1888, a proclamação da república, em
1889 e o início do ciclo econômico do café.
Embora, pela divisão tradicional da literatura
brasileira, o Realismo e o Naturalismo terminem em 1893,
com a publicação de Missal e Broquéis, ambos de Cruz e
Souza (1861-1898), suas estéticas seguem existindo
paralelamente por algumas décadas junto com outras que
surgem depois, como o Simbolismo e o Pré-modernismo, até
o advento da Semana de Arte Moderna de 1922.
5- O ROMANCE REALISTA/NATURALISTA
O romance, que tinha um público cativo enorme no Romantismo,
revelou-se a principal forma de expressão literária no Realismo. A ideia dos enredos
era, a partir dessa nova perspectiva, objetivar e analisar o aspecto social para
compreender e criticar o momento histórico. Dessa forma, a denúncia dos defeitos
da sociedade passa a ser alvo dos conteúdos.
A temática mais explorada nas obras é o triângulo amoroso com o
enfoque para a figura feminina, uma vez que o adultério masculino não oferecia o
mesmo grau de dramaticidade que o feminino. Na maioria das vezes, a mulher é
desmascarada e penalizada contundentemente.
Outra, não menos particular que a anterior, é o poder proporcionado
pelo dinheiro como instrumento de ascensão social. Há críticas ao movimento
literário antecedente em obras em que a personagem, feminina em sua maioria,
possui uma visão idealizada da vida e do amor. No desenvolvimento do enredo, o
autor, por intermédio das reações dos interlocutores, deixa clara a situação trágica
Figura 6 – Impressão de uma cópia do livro Memórias Póstumas de Brás Cubas de Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), dedicatória do autor para a Biblioteca Nacional Brasileira. Fonte: WIKIPÉDIA FICHEIRO
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pela qual a personagem passará.
A subjetividade e a idealização do amor, principalmente, são dissolvidas
em construções linguísticas carregadas de orações curtas, impactantes e
carregadas de justificativas embasadas em análises das ações dos personagens.
Nas tramas não há contradições: as declarações dos envolvidos sempre estão às
claras.
Quanto ao narrador, a estética realista prima pela apresentação dos
fatos em terceira pessoa. Essa característica fornece ao leitor a construção de um
conteúdo imparcial, sem brechas para impressões do próprio autor. Ainda que haja
presença de primeira pessoa – característica das obras de Machado de Assis – não
se pode perceber a intenção de ludibriar o leitor ou condicioná-lo a pensar dessa ou
daquela maneira.
Por sua vez, a literatura naturalista emprega o discurso em primeira
pessoa, moderadamente. Como o objetivo é denunciar a influência que o meio
exerce sobre as personagens, o emprego dessa pessoa do discurso não afeta a
legibilidade da obra, que mantém aspectos gerais característicos da realidade.
5.1 CARACTERÍSTICAS DO REALISMO/NATURALISMO
A oposição ao Romantismo define as características realistas.
- Prioriza a objetividade e impessoalidade: o narrador não deixa transparecer seu
ponto de vista diante dos fatos que relata;
- Postura racionalista: análise fundamentada acerca das ações propostas no enredo;
- Visão ampla da sociedade;
- Retrata a vida contemporânea;
- Detalhamento das cenas e das atitudes dos personagens;
- Narrativa lenta, fragmentada;
- Universalismo;
- Materialismo leva à negação do sentimentalismo;
- Preocupação com o presente, com o contemporâneo;
- Antimonarquia, assumindo defesa clara do ideal republicano;
- Negação da burguesia;
- Atitudes anticlericais, denuncia padres corruptos e hipocrisia de beatas;
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6- MACHADO DE ASSIS
Um dos maiores nomes da nossa literatura, surgiu neste contexto.
Nascido no Rio de Janeiro, era mulato e de origem humilde, mas conseguiu um
cargo de funcionário público o que lhe garantiu a estabilidade para se dedicar à
literatura. Escreveu nove romances e duzentos contos, além de nove peças de
teatro e inúmeras crônicas. Suas primeiras obras têm influência romântica, mas a
partir de Memórias póstumas de Brás Cubas vem à tona o lado irônico e amargo que
o caracteriza, expresso por meio de uma prosa brilhante.
Joaquim Maria Machado de Assis, nasceu
em 21 de junho de 1839 no morro do livramento,
zona portuária do Rio de Janeiro. De saúde
frágil, o menino pobre de origem pobre foi criado
pela madrasta após a morte dos pais. Pouco se
sabe dessa fase de sua vida, mas é provável que
tenha compensado a falta de estudos regulares
com a escapadela para assistir às aulas em uma
escola no bairro de São Cristóvão, onde vendia
doces.
Aos quinze anos, trabalhando como
aprendiz de tipógrafo na imprensa oficial,
Machado publica seu primeiro poema Ella, na
revista Marmota Fluminense. A partir daí, tornou-se colaborador regular de diversas
publicações como a própria Marmota até ingressar na carreira pública que o
manteria por toda a vida. As obras da juventude machadiana contêm traços do
romantismo então em voga centradas em dramas burgueses sobre relacionamentos
amorosos e tendendo ao escapismo.
O primeiro livro foi uma coletânea de poemas Crisálidas de 1864, em
seguida veia a coletânea Contos fluminenses de 1869. A estreia no romance se
daria em 1872 com Ressurreição, seguiram-se A mão e a luva, Helena e Yayá
Garcia. Estas últimas obras já reuniam traços que se tornariam característicos do
período maduro da obra machadiana como o fino humor e o gosto pela análise
Figura 7 – Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908). Fonte: WIKIPÉDIA FICHEIRO
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psicológica com destaque para as personagens femininas.
Em 1869, Machado se casa com Carolina Augusta Xavier de Novaes,
culta e aficionada por literatura é possível que dona Carolina tenha ajudado
Machado com palpites literários e a revisão de originais. Em 1880, Machado publica
um romance que se tornaria marco inaugural do realismo no Brasil, Memórias
póstumas de Brás Cubas. A obra anuncia uma revolução, o autor apresenta um
narrador irônico, intrusivo e pessimista com olhar afiado para a análise psicológica
das personagens e da sociedade que a cercava. A abordagem era inusitada, o
finado Brás Cubas já devidamente devorado por vermes em sua cova fazia uma
retrospectiva crítica da própria vida. Atento às discussões filosóficas e políticas de
sua época, é nesta obra que Machado de Assis introduz aos leitores a teoria do
humanitismo. Sátira as principais correntes de pensamento da época como o
positivismo e o darwinismo, essa doutrina fictícia seria detalhada no romance
seguinte que levava o nome do seu criador, Quincas Borba.
Machado de Assis tinha sessenta anos quando publicou Dom
Casmurro, em 1899. A obra mais conhecida do autor retrata a vida Bentinho e Capitu
e enfoca o possível triângulo amoroso entre Capitu e Escobar, amigo do casal.
Narrado em primeira pessoa de Bentinho, a narrativa inclina-se à temática da prática
de adultério de Capitu com Escobar.
Os dois últimos romances de Machado tem como pano de fundo
histórico a proclamação da república, Esaú e Jacó e Memorial de Aires. Machado
também se destacou em outros campos como conto, o teatro e a tradução. Seus
contos e crônicas refletem a tendência irônica e aprofundamento psicológico
presentes em seus maiores clássicos. Dentre os contos, encontram-se A cartomante,
A missa do galo e O alienista. Ao longo de sua carreira assumiu inúmeros
pseudônimos e frequentou diversas sociedades literárias, tornando-se cofundador e
primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras. Em 1905, sua esposa falece.
Em 29 de setembro de 1908, Machado de Assis faleceu em sua casa.
6.1 A OBRA DE MACHADO DE ASSIS
As obras machadianas foram estruturadas durante a história por dois
períodos distintos: a primeira fase, denominada romântica ou de amadurecimento,
carregada de características dessa escola literária, as quais foram lapidadas e
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substituídas, anos mais tarde, por análises psicológicas e tons irônicos no discurso;
e a segunda – chamada realista ou de maturidade, apresentando o autor
complemente definido de acordo com as ideias realistas, no auge de seu trabalho
literário.
A primeira fase
Sua obra destaca-se pela própria análise crítica de seus romances e
contos. Machado de Assis percebe-se como autor em busca de aperfeiçoamento
característico em seu conteúdo. A ingenuidade, como ele mesmo relatou, foi perdida
ao passo que conhecia novas maneiras de expressar aquilo que era visto e
presenciado por ele há época. Apesar do sentido romanesco, o conteúdo de seus
romances indicavam as sutilezas que marcariam, posteriormente, as narrativas da
segunda fase: o amor contrariado, amor por interesse e análise aprofundada das
ações dos personagens. Destacam-se os romances: Ressurreição, A mão e a luva,
Helena e Iaiá Garcia.
A segunda fase
Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro
pertencem a esta fase que reunia pessimismo, negativismo, narrativa em primeira
pessoa, linguagem clássica dos textos realistas – linguagem objetiva, sem rodeios
ou presença de palavras difíceis – , estrutura de capítulos curtos e uso de
digressões, análise crítica da sociedade e dos valores românticos e, a mais
contundente, análise psicológica dos personagens. Seguem algumas características
machadianas relevantes:
- Análise psicológica dos personagens: o narrador invade a mente de seus
personagens e traz à tona pensamentos, dos mais sinceros aos mais sórdidos, para
conhecimento do leitor. A narrativa em primeira pessoa, outra característica
importante, apodera-se deste aspecto para inovar a narrativa. A obra que apresenta
de forma perspicaz é Memórias Póstumas de Brás Cubas.
- Ironia: as alfinetadas e a irreverência no comportamento de seus personagens
sintetizam esse recurso estilístico – porque Machado de Assis é considerado o
mestre da ironia – muito utilizado nas obras da segunda fase. Esse efeito de sentido,
às vezes, leva ao humor, mas não à gargalhada. O leitor atento e de leitura
aprofundada encontra a essência machadiana quando reconhece o tom pertinente
dado à narrativa: o caráter satírico busca mostra o grotesco do modo de vida da elite
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carioca. Dessa forma, o autor prende o leitor a um enredo que, por inúmeras vezes,
parece monótono à primeira vista. Mais uma vez, tem-se a obra Memórias Póstumas
de Brás Cubas como referência a essa característica.
- Uso de digressões: a interrupção sequencial da narrativa dá espaço ao
comentário acerca de uma ideia ou um pensamento analisado, direcionado ao leitor.
Essa característica apresenta-se após análise psicológica ou ironia implícita. Em
Dom Casmurro é notória a presença desse recurso estilístico.
- Pessimismo: segundo autores dedicados à obra machadiana, o pessimismo não
somente está direcionado ao sentimento melancólico, à tristeza profunda, mas ao
refino caráter de revolta com algumas questões pessoais ou presentes no negativo
comportamento político-social que a população carioca representava. Ainda, arrisca-
se a hipótese de apresentar tal estilo literário ao fato de não encontrar a melhor
maneira de apresentar a intenção da obra. A obra que transmuta o negativismo
inclinado ao pessimismo, mesmo não de maneira intensificada, é Dom Casmurro.
Além dessa, textos escritos para o jornal impresso denunciavam o modo de escrita.
Vamos por em prática o que aprendemos
1. Machado de Assis, segundo suas características literárias, encaixa-se no período: a. ( ) Romântico – primeira fase b. ( ) Romântico – segunda fase c. ( ) Realista d. ( ) Naturalista 2. Machado de Assis ficou conhecido por escrever qual tipo de romance? ______________________________________________________________________________________________________________________________________ 3. Relacione as características machadianas aos fragmentos de texto: I. Pessimismo II. Análise psicológica dos personagens III. Ironia IV. Digressão V. Narrativa em primeira pessoa ( ) “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico com saudosa lembrança estas Memórias Póstumas.” (Memórias Póstumas de Brás Cubas) ( ) “Virgília? Mas então era a mesma senhora que alguns anos depois...? A mesma; era justamente a senhora, que em 1869 devia assistir aos meus últimos dias, e que antes, muito antes, teve larga parte nas minhas mais íntimas sensações.
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Naquele tempo contava apenas uns quinze ou dezesseis anos; e era talvez a mais atrevida creatura da nossa raça, e, com certeza, a mais voluntariosa. Não digo que já lhe coubesse a primazia da beleza, entre as mocinhas do tempo, porque isto não é romance, em que o autor sobredoura a realidade e fecha os olhos às sardas e espinhas; mas também não digo que lhe maculasse o rosto nenhuma sarda ou espinha, não. Era bonita, fresca, saía das mãos da natureza, cheia daquele feitiço, precário e eterno, que o indivíduo passa a outro indivíduo, para os fins secretos da criação..” (Memórias Póstumas de Brás Cubas) ( ) “... não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio.” (Memórias Póstumas de Brás Cubas) ( ) “Respirei e sentei-me. Dona Plácida atroava a sala com exclamações e lástimas. Eu ouvia, sem lhe dizer cousa nenhuma; reflectia comigo se não era melhor ter fechado Virgília na alcova e ficado na sala; mas adverti logo que seria peor; confirmaria a suspeita, chegaria o fogo à pólvora, e uma cena de sangue... Foi muito melhor assim. Mas depois? que ia acontecer em casa de Virgília? matá-la-ia o marido? espancá-la-ia? encerrá-la-ia? expulsá-la-ia? Estas interrogações percorriam lentamente o meu cérebro, como os pontinhos e vírgulas escuras percorrem o campo visual dos olhos enfermos ou cansados. Iam e vinham, com o seu aspecto seco e trágico, e eu não podia agarrar um deles e dizer: és tu, tu e não outro.” (Memórias Póstumas de Brás Cubas) ( ) "Agora que expliquei o título, passo a escrever o livro. Antes disso, porém, digamos os motivos que me põem a pena na mão." (Dom Casmurro)
4. Analise o fragmento abaixo. “Naquele tempo contava apenas uns quinze ou dezesseis anos; era talvez a mais atrevida criatura da nossa raça, e, com certeza, a mais voluntariosa. Não digo que já lhe coubesse a primazia da beleza, entre as mocinhas do tempo, porque isto não é romance, em que o autor sobredoura a realidade e fecha os olhos às sardas e espinhas; mas também não digo que lhe maculasse o rosto nenhuma sarda ou espinha, não. Era bonita, fresca, saía das mãos da natureza, cheia daquele feitiço, precário e eterno, que o indivíduo passa a outro indivíduo, para os fins secretos da criação.” (Memórias Póstumas de Brás Cubas) a. O narrador, ao descrever a personagem, critica sutilmente um estilo de época. Com isso, cite qual é esse outro estilo de época e a frase do texto em que se percebe a crítica do narrador. ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ 5. Leia: Óbito do Autor
Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito
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ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo; diferença radical entre este livro e o Pentateuco.
Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos , era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia - peneirava - uma chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles fiéis da última hora a intercalar esta engenhosa ideia no discurso que proferiu à beira de minha cova: —"Vós , que o conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que tem honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à natureza as mais íntimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado."
Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei. E foi assim que cheguei à cláusula dos meus dias; foi assim que me encaminhei para o undiscovered country de Hamlet, sem as ânsias nem as dúvidas do moço príncipe, mas pausado e trôpego, como quem se retira tarde do espetáculo. Tarde e aborrecido. Viram-me ir umas nove ou dez pessoas, entre elas três senhoras, — minha irmã Sabina, casada com o Cotrim, — a filha, um lírio-do-vale, — e... Tenham paciência! daqui a pouco lhes direi quem era a terceira senhora. Contentem-se de saber que essa anônima, ainda que não parenta, padeceu mais do que as parentas.
É verdade, padeceu mais. Não digo que se carpisse, não digo que se deixasse rolar pelo chão, epiléptica. Nem o meu óbito era coisa altamente dramática... Um solteirão que expira aos sessenta e quatro anos não parece que reuna em si todos os elementos de uma tragédia. E dado que sim, o que menos convinha a essa anônima era aparentá-lo. De pé, à cabeceira da cama, com os olhos estúpidos, a boca entreaberta, a triste senhora mal podia crer na minha extinção.
— Morto! Morto! dizia consigo. E a imaginação dela, como as cegonhas que um ilustre viajante viu
desferirem o vôo desde o Ilisso às ribas africanas, sem embargo das ruínas e dos tempos, — a imaginação dessa senhora também voou por sobre os destroços presentes até às ribas de uma África juvenil... Deixá-la ir; lá iremos mais tarde; lá iremos quando eu me restituir aos primeiros anos. Agora, quero morrer tranquilamente, metodicamente, ouvindo os soluços das damas, as falas baixas dos homens, a chuva que tamborila nas folhas de tinhorão da chácara, e o som estrídulo de uma navalha que um amolador está afiando lá fora, à porta de um correeiro.
Juro-lhes que essa orquestra da morte foi muito menos triste do que podia parecer. De certo ponto em diante chegou a ser deliciosa. A vida estrebuchava-me no peito, com uns ímpetos de vaga marinha, esvaía-se-me a consciência, eu descia à imobilidade física e moral, e o corpo fazia-se-me planta, e pedra, e lodo, e coisa nenhuma.
Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do que uma ideia grandiosa e útil, a causa da minha morte, é possível que o leitor me não creia, e todavia é verdade. Vou expor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o por si mesmo.
(Capítulo I, Memórias Póstuma de Brás Cubas, de Machado de Assis. São Paulo: Ediouro, s/d. p. 15)
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a. Quem é o narrador dos fatos?
___________________________________________________________________ b. Há diferença entre autor defunto e defunto autor? Explique-a.
___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ c. O narrador relata seu enterro com a frieza de um morto, entonando
negativamente a intensidade desse momento. O que sugere essa confissão e de
que forma ele justifica o fracasso desse evento?
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
d. O autor rompe com a visão idealizada do personagem romântico quando deixa
clara a ideia de desapega aos bens materiais, sobretudo ao dinheiro. Que trecho
do texto justifica essa afirmativa?
____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
7- OFICINA LITERÁRIA
Esta proposta pedagógica tem como objetivo trabalhar os contos A
Cartomante e A Igreja do Diabo ambos de autoria de Machado de Assis, para a
produção de um podcast. Assim, o trabalho inicia-se com a análise dos contos,
desenvolvimento de atividades que induzirão a interpretação dos textos, a produção
final do roteiro e gravação de um podcast literário.
Com base nesses objetivos desenvolveremos essa proposta em 05
fases:
1° Fase: visualização das paisagens do Rio de Janeiro de 1869 até os dias
atuais.Também imagem de moradores da cidade apresentada em épocas
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diferentes, para exercitar a narração quando os alunos descreverem as
fotografias.
2º Fase: busca da significância na narrativa, apresentar o texto a cartomante e
solicitar que os alunos contém o que entenderam.
3° Fase: exibição do filme A Cartomante, para que seja possível a visualização
do conto em imagem. Trabalhar as atividades propostas na unidade para
compreender os personagens na narrativa fílmica e literária, momento de
destacando as semelhanças e diferenças entre o conto e o filme.
Ficha técnica do filme: A Cartomante Direção: Wagner de Assis e Pablo Uranga Elenco: Deborah Secco, Luigi Baricelli, Cristiane Alves, Mel Lisboa, Giovanna Antonelli, Sabrina Sato, Sílvio Guindane. Nome Original: A Cartomante Ano: 2004 Duração: 90 min Classificação: 14 anos Gênero: Drama
4° Fase: com base no texto e análise do filme, os alunos reescreverão o conto A
Cartomante criando um roteiro para ser gravado em podcast.
5° Fase: gravação/ edição do podcast e vinculação do material no site do colégio
e outras mídias.
7.1 CONTO 01 - A Cartomante
A Cartomante
Hamlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do
que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço
Camilo, numa sexta-feira de Novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na
véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras.
— Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba
que fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse
o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: "A senhora gosta de uma
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pessoa..." Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinou-as,
e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não
era verdade...
— Errou! Interrompeu Camilo, rindo.
— Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado,
por sua causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria...
Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que
lhe queria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando
tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a;
disse-lhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela podia sabê-lo, e depois...
— Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa.
— Onde é a casa?
— Aqui perto, na rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa
ocasião. Descansa; eu não sou maluca.
Camilo riu outra vez:
— Tu crês deveras nessas coisas? perguntou-lhe.
Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe
que havia muito cousa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava,
paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é que
ela agora estava tranqüila e satisfeita.
Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se, Não queria arrancar-lhe as
ilusões. Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal
inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No
dia em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e ficou só o tronco da religião,
ele, como tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma
dúvida, e logo depois em uma só negação total. Camilo não acreditava em nada. Por
quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento; limitava-se a negar tudo. E
digo mal, porque negar é ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade; diante
do mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando.
Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de
ser amada; Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele,
correr às cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-
se lisonjeado. A casa do encontro era na antiga rua dos Barbonos, onde morava
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uma comprovinciana de Rita. Esta desceu pela rua das Mangueiras, na direção de
Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda velha, olhando de passagem
para a casa da cartomante.
Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura, e nenhuma explicação
das origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a
carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que
queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a
mãe lhe arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou Vilela da
província, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e
veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo,
e foi a bordo recebê-lo.
— É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina
como meu marido é seu amigo; falava sempre do senhor.
Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois,
Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as cartas do
marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e
interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela vinte e
nove e Camilo vente e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais
velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática.
Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no
berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem intuição.
Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu
a mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos
dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou
especialmente do coração, e ninguém o faria melhor.
Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que
gostava de passar as horas ao lado dela; era a sua enfermeira moral, quase uma
irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di femina: eis o que ele aspirava
nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam
juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às
noites; — ela mal, — ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as
cousas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muita
vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as
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atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de
presente, e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi
então que ele pôde ler no próprio coração; não conseguia arrancar os olhos do
bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos,
deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a
mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim
são as cousas que o cercam.
Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita como uma
serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num
espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame,
sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vitória
delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí
foram ambos, estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas e
pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam
ausentes um do outro. A confiança e estima de Vilela continuavam a ser as mesmas.
Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava
imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e,
para desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-
lhe as ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz.
Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram
inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio, uma
intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia do
ato.
Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à
cartomante para consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo.
Vimos que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter
feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou
três cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude,
mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras
palavras mal compostas, formulou este pensamento: — a virtude é preguiçosa e
avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo.
Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o anônimo fosse
ter com Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era
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possível.
— Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com a
das cartas que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a...
Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-
se sombrio, falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao
outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tornar à casa
deles, tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confidência de algum
negócio particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses era confirmar a
suspeita ou denúncia. Mais valia acautelarem-se, sacrificando-se por algumas
semanas. Combinaram os meios de se corresponderem, em caso de necessidade, e
separaram-se com lágrimas.
No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de
Vilela: "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Era mais de meio-
dia. Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural chamá-lo ao
escritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse
realidade ou ilusão, afigurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas essas cousas com
a notícia da véspera.
— Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, — repetia ele
com os olhos no papel.
Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e
lacrimosa, Vilela indignado, pegando na pena e escrevendo o bilhete, certo de que
ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha medo: depois
sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a ideia de recuar, e foi andando. De
caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar algum recado de Rita, que lhe
explicasse tudo. Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a ideia de estarem
descobertos parecia-lhe cada vez mais verossímil; era natural uma denúncia
anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser que Vilela
conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, sem motivo aparente,
apenas com um pretexto fútil, viria confirmar o resto.
Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as
palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas; ou então, — o que era ainda
peior, — eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela. "Vem já, já à
nossa casa; preciso falar-te sem demora." Ditas, assim, pela voz do outro, tinham
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um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora da
tarde. A comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria passar,
que chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir
armado, considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil.
Logo depois rejeitava a ideia, vexado de si mesmo, e seguia, picando o passo, na
direção do largo da Carioca, para entrar num tílburi. Chegou, entrou e mandou
seguir a trote largo.
— Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim...
Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo
voava, e ele não tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da rua da Guarda
Velha, o tílburi teve de parar; a rua estava atravancada com uma carroça, que caíra.
Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No fim de cinco minutos,
reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do tílburi, ficava a casa da cartomante, a
quem Rita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas.
Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras estavam abertas e pejadas
de curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia a morada do indiferente Destino.
Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era
grande, extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns fantasmas
de outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe
voltar a primeira travessa, e ir por outro caminho; ele respondeu que não, que
esperasse. E inclinava-se para fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo: era a
idéia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas asas
cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro; mas daí a
pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros concêntricos... Na
rua, gritavam os homens, safando a carroça:
— Anda! agora! empurra! vá! vá!
Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos,
pensava em outras cousas; mas a voz do marido sussurrava-lhe às orelhas as
palavras da carta: "Vem já, já..." E ele via as contorções do drama e tremia. A casa
olhava para ele. As pernas queriam descer e entrar... Camilo achou-se diante de um
longo véu opaco... pensou rapidamente no inexplicável de tantas cousas. A voz da
mãe repetia-lhe uma porção de casos extraordinários; e a mesma frase do príncipe
de Dinamarca reboava-lhe dentro: "Há mais cousas no céu e na terra do que sonha
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a filosofia..." Que perdia ele, se...?
Deu por si na calçada, ao pé da porta; disse ao cocheiro que
esperasse, e rápido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os
degraus comidos dos pés, o corrimão pegajoso; mas ele não viu nem sentiu nada.
Trepou e bateu. Não aparecendo ninguém, teve ideia de descer; mas era tarde, a
curiosidade fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma,
duas, três pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia
consultá-la, ela fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a
primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma janela,
que dava para os telhados do fundo. Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de
pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio.
A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto,
com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no
rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e
enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de rosto,
mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana, morena e
magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre a mesa, e
disse-lhe:
— Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande
susto...
Camilo, maravilhado, fez um gesto afirmativo.
— E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma coisa ou
não...
— A mim e a ela, explicou vivamente ele.
A cartomante não sorriu; disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou
outra vez as cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas;
baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas, três vezes; depois começou a
estendê-las. Camilo tinha os olhos nela, curioso e ansioso.
— As cartas dizem-me...
Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela
declarou-lhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a
outro; ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável mais cautela;
ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de Rita...
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Camilo estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as
na gaveta.
— A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a
mão por cima da mesa e apertando a da cartomante.
Esta levantou-se, rindo.
— Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato...
E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu,
como se fosse mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante foi à
cômoda, sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou
a despencá-las e comê-las, mostrando duas fileiras de dentes que desmentiam as
unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um ar particular. Camilo, ansioso
por sair, não sabia como pagasse; ignorava o preço.
— Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas
quer mandar buscar?
— Pergunte ao seu coração, respondeu ela.
Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da
cartomante fuzilaram. O preço usual era dois mil-réis.
— Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta
muito do senhor. Vá, vá tranquilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu...
A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele,
falando, com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a
escada que levava à rua, enquanto a cartomante alegre com a paga, tornava acima,
cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando; a rua estava livre.
Entrou e seguiu a trote largo.
Tudo lhe parecia agora melhor, as outras cousas traziam outro aspecto,
o céu estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou
pueris; recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram íntimos e
familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu também que eram
urgentes, e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio grave e
gravíssimo.
— Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro.
E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer
cousa; parece que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à
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antiga assiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras da
cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a
existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se ignora
vale o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que as velhas crenças do rapaz iam
tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de ferro. Às vezes
queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, as palavras
secas e afirmativas, a exortação: — Vá, vá, ragazzo innamorato; e no fim, ao longe,
a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos recentes, que
formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz.
A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas
felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo olhou para
o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço infinito,
e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável.
Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de
ferro do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e
mal teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela.
— Desculpa, não pude vir mais cedo; que há?
Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e
foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror:
— ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensanguentada. Vilela pegou-o pela
gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão.
Este conto foi publicado originalmente na Gazeta de Notícias - Rio de Janeiro, em 1884. Posteriormente foi incluído no livro "Várias Histórias" e em "Contos: Uma Antologia", Companhia das Letras - São Paulo, 1998, de onde foi extraído. Com esta publicação homenageamos Machado de Assis que, no dia 21 deste, estaria completando seu 172° aniversário.
Vamos por em prática o que aprendemos
Exercícios 1- Analise os personagens do conto A Cartomante e relacione as colunas:
( 1 ) Rita ( ) Magistrado, 29 anos, exercer a advocacia na Corte.
( 2 ) Cartomante ( ) Homem de 26 anos, funcionário
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público,supersticioso.
( 3 ) Camilo ( ) Mulher de trinta anos, casada com Vilela, crê na cartomancia.
( 4 ) Vilela ( ) Mulher de quarenta anos, italiana, morena e magra, astuta em captar situações diárias e dar resposta como previsão futuristas.
2- Qual a reação de Camilo quando Rita relata a sua ida a uma cartomante? A) Raiva B) Decepção C) Curiosidade D) Divertimento E) Satisfação 3- Ao receber a primeira carta anônima Camilo deixou de ir com frequência a casa de Vilela, pois: A) arrependeu-se da traição. B) cansou-se da aventura. C) ficou envergonhado. D) já não gostava de Rita. E) queria afastar a desconfiança. 4- Rita procurou a cartomante para saber: A) se o marido ainda a amava. B) se ficaria com o amado. C) porque Camilo tinha se afastado. D) quem Camilo amava de verdade. E) quem mandava as cartas anônimas. 5- Ao receber Camilo, a cartomante posiciona-o na sala de modo que a pouca luz de fora bata em cheio em seu rosto para: A) dificultar a visão dele. B) observá-lo bem. C) deixá-lo confortável. D) impressioná-lo com a luminosidade. E) evitar que ele reparasse na sala. 6- O conto A Cartomante acontece quando e onde? ___________________________________________________________________ 7- O conto A Cartomante não é narrado numa sequência linear - começo, meio e fim. O início do conto, que mostra o diálogo entre Camilo e Rita sobre a cartomante, já
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nos apresenta a trama perto de seu desfecho. Localize a passagem em que o narrador faz um corte no presente e volta ao passado para explicar quem são as personagens centrais e como chegaram à situação em que se encontram. _______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
7.2 CONTO 02 - A Igreja do Diabo
A IGREJA DO DIABO
Capítulo I
De uma ideia mirífica
Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve
a ideia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes,
sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem
organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer,
dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada
regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de
combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.
— Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra Escritura,
breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas
prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o
núcleo universal dos espíritos, a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois,
enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única;
não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar;
há só um de negar tudo.
Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os braços, com um
gesto magnífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com Deus para
comunicar-lhe a ideia, e desafiá-lo; levantou os olhos, acesos de ódio, ásperos de
vingança, e disse consigo: — Vamos, é tempo. E rápido, batendo as asas, com tal
estrondo que abalou todas as províncias do abismo, arrancou da sombra para o
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infinito azul.
Capítulo II
Entre Deus e o Diabo
Deus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os serafins
que engrinaldavam o recém-chegado, detiveram-se logo, e o Diabo deixou-se estar
à entrada com os olhos no Senhor.
— Que me queres tu? perguntou este.
— Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas
por todos os Faustos do século e dos séculos.
— Explica-te.
— Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga: recolhei
primeiro esse bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais afinadas
cítaras e alaúdes o recebam com os mais divinos coros...
— Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos cheios de
doçura.
— Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter convosco. Não
tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é
alto. Vou edificar uma hospedaria barata; em duas palavras, vou fundar uma igreja.
Estou cansado da minha desorganização, do meu reinado casual e adventício. É
tempo de obter a vitória final e completa. E então vim dizer-vos isto, com lealdade,
para que me não acuseis de dissimulação... Boa ideia, não vos parece?
— Vieste dizê-la, não legitimá-la, advertiu o Senhor.
— Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta de ouvir o
aplauso dos mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso de um mestre
vencido, e uma tal exigência... Senhor, desço à terra; vou lançar a minha pedra
fundamental.
— Vai.
— Quereis que venha anunciar-vos o remate da obra?
— Não é preciso; basta que me digas desde já por que motivo,
cansado há tanto da tua desorganização, só agora pensaste em fundar uma igreja.
O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. Tinha alguma
ideia cruel no espírito, algum reparo picante no alforje de memória, qualquer coisa
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que, nesse breve instante de eternidade, o fazia crer superior ao próprio Deus.
Mas recolheu o riso, e disse:
— Só agora concluí uma observação, começada desde alguns
séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a
rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-
me a puxá-las por essa franja, e trazê-las todas para minha igreja; atrás delas virão
as de seda pura...
— Velho retórico! murmurou o Senhor.
— Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos
templos do mundo, trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do
mesmo pó, os lenços cheiram aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de
curiosidade e devoção entre o livro santo e o bigode do pecado. Vede o ardor, — a
indiferença, ao menos, — com que esse cavalheiro põe em letras públicas os
benefícios que liberalmente espalha, — ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou
quaisquer dessas matérias necessárias à vida... Mas não quero parecer que me
detenho em coisas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz de
irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma
comenda... Vou a negócios mais altos...
Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono. Miguel e
Gabriel fitaram no Senhor um olhar de súplica. Deus interrompeu o Diabo.
— Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua
espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos
moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para
renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires. Olha; todas as minhas
legiões mostram no rosto os sinais vivos do tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião
parece enjoado; e sabes tu o que ele fez?
— Já vos disse que não.
— Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime. Colhido em
um naufrágio, ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos, na flor da vida,
que se debatiam já com a morte; deu-lhes a tábua de salvação e mergulhou na
eternidade. Nenhum público: a água e o céu por cima. Onde achas aí a franja de
algodão?
— Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega.
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— Negas esta morte?
— Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de caridade; deixar a
vida aos outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-los...
— Retórico e sutil! exclamou o Senhor. Vai, vai, funda a tua igreja;
chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens... Mas,
vai! vai!
Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus impusera-lhe
silêncio; os serafins, a um sinal divino, encheram o céu com as harmonias de seus
cânticos. O Diabo sentiu, de repente, que se achava no ar; dobrou as asas, e, como
um raio, caiu na terra.
Capítulo III
A boa nova aos homens
Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em
enfiar a cogula beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a espalhar uma
doutrina nova e extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século.
Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os
deleites mais íntimos. Confessava que era o Diabo; mas confessava-o para retificar
a noção que os homens tinham dele e desmentir as histórias que a seu respeito
contavam as velhas beatas.
— Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos
contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único, o próprio
gênio da natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos
homens. Vede-me gentil e airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai
daquele nome, inventado para meu desdouro, fazei dele um troféu e um lábaro, e eu
vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo...
Era assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, espertar
os indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de si. E elas vieram; e logo
que vieram, o Diabo passou a definir a doutrina. A doutrina era a que podia ser na
boca de um espírito de negação. Isso quanto à substância, porque, acerca da forma,
era umas vezes sutil, outras cínica e deslavada.
Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por
outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram
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reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da
economia, com a diferença que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira
tinha a melhor defesa na existência de Homero; sem o furor de Aquiles, não haveria
a Ilíada: "Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu..." O mesmo disse da gula,
que produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos bons versos de Hissope;
virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de Luculo, mas das suas
ceias; foi a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões
de ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela virtude,
quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons manjares,
em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum? Pela sua parte o
Diabo prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do
Diabo, locução direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das
mais belas cepas do mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude
principal, origem de propriedades infinitas; virtude preciosa, que chegava a suprir
todas as outras, e ao próprio talento.
As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a
grandes golpes de eloquência, toda a nova ordem de coisas, trocando a noção
delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs.
Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele dava da
fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e
concluía: Muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia que todos
fossem canhotos; não era exclusivista. Que uns fossem canhotos, outros destros;
aceitava a todos, menos os que não fossem nada. A demonstração, porém, mais
rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um casuísta do tempo chegou a confessar
que era um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de
um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o
teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas
que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o
teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua
própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no absurdo e no contraditório.
Pois não há mulheres que vendem os cabelos? não pode um homem vender uma
parte do seu sangue para transfundi-lo a outro homem anêmico? e o sangue e os
cabelos, partes físicas, terão um privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do
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homem? Demonstrado assim o princípio, o Diabo não se demorou em expor as
vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do
preconceito social, conviria dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que
era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer
duplicadamente.
E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro que
combateu o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade. Não
proibiu formalmente a calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição,
ou pecuniária, ou de outra espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma
expansão imperiosa da força imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum
salário, pois equivalia a fazer pagar a transpiração. Todas as formas de respeito
foram condenadas por ele, como elementos possíveis de um certo decoro social e
pessoal; salva, todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma exceção foi
logo eliminada, pela consideração de que o interesse, convertendo o respeito em
simples adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele.
Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda
a solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave à
nova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas
e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença; em
alguns casos, ódio ou desprezo. Chegou mesmo à demonstração de que a noção de
próximo era errada, e citava esta frase de um padre de Nápoles, aquele fino e
letrado Galiani, que escrevia a uma das marquesas do antigo regime: "Leve a breca
o próximo! Não há próximo!" A amar as damas alheias, porque essa espécie de
amor tinha a particularidade de não ser outra coisa mais do que o amor do indivíduo
a si mesmo. E como alguns discípulos achassem que uma tal explicação, por
metafísica, escapava à compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um apólogo: —
Cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns; mas cada
acionista não cuida realmente senão nos seus dividendos: é o que acontece aos
adúlteros. Este apólogo foi incluído no livro da sabedoria.
Capítulo IV
Franjas e franjas
A previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de veludo
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acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às
urtigas e vinham alistar-se na igreja nova. Atrás foram chegando as outras, e o
tempo abençoou a instituição. A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não
havia uma região do globo que não a conhecesse, uma língua que não a traduzisse,
uma raça que não a amasse. O Diabo alçou brados de triunfo.
Um dia, porém, longos anos depois notou o Diabo que muitos dos seus
fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem
integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões
recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias
de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal
povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias; os
fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o
mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros.
A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais
diretamente o mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram até
incompreensíveis, como o de um droguista do Levante, que envenenara longamente
uma geração inteira, e, com o produto das drogas, socorria os filhos das vítimas. No
Cairo achou um perfeito ladrão de camelos, que tapava a cara para ir às mesquitas.
O Diabo deu com ele à entrada de uma, lançou-lhe em rosto o procedimento; ele
negou, dizendo que ia ali roubar o camelo de um drogomano; roubou-o, com efeito,
à vista do Diabo e foi dá-lo de presente a única hipótese em que ele permitia amar
ao próximo era quando se tratasse de um muezim, que rezou por ele a Alá. O
manuscrito beneditino cita muitas outras descobertas extraordinárias, entre elas
esta, que desorientou completamente o Diabo. Um dos seus melhores apóstolos era
um calabrês, varão de cinquenta anos, insigne falsificador de documentos, que
possuía uma bela casa na campanha romana, telas, estátuas, biblioteca, etc. Era a
fraude em pessoa; chegava a meter-se na cama para não confessar que estava são.
Pois esse homem, não só não furtava ao jogo, como ainda dava gratificações aos
criados. Tendo angariado a amizade de um cônego, ia todas as semanas confessar-
se com ele, numa capela solitária; e, conquanto não lhe desvendasse
nenhuma das suas ações secretas, benzia-se duas vezes, ao ajoelhar-se, e ao
levantar-se. O Diabo mal pôde crer tamanha aleivosia. Mas não havia que duvidar; o
caso era verdadeiro.
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Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de refletir,
comparar e concluir do espetáculo presente alguma coisa análoga ao passado. Voou
de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão
singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não
o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e
disse-lhe:
— Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora
franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a
eterna contradição humana.
Fonte: ASSIS, Machado de. Volume de contos. Rio de Janeiro : Garnier, 1884.
Vamos por em prática o que aprendemos
Exercícios
1- Marque V para verdadeiro e F para falso
( ) A narrativa de A Igreja do Diabo conta do dia em que o diabo, sempre cúpido de poder e cansado da desorganização histórica em que vivia, resolve fundar sua própria igreja, com suas próprias regras. ( ) O conto A Igreja do Diabo, está dividido em quatro capítulos, faz parte do movimento realista. ( ) O objetivo de Machado de Assis ao escrever A igreja do Diabo, foi fazer uma análise das religiões. ( ) Deus é apresentado com sabedoria, paciência e conivência com o livre-arbítrio. 2) O conto apresenta um enredo aparente simples: o Diabo quer organizar uma igreja. Para tanto, vai até Deus, troca ideias com ele e parte para sua empreitada. a) Qual é o principal argumento usado pelo Diabo em relação à sua proposta? ____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ b) E que estratégias o Diabo irá usar para arrebanhar fieis? Que princípios o Diabo defende? ____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
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3) Qual é a personalidade do diabo? a) Desafiador e competidor. b) Amoroso e fiel. c) Desafiador e obediente. d) Calmo e passivo. 4) Diante da insistência do diabo, Deus se cansa de tantos argumentos e permite que ele construa a pedra fundamental de sua igreja. A Igreja do diabo por um tempo teve grande êxito. Por que a igreja do diabo foi se desgastando? _________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
5) Realize a leitura do trecho abaixo e coloque V verdadeiro e F falso. "Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana."
(Conto A Igreja do Diabo – Machado de Assis)
( ) É uma mostra do ceticismo machadiano repassado na ironia destilada gota a gota, insinuado em frases curtas e de longo alcance. ( ) O texto apresenta um enfoque metafísico através do qual pretende falar diretamente da realidade humana. ( ) Este conto retrata o Rio de Janeiro do período entre séculos, com suas ruas e casario, como os contos "A Cartomante" e "Contos de Escola". ( ) Em "A Igreja do Diabo" há um desnudamento das falsas virtudes, dos interesses escusos e da caridade ostensiva. ( )Quanto à técnica narrativa, este conto tem uma estrutura linear: a apresentação em sequência dos contrários conduzindo à síntese final. ( ) "A Igreja do Diabo" tem em comum com o conto "Missa do Galo" o tema da metafísica e da religião católica. 6) O conto A igreja do Diabo de Machado de Assis está dividido em quatro capítulos. Ao seu modo, conte mais uma vez a mesma história. E em grupo dramatizem o roteiro elaborado.
8- AUDIOLIVRO
O audiolivro surgiu nos Estados Unidos na década de 80, como uma
nova opção de leitura para deficientes visuais e pessoas que não possuíam o hábito
da leitura convencional. Assim, as editoras propunham uma nova forma de leitura,
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um livro em áudio que possibilitaria ser ouvido em vários lugares e a qualquer
momento durante as atividades cotidianas.
Logo, as editoras perceberam que apenas a gravação de um livro não
bastava para conquistar novos leitores, tinham que criar meios para fazer com que o
áudio não fosse maçante e cansativo. Dessa forma, surge a ideia de gravar áudio de
livros com efeitos sonoros e músicas para estimular o leitor a imaginar a história
contada.
Portanto, essa proposta pedagógica propõe trabalhar a literatura com
recursos tecnológicos através da gravação de podcast sobre contos da literatura
brasileira de Machado de Assis. Logo, o objetivo de gravar os contos com efeitos
sonoros é para estimular a leitura e interpretação das obras literárias, bem como
tornar acessível ao maior número de pessoas o conhecimento sobre os contos
machadianos.
8.1 PODCAST
O termo podcast é a junção da palavra iPod e broadcasting, que foi
utilizado em 2004 pelo jornalista Ben Hammersley, quando se referia a programas
gravados em áudio e disponibilizados na internet. Essa interação proporcionada pelo
podcast permite maior troca de informações, possibilitando a disseminação da leitura
e distribuição do conhecimento através de áudios.
8.2 GRAVANDO PODCAST
Após a produção do roteiro na oficina literária, iniciaremos a gravação
do podcast utilizando o laboratório de informática do colégio. Assim, iniciaremos a
oficina da gravação do podcast utilizando o programa Audacity. Para efetuar a
gravação utilizaremos um headset e um computador, onde cada aluno gravará seu
áudio no programa Audacity o que possibilitará a criação e edição de som.
8.3 TUTORIAL DO PROGRAMA AUDACITY
- Por que utilizar o programa audacity?
O programa audacity e um software livre que é compatível com o Linux
mídia disponível nas escolas públicas do Paraná, assim basta baixar e instalar nos
computadores utilizados no laboratório de informática do colégio.
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O uso do programa audacity é simples, com ferramentas eficazes e de
fácil manejo, com ele é possível gravar e fazer edição do material produzido através
da alteração da velocidade da gravação, bem como copiando e colando trechos
selecionados.
- Conhecendo os principais ícones do programa audacity.
1- Barra de Menus: expõem todos os recursos do programa.
1.1 – Arquivo – cria um arquivo ou abre arquivos criados. Também possuí a função
de salvar um áudio editado com extensão WAV, MP3, Ogg Vorbis.
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1.2 – Editar – esse comando permite refazer, cortar, copiar, colar, remover parte do
áudio, duplicar a gravação, aumentar o volume do áudio, enfim tarefas que
permite modificar o arquivo gravado.
1.3 – Exibir – opção de zoom e barra de ferramentas.
1.4 – Projeto – permite importar o áudio gravado em qualquer extensão para poder
trabalhar a sua edição. Essa ferramenta permite trabalhar com várias faixas
gravadas separadamente para a junção de um único arquivo.
1.5 – Gerar – insere intervalos de silêncio de 30 segundos bem como identifica
seleção no material que não possuí gravação de sons.
1.6 – Effect – ferramenta que permite alterar o timbre das vozes, colocar efeitos e
músicas, permite aumentar ou diminuir o volume da faixa gravada.
1.7 – Analisar – mostra com que extensão o material foi gravado e o tamanho do
arquivo.
1.8 – Ajuda – abre janelas com dicas de como utilizar o programa.
2- Barra de ferramentas: Contém ferramentas de edição que podem ser
visualizadas com a ajuda do mouse ( gráficos de entrada e saída de áudio, mistura
(mixing) e atalhos para as ações - recortar, colar, loop, zoom desfazer e refazer).
2.1 - Principais ações dos ícones.
- Seleciona o trecho do áudio a ser editado.
- Ferramenta que define o volume do áudio gravado.
- Edita manualmente cada amostra de som.
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- Zoom – serve para aumentar a visualização das amostras de áudio
selecionadas.
- Time Shift – move os trechos de som selecionados para a área de edição.
- Multiferramenta - múltipla função assume o papel de outras ferramentas
dependendo de como posicionar o cursor no material gravado.
3- Controles do Cursor: são botões que controlam as atividades durante a
gravação do áudio e na edição do material.
- Retornar ao inicio: move o cursor para o inicio da pista (tempo 0).
- Reproduzir: Reproduz o som a partir de onde o cursor estiver.
- Loop: reproduz o som do trecho selecionado repetidamente/ciclicamente.
- Gravar: Inicia uma nova gravação a partir da localização do cursor.
- Pausa: Interrompe temporariamente a ação do cursor.
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- Parar: Interrompe a reprodução, ou a gravação.
- Avançar até o final: move o cursor até a última gravação.
4 - Mistura e Monitorização: permite visualizar o nível de entrada do som ou
reprodução do mesmo, usado para evitar uma distorção do áudio.
Vamos por em prática o que aprendemos
1- Marque V para verdadeiro e F para falso:
( ) A palavra podcast é a junção da palavra iPod e broadcasting. ( ) O audiolivro não permite o acesso a literatura clássica, pois não é possível a sua interpretação em áudio. ( ) O programa audacity e um software que só pode ser instalado no Windows. ( ) O uso de podcast permite maior troca de informações, possibilitando a disseminação da leitura e distribuição do conhecimento através de áudios.
2-Relacione as colunas conforme a função de cada ícone:
( 1 ) Reproduzir ( )
( 2 ) Pausar ( )
( 3 ) Zoom ( )
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( 4 ) Gravar ( )
3- O programa audacity possuí uma barra de ferramentas que possibilita várias funções que utilizamos no momento da gravação e edição do áudio. Assim, qual ícone abaixo corresponde a função definição de volume de áudio.
A)
B)
C)
D)
E)
9- CONSIDERAÇÕES FINAIS
A unidade pedagógica Podcasts: promoção do conteúdo literário no
espaço cibercultural, surgiu da necessidade da busca da construção de conteúdos
inovadores que viessem a utilizar as tecnologias existentes no colégio. A reflexão e
proposta pela temática do uso de tecnologias no ensino de literatura vieram da
necessidade em aprimorar a metodologia na transmissão de conteúdos, a fim de
que as aulas se tornassem atrativas a uma juventude adepta às tecnologias da
informação.
Nesses vinte e cinco anos de magistério, o perfil, anseios e dúvidas dos
alunos vêm mudando e juntamente a tecnologia estava acompanhando.
Inicialmente, recorre a inserção do Walkman, quando os alunos utilizavam o referido
aparelho portátil para a reprodução de áudio estéreo, gravados em fita cassete.
Passaram-se alguns anos e a reprodução de músicas veio a ser feita em tocador de
CD´s, depois em Mp3 e celulares. Notava-se que o áudio sempre estava presente e
os alunos trocavam entre si as músicas e discutiam sobre as suas preferências.
Diante das mudanças vivenciadas, fiquei durante anos pensando em
como instigar aos alunos a apreciarem a literatura brasileira, assim como faziam com
os áudios musicais trazidos de casa. Confesso, ansiava em ver os alunos
empolgados trocando livros assim como faziam com as músicas. Porém, sabia que o
poder aquisitivo de meus alunos não permitia a compra de livros clássicos e tão
pouco se sentiam motivados a apanhar um exemplar na biblioteca para leitura.
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Nas aulas de literatura não conseguia desenvolver o potencial
comunicativo dos alunos, os mesmos não gostavam de participar e viam a leitura
como uma obrigação para obter nota ao final do bimestre.
Logo, percebia que algo teria que ser feito para mudar essa realidade,
não poderia continuar resistente ao uso de tecnologias em sala de aula, as mesmas
teriam que fazer parte dos conteúdos.
Mas, como?
A princípio utilizei a TV Pendrive para exibir imagens referentes aos
livros trabalhados, percebi a empolgação dos alunos. E logo fui à procura de vídeos
didáticos e de filmes produzidos na área de literatura.
Entretanto ainda não conseguia fazer com que os alunos participassem
ativamente da aula e tão pouco colaborasse na construção do conhecimento
coletivo. Logo, notei que a literatura deveria ser trabalhada pelos próprios alunos,
reproduzida e contada por eles.
Assim, surgiu a ideia de trabalhar a literatura com recursos
tecnológicos a fim de sensibilizar os discentes a participarem das gravações de
podcast e apreciarem a Literatura.
Logo, com a inserção de podcast será possível desenvolver a
aprendizagem de forma interativa permitindo ao aluno produzir o conhecimento e
compartilhar na internet. Assim, o aluno passará a ser sujeito da sua própria
aprendizagem, a pensar sozinho e no coletivo escolar, assimilando e construindo
conceitos.
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10- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
AGUIAR,Vera Teixeira de; BORDINI, Maria da Glória. Literatura: a formação do leitor alternativas metodológicas. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993. ASSIS, Machado de. Volume de contos. Rio de Janeiro : Garnier, 1884.
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