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Os donos da voz - Márcia Tosta Dias

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Page 1: Os donos da voz - Márcia Tosta Dias

Ern tempos de cultura mundializada .. se nao se

pode 'afirmar que todo 0 mundo gosta de mUska,

pode-se dizer com tranquilidade ,que grande parte

da populacrao consome mUska. Do conjunto das

mercadorias produzidas pela in.dUstria cultural, a

mUska se distingue pela grande inte~o que esta­

belece com os media. Ai6n de poder ser ouvida no

toca-discos ( ou similar) de cada urn a partir da es­

colha do que se quer ouvir, ela escl presente no ra­

dio, na televisao, no cinema, na publicidade, nos

computadores, em manifesta¢es da vida social de

todo 0 tipo. 0 cidadao do mundo, como simples

transeunte, escl exposto a uma quantidade impres­

sionante de cancr6es que .emanam de inlimeros p6-

los difusores.

Os donas da voz nos oferece urna analise abran­

gente e inedita do funcionamento da indUstria fono­

gclfiq:biasileira - que espelha a sua forma mun­

dial de amacrao - enos permite compreender os

lI}eandros da producrao dessas mercadorias culm­

C;Us tao especiais; Destina~se a cientistas sociais,

comunic61?gos, artistas, mUsicos, empresarios, pro­

dutores muSicais, tecnicos, consurnidores ou cida­

daos interessados em mUsica.

o livro avalia os ertormes avanc;os da indUstria

fonografica no mercado mundial, examinando sua

organizacrao administrativa, seus criteriosde. pro­

ducrao, seus numeros cada vez mais astron6micos,

suas fus6es e ate seus produtos em serie ou diferen­

ciados. Trata desse tenia no contexto brasileiro das

decadas de 1970, 1980e 1990 e renQva as informa­

¢es de trabalhos ja produzidos sobretudo nos anos

, 1970, quando a realidade da ,chamada indUstria

cultural era considetavelmehte distinta.

-'- .. --

Page 2: Os donos da voz - Márcia Tosta Dias

Marcia Tosta Dias

It3APESP ~,~~~~ EDITORIAL

Page 3: Os donos da voz - Márcia Tosta Dias

Copyright © 2000 by Marcia Tosta Dias

Prepara~ao

Maria Cristina Cupertino

Revisao Daniela finkings Ana Paula Elias

Capa Ivana finkings

Antonio Carlos Kehl (Ilus[racao: Biblloteca CJentfjtca Life - Mdqulnas

© 1969 by Time Inc.)

Editora,ao eletr6nica Antonio Carlos Kehl

Produ,ao grlifica Sir/ei Augusta Chaves

Fotolitos OESP

Impressao e acabamento Palas Athena

ISBN 85.85934.53.0

Direitos de reprodu~o cia letra A voz do dono e 0 dono da voz gentilmente cedidos por Chico Buarque de Holanda.

©1981 Marola Edi,oes Musicais Ltda.

Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada au reproduzida sem a expressa autoriza~ao da editora.

I' edi,ao: junho de 2000

Todos os direitos reservados a: BOITEMPO EDITORIAL

]inkings Editores Associados Ltda. Av. Pompeia, 1991 - Perdizes Sao Paulo - SP - 05023-001

Tel. (xx11) 3865 6947 - Fax 3872-6869 E-mail [email protected]

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A voz do dono e a dono da voz Chico Buat-que de Hollanda

Ate quem sabe a voz do dono Gostava do dono da voz Casal igual a n6s, de entrega e de abandono De guerra e paz, contras e pr6s

Fizeram bodas de acetato - de fato Assim como os nossos av6s o dono prensa a voz, a voz resulta urn prato Que gira para todos n6s

o dono andava com outras doses A voz era de urn dono s6 Deus deu ao dono as dentes, Deus deu ao dono as nozes As vozes Deus s6 deu seu d6

Porem a voz ficou cansada ap6s Cern anos fazendo a santa Sonhou se desatar de tantos n6s Nas cordas de outra garganta A louca escorregava nos len~6is Chegou a sonhar amantes E, rouca, regalar os seus bem6is Em troca de alguns brilhantes

Enfim, a voz firmou contrato E foi morar com novo algoz Queria-se prensar, queria ser um prato Girar e se esquecel', veloz

Foi revelada na assembleia - ateia Aquela situa~ao atroz A voz foi infiel trocando de traqueia E a dono foi perdendo a voz

E a dono foi perdendo a Iinha - que tinha E foi perdendo a luz e alem E disse: Minha voz, se v6s nao sereis minha V 6s nao sereis de mais ninguem

(0 que e bam para 0 dono e bom para a voz)

Page 4: Os donos da voz - Márcia Tosta Dias

Sumiria

Prefacio, por Renato Ortiz .................................................. 11

Introdu~ao ........................................................................... 15

Industria fonografica: pressupostos te6ricos e hist6ricos

1. A atualidade do conceito de industria cultural ...... ......... 23

2. Industria fonografica e mundializas;ao da cultura ........... 31

3. Sobre musica popular ....................................................... 45

Trajet6ria da industria fonografica brasileira: anos 70 e 80

1. Os anos 70 e 0 mercado internacional-popular .. ...... ...... 51

2. Estrutura e organizas;ao das Majors

no Brasil: anos 1970 e 1980 .................................................. 65

Os anos 90 e as mudanps na industria fonografica brasileira

1. Ainda 0 processo de produs;ao: o produtor musical........................................................... 91

2. A terceirizas;ao ................................................................... 102

3. Formas da mundializas;ao da industria fonografica ........ 116

o espas;o da produs;ao independente

1. Pressupostos ...................................................................... 125

2. Brasil: os anos 80 e a atitude independente .................... 131

3. Tinitus: uma indie em tempo de globalizas;ao ................ 141

4. Baratos afins: 0 alternativo como segmento .................... 151

Page 5: Os donos da voz - Márcia Tosta Dias

Aspectos da difusao ............................................................ 157

Considera~oes finais ........................................................... 171

Post-scriptum ....................................................................... 175

Bibliografia .......................................................................... 179

Entrevistas realizadas ........................................................ 183

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fndice de quadros, tabelas, graficos e organogramas

Quadro I. Fus6es na industria fonografica - 1928/1945 ........... 36

Quadro II. Fus6es na industria fonografica - 1969/1993.......... 43

Tabela I. Evolu~ao da porcentagem de domicilios com radio e TV: Brasil - 1970/1996 ..................................... 52

Grafico I. Porcentagem de investimento publicitario por meio (via agencias): Brasil: 1963/1988 ........................... 53

Tabela II. Venda de produtos da industria fonografica: Brasil - 1968/1980 ................................................................... 55

Tabela III. Venda de compactos simples e duplos: Brasil - 1969/1989 ................................................................... 56

Organograma I. Estrutura da grande empresa fonografica: Brasil - Anos 70/80 .................................................. :.. ............ 71

Quadro III. Companhias fonograficas com fabrica e estudio: Brasil - Anos 70 ...................................................................... 74

Tabela IV. Venda de produtos e faturamento da industria fonografica: Brasil - 1982/1990...... ................ .... .... ................ 78

Tabela V. Venda de produtos e faturamento da industria fonografica: Brasil - 1989/1995 .............................................. 106

Tabela VI. Evolu~ao do mercado mundial de compact-disc - 1983/1995 ...................................................... 107

Organograma II. Estrutura da grande empresa fonografica - Brasil: anos 90 .................................................. 112

Tabela VII. Numeros do selo Tinitus 1994/1995 ....................... 149

Tabela VIII. Investimento publicitario por meio: Brasil - 1990/1995 ................................................................... 160

Page 6: Os donos da voz - Márcia Tosta Dias

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Preficio

Sabemos, 0 Brasil e um pais de grande tradi~ao musical. Uma diversidade de ritmos, uma pluralidade de generos musicais, uma rica expressao de musica popular, instrumental e de canto, constitu­em 0 seu legado. Dinamicamente, ao sab~r da criatividade de seus. agentes, ela se refaz constantemente diante das diferentes circuns­tancias hist6ricas que a envolvem. 0 estoque do passado, fecunda­do pelas influencias do presente, e desta forma renovado, reinterpretado, recriado. Entretanto, apesar deste dinamismo, quando se confronta esta tradi~ao musical aos estudos que sobre ela foram feitos, constata-se a existencia de um hiato. Longe de constituir um campo de estudo bem delimitado, como acontece com outras especia­lidades nas Ciencias Sociais, observa-se que a reflexao sobre a musica popular brasileira encontra-se ainda restrita aos music610gos e a um pequeno setor das faculdades de comunica~ao. Tanto a Sociologia, quanta a Antropologia e a Hist6ria, ate recentemente, manifestaram pouco interesse pela problematica em questao. Outros temas como Estado, sindicatos, partidos, industrializa~ao, comunidade, mundo rural, desfrutavam de uma legitimidade inquestionavel. Talvez seja possivel vincular esta lacuna ao desenvolvimento dos estudos sobre a "cultura de massa" no Brasil (as aspas sao propositais). Em A moderna tradi­('ao brasileira tive a oportunidade de ressaltar que ha no meio acade­mico um relativo silencio em rela~ao as industrias culturais. E somen­te nos anos 70 que surge um conjunto de trabalhos que se voltam para a compreensao dos meios de comunica~ao. Mesmo assim, as Ciencias Sociais vem se ocupar tardiamente do tema, apenas no final da decada. No caso da industria fonografica pode-se acrescentar ain­da um outro elemento: dentre os meios de comunica~ao, 0 radio e a televisao foram privilegiados, deixando em segundo plano os aspectos relativos a parte fonografica. A esta fragillegitimidade do tema se agre­gam outros fatores. Muito do que se escreveu sobre musica popular brasileira retoma 0 velho esquema, ja criticado por muitos, de uma

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12 Os donos da voz

certa hist6ria da arte. 0 enfoque fixa em demasia 0 artisra considera­do como 0 demiurgo da pr6pria explica~ao sociol6gica. 0 narcisismo mediatico vern acrescentar a esta interpreta~ao ingenua, herdada do seculo XIX, uma serie de problemas. Como 0 artisra e 0 ponto de partida do star-system a explica~ao se encerra na sua Figura ou no testemunho e reflexoes que ele e os jornalistas fazem de sua produ­~ao. 0 trabalho de Marcia T. Dias pertence a uma nova flora~ao de estudos que deliberadamente escolhe 0 campo da musica popular como uma problematica legitima e procura trata-la dentro de uma perspectiva que escapa as armadilhas da tautologia do "eu artistico". A musicalidade dos sons e dos arranjos, a poesia das letras, a entona~ao da voz fazem parte de urn campo de organiza~ao social, cultural e economica, no qual a criatividade individual se encerra e se desen­volve. Criatividade dificil, negociada, mediada pela tecnica e pelas leis de mercado.

Os donos da voz tern 0 merito de nos introduzir no panorama do mundo contemporaneo. A musica popular brasileira, produzida e

. difundida nos padroes da industria cultural dos anos 70, entra neste seculo que se inicia marcada pela globaliza~ao economica e pela mundializa~ao cultural. Ate recentemente podia-se discutir a proble­matica da cultura popular em termos exclusivamente nacionais. Por exemplo, 0 debate que se fez em torno do samba durante 0 Estado Novo, da bossa-nova nos anos 50/60, do tropicalismo no final da decada de 60. Em todos esses momentos 0 tema da identidade nacio­nal se impunha. 0 processo de mundializa~ao da cultura desloca a discussao para urn outro patamar. A pr6pria no~ao de espa~o nacio­nal ja nao pode ser definida como algo univoco e permanente. Nos anos 60 0 rock era visto como uma musica "alienada", "estrangeira", uma manifesta~ao do "imperialismo" ou do "colonialismo". Seria difi­cil manter a mesma visao das coisas. Torna-se mais preciso dizer que o rock constitui-se numa cultura internacional-popular, cuja legitimi­dade contrasta com as musicalidades nacionais, regionais e etnicas. 0 embate rock x MPB se estrutura portanto dentro de outros criterios. A rigor, 0 pr6prio p610 MPB ja nao possui a mesma consistencia. Nele uma diversidade de generos e de interesses se chocam. Existem pa­droes bern ajustados a demanda de mercado, por exemplo as musicas compostas e veiculadas pelas telenovelas, e outros, como 0 da musi­ca instrumental, que valorizam a cria~ao fora de urn contexte ime-

Prefkio 13

diatamente comercial. A oposi~ao que existia entre nacional x estran­geiro e redefinida externa e internamente. Num mundo no qual a pr6pria no~ao de espa~o se transformou, a rela~ao entre internol externo, aut6ctone/alienigena, toma uma nova configura~ao. Mas a globaliza~ao traz com ela uma outra dimensao, a economica. 0 mun­do do entretenimento, ao se globalizar, requer a reestrutura~ao das grandes empresas. Para atuar num mercado desta dimensao elas de­vern se tornar mais flexiveis, terem capacidade financeira e tecnol6gica, e sobretudo, constituirem-se em grandes oligop6lios que possam re­duzir os concorrentes a uma posi~ao de desvantagem. 0 setor fonografico e certamente uma das atividades mais expressivas deste movimento de transnacionaliza~ao. Nele ocorre uma concentra~ao de poder em escala sem precedentes. E sempre possivel relativizar as coisas, lembrando, por exemplo, que as transnacionais fonograficas operam de forma distinta da televisao ou do cinema. Seu produto e sempre a musica local. Com as novas conquistas tecnol6gicas houve ainda uma diversifica~ao da produ~ao. Urn pequeno estudio, com um minimo de recursos tecnicos, e capaz de produzir um CD. Entretanto, nao se pode esquecer que a politica de difusao, que implica em aces­so a televisao, ao radio, revistas e jornais, assim como um investimen­to importante em propaganda e marketing, e definida fora do ambito desses estudios. Dito de outra forma, a concentra~ao desses oligop6lios prescinde da propriedade dos "meios de produ~ao": 0 que importa e o controle dos canais de distribui~ao e 0 acesso publico ao mundo da midia. 0 caso brasileiro nao escapa as imposi~oes desta l6gica de mercado. A criatividade do letrista, do compositor, do arranjador, do musico, e permeada pelas injun~oes de carater comercial. E possivel caracterizar a posi~ao do artista e da empresa recorrendo a dois con­ceitos cunhados por Michel De Certau. Ele denomina de "estrategia" o calculo das rela~oes de for~a que se torna possivel a partir de um "sujeito" (empresario, proprietario, institui~ao cientifica etc.) que se situa num espa~o especifico. Toda estrategia vincula-se a uma base territorial a partir da qual ela analisa e expande 0 seu poder. Existe assim uma clara distin~ao entre a institui~ao que aplica uma determi­nada estrategia e 0 objetivo a ser atingido. De Certau reserva 0 termo "tatica" para os sujeitos individuais para os quais 0 calculo nao pode contar com um lugar pr6prio. A tatica possui como lugar 0 lugar do outro, seu alcance e sempre local. No fundo ela e uma artimanha para

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14 Os donos da voz

reverter 0 poder das institui~oes, mas situando-se sempre no seu raio de a~ao. Eu diria que 0 artista opera atraves da tatica e a industria

. fonografica atraves da estrategia. Para essas 0 dlculo pressupoe uma politica globalizada de a~ao, 0 aproveitamento das musicalidades 10-cais e um controle efetivo do mercado fonografico. Resta ao artista jogar dentro do "Iugar do outro" procurando, na medida do possivel, subverte-Io a seu favor; sua perspectiva de a~aq e porem parcial e individualizada pois ele deve se conformar a posi~ao que de antemao Ihe foi atribuida neste jogo de for~as desiguais.

Renato Ortiz

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Introdu~ao

o estudo da cultura nas sociedades contemporaneas tem apre­sentado alguns desafios as ciencias humanas. A grande velocidade com que mudanps sao implementadas, no ambito da produ{'ao e do consumo, tem dificultado a apreensao, analise e compreensao das rela~oes culturais que se estabelecem a partir da sofistica~ao tecnica dos processos. Os donos da voz, resultado da pesquisa apresentada na disserta~ao de mestrado Sobre mundializafao da industria fonografica. Brasil: anos 70- 90, no IFCH/UNICAMP em 1997, pre­tende reunir-se a um debate intenso e dinamico, existente sobretudo no ambito das ciencias sociais.

o projeto inicial de pesquisa, bem como seu objeto, foram pas­sando por mudan~as muito significativas durante 0 seu desenvolvi­mento. No entanto, a ideia central permaneceu: refletir sobre a impor­tancia da musica no processo de mundializa~ao da cultura que, como face do movimento de globaliza~ao economica, se intensifica neste final de seculo. Visando a defini~ao da maneira mais adequada para a analise do processo, considerei, como constata~ao empirica elementar, a continua e persistente existencia do hit, do sucesso musical, das on­das e explosoes de estilos musicais diversos e, muitas vezes, mundializados, convertidos e contabilizados em milhoes, tanto de uni­dades vendidas quanto de d61ares de faturamento para sua industria. Assim, se nao se pode afirmar que todo mundo gosta de musica, e possivel considerar que grande parte dos cidadaos consome musica. Do conjunto das mercadorias produzidas pela industria cultural, ela se distingue pela grande intera~ao que estabelece com todos os media. Alem de poder ser ouvida no toea-discos (ou similar) de cada um a partir do ato de compra ou escolha do formato, a musiea estii presente no radio, na televisao, no cinema, na publicidade, nos computadores, nos ambientes de todo 0 tipo. Tal consumo aleat6rio e, muitas vezes, compuls6rio a que 0 cidadao do mundo esta exposto como simples transeunte nao e contabilizado nas cifras apresentadas pela industria

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16 Os donos da VOz

fonogriifica. Por outro lado, a importilncia da musica como mercadoria cultural pode tambem ser avaliada se considerarmos a proximidade e a intirnidade que ela consegue estabelecer com os indivfduos, pela capa­cidade que tem de sensibilizar as pessoas, a partir dos esquemas pro­postos pelos varios meios que dela fazem uso.

Como entender entlio, a configura~ao que 0 mercado fonografico vai tomando, no decorrer do tempo? Como compreender as estrategias que elegem determinados artistas e can~oes para comporem 0 fluxo mundial de bens simb6licos? Quais os agentes sociais que orientam a decisao sobre 0 tipo de musica que irii integrar 0 mercado: 0 publico, a industria ou os artistas? A alternativa para 0 tratamento dessas ques­tOes estava na investiga~ao do processo de produ~ao na grande com­panhia fonogriifica, a partir da analise das etapas que conduzem a produ~ao de discos e de seus respectivos artistas.

Tinha, inicialmente, como modelo ideal, a linha de produ~ao industrial organizada nos moldes do mais racional planejamento; uma verdadeira linha de montagem, 56 que de uma mercadoria cultural. Como ~ industria conceberia 0 seu produto? Como ele chegaria ate ela? Quais as especificidades do processo de trabalho? Com quais caracterfsticas 0 produto chegaria ao mercado? Como se daria a reali­za,ao e a reprodu~ao desse processo? Portanto, para poder respon­der a tais questoes, a pesquisa deveria realizar-se dentro de uma grande empresa produtora de discos (na maio ria das vezes, uma companhia transnacional cuja estrutura e, basica e consequentemente, globalizada), que, aventava-se, alem de ser responsavel pelas maiores fatias do mercado brasileiro, possufa condi~es estruturais para 0 desenvolvi­mento de todas as etapas da produ~o (essencialmente: concep~ao do produto, prepara,ao do artista e do repert6rio, grava~ao em estU­dio, mixagem, prepara,ao da fita master, confec~ao das matrizes, prensagem-fabrica~ao, controle de qualidade, capa-embalagem, dis­tribui,ao, marketing-divulga~ao).

Nao foi possfvel observar a "linha de montagem" uma vez que o processo ja se encontrava fragmentado, disperso para alem do es­pa~o ffsico (e muitas vezes intelectual) da empresa onde ate entao se efetivava toda a produ,ao.

A transforma,ao que se opera nao tem precedentes na hist6ria da industria fonografica e se realiza em escala 'mundial, estreitamente sintonizada com 0 rearranjo estrutural pelo qual toda a produ~ao

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Introdu~ao 17

capitalista passa, com maior intensidade, nos ultimos vinte anos. Seu principal agente e a grande transnacional produtora de discos, num processo iniciado pelo alto, como parte da contfnua racionaliza,ao c\a produ~ao, atingindo, aos poucos, ate mesmo setores com que se relaciona indiretamente, como 0 circuito da produ,ao "independen­te". Por sua vez, tal racionaliza,ao tern sido observada na forma de sucessivas ondas de inova~ao tecnol6gica, que vao sendo propostas ao longo do tempo, evidenciando a rela,ao primordial entre desen­volvimento tecnico e produ~ao fonogriifica. Nesse sentido, os avan­,os, sobretudo no ambito das tecnologias de grava~ao (estudio e fabrica), vao permitir uma relativa autonorniza,ao de algumas etapas da produ~ao de discos, possibilitando que artistas e empresas inde­pen dentes produzam e busquem seu lugar no mercado.

Portanto, 0 que se observa nesse final de seculo e a definitiva fragmenta~ao do processo produtivo na grande industria fonografica, no qual serno terceirizadas, principalmente, as etapas de grava~ao, fabrica~ao e distribui~ao ffsica do produto, ficando nas maos das transnacionais 0 trabalho com artistas e repert6rio, marketing e difu­sao. As grandes empresas transformam-se em escrit6rios de gerenciamento de produto e elabora,ao de estrategias de mercado.

Essa significativa mudan,a traz para a cena novos atores sociais, tais como os envolvidos nas atividades terceirizadas. Mas a questao torna-se ainda mais complexa quando a grande empresa passa, em algumas sitlja,oes, a buscar artistas com seus discos ja prontos, terceirizando mesmo a concep,ao do produto, limitando-se a distri­buf-lo. A partir dessa constata~ao, instaura-se um debate dos mais prof1cuos para a reflexao sobre a produ~ao cultural nos dias atuais, uma vez que "a mao branca da tecnologia" parece intervir colocando a hip6tese de urn real aumento de oportunidades, de melhoria da qualidade do produto e de diminui,ao do poder, ate entao inquestionavel, da grande transnacional do entretenimento.

E nesse contexto que acabei optando pela realiza~ao de um trabalho em perspectiva, considerando todas as dificuldades e lirnita­~oes que essa escolha pode conter. A riqueza e a complexidade do cenario que se impoe, assim como 0 cariiter incipiente das transforma­~oes que se operam, convidaram-me a tentar tra~ar urn panorama dos ultimos vinte anos da industria fonogriifica no Brasil, privilegiando a analise da esfera da produ,ao. Tomo como referenda os anos 1970,

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18 AS donos da voz

perfodo de consolida~ao da moderna industria fonografica brasileira. Nos anos 1980 e 1990 e definida e, efetivamente, colocada em pratica a sua reestrutura~ao. Contudo, nao tenho 0 prop6sito de levantar toda a riqueza hist6rica do perfodo, mas sim 0 de alinhavar pontos que consi­dero fundamentais para a compreensao dos caminhos que a produ~ao fonografica brasileira tern seguido, em tempos de mundializa~ao da cultura. Da mesma forma, tomada a partir do processo produtivo, a analise pode nos conduzir 11. preocupa~ao inicialmente enunciada, na medida em que e a mundializa~ao das tecnicas de produ~ao, de distri­bui~ao e de difusao que parece potencializar a capacidade de transpor fronteiras nacionais e culturais, apresentada pela mercadoria musical.

No decorrer da pesquisa propriamente dita, fui encontrando e fazendo uso de uma pequena, porem substanciosa, bibliografia espe­dfica, na maioria das vezes filiada, implicita ou explicitamente, a gran­des debates sobre meios de comunica~ao de massa ou sobre cultura na sOciedade contemporanea. Simultaneamente as referidas mudan­~as nos pianos de trabalho, comecei a realizar entrevistas com execu­tivos, ·produtores musicais, tecnicos, musicos, divulgadores e jornalis­tas. Penso que os resultados obtidos com tais entrevistas representem o que 0 trabalho possa ter de original, na medida em que tenta explo­rar 0 universo das justificativas, das motiva~oes e dos argumentos apresentados pelos agentes sociais par~ua atual;ao no processo. as argumentos surgem, naturalmente, como visoes de mundo. No entanto, surpreende a sua capacidade explicativa, seja na abordagem de todo 0 contexto, como na de suas partes. Tais justificativas, sobre­tudo no caso dos dirigentes e dos produtores musicais, tornaram-se preciosos instrumentos para a analise da dinamica da industria fonografiCa, em tempos de mudan~as nas estrategias de atua~ao.

Da mesma forma, reuni material de imprensa sobre temas ge­rais e especificos. Mas vi alguma dificuldade em trabalhar com esse tipo de fonte, uma vez que, nessa area de interesse, a fronteira entre a informa~ao e a divulga~ao (marketing) dos produtos culturais e, as vezes, bastante confusa. Sobretudo as revistas especializadas, elas mesmas produto cultural atuando em e para segmentos espedficos, tern para este trabalho a mesma importancia que 0 ponto de vista dos entrevistados. Com rela~ao a dados numericos, exce~ao deve ser feita a revista Hfl', que circulou por apenas meio ana (final de 1991 a meados de 1992), mas que, ao direcionar-se aos pr6prios profissionais

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Introdu~ao 19

do mercado fonografico, apresenta urn especial cuidado com as fon­tes. Algumas reportagens sobre 0 tema, encontradas em jornais de grande circula~ao, tambem foram de grande valia para a pesquisa.

No campo dos referenciais te6ricos, urn conceito e especialmen­te caro a esta analise: 0 de industria cultural, tal como foi elaborado por T. W. Adorno e M. Horkheimer na Dialetica do esciarecimento (R]: Zahar, 1944/1985). Esse referencial basico, no entanto, vai se expan­dindo para outras questoes, encontradas, sobretudo, em obras de Ador­no, na medida em que a analise vai se restringindo ao seu objeto central. ]a ha algum tempo e muito comum encontrarmos, em estudos sobre meios de comunica~ao de massa e, mais especificamente, sobre produ~ao fonografica, a recusa total ou parcial do conjunto de ideias proposto por Adorno, principalmente quando este se dedica a sociolo­gia da musica. Sao apontados serios limites as suas ideias, julgadas elitistas, pessimistas elou produto de urn tempo hist6rico espedfico e ultrapassado. Raramente sao considerados os pressupostos metodol6gicos que fundamentam e guiam as analises. Nas referencias ao seu tom pessimista, que tanto incomodo parece causar, e ainda mais raro encontrarmos tratadas as possibilidades de supera~ao da realidade que ele denuncia, encontradas em varios de seus escritos. Assim, pen­so que tais leituras e juizos, alem de nao comprometerem, com suas interven~oes, 0 nuc1eo da argumenta~ao sobre a industria cultural, nao debilitam seu poder explicativo e, consequentemente, nao conseguem negar sua extrema atualidade. Optando por urn caminho diverso, pen­so que nunca 0 conceito de industria cultural teve tanto sentido.

Neste final de seculo, 0 raio de atua~ao e infiuencia (e 0 conse­quente dominio) dos meios de comunica~ao de massa ampliou e qualificou espantosamente. Se 9 capitalismo mundial tern mudado, agregando formas mais complexas e sofisticadas para 0 seu desenvol­vimento, se a padroniza~ao dos produtos culturais nao e mais tao evidente, se as tecnicas de produ~ao permitem a participa~ao de urn maior numero de atores no cenario, se 0 consumo nao e mais verticalizado, isso nao significa que possamos conc1uir que tais mu­dan~as definem a fragiliza~ao e 0 enfraquecimento dos processos "controlados e controladores", sofisticadamente administrados e pre­visiveis, que sempre caracterizaram a atua~ao da industria cultural.

Meios como a televisao, reprodutores musicais, cinema, com­putadores e radios tornaram-se, de certa maneira, elementos ba~icos

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20 Os donos da voz

da vida social, adquirindo, freqiientemente, status pr6ximo aos dos "generos de primeira necessidade", e nao s6 de entretenimento e lazer. A telenovela, as series televisivas, 0 telejornal, a publicidade, os hits, os pop stars e de tal forma as produ~aes cinematograficas e seus subprodutos entranham-se na vida, no cotidiano do cidadao comum e do mundo que Ihe sao, muitas vezes, considerados como elementos "naturais". Essa rela~ao de naturalidade que se estabele­ce entre consumidores e produtos e resultado da sutileza e da sofis­tica~ao alcanpdos pelos media, seu modo de produ~ao e difusao.

Se se resgata 0 ponto de vista de Gabriel Cohn sobre Adorno, exposto na apresenta~ao de uma coletanea de textos desse autor, segundo 0 qual 0 fil6sofo e music610go alemao nao considerava em sua reflexao 0 real tal como este se manifestava no tempo hist6rico em que ele vivia, mas sim que suas ideias tinham um carater metodologicamente prospectivo, apontando para tendencias sociais e para "( ... ) potencialidades de sua realiza~ao mais acabada", pode­mos pensar que este e 0 tempo em que se realizam varios dos progn6s­ticos I,.n~ados por Adorno.

Portanto, no primeiro capitulo, tento aproximar algumas ideias desses autores, bem como as de outros que ~nsidero complementares, da questao central proposta, ambientando t<,\oricamente minhas pre­ocupa~aes. No entanto, trata-se de simples aproxima~ao, consi­derando que do encontro das duas dimensaes do problema nao se efetiva nenhuma outra elabora~ao conceitual, por mais que consi­dere que esse encontro revigore e atualize os conceitos apresenta­dos. Na mesma se~ao, procuro apresentar os pressupostos funda­mentais que envolvem as rela~aes entre industria fonografica e mundializa~ao da cultura.

No segundo capitulo, busco localizar historicamente, na decada de 1970, as bases para 0 desenvolvimento da moderna industria fonografica brasileira, trazendo para 0 centro da discussao meu obje­to de pesquisa. Integram esse capitulo, a analise da estrutura e do funcionamento da grande companhia e das rela~aes de trabalho que se estabelecem. 0 panorama avan~a pela decada de 1980, tentando ressaltar as particularidades da produ~ao fonografica e alinhavar 0 caminho que sera tra~ado pelas mudan~as.

A reflexao sobre os fatores que levam a industria fonografica brasileira a empreender mudan~as estruturais no seu funcionamento

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e a apresenta~ao de dados concretos sobre estas estao presentes no terceiro capitulo. Foram colhidas informa~aes sobre 0 desenrolar do processo nas empresas BMG e PolyGram. Particularidades do traba­Iho do produtor musical e seus diferentes vinculos com as empresas sao apresentadas como alternativa de analise das mudan~as, bem como sao apontadas algumas das formas atuais tomadas pela mundializa~ao da industria fonografica.

A esta altura, cabe uma observa~ao: os capitulos 4 e 5 apre­sentam questaes concernentes ao espa~o ocupado pela produ~ao independente e a aspectos da difusao. No entanto, a complexidade e extensao dos problemas que contem indicam que poderiam ser, eles mesmos, objetos de trabalhos de pesquisa especificos. A abor­dagem tem 0 objetivo de apresentar, essencialmente, questaes fun­damentais e imprescindiveis a compreensao do processo na sua totalidade. Assim, 0 quarto capitulo procura resgatar a importancia dos produtores fonograficos independentes a partir dos anos 1980, momenta em que esse tipo de produ~ao musical foi bastante signi­ficativo. Veremos que nos anos 1990 sua performance modificada parece estar estritamente ligada ao processo de terceiriza~ao. 0 quinto e ultimo capitulo apresenta algumas formas utilizadas para a difusao de mercadorias musicais.

Finalmente, estimulada pela ocorrencia de importantes e inquie­tantes mudan~as, ap6s 0 terminG da pesquisa em 1997, no panorama estudado, escrevi um pequeno Post-scriptum, procurando sintoniza­las com 0 quadro tra~ado. Olhando-as, penso que talvez 0 desafio a que me referi inicialmente seja ainda maior do que 0 imaginado.

Agrade~o aos profissionais que colaboraram com este trabalho concedendo entrevistas, ao Prof. Dr. Renato Ortiz, meu orientador, e a Funda~ao de Amparo a Pesquisa do Estado de Sao Paulo - FAPESP, pelo apoio concedido a esta publica~ao.

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Industria fonografica: pressupostos te6ricos e hist6ricos

1. A atualidade do conceito de industria cultural

Consideremos, entao, a questao primordial: por que a musica seria um produto cultural diferenciado no processo de mundializa~ao da cultura, a que assistimos com maior intensidade neste fim de seculo?

Primeiramente, por suas particularidades socioculturais. No pro­cesso hist6rico, a musica tem se apresentado como importante ele­mento de expressao cultural em varias sociedades, aparecendo sem­pre circunscrita a espa~os sociais e politicos definidos. Dos ritos dionisiacos a marginalidade medieval, de artigo de luxo da realeza a elemento subversor condenavel, de recurso terapeutico e muitas ve­zes magico a expressao rara da produ~ao intelectual do homem, a musica foi tomando para si varias formas e significados em muitas civiliza~oesl. Essa rela~ao antropol6gica com as sociedades foi, sem duvida, um elemento facilitador elementar para a capacidade de trans­por fronteiras e circular, de maneira fluida e transcendente, pelo mundo, que a musica apresenta.

No entanto, essa capacidade seria limitada, nao fosse 0 pro­cesso de racionaliza~ao pelo qual a musica tem passado atraves

1 Jacques AltaH afirma que por meio da hist6ria da musica se pade chegar a hist6ria das civiliza~oes, tal e seu pader de refletir as fafmas de organiza~ao social nas quais existe. Tal hist6ria pade ser buscada em torno de cinco grandes momentos representados pelos seguintes verbos: escutar, sacrificar, representar, repetir e aparentar. cr. A'ITAL!, }. Bruits. &sat sur /'economte poltttque de /a mustque. Paris: Pres'ses Universitaire de France, 1977.

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dos tempos, entendido como a institui~ao e posterior universaliza~ao de normas tecnicas especificas que transformaram "as formas so­noras tradicionais" na musica ocidental contemporanea. A raciona­liza~ao esta baseada em criterios esteticos e musicais, segundo Max Weber'. Mas, por mais que a musica conserve durante esse processo suas peculiaridades artisticas, esteticas e culturais, essa raci9naliza~ao deve ser entendida como parte de urn amplo movi­mento que, para Weber, tern lugar na sociedade ocidental e esta estreitamente ligado as origens do capitalism03• Tal movimento, atraves da especializa~ao tecnica e da sofistica~ao do conhecimen­to, busca otimizar a organiza~ao e a administra~ao da vida social em todos os sentidos, fornecendo pressupostos caros as "c. .. ) for­~as motivadoras da expansao do capitalismo moderno", ou seja, a constitui~ao do espirito do capitalismo'.

Adorno e Horkheimer exploraram a fundo essa ideia weberiana (mesmo que depois a analise tenha tornado outra dire~ao), mostran­do como 0 homem, em sua marcha obcecada pelo dominio do des­conhecido, vai realizando 0 "desencantamento do mundo" pelas maos da razao instrumental, processo que denominaram esclarecimento'. No ambito da ciencia, essa marcha possibilitou 0 desenvolvimento da especializa~ao, a compartimentaliza~ao e a tecnifica~ao do conheci­mento e do saber. A valoriza~ao do dado como Fonte primordial para a pesquisa e 0 estabelecimento de procedimentos tecnicos em todas as instancias promoveram a ocorrencia de urn alto grau de aplicabili-

2 De acordo com VICENTE, E. A mUsica popular e as novas tecnoJogias de produ.­faa musical. Disser[a~ao de mestrado, IFCH/UNICAMP, 1996 (suporte e1etroni­co), p. 101 e segs.

3 Cf. WEBER, M. A etica protestante e 0 espfrito do capttalismo. ()a ed. SP: Pioneira, tradu~ao de M. Irene Q. F. Szmrecsanyi e Tamas]. M. K. Szmrecsanyi, 1989, p. 1-15.

4 Idem, p. 44. 5 Para a carac(eriza~o que se segue, tome como referencia as seguintes ensaios:

ADORNO, T. W. e HORKHEIMER, M. DfaJeIica do esc/areclmenJo (DE). Sp, Zahar, 1985, tradu~o de Guido de Almeida; ADORNO, T. W. "0 fetichismo na musica e a regressao da audi~ao" (Ji'MRA), In: as pensadores: Benjamin, Habermas, Horkheimer eAdorno. 2' ed. sp, Abril, 1983, tradu¢.\odeJoilo Luis Baratlna, p.165-191; ADORNO, T. W. "Ideias para a sociologla da miisica" OSM). Idem, traduc;ao de Roberto Schwarz, p. 259~268 e HORKHEIMER, M, "Teoria tradicional e teoria cr1tica", Idem, tradu~o de Edgard Afonso Malagodi e Ronaldo P. Cunha, p, 117~154, Vale lembrar que a ic!eia de "desencantamento do mundo" foi tambem cunhada por Max Weber. Ver, po'r exem~ plo, Weber, op, cit., p. 81 e segs.

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Industria fonografica: pressupostos te6ricos e hist6ricos 25

dade das conquistas, aproximando assim a ciencia do poder. 0 de­senvolvimento cientifico passa a estar subordinado a interesses e con­veniencias preestabelecidas, permitindo, desta forma, sua estreita re­la~ao com a genese, 0 desenvolvimento e a manuten~ao do modo capitalista de produ~ao.

Para 0 conjunto da vida social, 0 esclarecimento proporcionou o advento da sociedade administrada. A 16gica da administra~ao en­tendida "enquanto modalidade de organiza~ao social e sobretudo como forma de domina~ao"6 expande-se e 'contamina, com suas regras matematizadas, previs[veis e padronizadas, lodos os ambitos da vida social. "0 essencial dessa expansao e que ela atinge areas antes nao submetidas a administra~ao: entre elas a da cultura"'. Gabriel Cohn afirma que, para Adorno, a expansao da administra~ao se apresenta como tendencia imanente e que, como forma de domina~ao, vai eliminando as peculiaridades das varias esferas da vida social, em nome da medida unica e abstrata que Ihe e conferida. Com a ampla difusao das rela~iies de troca, areas antes pertencentes a cultura pas­sam aquela da produ~ao cultural: "c. . .) 'a exigencia da administra~ao em rela~ao a cultura e essencialmente heteronomica; ela precisa me­dir 0 cultural, seja qual for, segundo normas que nao Ihe sao inerentes, que nada tern a ver com a qualidade do objeto. A cultura e medida conforme padriies abstratamente trazidos do seu exterior, enquanto 0

administrador e levado pelas suas pr6prias exigencias e conforma,ao a recusar-se, no mais das vezes, a levar em conta questoes relativas a qualidade imanente, a verdade e, finalmente, a racionalidade objetiva do objeto [culturaIl"'8.

E nesse'contexto que surge 0 conceito de industria cultural. As manifesta~iies culturais, outrora produzidas socialmente em espa~os

6 COHN, G. Sociologia da comtlnicafclo. SP: Pioneira, 1973, p. 124.

7 Idem. p. 125. 8 Ibidem, p. 125~126. Trata~se de cita~oes de Adorno feitas por Cohn. Da mesma

forma, encontramos na p. 125 0 seguinte trecho sobre as diferen~as entre cultura e administracao: "A cultura e a reivindica~ao perene do particular contra 0 geral C .. .). A administra~ao, por seu turno, representa necessariamente C ... ) 0 geral oposto a todo particular." Preferi fazer a cita~o da cita~ao, por ja estar traduzida e contextualizada. 0 ensaio de Adorno em questao e "Cuitura y administraci6n". In, ADORNO, T. W. e HORKHEIMER, M. Soclo/6glca. Madri, Taurus, 1971, tradu­~ao de Victor Sanches de Zavala, p. 69~97.

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qualitativamente diferenciados e portadores de subjetividade, perdem sua dimensao de especificidade ao serem submetidas a 16gica da eco­nomia e da administra~ao. 0 exercicio do hldico e do descanso e prejudicado e em seu lugar sao propostos habitos de consumo de produtos que, na verdade, Sao reprodu~oes do processo de trabalho.

Nesse sentido, vale uma observa~ao. Nao penso que, com esta afirma~ao, os autores proclamem simplesmente 0 fim de toda mani­festa~ao cultural "autentica", sobretudo a partir da consolida~ao do capitalismo. 0 fato e que ate as esferas resistentes vao sendo, aos poucos, envolvidas pela 16gica da produ~ao de mercadorias, mesmo que persista a sua constitui~ao original9• Por outro lado, e poss!vel notar que algumas mercadorias, embora produzidas pela industria cultural, apresentam conteudo crltico, seja diante da conjuntura social na qual sao produzidas, seja diante dos pr6prios meios utilizados para a sua produ~ao. 0 usa do aparato tecnico para a concep~ao de produtos de conteudo cr!tico foi analisado por Walter Benjamin que, pensando no cinema, considerou a possibilidade de seu engajamento em transforma~oes sociais leg!timas1o• Como veremos adiante, tem sido' significativa a presen~a de um tipo de produ~ao fonografica que segue paralela (ou marginal) ao circuito oficial do mercado e apre­senta mercadorias musicais diferenciadas, muitas vezes com conteu­do crftico e/ou contestat6rio. No entanto, e surpreendente constatar que a atual sofistica~ao da estrategia de segmenta~ao traz para 0

mercado os produtos "marginais", considerados como sendo de diff­cil assimila~ao, a partir do pressuposto de que, para 0 mercado, tudo interessa. Ademais, as agencias instituem tais produtos como s!mbolo de sua preocupa~ao com a "qualidade" e como instrumento de legitima~ao de sua atua~ao.

Retornando a argumenta~ao anterior: do que the era exterior, a vida cultural, agora tornada industria, herdou a produ~ao em serie, a

9 Ver, por exempJo, 0 estudo realizado em Sao Paulo por Waldenyr Caldas sobre a transforma~ao da musica caipira em musica sertaneja. In: Acordes na aurora: mtistca sertaneja e indUstria cultural. SP: Nacional, 1977. Cutro exemplo encon~ tramos em CANCLINI, N. G. As culturaspopulares no capitalismo. SP: Brasiliense, tradul'ao de Claudio N. P. Coelho, 1983.

10 BENJAMIN, W. "A obC'", de arte na epoca de suas tecnicas de reprodu~ao".ln: Os pensadores: Benjamin, Habermas, Horkbeimer e Adorno. 2' ed. SP: Abril, 1983, tradu\=3.o de Jose Lino GrOnnewald, p. 3-28.

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Industria fonografica: pressupostos te6ricos e hist6ricos 27

padroniza~ao, a repeti~ao, ou seja, a pseudo-individua~ao. Contando com a tecnica sempre no centro do processo, ela passa a ser operada por grandes conglomerados economicos. "0 carater de montagem da industria cultural, a fabrica~ao sintetica e dirigida de seus produtos, que e industrial nao apenas no estudio cinematografico, mas tambem (pelo menos virtualmente) na compila~ao das biografias baratas, ro­mances-reportagens e can~oes de sucesso, ja estao adaptados de an­temao a publicidade: na medida em que cada elemento se torna se­paravel, fung!vel e tambem tecnicamente alienado a totalidade, ele se presta a finalidades exteriores a obra"". .

o esquematismo da produ~ao na industria cultural e sua subor­dina~ao ao planejamento economico promovem a fabrica~ao de mer­cadorias culturais identicas; pequenos detalhes atuam sempre no senti­do de conferir-lhes uma ilus6ria aura de distin~ao. A obra de arte, que era anteriormente ve!culo da ideia, foi completamente dominada pelo detalhe tecnico, pelo efeito, substitu!da pela f6rmula. Estes atingem igualmente 0 todo e a parte, fazendo com que nao exista nenhuma conexao entre eles, alem de uma harmonia artificial. Essa mesmice, no entanto, acaba sendo 0 motive do regozijo: ao ser apresentado 0 sem­pre mesmo final do filme, 0 sempre mesmo ponto alto da can~ao, surge 0 contentamento por meio do reconhecimento12•

Portanto, sao as caracter!sticas intr!nsecas dos produtos que determinam se eles serno consumidos por todos; dos distra!dos aos mais alertas. "Sao feitos de tal forma que sua apreensao adequada exige, e verdade, presteza, dom de observa~ao, conhecimentos espe­cificos, mas tambem de tal sorte que pro!bem a atividade intelectual do espectador, se ele nao quiser perder os fatos que desfilam veloz­mente diante de seus olhos"13. A racionalidade tecnica.contaminou de tal forma os produtos para a diversao, que nao deixa perceber que 0

tempo destinado ao 6cio tornou-se um prolongamento do processo

11 ADORNO e HORKHEIMER. DE, p. 153. 12 "C .. ) gostar de urn disco de sucesso e quase exatamente 0 mesmo que reconhece~

10". In: ADORNO. FMRA, p. 166. 0 tema do reconhecimento tem grande impor­tancia para a analise da produ~ao e difusao de mercadorias culturais. Aiem de 0

encontrarmes em varies momentos des textos citados de Adorno, um outro enfoque do tema e apresentado por ECO, U. "Innovation et repetition: Entre esthetique moderne et post-moderne", Reseaux, nil 68. Paris: CNET, 1994, p. 09-26.

13 ADORNO e Horkheimer. DE, p. 119 .

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de trabalho. Adorno mostra como 0 6cio, que possuia 0 sentido de folga, "algo qualitativamente distinto e muito mais grato, mesmo des­de 0 ponto de vista do conteudo", foi substituido progressivamente pelo tempo livre, expressao que por si mesma remete ao tempo nao livre. "0 tempo livre e acorrentado ao seu oposto""-

Assim, as pessoas que procuram a diversao como forma de des­ligarem-se do processo de trabalho, buscando recarregar suas for~as para poder melhor enfrenta-Io, acabam por encontrar produtos que reproduzem 0 pr6prio processo de trabalho, alem de outras esferas da vida social, como, por exemplo, a vida familiar. Esse encontro se da de maneira medlnica, estandardizada, repetitiva, unica, impessoal e auto­rilaria. A cultura sob a 16gica da administra~ao tem, assim, como fim unico: "( ... ) ocupar os sentidos dos homens da saida da fabrica, a noitinha, ate a chegada ao rel6gio do ponto, na manhii seguinte, com 0 selo da tarefa de que devem se ocupar durante 0 dia ( ... )"".

o elo fundante entre tempo livre e tempo nao livre promove a existencia de uma zona nebulosa na fronteira entre a fic~ao e a reali­dade, prejudicando substancialmente a sua percep~ao'6. "A velha ex­periencia do espectador de cinema, que percebe a rua como um prolongamento do filme que acabou de ver, porque este pretende ele pr6prio reproduzir rigorosamente 0 mundo da percep~ao quotidiana, tornou-se a norma da produ~ao. Quanto maior a perfei~iio com que suas tecnicas duplicam os objetos empiricos, mais facil se torna hoje

14 ADORNO, T. W. "Tempo Livre" (TL), In: Palal!ras e sinais: Modelos criticos 2. Petr6polis/R]: Vozes, 1995, tradw;ao de Maria Helena Ruschei, p. 70.

15 ADORNO e HORKHEIMER. DE, p. 123. 16 0 assunto em questao esta estreitamente vinculado aos conceitos de consciencia e'

de ideologia, ambos de importlincia nuclear na obra de Adorno. No entanto, urn tratamento adequado dos conceitos escapa aos prop6sitos deste trabalho. Por 01..1-

tro'lado, acredito que a escolha do conceitQ de industria cultural como norteador da analise ja tcaz em si uma concepfao propria da questao da conscj(~ncia. Pam ideologia, acolho 0 conceito amplo de "aparencia socialmente necessaria" tal como encontramos em varias obras do autor, como, por exemplo, em "Capitalismo tardio ou sociedade industrial". In: 7beodor W. Adorno. SP: Atiea, 1986. Grandes Cientis­las Sociais, n2 54. Organizac;ao Gabriel Cohn, tradu~ao de FIa.vio Kothe, p. 62-75. Vale aqui outra observa~ao impol1ante: e justamente quando conceitua 0 tempo livre que Adorno fala objetivamente de resistencia: "E evidente que ainda nao se alcan~ou inteiramente a integra~ao da consci~ncia e do tempo livre. Os interesses reais do individuo ainda sao suficientemente fortes para, dentro de certos Iimites, resistir a apreensao [Erfassun8J total". In: ADORNO. n, p.81.

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Industria fonografica: pressupostos te6ricos e hist6ricos 29

obter a·ilusao de que 0 mundo exterior eo prolongamento sem ruptu­ra do mundo que se descobre no filme"l7.

Penso que a percep~ao prejudicada dos limites entre fic~ao e realidade esta muito presente na produ~ao e no consumo de produtos culturais nos dias de hoje, quando a espantosa inser~ao dos media no cotidiano social parece ter conquistado um patamar de naturalidade. E como se, do ponto de vista de consumidores e empresarios, viver "plugado" (e 0 termo nao poderia ser mais expressivo) na televisao, no radio, nos modernos reprodutores eletr6nicos, nas redes de informa­~ao, tivesse se tornado uma conseqiiencia "natural" e pr6pria da vida na sociedade contempoclnea. "A capacidade rara de satisfazer minucio­samente as exigencias do idioma da naturalidade em todos os setores da industria cultural torna-se 0 padrao de competencia"18.

Para Adorno e Horkheimer, essa rela~o de naturalidade e utilizada pelos dirigentes e empresarios para justificar a adesao dos consumidores aos seus produtos. "Os promotores da diversao comercializada lavam as maos ao aftrmarem que estao dando as massas 0 que elas querem"19. Por sua vez, os empresarios argumentam que os padriies instituidos e produ­zidos em massa teriam origem nas necessidades pr6prias aos consumido­res, com a diferen~ de serem ora produzidos e difundidos por poucos agentes para rnilhiies de pessoas. Na realidade, e um sistema de necesst­clades retroativas que fornece coesao aos produtos. Assim, a "atitude do publico que, pretensamente e de fato, favorece 0 sistema da industria cultural e uma parte do sistema, nao sua desculpa"20.

17 ADORNO e HORKHEIMER. DE, p. 118. 18 Idem, p. 121. 19 ADORNO, T. W. "Sobre mtisica popular" (SMP). In: 1beodor W, Adorno. SP: .Atica,

Grandes Cientistas Sociais, n2 54. Org. Gabriel Cohn, 1986, tradu~ao de Flavio KOlhe, p. 136.

20 ADORNO e HORKHEIMER, DE, p. 115. Sobre a questao das "necessidades retroa­tivas" diz Hobsbawn em sua Hist6ria social do jazz. RJ: Paz e Terra, 1990, tradu\=ao de Angela Noronha, p. 35: "C ... ) a industria do entretenimento satisfaz necessidades que permanecem substancialmente as mesmas ha anos. C ... ) A materia-prima origi­nal do entretenimento de massas e, em grande medida, uma forma adaptada de entretenimento anterior, e ate hoje a industria continua a se reciclar de tempos em tempos, recorrendo a fonte, e encontrando algumas de suas atividades mais frutffe­ras nas formas mais antigas, perenes e menos 'industl'ializadas' de cria~ao popular". Hobsbawn, apesar de avaliar a performance da industria do entretenimento de maneira bastante crltica, v~ como positiva sua alian~a com 0 jazz, por ter permitido a distribuic-lo e difusao do g~nero POl' [odo 0 mundo.

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30 Os donos da voz

Retornando a argumenta~ao de Adorno e Horkheimer, os auto­res apontam, ja em meados dos anos 40, que os produtores nao tern mais a inten~ao de encobrir 0 carater industrial e empresarial dos produtos culturais. A produ~ao e concebida considerando sua viabili­dade mercadol6gica, dentro dos mais elementares determinantes eco­nomicos. "Eles se definem a si mesmos como industrias, e as cifras publicadas dos rendimentos de seus diretores gerais suprimem toda a duvida quanta a necessidade social de seus produtos"21. No entanto, comparados a outros setores industriais, nos anos 40 os monop6lios culturais se apresentavam como "fracos e dependentes". A fraqueza seria constatada se esses ultimos fossem comparados aos setores da industria de base. A dependencia se mostraria sobretudo com rela~ao aos setores industriais que fornecem tecnologia a industria cultural, como por exemplo a industria eletrica". Veremos a seguir, analisando a performance da industria fonografica, como de fraco e dependente o ramo da produ~ao cultural transforma-se em neg6cio altamente renravel.

A esta altura, ja dispomos de elementos suficientes para afirmar que e nesse contexte te6rico que 0 objeto de estudo ganha vida. 0 caminho que vai sendo cruzado pelas mercadorias musicais na socie­dade cbntemporanea nao pode ser compreendido destacado do con­ceito de tecnica. Esta na universaliza~ao dos meios tecnicos de pro­du~ao sob 0 amparo da sociedade administrada a chave conceitual para a compreensao do problema.

Nesse sentido, a op~ao de estudar 0 processo de produ~ao da mercadoria musical tambem ganha maior fundamento. Se partisse de outro referencial, a pesquisa poderia ocupar-se do estudo da estrutu­ra e conteudo das can~oes, do consumo musical, dos mecanismos de mercado, da distribui~ao e difusao, dentre outros. Mas ao dirigir-se a mercadoria musical, ao produto, "remete as condi~oes de produ~ao, que sao tambem aquelas que regem, simultaneamente, a organiza~ao de sua distribui~ao e a forma pela qual sao consumidos"". Adorno diz que "0 processo de produ~ao organizado e dirigido segundo 0

modelo industri<tl ocupou 0 campo inteiro do consumo musical, subs-

21 ADORNO e HORKHEIMER. DE, p. 114. 22 Idem, p. 115. 23 COHN, 1973. p. 155. ao comentar propostas metodo16gicas de Adorno.

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Industria fonografica: pressupostos te6ricos e hist6ricos 31

tituindo 0 que a ideia da produ~ao artistica tencionava""'. Portanto, e nessa perspectiva que pretendo explorar as condi~oes de produ~ao na industria fonografica no Brasil, mesmo que ela se limite a identifi­car elementos que the sao fundamentais.

Finalmente, penso que a escolha de urn conceito universal para a condu~ao da analise, ao conrrario de eliminar as particularidades do processo a ser analisado, 0 enriquece potencialmente. 0 caso da in­dustria fonografica e muito significativo nesse sentido. Parte do movi­mento global de reprodu~o capitalista e possuidora de toda~ as carac­teristicas fundamentais deste (devidamente adaptadas it sua posi~ao no contexto global), a industria fonografica brasileira segue caminhos muitos particulares, apresentando forte vincula~o a manifesta~oes culturais locais. Estas, por sua vez, continuam a ser socialmente produzidas, por mais que estejam cada vez mais suscetiveis it tendencia imanente de absor~ao pela cultura administrada. Atualmente, 0 nivel de complexi­dade e sofistica~ao a1can~ado pela industria cultural torna alto 0 risco de suavizarmos seus efeitos sobre a vida social e cultural". Portanto, penso que e com atualidade e eficacia metodol6gica para explorar tal situa~ao que 0 conceito de industria cultural se apresenta.

2. Industria fonografica e mundializa\;ao da cultura

o estudo da musica-mercadoria pode evidenciar urn produto cultural de caracteristicas muito especiais. A rela~ao de proximidade que consegue estabelecer com 0 individuo the confere grande poder. Sua capacidade de sensibilizar as pessoas pode levar a rea~oes do mais largo espectro: da angustia ao divertimento, do questionamento a passividade, da liberdade it clausura".

Por outro lado, nenhuma outra mercadoria cultural tern mostra­do tamanha capacidade de intera~ao com os demais media. Seus

24 ADORNO, ISM, p. 263. 2S Problemas de compreensao, diverg~ncias metodo16gicas ou ainda discordancias

de ordem politica ievam, freqUentemente, pesquisadores a apontar a parcialidade de alguns conceitos, como acontece freqOentemente com 0 de industria cultural. Ver, por exemplo, PUTERMAN. P. IndUstria cultural· A agonia de urn conceito. SP: Perspectiva, 1994.

26 ADORNO. ISM, p. 262, mostra desdobramentos dessas rela~oe5 contradjt6ri~5.

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32 Os donas da voz

formatos e reprodutores praticamente eliminam as fronteiras para a sua difusao, como acontece atualmente por meio da miniaturiza~ao27 e pelos reprodutores digitais. Assim, as mercadorias musicais estao no radio, na televisao, no cinema, no teatro, na publicidade, nos computadores, nos ambientes, nas ruas, nas rodas de amigos, no can­tarolar, no assoviar, na alma das pessoas. As altas cifras conquistadas por sua industria deiJ>am, no entanto, de contabilizar 0 consumo alea­torio, e muitas vezes compulsorio, a que 0 cidadao do mundo esta eJ>posto, como simples transeunte.

A partir da perspectiva oferecida pelo conceito de industria cultural, gostaria de explorar, em certa medida, os caminhos tornados pelo desenvolvimento da industria produtora de mercadorias tao es­peciais. 0 seu desenvolvimento ganha dimensao ampla, sobretudo se percebemos a tecnica e a racionalidade que the sao proprias, como elementos fundantes de sua hist6ria. A aparente obviedade da constata~ao, acrescente-se que a tecnica nao fornece somente os apa­ratos necessarios as grava~6es e aos seus reprodutores. Tais aparatos passam a compor 0 quadro das tecnologias de produ~ao e reprodu­~ao musicais e, alem de serem, eles mesmos, urn produto dessa racionalidade tecnica, definem a forma e 0 conteudo dos produtos. Permitindo-me parafrasear a defini~ao que Adorno da para media­r;ao, entendida como 0 modo pelo qual as manifesta~6es da vida social conseguem se impor as obras de arte, podemos dizer, com rela~ao a musica industrializada, que a tecnica "esta na propria coisa, nao sendo algo que seja acrescido entre a coisa e aquelas as quais ela e aproximada"'B Assim, a tecnica vai disseminando sua logica -objetivando a aproxima~ao apontada entre as esferas da administra­~ao e da cultura - desde a defini~ao de todo 0 aparato tecnologico, do rudimentar ao mais avan~ado, a concep~ao do produto, sua distri­bui~ao e difusao, ate tornar-se ela mesma objeto de consumo.

A dimensao propriamente empfrica do problema enuncia uma tarefa fundamental: a de entender, nesse contexto, as formas que as mercadorias musicais e seus reprodutores vao tomando em seu de-

27 Como aponta VICENTE, op. cit., 1996, p. 83. 28 ADORNO, T. W. "Teses sebre sociologia da alte". In: Tbeodor W. Adorno. SP:

Atica. Grandes Cientistas Sociais, nil 54. Org. Gabriel Cohn, 1986, tradu~ao de Flavio Kothe, p. 108-114, cita~ao cia p. 114.

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Industria fonogrMica: pressupostos te6ricos e hist6ricos 33

senvolvimento. Assim, a integracao entre hardware e software traduz, do ponto de vista tecnologico, a contradi~ao basica presente em to­dos os produtos da industria cultural: a forma mercadoria tern a pecu­liaridade de concentrar num produto unico a dimensao material e a pretendida dimensao artfstica.

Alguns autores creditam as partituras'9 e a urn de seus reprodutores, 0 piano 30, as origens da "musica de massa". Patrice Flichy aponta a importancia deste instrumento musical nos lares de classe media, no final do seculo passado, na sociedade europeia. 0 piano nao estava destinado apenas a execu~ao de musica classica, e as edi~6es de partituras indicavam uma grande variedade de can~6es populares, ja segmentadas em varios estilos ("religiosos, patri6ticos, baladas sentimentais, can~6es comicas") e com tiragens numerosas31 •

Os editores teriam sido entao os primeiros empresarios fonograficos, constituindo verdadeiros centros de comercio de edi~6es, como 0 de Tin pa'\) Alley, em Nova York, que, no final do seculo passado e no infcio deste, difundiu amplamente a musica popular americana, so­bretudo 0 jazz. Mesmo anteriormente, "na segunda metade do seculo XIX, nos Estadas Unidas, can~Oes como 'Oh, Suzanna' e 'I wish I was in Dixie's Land' viraram sucessos nacionais reproduzidas em papel e distribufdas pelo pafs e pelo mundo"".

Por mais que favorecessem amplamente a difusao musical, as partituras apresentavam urn limite caracterfstico de toda merca­doria musical, independentemente do seu formato: a necessidade de mediacao por uma maquina ou instrumento musical e a conse-

29 PAIANO, E. Berlmbau esom universal: Lutas cultuf'o:lis'e industria fonogrMica nos anos 60. Disserta,iio de mestrado. sp, ECAlUSP, 1994, p. 182.

30 FLICHY, P. "L' historien et Ie sociologue face a 1a technique. Les cas des machines sonores", In: Reseattx, nil 46-47, mar~o/abril/maio/junho, 1991. Paris: CNET, p. 47-58.

31 "( ... ) 50 mil exemplares anuais de 'Ville Sainte' editada em 1890, 500 mil de 'I.e demier choeur' (total de vendas de 1877 a 1902 [na Inglaterra))". In: FLICHY, 1991, p. 53. AttaH fala de uma versao popular das partituras existentes na Franca, porvolta de 1830, a que chama de "petits formats", que trazia as "linhas de canto" assim como as letras das canCoes. Op. cit., p. 123.

32 PAlANO, 1994, p. 182 Dados sabre os prim6rdios da indUstria fi:mogmfica brasileira podem ser encontrados em TINHORAO, J. R. Mtisica popular: Do gramofone ao radio e 1V. sp, Atica, Ensalcs n' 69, 1981 e em IKEDA, A. T. M.ls1ca na c/dade em tempo de transj'orma¢o, sao Paulo, 1900-1930. Sp, ECA-USP. Dissertal'iio de mestrado, 1988.

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34 Os donos da voz

quente exigencia de conhecimento tecnico acumulado, em algum momento da reprodu~ao. Esse conhecimento pode estar tanto na capacidade de executar as can~oes nos instrumentos musicais como, quando surgem as grava~oes, concentrado no formato em que e registrada a musica, no software e no aparelho reprodutor de seu som, 0 hardware.

Neste sentido, 0 aparecimento do fon6grafo e do gramofone constituiu urn cenario para a producao industrial de musica que, de certa forma, mantem-se nos dias atuais, ou seja, urn seculo depois. Consideremos primeiramente as rela~6es existentes na produ~ao do software e do hardware e a consequente concentracao da producao nas maos de algumas empresas, como pontos de partida. 0 fon6grafo, maquina de gravar e reproduzir sons a partir de microperfuracoes feitas em urn cilindro, nao foi concebido para reproduzir gravacoes musicais33. No entanto, foi como maquina de entretenimento que ele se difundiu, comecando por sessoes em salas de audicao nos Estados Unidos; ali os fon6grafos funcionavam com moedas, prenunciando outro neg6cio lucrativo dessa industria por grande parte do seculo XX: as jukeboxes 34.

Mas as dificuldades da reproducao em serie dos cilindros limi­taram a expansao do fon6grafo. Assim, ganhou destaque 0 disco de Berliner (78 rotacoes), que permitia a reproducao de grandes quanti­dades, a partir de matrizes gravadas3', reproduzidas pelo gramofone, possibilitando que em 1900 a Berliner Gramophone Company, of ere-

33 Como encontramos em varios autores, Edison, que concebeu 0 fon6grafo em 1878, tinha em mente a otimiza~ao do trabalho nos escrit6rios. Attali, 1977, p. 153, cita artigo de Edison em que este comenta com detalhes as U505 posslveis de sua inven~ao.

34 Eduardo Vicente aponta que tambem 0 mercado de cilindros ja apresentava urn tipo de segmentat;ao. ao oferecer "(...) musica 'Sentimental', 'Tropical', 'Comica', 'Irlandesa' e 'Negra ..... Op. cit., p.14. Sabre as jttkeboxes ver, igualmente, PAIANO, 1994, p. 182-184.

35 Patrice Flichy, tanto na obm citada quanta em Las multinacionales del audiovisual. Barcelona: Gustavo Gili, 1982, insiste na importAncia dos usos sociais das tecnologias como condi~o para consolidarem-se como elementos culturais. Existiria uma distancia entre uma inven~o, tal como ela foi concebida, e as reais possibilida­des e condi~oes hist6ricas de sua adequa~ao as sociedades. Assim, as m<iquinas de grava~ao demandariam urn tempo maior para adaptarem-se. Por outro lado, ja era amplamente difundida a prtitica da dan~ e do canto, de forma coletiva, dar 0

sucesso de maquinas como 0 gramofone, que se Iimitavam a tocar.

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"}

Industria fonografica: pressupostos te6ricos e hist6ricos 35

cesse urn catalogo de 5 m\ tltulos36 e em 1903 declarasse lucros de US$ 1 milhao 37.

Do inicio do seculo XX ate meados da decada de 30, as gran des companhias fabricantes de cilindros e discos incumbiram-se, tambem, dos aparelhos leitores. Eram cinco as empresas dominantes no cenario internacional: no setor de cilindros Edison-EUA e Pathe-Franca; no de discos Victor Records-EUA e Gramophone-Inglaterra, Alemanha e Franca, enos dois setores, Columbia-EUA'·. Com 0 desaparecimento do fon6grafo e dos cilindros, as empresas que os fabricavam se adaptaram rapidamente a producao do- gramofone e dos discos, com excecao da Companhia Edison, que se retirou do mercado. 0 mercado estava em franca expansao, e em 1913 a Victor Records declarou lucros de US$ 13.940.203, US$ 21.682.055 em 1914 e US$ 37 milhoes em 1919, nos Estados Unidos, para urn mercado mundial avaliado em US$ 159 milhoes 39•

A decada de 20 traz 0 advento das gravacoes eletricas, que substitulram os aparelhos mecanicos; "(oo.) esta foi a base tecnol6gica para todos os grandes desenvolvimentos posteriores, tanto no que se refere it mudanca na velocidade de rotacao dos discos, quanta a cria­cao da estereofonia e dos recursos do high fidelit)l'''.

As disputas entre as empresas pelo monop6lio de mercado do hardware-software, determinaram quem realmente participava deste mercado mundial, principalmente entre as duas grandes guerras. 0 cenario e tornado por uma sequencia de fusoes que expressam, elas mesmas, a interacao da producao dos formatos e de seus reprodutores. Assim, em 1929 a Victor Records passa para 0 controle da RCA e a Columbia para 0 da CBS. Na Inglaterra, a parte europeia da Columbia alia-se a Pathe em 1928 e depois a Gramophone inglesa, em 1931, dando origem as Electric Music Industries, a EM!. Em 1937, a Deutsche Grammophon associou-se a Telefunken, sendo adquirida posterior­mente pela Siemens, fazendo nascer a Polydor. A filial francesa da Gramophone passou para 0 controle da Philips, empresa do setor

36 FLlCHY, 1982, p. 23. 37 PAIANO, 1994, p. 182. 38 FLlCHY, 1982, p. 23. 39 I'AIANO, 1994, p. 182. 40 VICENTE, 1996,. p. 17.

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36 AS donos da voz

elt~trico, produtora de hardware, originando a P.honogram, que se torna 0 seu bra~o produtor de software, reproduzmdo, como em ou­tras, a tendencia apontada. 0 quadro abaixo nos ajuda a visualizar essa primeira serie de fusoes:

Quadro I. FUSOES NA INDUSTRIA FONOGAAFICA - 1928-1945

Ano Fusoes Empresas originarlas

1928-31 Columbia/Europa + Path;; + EM! Gramophone/UK

1929 Victor + RCA RCA-Victor

1929 Columbia/USA + CBS CBS

1937 Deutsche Grammophon + Polydor Telefunken + Siemens

1945 Gramophone/Fran~a + Philips Phonogram

Fonte, FLICHY, 1982, p. 23.

De 1948 em diante, assistimos a uma sequencia de inova~oes tecnol6gicas. 0 aparecimento do micro-suko, alem de promover urn depuramento do processo de grava~ao e reprodu~ao agora ja eletri­co, permitiu que 0 tempo de dura~ao do disco Fosse dilatado, d.e quatro para trinta minutos, possibilitando ainda, no universo d~ musI­ca popular, a institui~ao da can~ao de tres minutos como pad~o. ?~s varios tipos de micro-suko que aparecem no mercado, foram mstltul­dos 0 de 33 rota~oes por minuto, proposto pela CBS e 0 de 45, da RCA. A concorrencia entre os dois tipos definiu a seguinte separa~ao: os de 33 rpm foram destinados a musica erudita e os de 45 para a musica popula"' l . Nos anos seguintes duas empresas passam a domi­nar a produ~ao de hardware (sem, no entanto, abandonar a de software): Philips e RCA. Como consequencia do desenvolvimento da produ~ao, ocorre a separa~ao entre a produ~ao dos equipa~entos leitores e ados formatos/conteudos. Essas esferas se autonomlzaram, na medida em que, consolidadas enquanto produ~ao capitalista, ne­cessitavam, cada uma, acompanhar 0 processo de sofistica~ao e ino-

41 Idem, p. 18.

«J

Industria fonografica: pressupostos te6ricos e hist6ricos 37

I va~ao tecnol6gica, necessario a sua sobrevivencia. No entanto, tal autonomia e relativa, na medida em que os rumos da produ~ao fonografica vao estar sempre em estreita sintonia com suas necessida­des de reprodu~ao tecnica.

A partir desta configura~ao preliminar e possivel afirmar que -remontando a tendencia verificada em seus prim6rdios - na decada de 50 estao lan~adas as bases objetivas para a padroniza~ao da pro­du~ao na industria fonografica mundial, que nao podem ser compreen­didas destacadas do movimento global do desenvolvimento capitalista. Neste sentido, Patrice Flichy nos mostra claramente que na grande industria do entretenimento este desenvolvimento se faz por etapas e leva a processos distintos de intemacionaliza~ao: "A intemacionaliza~ao do produto leva, portanto, a internaci0'1aliza~ao do processo de pro­du~ao e de circula~ao. Esta unifica~ao das normas como condi~ao para a internacionaliza~ao nao e privativa do hardware, mas se en­contra tambem no software. No disco de variedades e entretenimento a can~ao de tres minutos se imp6s de forma universal. As series de televisao europeias adotaram, por outro lado, os padroes de dura~ao americanos"42.

A peculiaridade da expansao da industria fonografica pelo mundo e tratada por Flichy, quando ele examina 0 caminho que a industria do entretenimento faz da exporta~ao a deslocaliza~o. Iniciado na esfera do comercio, 0 transito de normas e produtos sofisticou-se com a instala~ao de filiais de produ~ao das empresas dominantes do setor, em varias partes do mundo. Tais filiais, que 0 autor chama de sucursais, a partir da decada de 70 buscaram criar e alimentar novos mercados, assim como evitar certos controles aduaneiros e reduzir custos de produ~ao. 0 baixo pre~o unitario do disco (comparado com 0 de outros setores da industria cultural, como 0 cinema), aliado a grande fertilidade musical de muitos paises, facilitou a expansao das filiais sucursais. Sediadas em grandes e medios mercados do mundo, essas empresas dinamizam-se distribuindo uma produ~ao fonografica internacionalizada e realizando consideravel investimen­to na produ~ao enos mercados locais. Por isso, Flichy qualifica as

42 FLICHY, 1982, p. 181. 0 autor diz, no mesrna texto: "A internaciona1iza~o das normas converte em id@nticos e iguala as caracterisdcas dos produtos em todos os pafses", p.l77.

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38 Os donas da voz

multinacionais do disco como discretas. Ao mimetizarem-se nas reali­dades e na produ~ao cultural nacionais, essas empresas "eufemizam" a sua atua~ao como agentes externos, conquistando espa~o para sua legitima~ao43 .

A prospec~ao de mercados locais firmou-se como forte estrate­gia para a expansao da industria fonografica mundial. No entanto, vale notar que essa explica~ao e evocada tambem pela industria em sua pr6pria defesa, quando sua expansao e qualificada de imperialis­ta ou neocolonialista". Renato Ortiz, ao analisar a constitui~ao da industria cultural brasileira, mostra como os estudos sobre 0 imperia­lismo cultural ou sobre a dependencia cultural produzidos, por exem­plo, na America Latina nos anos 70, deixam de perceber as especificidades do desenvolvimento capitalista nas sociedades nacionais quando centralizam a analise na expansao do capitalismo norte-america­no". Se a 16gica do modo de produ~ao e global, sua dissemina~ao pelo mundo vai tornando e fazendo usa de referencias e interesses locais. Se, por um lado, ao instalarem-se em varios paises do mundo as transnaciDnais da cultura veiculam mercadorias produzidas em suas matrizes, por outro, 'e fato que artistas locais sao contratados e sua produ~ao e fortemente estimulada. Como entender entao a rela~ao que se estabelece?

E 0 mesmo Renato Ortiz quem amplia 0 foco da anlilise do problema e mostra como as sociedades do capitalismo periferico vao, gradativamente, inserindo-se na 16gica da modernidade, para a qual a constitui~ao de um mercado nacional e internacional de bens cultu­rais e elemento fundamental. Opera-se, entao, um ajuste, baseado no citado processo de internacionaliza~ao das normas, possibilitando que

43 Idem, p. 197. 44 Vee, por exemplo, LAING, D. "The music inrlustly and the 'cultural imperialism'

thesis". In: Media, culture and society, vol. 8, 1986, p. 331-341, London, Beverly Hills e Nova Delhi: Sage. 0 autor questiona a lese do imperialismo cultural, chamando a aten~ao para "as caminhos pelos quais a audiencia e as musicas de paises de fora do centro anglo-americano tern Feilo usc da musica 'imperialista'" (p.- 340), assim como aponta a pirataria 05% do mercado de fitas cassetes em alguns paises perifericos) como urn fator de desestiffiulo par", 0 investimento em produtos iocais. Laing, que parece suspeitar de urn imperialismo as avessas, de­fende 0 seu ponto de vista a partir de urn referencial bastante limitado.

45 ORT[Z, R. A mqderna tradifao brasiletra. SP: Brasiliense, 1988, principalmente p. 182-206.

"J

Industria fonografica: pressupostos te6ricos e hist6ricos 39

tais paises recebam e difundam Bt0dutos. Nesse sentido, 0 desenvol­vimento da industria cultural etii tais paises traz um elemento novo para a reflexao de sua cultura - considerada, are entao, da perspecti­va do nacional e do popular", objeto de defesa dos te6ricos da de­pendencia cultural -, baseada na produ~ao internacional-popular47•

No que diz respeito a industria fonografica, torna-se importante res­saltar que, independentemente do fato de ela veicular musica estran­geira ou estimular a produ~ao de mercadorias locais, e necessario analisar a maneira como 0 faz, como prospecta e atua nos mercados locais, como faz suas escolhas, a forma Como realiza, veicula e difun­de a produ~ao.

A consolida~ao de um mercado internacional-popular de bens culturais e pressuposto fundamental para que, efetivamente, se reali­ze a intensifjca~ao do processo de mundializa~ao da cultura a que assistimos, neste final de seculo. Tal processo, como propoe Ortiz, deve ser entendido como expressao do universo simb6lico e cultural pr6prio da era da globaliza~ao economica e social'". 0 capitalismo, que como modo de produ~ao universal tem apresentado diferentes configura~oes, chega ao final do seculo XX em meio a um requintado processo de ajuste que visa a sua pr6pria manuten~ao. Nesse sentido, em varias regioes do mundo vao sendo engendradas alternativas aos problemas cronicos postos a reprodu~ao ampliada do capital, sobre-

46 Segundo Ortiz, 0 advento da industria cultural despolitiza a discussao e a analise sobre a cultura vista da perspectiva do nacional·popular: "No caso da rnoderna sociedade brasiJeira, popular se reveste de urn outro Significado, e se identifica ao que e mais consumido, podendo inclusive estabelecer uma hierarquia de popu­laridade entre diversos produtos oferecidos no rnercado". Idem, p. 164.

47 Ibidem, p. 205. 48 ORTIZ, R. Mundtalizafiio e cultura. 2a edic;ao. SP: Brasiliense, 1994, p. 29. Em

ADORNO e HORKHEIMER. DE, p. 113, encontramos 0 seguinte trecho: "Os de­corativos predios administiativos e os centros de exposie;ao industriais mal se distinguem nos pafses autoritarios e nos demais parses. Os edificios monumentais e lurninosos que se elevam por toda parte sao os sinais exteriores do engenhoso planejamento das corpora~oes intemacionais, para 0 qual ja se precipitava a livre iniciativa dos ernpresarios, cujos monumentos sao os sombrios predios residenciais e comerciais de nossas desoladoras cidades. Os predios mais antigos em torno dos centros urbanos ja parecem slums e os novos bangalows na periferia das cidades ja proclamam, como as frageis constru~oes das feiras internacionais, 0

louvor do progresso tecnico e convidam a descarta-Ios como latas de conservas ap6s urn breve periodo de usc". .

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40 Os donas da voz

tudo os relativos ao custo do trabalho, ao controle do Estado e ao desemprego estrutural. Ao lade de medidas economicas pragmaticas, a sociedade civil mundial49, em ritmos diferenciados, vive mudan~as em sua organiza~ao social, polltidl e cultural que, por outro lado, ainda convivem, dialogam e se chocam com situa~oes locais diferen­ciadas. A revolu~ao tecnol6gica, a informatica, a automa~ao; a mu­dan~a nas rela~oes economicas mundiais, 0 aumento do poder das empresas transnacionais, a organiza~ao de blocos regionais de livre comercio e de sistema financeiro pr6prio, a concentra~ao e centrali­za~ao de capitais; 0 neoliberalismo como ideario legitimador e a institui~ao do ingles como idioma comum: "Todas essas caracteristi­cas da globaliza~ao, configurando a sociedade universal como uma forma de sociedade civil mundial, promovem 0 deslocamento das coisas, individuos e ideias, 0 desenraizar de uns e outros, uma espe­cie de desterritorializa~ao generalizada"50.

Ora, as mercadorias culturais que sempre apresentaram grande capacidade de deslocar-se e, por suas caracteristicas pr6prias, incrementam intensamente 0 sistema mundial de trocas simb6licas, tern, coin 0 processo de globaliza~ao, 0 seu transito mundial agilizado e intensificad05l • Por meio das tecnologias digitais e da telematica, as fronteiras sao expandidas e as possibilidades de deslocaliza~ao no espa~o e no tempo, multiplicam-se. Produtos, imagens, informa~oes, conhecimentos, habitos, valores, sao amplamente compartilhados, che­gando a lugares antes distantes e isolados. Da mesma forma, se en­curtam as distancias e 0 espa~o mundial se restringe por meio da difusao de uma racionalidade tecnica comum, unica, num movimen­to permeado de contradi~oes. Assim, tal racionalidade acaba por con­ferir a tudo urn ar de semelhan~a, ao mesmo tempo em que sao ressaltadas a diversidade e a variedade dos elementos.

Os sistemas produtivos sao igualmente transforrnados, fragmen­tados, desterritorializados, e os mercados, fortemente segmentados. As novas tecnologias permitem a autonomiza~ao de etapas inteiras da

49 A expressao e utilizada por Octavia Ianni, para referir-se a sociedade global. In: A soctedade'g/obat. Rl: Civiliza~ao Brasileira, 1992, p. 59. Ideia presente tambem em ORTIZ, 1994, capftulo II, p. 35-69.

50 IANNI, 1992, p. 58-59. 51 Torno como base para a rninha argumenta~ao as obras citadas de ORTIZ, 1994 e

IANNI, 1992.

. ''J

Industria fonografica: pressupostos te6ricos e hist6ricos 41

! produ~ao de bens, favorecendo a terceiriza~o e a busca de novos tipos de produtos e nichos de mercado". 0 discurso dominante evoca o advento da descentraliza~ao, da inclividualidade, da democraciaS3•

No ambito da industria cultural, 0 conjunto desse processo pro­move mudan~as de propor~oes jamais observadas. Os artistas, agen­tes da cria~ao artistica, aproximam-se do processo de produ~ao, antes intermediado e realizado pela grande industria que, na atual conjun­tura, passa a ocupar-se especialmente das eta pas de gerenciamento do produto, marketing e difusao. 0 mercado come~a a oferecer uma profusao de estilos, subgeneros e mesclas de toda sortes,. A tendencia se verifica em varios setores, tais como: televisao, publicidade, mer­cado editorial, cinema e musicass. "Mas se a ideologia do p6s­industrialismo aponta para a autonomia local, para a individualidade do consu.midor, a dinamica economica revela outros aspectos. ( ... ) No lugar da fragmenta~ao, observa-se uma crescente concentra~ao das firmas tl56,

No que diz respeito a industria fonografica, e possivel afirmar que a atual mudan~a e especialmente observada na intensidade do movimento de concentra~ao, considerando-se a configura~ao ja co­nhecida. As empresas que detem, atualmente, mais de dois ter~os

52 Cf. HARVEY, D. Condi~iio p6s-moderna. 2' ed. SP, Loyola, 1993, tradu~ao de AdaH U. Sabral e Maria Stela Gon~alves, especialmente a Parte II, p. 115-184.

53 ORTIZ, 1994, p. 160-69. 54 u A acumula~ao flexivel foi acompanhada na ponta do consumo, portanto, por

uma aten~ao muito maior as modas fugazes e pela mobilizac-lo de tados OS artiffcios de indu~ao de necessidades e de transforma~ao cultural que isso impJi­ca. A estetica relativamente est~vel do modemismo fordista cedeu lugar a todo 0

fermento, instabilidade e qualidades fugidias de uma estetica p6s-modema que celebl"d a diferen~a, a efemeridade, 0 espet~culo, a moda e a mercadifica~o de formas culturais." HARVEY, 1993, p. 148.

55 Cf. HESMONDHALGH, D. "FleXibility, post-Fordism and the music industries". In: Media, culture and society. Londreg, Sage, vol. 18, 1996, p. 469-488. Em sua an~lise, 0 autor utiliza elementos do debate existente sobre a terceiriza~o na industria cinematografica americana.

56 ORTIZ, 1994, p. 163. De agosto de 1995 a agosto de i996, a imprensa anunciou, pelo menos, quatro super-fusoes envolvendo empresas dominantes no setor do entretenimento: "NBC e Microsoft inauguram 1V de notkias" ('Folba de S.Paulo, 16-07-95, p. 1-13); "Westinghouse compra CBS (Television)" (Folha de S.Paulo, 02-08-95, p. 2-7); "Walt Disney compra a ABC" (Folha deS.PauJo, 13-08-95, p. 5-10) e "Time warner compra TBS" (Folha de S.Paulo, 18-07-96).

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42 AS dones da voz

do mercado mundial de discos" sao a Sony Music, empresa trans­nacional de origem japonesa da area de produtos eletro-eletranicos, a Sony Corporation que ha alguns anos comprou 0 setor fonografico da rede CBS (uma das pioneiras do setor); a PolyGram, antigas Phonogram e Polydor, que por sua vez sucederam a Gramophone francesa e a alema, hoje bra~o fonografico da Philips, igualmente uma empresa transnacional do setor eletro-eletranico, administrada basicamente por capital holandes e alemao; a Warner Music, cujo mao fonografico integra, juntamente com 0 cinema, a televisao e a midia impressa, um dos maiores conglomerados americanos produ­tores de mercadorias culturais, 0 Time-Warner; a EMI, de origem inglesa, que desde 1969 esta reunida com a nao menos tradicional Odeon, e a BMG-Ariola, que por seu turno e 0 bra~o fonografico do grupo alemao Bertelsmann, que atua na area de televisao, edi~ao e comercializa~ao de livros (Circulo do Livro assim como no de fabri­ca~ao de compact-discs). Esse cenario e acrescido de duas compa­nhias de menor porte, mas fortemente atuantes em escala mundial: a americana MCA-Geffen que, juntamente com 0 selo Motown, em 1990 foi adquirida pelo grupo Matsushita, e a inglesa Virgin. Todas as cinco primeiras estao produtivamente instaladas no Brasil. A MCA acaba de faze-Io e a Virgin e representada no pais pela EM!. a movimento de concentra~ao tragou para dentro do grupo das transnacionais a unica grande empresa brasileira produtora de dis­cos: em 1993 a Warner comprou a Continental. Vejamos 0 segundo quadro de fusaes58:

57 A medida foi apresentada por LAING, 1986, p. 334, e comparada a varias outras, inclusive mais atuais, e verifica~se a manuten~ao do percentual em reiacao ao mercado e em rela~ao ao tempo, tarnanda possivel a conclusao de que a flexibiliza~o da produ~ao e do mercado de discos nao alterou esse patamar.

58 0 quadro FusOes na industria fonografica-II foi elaborado a partir de dados en­contrados nas varias fontes citadas.

.')

Industria fonogl'iifica: pr7ostos te6ricos e hist6ricos 43

Quadro II - FUSOES NA INDUSTRIA FONOGAAFICA - 1969-93

Ano FusOes Empresas originals

1969 Odeon + EM! EM! 1978 Polydor + Phonogram PolyGram 1987 Bertelsmann + Ariola + RCA BMG-Ariola 1987 CBS Discos+ Sony Corp. Sony Music

1991/93 Time-WarnerIWEA+ Warner Music

Toshiba + Continental

A concentra~ao da produ~ao no ambito de poucas empresas e a centraliza~ao das normas e decisoes tem sido apontadas, por alguns analistas, como caracteristicas pr6prias a industria fonografica mundial. Peterson e Berger5• referem-se a ocorrencia de ciclos de concentra­~ao e distensao, para explicar 0 movimento. Por outro lado, LopesGo

mostra que nao e a concentra~ao que varia, e sim "0 siste'rna de desenvolvimento e produ~ao usado pela grande companhia" que, em determinados momentos, incorpora a diversidade excedente, como estrategia de controle do mercado, por meio de um "sistema aberto". Christianen6! constata, a partir da fragmenta~ao da produ~ao, um au­mento da pamcipa~ao, no mercado, de pequenas empresas, as indies. Apesar de realizarem intense trabalho de "gesta~ao" do produto, tais empresas enfrentam grandes dificuldades na area de reprodu~ao, marketing e distribui~ao. Verifica-se entao um procedimento inedito: a grande companhia passa a licenciar 0 produto gerado por um selo independente, incumbindo-se dessas outras etapas.

De fato, a terceiriza~ao da area de amstas e repert6rio parece mostrar-se como tendencia ascendente, sobretudo nos paises do eixo Europa-EUA. Mas torna-se necessario advertir que, se por um lade a fragmenta~ao e 0 acesso as tecnologias de produ~ao podem interferir

59 PETERSON, R. e BERGER, D. "Cycles in symbol production: the case of popular music". American Sociological Review, vol. 40, abril, 1975, p. 158-173.

60 LOPES, P. "Innovation and diversity in the popular music industry, 1969 (0 1990". In: American Sociological Review. vol. 57, n2 I, 1992, p. 56-71.

61 CHRISTIANEN, M. "Cycles in symbol production? A new model to explain concentration, diversity and innovation in the music industry". Popular music, vo1.14-1, Cambridge University Press, 1995, p. 55-93.

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44 Os donos da voz

positivamente na qualidade do produto, por outro, as grandes empre­sas continuam a operar uma rigida triagem no processo de escolha dos produtos que serao conduzidos ao grande mercado. Como vere­mos adiante, a industria fonografica trabalha a partir de um espectro de possibilidades tecnicas estritamente definido (em termos de forma e de conteudo), limitando qualitativamente a flexibilidade da produ-~ao e a segmenta~ao do mercado. .

Outro aspecto do processo de concentra~ao pr6prio da indus­tria fonografica (extensiva a do entretenimento), neste fim de seculo, diz respeito a retomada estrategica da intera~ao na produ~ao de hardware e software. A rapidez com que as novas tecnologias vao repondo produtos no mercado, os avan~os na area das tecnologias de grava~ao, a. miniaturiza~ao dos formatos e reprodutores, a revolu­~ao trazida pelas tecnologias digitais, a populariza~ao do compact­disc, assim como a busca de novos suportes como 0 mini-disc (MD) e o cassete digital (DCC), nos remetem a situa~ao primordial do desen­volvimento da industria fonografica, quando as empresas se ocupa­yam das duas dimensoes da produ~ao.

T~l contexto, que tem grande proximidade com 0 conceito de industria cultural aqui enunciado, evidencia, mais uma vez, a posi~ao central que a tecnica adquire no conjunto do processo. Primeiramente, como produto para consumo. Ja em seu tempo, 0 fon6grafo e 0 gramofone despertaram interesse enquanto tecnica,. uma vez que ouvir musica reproduzida mecanicamente nao tinha se tornado um habito e nem existia no mercado uma variedade de produtos que permitisse desenvolve-lo62. A maquina era 0 que in­teressava. Da mesma forma, a tecnica e a grande vedete do merca­do globalizado, conferindo distin~ao para 0 seu consumidor. Dis­seminada nas mais variadas esferas da vida social, a racionalidade tecnica determina babitos, processos de trabalho e de conheci­mento, intercambios e consumo culturais. Redes, softwares, luga­res, comidas, marcas, modas: e 0 mundo da diversidade produzido do mesmo jeito e com 0 mesmo objetiv063• Entretanto, na ponta do

62 Como vemos em VICENTE, 1996, p. 16. 63 Vicente tnlla da quesrn.o como sendo a "padroniza~ao dentro cia segmenta.yao",

op. cit., p. 85. ORTIZ, 1994, analisa esse processo no Capitulo V: "Os artifices mundiais cia cultura", p. 147-182.

"J

Industria fonografica: pressupostos te6ricos e hist6ricos 45

consumo, estao a~ formas, os generos, os estere6tipos e nao os conteudos e seus Oesdobramentos6'.

A expansao da cultura e da sociedade administradas leva a racionalidade tecnica a rincoes perdidos do globo, difundindo a l6gi­ca da mercadoria, transformando sua produ~ao local. Varios autores se empenham em mostrar os beneficios socioculturais disseminados por esse moviment06,. 0 argumento basico e 0 de que, apesar do seu carater de mercadoria, os produtos culturais ha muito deixaram de obedecer a sua l6gica, transformando-se, muitas vezes, em instru­mento de conscientiza~ao66. No entanto, a complexidade do proble­ma nao nos permite desconsiderar 0 fato de que, a esta altura dos acontecimentos, a industria cultural "nao e mais obrigada a visar por toda parte aos interesses de lucro dos quais partiu,,6', dai 0 requinte e a sofistica~ao que sua a~ao adquire. A diversidade pr6pria a mundia­liza~ao, antes de representar a nega~ao das particularidades da indus­tria cultural, na verdade e tambem seu produto. A analise do proble­ma nao pode prescindir, enta~, de suas varias dimensoes.

3. Sobre miisica popular

Tendo insistido na impormncia da analise do modo como a grande industria fonografica mundiaI produz e oferece ao mercado os produtos musicais, gostaria de apresentar alguns elementos que considero funda­mentais para 0 estudo desse modo de produ~o. 0 titulo desta se~o traz, primeiramente, algumas referencias. 0 universo do mercado de musica e,

64 "A compulsao permanente a produzir novos efeitos (que, no entanto, permane­cern ligados ao velho esquema) serve apenas para aumentar, como urna regm suplementar, 0 pader da tradicao ao qual pretende escapar cada efeito particu­lar". In: ADORNO e HORKHEIMER, DE. p. 120.

65 Como, por exemplo, em GAROFALO, R. "Whose world, what beat: The transnational music industry, identity and cultural imperilism". Music of the World. Journal of the Institute" for Traditional Music (IITM). Berlim, nO 35 (2), 1993.

66 Como em PUTERMAN, P., 1994. A teoria da recep~ao tambem parece partir desse pressuposto, como encontramos, por exemplo, em SOUSA, W. M. (org.). Sujelto, a /ado oculto do receptor. sp, ECA-USP/Brasiliense, 1995.

67 ADORNO. T. W. "A industria cultural" UCi. In, 1beodor W. Adorno. sp, Atica. Grandes Clentlstas Socials, n. 54. Org. Gabriel Cohn, 1986, tradu~ilo de Am@a Cohn, p. 92-99, cita,ao da p. 94.

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46 AS donos da voz

quase que completamente, tomado pela musica popular de massa, a mu­sica pop, e 0 popular traz 0 refendo sentido da populandade adquirida atraves do mercado. Assim, a analise do processo de produ¢.io da grande transnacional do disco vai, certamente, nos levar a produ¢.io de musica popular, seja qual for seu genero ou estilo. Mesmo grande parte do que se produz no segmento de musica erudita, apesar das pecuUaridades que possa apresentar do ponto de vista da produ¢.io, nao se encontra tlio distanciada, do universo do pop, considerando 0 seu envolvimento com todo 0 processo tecnico de distnbuifao e difusao, propnos a grande com­panhia fonografica. ponanto - e ao falarmos de musica erudita nos aproxi­mamos decisivamente do assunto - gostana de reafirmar 0 carater funda­mental que tem a contribuifao de T. W. Adorno para a compreensao da contemporaneidade da produ~ao de mercadonas musicais.

Todavia, parefo percorrer 0 sentido contcirio daquele seguido por boa parte das analises sobre cultura na sociedade atual, para as quais 0 termo "adomiano" pode ser encontrado como sinonimo do que esta definitivamente ultrapassado'". Preocupa-me enormemente o fato de que as grandes mudanfas que estlio sendo observadas no cenario cultural estejam definindo um tom de eufemismo e de encan­tamento a muitos estudos. Nao se trata, absolutamente, de alimentar posturas pessimistas ou otimistas, como se 0 pensamento estivesse condenado a variar sempre entre esses polos opostos. Para alem da .necessidade de rotulafoes, trata-se de ten tar apreender 0 problema da maneira mais ampla posslvel69 .

Assim, a afumafao de uma nova realidade no panorama de produ­¢.io de musica industrializada, antes de distanciar-nos de referenciais te6n­cos ja tornados classicos, permite que tomem grande sentido aqueles, tais como os de pseudo-individua¢.io, estandardiza¢.io e repeti¢.io, desenvol-

68 Para apresentar urn exemplo: ao fazec urn comentario sabre urn livre que analisa rela~oes entre juventude e televisao no Mexico, J. MARTIN-BARBERO afirma: "Interessante que 0 livro come~a estudando as industrias culturais, mas nao no velho sentido apocaHptico, adorniano, e sim a industria cultural de nOBsas socie­dades, 0 industrializar esses conhecimentos". cr.: "A America Latina e os anos recentes: 0 estudo da recepcao em comunica\=3.o social". In: SOUZA, M. W. (arg.) Sujeito, 0 lado oculto do receptor, op. cit., p. 39-68. A cita\=ao e da p. 57.

69 Urn precioso exemplo do imbricamento existente entre posicoes metodol6gicas e suas conseqUencias poli'ticas podemos ver em ADORNO, T. W. "Televisao e For­mar;ao". In: Bdttca~ao e emancipa~ao. RJ: Paz e Terra, 1995, traduc;ao de Wolfgang Leo Maar, p. 75-95.

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Industria fonografica: pressupostos te6ricos e hist6ricos

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vidos por Adorno nao somente em seu estudo sobre a musica popular, mas em outros, como aquele em que trata da regressao da audi¢.io70. Cabe aqui uma observa¢.io inicial: considero que 0 autor, ao contrapor a musica popular a mlisica erudita (que chamou de .em e com a que tinha grande proximidade, inclusive como compositor), reuniu elementos para poder melhor definir a primeira e nao, como querem alguns cnticos, simples­mente se utilizou de referenciais da alta cultura para entender a musica popular. A definifao e 0 desenvolvimento de tais conceitos possibilitou que se efetivasse uma complexa explora¢.io tanto dos meandros como da totalidade da produ¢.io de mercadonas musicais. Seu alcance e capacida­de explicativa tornam extremamente atual um estudo realizado nos anos 40. Gostaria, entlio, de salientar alguns pontos desse estudo.

Da referida comparafao, quero destacar um unico eiemento: a importancia da obra musical como um todo e 0 lugar ocupado pelos detalhes. Na musica seria, "cada detalhe deriva de seu sentido musi­cal na totalidade concreta da pefa, que, em troca, consiste na viva relas;ao entre os detalhes, mas nunca na mera imposis;ao de um es­quema musical'>71. Na musica popular, 0 todo so tem sentido enquan­to formula previamente estabelecida, destacado da propria experien­cia musical. 0 detalhe toma para si a funfao de distinguir uma pep da outra, sem ter, no entanto, nenhuma relas;ao especifica com elas, podendo ser, em cada uma, fadlmente substitulvel.

Esse padrao elementar, caracterfstico da musica popular, foi se estandardizando a partir de um processo competitivo, por meio da imitafao de canfoes que se tornavam grandes sucessos. Esses sucessos e suas formulas foram se "cristalizando" em standards, que por sua vez foram "congelados" pelas condifOes centralizadas de Produfao. Assim, os modelos standards sao, freqiientemente, revisitados (pelos chama­dos revivals) e recebendo uma nova roupagem poupam do desgaste as formulas conhecidas. Por outro lado, a audifao do standard corresponde uma maneira preestabelecida de ouvir, uma vez que 0 esquema reitera­do e pre-digerido e, ele mesmo, escuta pelo ouvinte.

Mas, como 0 sempre igual acaba por nao comover, 0 processo de pseudo-individuafao preenche a formula com detalhes, com efei-

70 ADORNO. SMP. e ADORNO. FMRA. 71 ADORNO. SMp, p. 117. 0 autar, no entanto, admite a existencia da "rna musica

seria", que pode obedecer a esquemas tao rigidos quanta a popular.

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48 Os donos da voz

tos, que garantem lis can~oes, uma aura de particularidade, de referen­cias especificas aos indivlduos. Mas e mais que isso: "P~r pseudo­individua~ao entendemos 0 envolvimento da produ¢o cultural de massa com a aureola da livre escolha ou do mercado aberto, na base da pr6pria estandardiza¢o"". Desta forma, os improvisos, os desvios, as inova~oes, sao trazidos de volta a norma e oferecidos como possibili­dades desta ". Os efeitos previstos fornecem seguran~a 11. audi~ao e ao consumo; garantem.a sensa~ao de satisfa~ao, de proximidade, a musi­ca soa como natural. Ao contrario de uma simplicidade exagerada, as can~oes devem ser ricas em detalhes e cita~oes.

A repeti~ao garante a aceita~ao do material, estendendo a difu­sao 0 que ja foi repetido no processo de produ~ao. A divulga~ao repete, insistentemente, a f6rmula padronizada, favorecendo a cons­titui~ao de habitos de audi~ao. "A repeti~ao confere ao hit uma im­portancia psicol6gica que, p~r outro lado, ele jamais poderia ter"", tornando-o pr6ximo, conhecido, reconhecivel. Por outro lado, ao .perceber que a. can~ao e repetida varias vezes no radio, 0 ouvinte e levado a pensar que ela ja e urn sucesso, e 0 referendo e ainda suficien­temente reiterado pelo locutor ou disc-j6quei: "0 reconhecimento s6 e socialmente efetivo quando lan~do pela autoridade de uma agen­cia poderosa":" Pelo processo, transforma-se a repeti~ao em reco­nhecimento e este, em aceita~ao. 0 reconhecimento perde sua posi­~ao de meio para 0 conhecimento, para tornar-se urn fim'·. Todo 0

72 Idem, p. 123. 73 0 jazz foi urn dos objetas da analise de Adorno, como exemplo cia estandardiza~ao

e da pseudo-individua~ao. A intensidade alcan~ada pela expansao e consolida­~ao da estandardizacao musical e seus desdobramentos talvez possa explicar 0

fatc de 0 jazz ter se tornado, nos dias de hole, uma especie de musica seria, considerada de diffcil assimila~ao.

74 ADORNO. SMP, p. 125. 75 Idem, p. 135. 76 Ibidem, p. 125 e 130-31. EGO, 1994, p. 13, analisando a repeti!,lio na produ!,lio cultural

des mass media e citando 0 exemplo do romance policial. aponta que 0 leiter compf".t o livro exatamente por conhecer, M muito, tado 0 esquema pelo qual a hist6ria se faz: "lgnorar a identidade do culpado toma--se urn elemento anexo, quase urn pretexto". No entanto, Eco cia uma dimensio cUferente ~ analise cia repeti~, quando investiga sua presen~ no mundo cia arte, sobretudo aquela peculiar ao p6s-modemismo. Ques­tiona se a repeti~ nao selia um tra{X> comum a toda hist6ria da humanidade, conside­rando-se a hip6tese de conhecennos apenas trechos dessa hist6ria.

Industria fonografica: pressupostos te6ricos e hist6ricos 49

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esfor~o empreendido pelo ouvinte e orientado para que ele identifi­que 0 que acaba de ouvir com 0 que ja conhece e, a partir da identi­fica~ao de tal processo como coletivo, tambem se reconhep nele. A reitera~ao constante garante estabilidade suficiente para que a situa­~ao se conserve, possibilitando que a musica popular seja objeto de manipula~ao de variados interesses, sobretudo os de mercado.

A promo~ao e 0 componente final para 0 reconhecimento e se efetiva a partir da conexilo entre gravadoras, esta~oes de radio, filmes, imprensa etc. No entanto, a atividade dos jornalistas quando privilegiam a divulga~ao de urn produto em especial nao pode ser chamada de corrup~ao, na medida em que "as pessoas sao compelidas a agir volun­tariamente de modo que s6 se esperaria que elas agissem se fossem pagas para tanto. C .. ) OS jornalistas falam com vozes incorruptas. Uma vez que tenha sido alcan~ado urn certo grau de retaguarda economica na promo~ao, esse processo transcende as suas pr6prias causas e se torna uma for~a social autonoma"". Por seu turno, os empresarios limi­tam-se a dizer que of ere cern "0 que 0 povo quer", considerando a resposta positiva do publico ao esquema proposto. Na verdade, da maneira como e engendrado, 0 processo leva os "consumidores a con­cordarem com os criterios ditados pelos produtores"'8.

Desta forma, considero ja estarmos de posse de urn instigante conjunto de ideias que podem nos auxiliar na analise do objeto. A diversidade, a segmenta~ao, a variedade, a pluralidade enunciadas pela era da mundializa~ao, por mais que tomem uma configura~ao espedfica neste fim de seculo, sao caracteristicas fundantes da in­dustria cultural e do capitalismo global. A novidade esta na radi­caliza~ao de determinados processos, tais como a sofistica~ao da pseudo-individua~ao e da estandardiza~ao, que criam micro-espa­~os autonomos e contudo subservientes 11. norma geral. Diz Adorno: "Para todos algo esta previsto; para que ninguem escape, as distin­~oes sao acentuadas e difundidas"79. "A igualdade dos produtos ofe­recidos, que todos devem aceitar, mascara-se no rigor de urn estilo que se proclama universalmente obrigat6rio; a fic~ao da rela~ao de

77 ADORNO. SMP, p. 129-30. 78 ADORNO. fMRA, p. 177. 79 ADORNO e HORKHEIMER. Dr.; p. 116.

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oferta e procura perpetua-se nas nuan~as pseudo-individuais"so. A difusao, por sua vez, amplia-se e qualifica-se enormemente, mul­tiplicando os canais do grande mercado, pelos quais acabamos por, constantemente, encontrar 0 sempre igual.

80 ADORNO. FMRA, p.174.

Trajet6ria da industria fonografica brasileira: anos 70 e 80

1. Os anos 70 e 0 mercado internacional-popular

Tern grande importancia para 0 entendimento do contexto no qual se consolida a grande industria produtora de discos no Brasil a analise do processo de expansao e desenvolvimento dos meios de comunica~ao de massa, desencadeado no pais a partir de 1964 pelo governo militar. Esse desenvolvimento dos media que, no seu con­junto, pode ser efetivamente observado na decada de 70, e funda­mental nao somente por constituir-se num setor economicamente signifi­cativo, uma vez que 0 crescimento do mercado de bens culturais esta, na maioria das vezes, vinculado ao setor de bens de consumo duraveis. Sua expansao interessava profundarnente 11 ideologia do "desenvolvimento com seguran~a" vigente no periodo'.

Desta forma, 0 Estado brasileiro e 0 realizador, mais uma vez, de uma especie de mocierniztlfiio conseroadora', fornecendo toda a infra­estrutura necessaria 11 implanta~o da industria cultural no pais em nome da Seguran~a Nacional. E de 1965 a cria~ao da Embratel, bern como a vincula~o do Brasil ao Intelsat (sistema internacional de satelites) e de 1968 a constru~ao de urn sistema de comunica~ao por microondas que viabiliza a aproxima~o de todos os cantos do pars. "A ideia de 'integra~o

1 Cf. ORTIZ, R. A moderna tradlfiJo brasilelra, especialmente "0 mercado de bens simb6Iicos", p. 113-145. cr. tambem MENDON<;:A, R. e FONTES, V. HIst6rla do Brasil recente, 1964-1980. SP: Atica, 1988.

2 Expressao utilizada por MARTINS, L. PotltJOir et developpement economique. Pa­ris: Anthropos, 1976, p. 22, inspirando-se na expressao de Barrington Moore para designar 0 processo de 5ubstitui{;ao da economia agrario-exportadora pela indus­trial por meio de urn pacta entre Estado e classes dominantes. Num sentido mais amplo, 0 tftulo do citado livro de Renato Ortiz e rnais do que significativo: A moderna tradifao bras/teira.

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oferta e procura perpetua-se nas nuan~as pseudo-individuais"so. A difusao, por sua vez, amplia-se e qualifica-se enormemente, mul­tiplicando os canais do grande mercado, pelos quais acabamos por, constantemente, encontrar 0 sempre igual.

80 ADORNO. FMRA, p.174.

Trajet6ria da industria fonografica brasileira: anos 70 e 80

1. Os anos 70 e 0 mercado internacional-popular

Tern grande importancia para 0 entendimento do contexto no qual se consolida a grande industria produtora de discos no Brasil a analise do processo de expansao e desenvolvimento dos meios de comunica~ao de massa, desencadeado no pais a partir de 1964 pelo governo militar. Esse desenvolvimento dos media que, no seu con­junto, pode ser efetivamente observado na decada de 70, e funda­mental nao somente por constituir-se num setor economicamente signifi­cativo, uma vez que 0 crescimento do mercado de bens culturais esta, na maioria das vezes, vinculado ao setor de bens de consumo duraveis. Sua expansao interessava profundarnente 11 ideologia do "desenvolvimento com seguran~a" vigente no periodo'.

Desta forma, 0 Estado brasileiro e 0 realizador, mais uma vez, de uma especie de mocierniztlfiio conseroadora', fornecendo toda a infra­estrutura necessaria 11 implanta~o da industria cultural no pais em nome da Seguran~a Nacional. E de 1965 a cria~ao da Embratel, bern como a vincula~o do Brasil ao Intelsat (sistema internacional de satelites) e de 1968 a constru~ao de urn sistema de comunica~ao por microondas que viabiliza a aproxima~o de todos os cantos do pars. "A ideia de 'integra~o

1 Cf. ORTIZ, R. A moderna tradlfiJo brasilelra, especialmente "0 mercado de bens simb6Iicos", p. 113-145. cr. tambem MENDON<;:A, R. e FONTES, V. HIst6rla do Brasil recente, 1964-1980. SP: Atica, 1988.

2 Expressao utilizada por MARTINS, L. PotltJOir et developpement economique. Pa­ris: Anthropos, 1976, p. 22, inspirando-se na expressao de Barrington Moore para designar 0 processo de 5ubstitui{;ao da economia agrario-exportadora pela indus­trial por meio de urn pacta entre Estado e classes dominantes. Num sentido mais amplo, 0 tftulo do citado livro de Renato Ortiz e rnais do que significativo: A moderna tradifao bras/teira.

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nacional' e central para a realiza~o [da] ideologia que impulsiona os militares a promover toda uma transforma~ao na esfera das comunica­~oes"3. Sintonizando uma variada gama de interesses, grupos empresariais de varios setores da industria cultural foram beneficiados, tais como 0

editorial, 0 fonografico, 0 da publicidade e sobretudo 0 da televisao. Portanto, "0 que caracteriza a situa~ao cultural dos anos 60 e 70 e 0

volume e a dimensao do mercado de bens culturais"'. 0 mercado tor­na-se a grande referencia dos rumos da produ~ao e "se aceita 0 consu­mo como categoria ultima para se medir a relevllncia dos produtos culturais"', como jii tive oportunidade de apontar.

Ao lade dos aparelhos de radio, que foram se popularizando no pais a partir da decada de 40, toea-discos e televisores passaram a estar, cada vez mais, presentes nos lares brasileiros: "entre 1967 e 1980 a venda de toea-discos cresce 813%"6; em 1970, 24% dos domicilios bra­sileiros tinham televisa07. 0 setor editorial (basicamente, livros e revistas) tambem foi amplamente beneficiado por pol!ticas governamentais, que favoreceram a importa~ao de equipamentos e a fabrica~ao de papel, incrementando significativamente a produ~ao.

Tabela I. EVOLU<;AO DA PORCENTAGEM DE DOMICfLIOS COM RADIO E TV: BRASIL - 1970-1996

Ano RadIo TV

1970 58.9 24.1

1980 76.2 56.1

1990 84.3 73.7

1992 84.9 73.9

1993 85.1 75.8

1995 88.4 85.1

1996 89.3 86.7

Fonte: M(dia dados, op. cit., p. 73 e 145, com base nos dados do IBGE, PNAD e em estimativas pr6prias.

3 ORTIZ, 1988, p. 118. 4 Idem, p. 121. 5 Ibidem, p. 163 e ,eg'. 6 Ibidem, p. 127. 7 Midia dados. Sp, Grupo de Midi., 1996, p. 73.

Trajet6ria da industria fonografica brasileira: anos 70 e 80 53

Nesse sentido, Ortiz apresenta dados relativos ao cinema e a publicidade, sendo 0 ultimo um setor que tem crescimento muito significativo, uma vez que se relaciona com todos os outros. 0 radio teve sua fase aurea quando concentrou toda a publicidade. A partir da decada de 70, os investimentos na area vao gradativamente diri­gindo-se a televisao (ver grafico a seguir). Como sintomas do boom vivido pelo setor publicitario nos anos 60-70 estao a prolifera~ao, no pais, de agencias de publicidade nacionais e transnacionais, a abertu­ra de cursos universitarios para formar profissionais especializados e regulamentar a profissao, a cria~ao de varios institutos de pesquisa de opiniao e a especializa~ao da publicidade em fun~ao da segmenta~ao da produ~ao de bens culturais8. Portanto, e marcante 0 processo de intera~ao dos media. Numa rela~ao de complementaridade e interdependencia, os varios setores se relacionam e um impulsiona 0

desenvolvimento do outro.

Grafico I. PORCENTAGEM DE INVESTIMENTO PUBLICITAAIO POR MEIO (VIA AGENCIAS): BRASIL - 1963-1988

90

80

70

60

50

40

30

20

10

61% Telelllakl

16% Revistas 14%Jomals 7% ... _

o 3% Out-dOOJ,

., 14 U .. 41' .. .. 70 7t 72 7' 74 'I, ft n '" .,. to .t u ., 14 .. II U ~lnema, OutfO$

Fonte, Midia dados. SP, Grupo de Mldia, 1990, p. 24

8 ORTIZ, 1988, p. 130 e ,eg'.

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nacional' e central para a realiza~o [da] ideologia que impulsiona os militares a promover toda uma transforma~ao na esfera das comunica­~oes"3. Sintonizando uma variada gama de interesses, grupos empresariais de varios setores da industria cultural foram beneficiados, tais como 0

editorial, 0 fonografico, 0 da publicidade e sobretudo 0 da televisao. Portanto, "0 que caracteriza a situa~ao cultural dos anos 60 e 70 e 0

volume e a dimensao do mercado de bens culturais"'. 0 mercado tor­na-se a grande referencia dos rumos da produ~ao e "se aceita 0 consu­mo como categoria ultima para se medir a relevllncia dos produtos culturais"', como jii tive oportunidade de apontar.

Ao lade dos aparelhos de radio, que foram se popularizando no pais a partir da decada de 40, toea-discos e televisores passaram a estar, cada vez mais, presentes nos lares brasileiros: "entre 1967 e 1980 a venda de toea-discos cresce 813%"6; em 1970, 24% dos domicilios bra­sileiros tinham televisa07. 0 setor editorial (basicamente, livros e revistas) tambem foi amplamente beneficiado por pol!ticas governamentais, que favoreceram a importa~ao de equipamentos e a fabrica~ao de papel, incrementando significativamente a produ~ao.

Tabela I. EVOLU<;AO DA PORCENTAGEM DE DOMICfLIOS COM RADIO E TV: BRASIL - 1970-1996

Ano RadIo TV

1970 58.9 24.1

1980 76.2 56.1

1990 84.3 73.7

1992 84.9 73.9

1993 85.1 75.8

1995 88.4 85.1

1996 89.3 86.7

Fonte: M(dia dados, op. cit., p. 73 e 145, com base nos dados do IBGE, PNAD e em estimativas pr6prias.

3 ORTIZ, 1988, p. 118. 4 Idem, p. 121. 5 Ibidem, p. 163 e ,eg'. 6 Ibidem, p. 127. 7 Midia dados. Sp, Grupo de Midi., 1996, p. 73.

Trajet6ria da industria fonografica brasileira: anos 70 e 80 53

Nesse sentido, Ortiz apresenta dados relativos ao cinema e a publicidade, sendo 0 ultimo um setor que tem crescimento muito significativo, uma vez que se relaciona com todos os outros. 0 radio teve sua fase aurea quando concentrou toda a publicidade. A partir da decada de 70, os investimentos na area vao gradativamente diri­gindo-se a televisao (ver grafico a seguir). Como sintomas do boom vivido pelo setor publicitario nos anos 60-70 estao a prolifera~ao, no pais, de agencias de publicidade nacionais e transnacionais, a abertu­ra de cursos universitarios para formar profissionais especializados e regulamentar a profissao, a cria~ao de varios institutos de pesquisa de opiniao e a especializa~ao da publicidade em fun~ao da segmenta~ao da produ~ao de bens culturais8. Portanto, e marcante 0 processo de intera~ao dos media. Numa rela~ao de complementaridade e interdependencia, os varios setores se relacionam e um impulsiona 0

desenvolvimento do outro.

Grafico I. PORCENTAGEM DE INVESTIMENTO PUBLICITAAIO POR MEIO (VIA AGENCIAS): BRASIL - 1963-1988

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61% Telelllakl

16% Revistas 14%Jomals 7% ... _

o 3% Out-dOOJ,

., 14 U .. 41' .. .. 70 7t 72 7' 74 'I, ft n '" .,. to .t u ., 14 .. II U ~lnema, OutfO$

Fonte, Midia dados. SP, Grupo de Mldia, 1990, p. 24

8 ORTIZ, 1988, p. 130 e ,eg'.

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54 Os donos da voz

Consolidadas as condi~oes basicas de produ~ao, a etapa subse­quente e a de estabelecer estrategias, definindo 0 universe dos con­teudos e as faixas de mercado que deverao ser a1can~adas. Num pri­meiro momenta produ~ao nacional e estrangeira convivem, de modo desigual e diferenciado, de acordo com a natureza e forma de expan­sao do meio. Assim, nos prim6rdios da televisao, os programas es­trangeiros tiveram presen~a marcante e fundamental para 0 pr6prio desenvolvimento do meio: "Os produtos estrangeiros, especialmente os 'enlatados', propiciavam as grandes redes urn modo mais barato de organizar a sua programa~ao. Porem, paralelamente a este quadro de dependencia, existe urn movimento que se esbo~a, incentivando a produ~ao industrial de programas nacionais"'. A produ~ao brasileira vai conquistando, aos poucos, grande autonomia; anos mais tarde, a telenovela brasileira torna-se produto de exporta~ao, conferindo ao Brasil posi~ao realmente diferenciada no cenariolO •

E nesse contexto que 0 setor fonografico se expande. Com numeros que apontam grande expansao no periodo, vemos que 0

setor nao se amplia desvinculado do desenvolvimento de outros, ten­do sido, igualmente favorecido pela conjuntura economica em trans­forma~ao. Rita Morelli e Enor Paiano" apresentam dados similares quando falam no crescimento medio de 400% nas vendas de discos , entre 1965 e 1972. "A partir de 1971 os numeros crescem de forma estavel, a media de 20% ao ana - exce~ao para 1974 e 75 quando a fa1ta de vinil [decorrente da crise mundial do petr6leol criou uma demanda reprimida, responsavel tambem pela explosao de 1976, quando 0 fornecimento de materia-prima se normalizou"12. No entan­to, 0 crescimento nao para e de 1978 para 79 0 Brasil chega a quinta posi~ao no mercado mundial13•

9 Idem, p. 201. 10 Cf. ORTIZ, R. BORELLI, S. e ORTIZ RAMOS,]. M. Telenoveia, btst6rlaeprodurao.

SP: Brasiliense, 1989. 11 MORELLI, R. C. L. Indu.strtafonogrdfica: Um estudo antropol6gico. Campinas, SP:

Ed. da UNICAMP, 1991, Serle Teses, e PAIANO, 1994, sobretudo 0 capitulo v. 2, sugestivamente intitulado "0 milagre da multiplica~o de discos", p. 191-22l.

12 PAIANO, 1994, p. 196. 13 Cf. "Mercado brasileiro ja foi 0 quinto do mundo". In: HIT, Ano 1, nil I, dez. 91.

sp, Azul, p. 13.

Trajet6ria da industria fonografica brasileira: anos 70 e 80 55

Tabela II. VENDA DE PRODUTOS DA INDUSTRIA FONOGRAFICA: BRASIL - 1968-1980 (em milhOes de unidades, compactos simples e duplos e LPs)

Ano Unidades

1968 14.818

1970 '17.102

1972 25.591

1974 31.098

1976 48.926

1978 59.106

1979 64.104

1980 57.066

Fonte: ABPD, R]: 03-95.

Varios sao os fatores que permitem compreender a expansao . da industria fonografica brasileira no periodo, e dentre eles gostaria de ressaltar os que se seguem. Primeiramente, consolida-se a produ­~ao de musica popular brasileira e, consequentemente, 0 seu merca, do. A industria nao prescindiu da grande fertilidade da produ~ao musical dos anos 60, sobretudo a da segunda metade da decada, assim como a do inicio dos 70, e constituiu casts estiiveis, com nomes hoje classicos da MPB, tais como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethania e tantos outros. Outro seg­mento altamente lucrativo que se consolida, na epoca, como grande vendedor de discos, e aquele nascido do movimento Jovem Guarda, uma das primeiras manifesta~oes nacionais do rock". Renovado por tal movimento, 0 mercado de can~oes romanticas fez de Roberto Carlos, cantor exponencial da Jovem Guarda, urn dos maiores vende­dores de discos da industria brasileira. Esse segmento de mercado explorava, igualmente, can~Oes romanticas consideradas popularescas e/ou pr6ximas ao genero sertanejo, que mais tarde viria a ser chamado de "brega". .

14 cr. GROPPO, L. A. o rock eajormaraodo mercadode consumoculltlraljuveniJ. Disserta¢.io de mestrado: IFCHlUNICAMP, 1996 (suporte eletr6nlco), p. 155 e segs.

;a

54 Os donos da voz

Consolidadas as condi~oes basicas de produ~ao, a etapa subse­quente e a de estabelecer estrategias, definindo 0 universe dos con­teudos e as faixas de mercado que deverao ser a1can~adas. Num pri­meiro momenta produ~ao nacional e estrangeira convivem, de modo desigual e diferenciado, de acordo com a natureza e forma de expan­sao do meio. Assim, nos prim6rdios da televisao, os programas es­trangeiros tiveram presen~a marcante e fundamental para 0 pr6prio desenvolvimento do meio: "Os produtos estrangeiros, especialmente os 'enlatados', propiciavam as grandes redes urn modo mais barato de organizar a sua programa~ao. Porem, paralelamente a este quadro de dependencia, existe urn movimento que se esbo~a, incentivando a produ~ao industrial de programas nacionais"'. A produ~ao brasileira vai conquistando, aos poucos, grande autonomia; anos mais tarde, a telenovela brasileira torna-se produto de exporta~ao, conferindo ao Brasil posi~ao realmente diferenciada no cenariolO •

E nesse contexto que 0 setor fonografico se expande. Com numeros que apontam grande expansao no periodo, vemos que 0

setor nao se amplia desvinculado do desenvolvimento de outros, ten­do sido, igualmente favorecido pela conjuntura economica em trans­forma~ao. Rita Morelli e Enor Paiano" apresentam dados similares quando falam no crescimento medio de 400% nas vendas de discos , entre 1965 e 1972. "A partir de 1971 os numeros crescem de forma estavel, a media de 20% ao ana - exce~ao para 1974 e 75 quando a fa1ta de vinil [decorrente da crise mundial do petr6leol criou uma demanda reprimida, responsavel tambem pela explosao de 1976, quando 0 fornecimento de materia-prima se normalizou"12. No entan­to, 0 crescimento nao para e de 1978 para 79 0 Brasil chega a quinta posi~ao no mercado mundial13•

9 Idem, p. 201. 10 Cf. ORTIZ, R. BORELLI, S. e ORTIZ RAMOS,]. M. Telenoveia, btst6rlaeprodurao.

SP: Brasiliense, 1989. 11 MORELLI, R. C. L. Indu.strtafonogrdfica: Um estudo antropol6gico. Campinas, SP:

Ed. da UNICAMP, 1991, Serle Teses, e PAIANO, 1994, sobretudo 0 capitulo v. 2, sugestivamente intitulado "0 milagre da multiplica~o de discos", p. 191-22l.

12 PAIANO, 1994, p. 196. 13 Cf. "Mercado brasileiro ja foi 0 quinto do mundo". In: HIT, Ano 1, nil I, dez. 91.

sp, Azul, p. 13.

Trajet6ria da industria fonografica brasileira: anos 70 e 80 55

Tabela II. VENDA DE PRODUTOS DA INDUSTRIA FONOGRAFICA: BRASIL - 1968-1980 (em milhOes de unidades, compactos simples e duplos e LPs)

Ano Unidades

1968 14.818

1970 '17.102

1972 25.591

1974 31.098

1976 48.926

1978 59.106

1979 64.104

1980 57.066

Fonte: ABPD, R]: 03-95.

Varios sao os fatores que permitem compreender a expansao . da industria fonografica brasileira no periodo, e dentre eles gostaria de ressaltar os que se seguem. Primeiramente, consolida-se a produ­~ao de musica popular brasileira e, consequentemente, 0 seu merca, do. A industria nao prescindiu da grande fertilidade da produ~ao musical dos anos 60, sobretudo a da segunda metade da decada, assim como a do inicio dos 70, e constituiu casts estiiveis, com nomes hoje classicos da MPB, tais como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethania e tantos outros. Outro seg­mento altamente lucrativo que se consolida, na epoca, como grande vendedor de discos, e aquele nascido do movimento Jovem Guarda, uma das primeiras manifesta~oes nacionais do rock". Renovado por tal movimento, 0 mercado de can~oes romanticas fez de Roberto Carlos, cantor exponencial da Jovem Guarda, urn dos maiores vende­dores de discos da industria brasileira. Esse segmento de mercado explorava, igualmente, can~Oes romanticas consideradas popularescas e/ou pr6ximas ao genero sertanejo, que mais tarde viria a ser chamado de "brega". .

14 cr. GROPPO, L. A. o rock eajormaraodo mercadode consumoculltlraljuveniJ. Disserta¢.io de mestrado: IFCHlUNICAMP, 1996 (suporte eletr6nlco), p. 155 e segs.

Page 29: Os donos da voz - Márcia Tosta Dias

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56 Os donos da voz

A consolida~ao do mercado correspondem transforma~oes no conjunto do processo. Por exemplo, a mentalidade empresarial e de­senvolvida e aprimorada, tanto no mundo do disco como no dos grandes espetaculos15• Paiano ve nesse processo a definitiva transfor­ma~ao de alguns artistas brasileiros em astros, tempo em que abando­nam, definitivamente, sua aura marginal. A transnacional do disco, ao conquistar 0 mercado nacional, cumpre um dos termos mais impor­tantes de sua expansao internacional, como apontamos.

Um segundo fator diz respeito a chegada definitiva do LP, no inicio dos 70, e as mudan~as economicas e estrategicas que ele trou­xe para 0 panorama fonognifico. A industria, que movimentava 0

mercado com compactos simples e duplos (57% dos discos vendidos em 1969 e 36% em 1976), com a institui~ao do LP pode restringir gastos e otimizar investimentos, considerando que cada LP continha, em termos de custos, seis compactos simples e tres duplosl6. A partir de entao, verifica-se 0 decrescimo do consumo de compactos (como se depreende da tabela abaixo) e, finalmente, eles deixam de ser Flroduzidos em 1990.

Tabela III. VENDA DE COMPACfOS SIMPLES E DUPLOS: BRASIL-1969-1989 (em milhOes de unidades)

Ano ctos (simples e duplos) Compa LP

1969 11.067 6.588

1975 13.213 16.995

1979 17.372 38.252

1981 11.360 28.170

1985 4.208 32.578

1989 89.7 56.724

Fonte: ABPD, RJ: 03-95

15 PAIANO, 1994, p. 199, ressalta 0 trabalho de empresarios como Marcos Lazaro, que atuaram como "administradores da carreira de artistas".

16 Idem, p. 197.

Trajet6ria da industria fonografica brasileira: anos 70 e 80 57

No entanto, Paiano adverte que a ado~ao do LP traz consigo uma mudan~a profunda nos rumos da produ~ao, uma vez que torna o artista mais importante que 0 discol'. E 0 tempo do trabalho de autor, quando sao oferecidas condi~oes para que alguns artistas de­senvolvam um trabalho que nao poderia ser feito em compacto, mes­mo que duplo. 0 LP e 0 formato apropriado para uma postura estra­tegica difereri.ciada, adotada pela industria fonografica mundial.

Nesse senti do, algumas gravadoras voltam-se para a forma~ao de casts estaveis, investindo em determinados interpretes de modo a transforma-Ios em artistas conhecidos e atuantes no conjunto do show business. Assim, e mais seguro, muitas vezes e mais lucrativo, manter um quadro de artistas que vendam discos com regularidade, nos padroes definidos para determinados segmentos, do que inves­tir no mercado de sucessos que, por sua vez, precisa ser constante­mente alimentado e, por mais que utilize f6rmulas consagradas, nao tem retorno totalmente garantidolB.

Um terceiro fator a ressaltar diz respeito 11 existencia de uma significativa fatia do mercado ocupada pela musica estrangeira. A suspeita de que a censura polftica, que vigorava no Brasil da epoca, interferiu na produ~ao de discos de musica popular brasileira, e motivo de debate entre os pesquisadores. Para Rita Morelli, a censu­ra "impediu que a expansao do mercado de discos ocorresse em beneficio imediato da chamada Musica Popular Brasileira e ao mes­mo tempo criou condi~oes para que as grandes empresas multinacionais do setor ou suas representantes estabelecidas no pais respondessem a esse mercado em expansao com um numero cres­cente de lan~amentos estrangeiros" .19 Paiano ve a a~ao da censura como mais um chamariz para a venda de discos de artistas censura­dos: "( ... ) a imagem de martir do artista era capitalizada pelas com-

17 Ibidem, p. 210 e segs. Nessa mesrna dire¢.lo, Patrice Flichy diz que a transforma·. ~ao do interprete em artista se da obedecendo a uma das leis da produ~o cultu­ral: "(. .. ) para demonstrar a unicidade do produto e necessario atribui-lo a urn criador singular". FLICHY, 1982, p. 43.

18 Opiniao compartilhada com DANNEN, F. Hit men: -Powerbrokersandfastmoney inside the music business. Nova York: Times Books, 1990, p. 65. Ainda, Leo M. de Barros, diretor de marketing da BMG: "0 que rende sao os discos amortizados e que vendem continuamente". In: "A explosao do show biz", citada.

19 MORELLI, 1991, p. 47-48.

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56 Os donos da voz

A consolida~ao do mercado correspondem transforma~oes no conjunto do processo. Por exemplo, a mentalidade empresarial e de­senvolvida e aprimorada, tanto no mundo do disco como no dos grandes espetaculos15• Paiano ve nesse processo a definitiva transfor­ma~ao de alguns artistas brasileiros em astros, tempo em que abando­nam, definitivamente, sua aura marginal. A transnacional do disco, ao conquistar 0 mercado nacional, cumpre um dos termos mais impor­tantes de sua expansao internacional, como apontamos.

Um segundo fator diz respeito a chegada definitiva do LP, no inicio dos 70, e as mudan~as economicas e estrategicas que ele trou­xe para 0 panorama fonognifico. A industria, que movimentava 0

mercado com compactos simples e duplos (57% dos discos vendidos em 1969 e 36% em 1976), com a institui~ao do LP pode restringir gastos e otimizar investimentos, considerando que cada LP continha, em termos de custos, seis compactos simples e tres duplosl6. A partir de entao, verifica-se 0 decrescimo do consumo de compactos (como se depreende da tabela abaixo) e, finalmente, eles deixam de ser Flroduzidos em 1990.

Tabela III. VENDA DE COMPACfOS SIMPLES E DUPLOS: BRASIL-1969-1989 (em milhOes de unidades)

Ano ctos (simples e duplos) Compa LP

1969 11.067 6.588

1975 13.213 16.995

1979 17.372 38.252

1981 11.360 28.170

1985 4.208 32.578

1989 89.7 56.724

Fonte: ABPD, RJ: 03-95

15 PAIANO, 1994, p. 199, ressalta 0 trabalho de empresarios como Marcos Lazaro, que atuaram como "administradores da carreira de artistas".

16 Idem, p. 197.

Trajet6ria da industria fonografica brasileira: anos 70 e 80 57

No entanto, Paiano adverte que a ado~ao do LP traz consigo uma mudan~a profunda nos rumos da produ~ao, uma vez que torna o artista mais importante que 0 discol'. E 0 tempo do trabalho de autor, quando sao oferecidas condi~oes para que alguns artistas de­senvolvam um trabalho que nao poderia ser feito em compacto, mes­mo que duplo. 0 LP e 0 formato apropriado para uma postura estra­tegica difereri.ciada, adotada pela industria fonografica mundial.

Nesse senti do, algumas gravadoras voltam-se para a forma~ao de casts estaveis, investindo em determinados interpretes de modo a transforma-Ios em artistas conhecidos e atuantes no conjunto do show business. Assim, e mais seguro, muitas vezes e mais lucrativo, manter um quadro de artistas que vendam discos com regularidade, nos padroes definidos para determinados segmentos, do que inves­tir no mercado de sucessos que, por sua vez, precisa ser constante­mente alimentado e, por mais que utilize f6rmulas consagradas, nao tem retorno totalmente garantidolB.

Um terceiro fator a ressaltar diz respeito 11 existencia de uma significativa fatia do mercado ocupada pela musica estrangeira. A suspeita de que a censura polftica, que vigorava no Brasil da epoca, interferiu na produ~ao de discos de musica popular brasileira, e motivo de debate entre os pesquisadores. Para Rita Morelli, a censu­ra "impediu que a expansao do mercado de discos ocorresse em beneficio imediato da chamada Musica Popular Brasileira e ao mes­mo tempo criou condi~oes para que as grandes empresas multinacionais do setor ou suas representantes estabelecidas no pais respondessem a esse mercado em expansao com um numero cres­cente de lan~amentos estrangeiros" .19 Paiano ve a a~ao da censura como mais um chamariz para a venda de discos de artistas censura­dos: "( ... ) a imagem de martir do artista era capitalizada pelas com-

17 Ibidem, p. 210 e segs. Nessa mesrna dire¢.lo, Patrice Flichy diz que a transforma·. ~ao do interprete em artista se da obedecendo a uma das leis da produ~o cultu­ral: "(. .. ) para demonstrar a unicidade do produto e necessario atribui-lo a urn criador singular". FLICHY, 1982, p. 43.

18 Opiniao compartilhada com DANNEN, F. Hit men: -Powerbrokersandfastmoney inside the music business. Nova York: Times Books, 1990, p. 65. Ainda, Leo M. de Barros, diretor de marketing da BMG: "0 que rende sao os discos amortizados e que vendem continuamente". In: "A explosao do show biz", citada.

19 MORELLI, 1991, p. 47-48.

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panhias"20. Se a interferencia da censura foi drastica do ponto de vista da cria~ao artistica, economicamente, a industria do disco pa­rece nao ter sentido os seus efeitos. Nesse sentido, e expressivo 0

exemplo do que ocorreu com a can~ao Cdlice, de Chico Buarque de Holanda. Sendo sua difusao proibida em 1973, a can~ao que falava, de maneira cifrada, da pr6pria atua~ao da censura foi liberada em 1978 e no ano seguinte bateu recordes de execu~ao em esta~oes de radio e emissoras de TV de todo 0 pais. No entanto, no momento de sua divulga~ao, Cdlice estava fora de seu tempo, ficando a sua men­sagem enfraquecida21 •

Na realidade, a grande circula~ao de musica estrangeira pode ser entendida pela analise de algumas vantagens obtidas pel a transnacional do disco em rela~ao ao conjunto das empresas atuantes no mercado brasileiro. A primeira delas resultava do seguinte proce­dimento: a transnacional fazia a prensagem, embalagem e distribui­~ao local de matrizes gravadas no exterior, para serem simplesmente comercializadas no pais, permitindo ao produto chegar ao mercado com seus _custos de produ~ao amortizados". Tal pratica chegou a confundir as estatisticas, que muitas vezes identificavam como brasi­leiro 0 produto prensado no Brasil, com 0 texto da capa em portugues. Uma via bastante explorada criava ainda maior confusao: artistas bra­sileiros cantavam em ingles, com pseudonimos estrangeiros e eram classificados como sucessos internacionais. Consta que a promo~ao de· tais artistas tinha que ser feita de maneira especial, excluindo, por exemplo, as entrevistas, considerando que muitos nao falavam ingles.

Outra vantagem estava na isen~ao do pagamento do Imposto sobre a Circula~ao de Mercadorias (iCM), que, como conquista do setor em 1967, era estendida a todas as empresas fonograficas, caso a . cota devida fosse aplicada em produ~ao nacional. Dessa forma, as produ~oes estrangeiras, que vinham com os custos amortizados, tor­navam-se ainda mais lucrativas e colocavam a empresa nacional em situa~ao desfavoravel, uma vez que esta arcava com todos os custos

20 PAIANO, 1994, p. 198. Na p. 224 a aular afirma: "nunca rnais as gravadoras teriam urn cast nacional tao grande e valorizado como nos anos 70".

21 A can~o "Cd/ice"(. .. ) conseguiu mais de 1.500 execu¢es nas televisoes e radios AM de todo 0 Brasil, no trimestre compreendido entre dezembro de 78 e feverei­ro de 79." "MPB: Derrota na final". Som Tres, ng 05, maio-79, p. 104-106.

22 MORELLI, 1991, p. 48.

Trajet6ria da industria fonografica brasileira: anos 70 e 80 59

de produ~ao23. Empresas transnacionais, que antes eram representa­das no Brasil por firmas nacionais - tal como a WEA era representada pela Continental - instalaram-se no pais e montaram casts de artistas brasileiros, antes pertencentes aos quadros das nacionais".

Alem da WEA, que chega ao Brasil em 1976, outras transnacionais o fazem, como a Capitol Records (1978), americana, e a Ariola (1979)' alema. Essa ultima, alem de lan~amentos estrangeiros, tambem cons­titui um cast nacional, bem como a WEA.

Considerando esse contexto, podemos dizer que 0 processo de mundializa~ao da musica-mercadoria no Brasil dos anos 70 mostra-se pleno de particularidades. Com 0 impulso adquirido, nesse momento, pela industria cultural, a partir do investimento feito em infra-estrutura, a mundializa~o de referencias culturais na musica popular - que de qual­quer forma se faria - adquire agilidade e intensidade. 0 fenomeno dos artistas que se travestem de estrangeiros, por exemplo, alem de ser ex­pressivo do campo das trocas simb6licas, se distingue como amostra de uma estrategia eficaz da industria que, com 0 prop6sito de segmentar 0

mercado e garantir 0 retorno dos investimentos, lan~ mao de f6rmulas estandardizadas de sucesso, prescindindo da valoriza~ao de conteudos.

o quarto e ultimo fator a ser destacado concerne it intera~ao que se verifica no conjunto da industria cultural e it sua a~ao como elemento facilitador da divulga~ao e comercializa~ao de musica po­pular. A musica esta sempre presente, seja no centro do espetaculo, seja fazendo uma especie de pano de fundo, compondo 0 cenario para a televisao, 0 radio, a publicidade, 0 cinema. Nesse sentido, foi muito significativa a contribui~ao que as trilhas sonoras de novelas trouxeram para 0 setor fonografico, sendo mesmo a elas creditado 0

crescimento do mercado nos anos 70". Um claro sintoma desse boom foi 0 crescimento obtido no periodo pela gravadora Som Livre, da

23 A isen.yao do ICM foi uma das primeiras conquistas da Associa~ao Brasileira dos Produtores de Discos - ABPO, fundada em 1965, assim como 0 foi a lei de direitos automis aprovad. em 1973. Cf., PAIANO, 1994, p. 198-199.

24 Cf. MAKALE, J. "Corre serio perigo a industria de discos nacional". Folha de S.Paulo, 06-06-82, p.74.

25 PAIANO, 1994, p. 197, e MORELLI, 1991, p. 70. Vale lembrar que 0 disco de trilha s6 se viabiliza com 0 LP. Tern custo bastante reduzido, na rnedida em que se utiliza de fonograrnas prontos. Outro produto bastante popular na epoca tem a mesma concep~ao: as coletiineas de musica nacional ou es[rangeira. As coletaneas

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panhias"20. Se a interferencia da censura foi drastica do ponto de vista da cria~ao artistica, economicamente, a industria do disco pa­rece nao ter sentido os seus efeitos. Nesse sentido, e expressivo 0

exemplo do que ocorreu com a can~ao Cdlice, de Chico Buarque de Holanda. Sendo sua difusao proibida em 1973, a can~ao que falava, de maneira cifrada, da pr6pria atua~ao da censura foi liberada em 1978 e no ano seguinte bateu recordes de execu~ao em esta~oes de radio e emissoras de TV de todo 0 pais. No entanto, no momento de sua divulga~ao, Cdlice estava fora de seu tempo, ficando a sua men­sagem enfraquecida21 •

Na realidade, a grande circula~ao de musica estrangeira pode ser entendida pela analise de algumas vantagens obtidas pel a transnacional do disco em rela~ao ao conjunto das empresas atuantes no mercado brasileiro. A primeira delas resultava do seguinte proce­dimento: a transnacional fazia a prensagem, embalagem e distribui­~ao local de matrizes gravadas no exterior, para serem simplesmente comercializadas no pais, permitindo ao produto chegar ao mercado com seus _custos de produ~ao amortizados". Tal pratica chegou a confundir as estatisticas, que muitas vezes identificavam como brasi­leiro 0 produto prensado no Brasil, com 0 texto da capa em portugues. Uma via bastante explorada criava ainda maior confusao: artistas bra­sileiros cantavam em ingles, com pseudonimos estrangeiros e eram classificados como sucessos internacionais. Consta que a promo~ao de· tais artistas tinha que ser feita de maneira especial, excluindo, por exemplo, as entrevistas, considerando que muitos nao falavam ingles.

Outra vantagem estava na isen~ao do pagamento do Imposto sobre a Circula~ao de Mercadorias (iCM), que, como conquista do setor em 1967, era estendida a todas as empresas fonograficas, caso a . cota devida fosse aplicada em produ~ao nacional. Dessa forma, as produ~oes estrangeiras, que vinham com os custos amortizados, tor­navam-se ainda mais lucrativas e colocavam a empresa nacional em situa~ao desfavoravel, uma vez que esta arcava com todos os custos

20 PAIANO, 1994, p. 198. Na p. 224 a aular afirma: "nunca rnais as gravadoras teriam urn cast nacional tao grande e valorizado como nos anos 70".

21 A can~o "Cd/ice"(. .. ) conseguiu mais de 1.500 execu¢es nas televisoes e radios AM de todo 0 Brasil, no trimestre compreendido entre dezembro de 78 e feverei­ro de 79." "MPB: Derrota na final". Som Tres, ng 05, maio-79, p. 104-106.

22 MORELLI, 1991, p. 48.

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de produ~ao23. Empresas transnacionais, que antes eram representa­das no Brasil por firmas nacionais - tal como a WEA era representada pela Continental - instalaram-se no pais e montaram casts de artistas brasileiros, antes pertencentes aos quadros das nacionais".

Alem da WEA, que chega ao Brasil em 1976, outras transnacionais o fazem, como a Capitol Records (1978), americana, e a Ariola (1979)' alema. Essa ultima, alem de lan~amentos estrangeiros, tambem cons­titui um cast nacional, bem como a WEA.

Considerando esse contexto, podemos dizer que 0 processo de mundializa~ao da musica-mercadoria no Brasil dos anos 70 mostra-se pleno de particularidades. Com 0 impulso adquirido, nesse momento, pela industria cultural, a partir do investimento feito em infra-estrutura, a mundializa~o de referencias culturais na musica popular - que de qual­quer forma se faria - adquire agilidade e intensidade. 0 fenomeno dos artistas que se travestem de estrangeiros, por exemplo, alem de ser ex­pressivo do campo das trocas simb6licas, se distingue como amostra de uma estrategia eficaz da industria que, com 0 prop6sito de segmentar 0

mercado e garantir 0 retorno dos investimentos, lan~ mao de f6rmulas estandardizadas de sucesso, prescindindo da valoriza~ao de conteudos.

o quarto e ultimo fator a ser destacado concerne it intera~ao que se verifica no conjunto da industria cultural e it sua a~ao como elemento facilitador da divulga~ao e comercializa~ao de musica po­pular. A musica esta sempre presente, seja no centro do espetaculo, seja fazendo uma especie de pano de fundo, compondo 0 cenario para a televisao, 0 radio, a publicidade, 0 cinema. Nesse sentido, foi muito significativa a contribui~ao que as trilhas sonoras de novelas trouxeram para 0 setor fonografico, sendo mesmo a elas creditado 0

crescimento do mercado nos anos 70". Um claro sintoma desse boom foi 0 crescimento obtido no periodo pela gravadora Som Livre, da

23 A isen.yao do ICM foi uma das primeiras conquistas da Associa~ao Brasileira dos Produtores de Discos - ABPO, fundada em 1965, assim como 0 foi a lei de direitos automis aprovad. em 1973. Cf., PAIANO, 1994, p. 198-199.

24 Cf. MAKALE, J. "Corre serio perigo a industria de discos nacional". Folha de S.Paulo, 06-06-82, p.74.

25 PAIANO, 1994, p. 197, e MORELLI, 1991, p. 70. Vale lembrar que 0 disco de trilha s6 se viabiliza com 0 LP. Tern custo bastante reduzido, na rnedida em que se utiliza de fonograrnas prontos. Outro produto bastante popular na epoca tem a mesma concep~ao: as coletiineas de musica nacional ou es[rangeira. As coletaneas

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Rede Globo, produzindo essencialmente trilhas. Atuando desde 1971, em 1974 ela ja tinha 38% do mercado de discos mais vendidos; em 1975, 56% e, em 77 tornou-se lider. Diferenciava-se das outras empre­sas, uma vez que limitava sua a~ao a escolha dos titulos e a conse­qiiente negocia~ao de seus royalties e direitos autorais, utilizando as servi~os de fabrica e distribui~ao de outras companhias"'. Outra van­tagem da Som Livre frente as suas concorrentes estava no esquema promocional e de difusao de que usufruia. Rita Morelli aponta para 0

enorme investimento feito em publicidade pela Sam Livre, no final dos anos 70, na programa~ao da Rede Globo e em outras empresas do grupo. A verba destinada a campanha da gravadora era maior do que aquela investida por grandes anunciantes, como a Souza Cruz ou a Coca-Cola. "Nenhuma empresa do setor fonografico teria condi~oes financeiras de bancar essa divulga~ao, dados os altos pre~os dos es­pa~os publicitarios televisivos( ... )"27.

o segmento de trilhas sonoras e ampliado quando chega, alem das novelas, ao conjunto da programa~o televisiva, inclusive aque­la que acompanha a publicidade. A parceria musica-TV e, muitas vezes, resultado de urn complexo processo de negocia~ilo. A esco­lha e a decisao sobre quais can~oes comporao as trilhas das nove­las, das series ou mesmo as vinhetas da programa~ao, bern como dos artistas que apresentarao numeros musicais durante a progra­ma~ao de uma emissora, envolvem varios setores da industria cultu­ral, Nesse processo, vigora a mais elementar lei do mercado, ou seja, a parte mais forte e candidata "natural" a concentrar as vanta-

traziam, em geraI, 14 faixas. No entanto, algumas companhias reduziam 0 tama­nho das canc;oes, de modo a aumentar 0 numero de titulos em cada disco para 20 ou ate 30. Segundo urn executivo da gravadora K-Tel as abreviac;Oes "sao neces­sarias, pois a maioria das canc;oes se repete muito.". In: Disco em Sao Paulo, IDART - Departamento de Informac;ao e Documentac;ao Artfsticas, Coordenac;ao Dd.miano Cozzela. Sao Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1980, p. 47-48.

26 MORELLI, 1991, p. 70, Ortiz e Ramos afirmam que a Som Livre foi cdada pela Globa especialmente para comercializar trilhas sonoras de suas telenovelas. Cf.: ORTIZ, BORELLI e ORTIZ RAMOS, 1988, p. 146. Comparando a estrutura diferen­ciada da Sam Livre, com relac;ao a outras empresas do ramo, 0 compositor lards Makale afirma que "a Som Livre nao cabe no conceito de gravadora ou compa­nhia de discos. E urn mero artiffcio de merchandising da Globo, usufruindo do mercado de discos". "Corre serio perigo a industria de discos nacio~l." Folha de S.Pallio, 06-06-82, p. 74.

27 MORELLI, 1991, p. 70.

Trajet6ria da industria fonografica brasileira: anos 70 e 80 61

gens. E, mais uma vez, 0 caso da Rede Globo, detentora dos mais altos indices de audiencia da televisao brasileira (para citar um uni­co referencial: de 1984 a 88, 43% da audiencia nacional, no horario das 18 as 24 horas28) e onde muitos querem ver suas musicas veicu­ladas. Em sua programa~ao sao divulgadas centenas de can~oes e pel a audiencia das novelas, milhoes de lares brasileiros (e ate mes­mo estrangeiros) vao ouvir parte consideravel delas e em condi~oes facilitadas pelo contexto da pr6pria novela: "Voce vende a musica pegando as pessoas comovidas; as pessoas estao envolvidas com a cena e voce joga a musica ali"29. Ou ainda: "No radio voce s6 tem 0

audio. Na TV, voce fica anestesiado pela imagem e a musica entra com mais facilidade"30.

No ambito das negocia~oes, 0 poder de decisao aparece, mui­tas vezes, concentrado em uma s6 pessoa. Na Rede Globo, este poder estaria nas maos de seu diretor musical, a quem caberia pessoalmente decidir sobre as musicas que compoem a programa~ao31. Na realida­de, esta e uma maneira de objetivar, de personificar um poder pulve­rizado no ambito dos interesses e dos esquemas em jogo. 0 poder que 0 executivo tem e 0 de escolher estrategias, alian~as e taticas mais eficientes.

Dessa forma, raras sao as musicas especialmente compostas para as novelas: "Nao ha convite para a elabora~ao criativa a um compositor ou interprete, em fun~ao da novela. 0 processo e in­verso - procede-se a uma negocia~ao com as gravadoras, utilizan-

28 In: Mercado Global, nO 76, fevereiro/89, p. 25. Por mais que 0 objeto em questao seja tfpico dos anos 70, permito-me utilizar dados mais atuais que, no meu enten­der, fornecem amplitude ao problema, considerando sobretudo a consolidac;ao; ao longo das decadas subseqUentes, do segmento das trilhas como urn dos mais lucrativos da industria fonogrMica, como veremos.

29 Vange Leonel, cantora que, ate 0 momento, [eve como unico sucesso a canc;ao Noite Freta lerna de abertura da novela Vamp (Rede Globa, 1992). In: "Os Vinte Homens Mais Poderosos da Musica Brasileira", BIZZ, Editora Azul, Ano 9, nU06, Edil'iio 95, junho de 1993, p. 41.

30 Ricardo Henrique, entao diretor artfstico da Radio Jovern Pan, na reportagern citada acima. Da mesma forma, as telenovelas sao espa~os privilegiados para a divulgac;ao de produtos das mais variadas naturezas. Ver, por exemplo, "Ator diz que inventou merchandising". In, FoibadeS.Pauio, 27-11-94, 5-3 e ORTIZ, BORELLI e ORTIZ RAMOS, op. cit.

31 A revista BIZZ, citada, aponta Mariozinho Rocha como sendo este poderoso hornem, nos anos 90.

uu

60 Os donas da voz

Rede Globo, produzindo essencialmente trilhas. Atuando desde 1971, em 1974 ela ja tinha 38% do mercado de discos mais vendidos; em 1975, 56% e, em 77 tornou-se lider. Diferenciava-se das outras empre­sas, uma vez que limitava sua a~ao a escolha dos titulos e a conse­qiiente negocia~ao de seus royalties e direitos autorais, utilizando as servi~os de fabrica e distribui~ao de outras companhias"'. Outra van­tagem da Som Livre frente as suas concorrentes estava no esquema promocional e de difusao de que usufruia. Rita Morelli aponta para 0

enorme investimento feito em publicidade pela Sam Livre, no final dos anos 70, na programa~ao da Rede Globo e em outras empresas do grupo. A verba destinada a campanha da gravadora era maior do que aquela investida por grandes anunciantes, como a Souza Cruz ou a Coca-Cola. "Nenhuma empresa do setor fonografico teria condi~oes financeiras de bancar essa divulga~ao, dados os altos pre~os dos es­pa~os publicitarios televisivos( ... )"27.

o segmento de trilhas sonoras e ampliado quando chega, alem das novelas, ao conjunto da programa~o televisiva, inclusive aque­la que acompanha a publicidade. A parceria musica-TV e, muitas vezes, resultado de urn complexo processo de negocia~ilo. A esco­lha e a decisao sobre quais can~oes comporao as trilhas das nove­las, das series ou mesmo as vinhetas da programa~ao, bern como dos artistas que apresentarao numeros musicais durante a progra­ma~ao de uma emissora, envolvem varios setores da industria cultu­ral, Nesse processo, vigora a mais elementar lei do mercado, ou seja, a parte mais forte e candidata "natural" a concentrar as vanta-

traziam, em geraI, 14 faixas. No entanto, algumas companhias reduziam 0 tama­nho das canc;oes, de modo a aumentar 0 numero de titulos em cada disco para 20 ou ate 30. Segundo urn executivo da gravadora K-Tel as abreviac;Oes "sao neces­sarias, pois a maioria das canc;oes se repete muito.". In: Disco em Sao Paulo, IDART - Departamento de Informac;ao e Documentac;ao Artfsticas, Coordenac;ao Dd.miano Cozzela. Sao Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1980, p. 47-48.

26 MORELLI, 1991, p. 70, Ortiz e Ramos afirmam que a Som Livre foi cdada pela Globa especialmente para comercializar trilhas sonoras de suas telenovelas. Cf.: ORTIZ, BORELLI e ORTIZ RAMOS, 1988, p. 146. Comparando a estrutura diferen­ciada da Sam Livre, com relac;ao a outras empresas do ramo, 0 compositor lards Makale afirma que "a Som Livre nao cabe no conceito de gravadora ou compa­nhia de discos. E urn mero artiffcio de merchandising da Globo, usufruindo do mercado de discos". "Corre serio perigo a industria de discos nacio~l." Folha de S.Pallio, 06-06-82, p. 74.

27 MORELLI, 1991, p. 70.

Trajet6ria da industria fonografica brasileira: anos 70 e 80 61

gens. E, mais uma vez, 0 caso da Rede Globo, detentora dos mais altos indices de audiencia da televisao brasileira (para citar um uni­co referencial: de 1984 a 88, 43% da audiencia nacional, no horario das 18 as 24 horas28) e onde muitos querem ver suas musicas veicu­ladas. Em sua programa~ao sao divulgadas centenas de can~oes e pel a audiencia das novelas, milhoes de lares brasileiros (e ate mes­mo estrangeiros) vao ouvir parte consideravel delas e em condi~oes facilitadas pelo contexto da pr6pria novela: "Voce vende a musica pegando as pessoas comovidas; as pessoas estao envolvidas com a cena e voce joga a musica ali"29. Ou ainda: "No radio voce s6 tem 0

audio. Na TV, voce fica anestesiado pela imagem e a musica entra com mais facilidade"30.

No ambito das negocia~oes, 0 poder de decisao aparece, mui­tas vezes, concentrado em uma s6 pessoa. Na Rede Globo, este poder estaria nas maos de seu diretor musical, a quem caberia pessoalmente decidir sobre as musicas que compoem a programa~ao31. Na realida­de, esta e uma maneira de objetivar, de personificar um poder pulve­rizado no ambito dos interesses e dos esquemas em jogo. 0 poder que 0 executivo tem e 0 de escolher estrategias, alian~as e taticas mais eficientes.

Dessa forma, raras sao as musicas especialmente compostas para as novelas: "Nao ha convite para a elabora~ao criativa a um compositor ou interprete, em fun~ao da novela. 0 processo e in­verso - procede-se a uma negocia~ao com as gravadoras, utilizan-

28 In: Mercado Global, nO 76, fevereiro/89, p. 25. Por mais que 0 objeto em questao seja tfpico dos anos 70, permito-me utilizar dados mais atuais que, no meu enten­der, fornecem amplitude ao problema, considerando sobretudo a consolidac;ao; ao longo das decadas subseqUentes, do segmento das trilhas como urn dos mais lucrativos da industria fonogrMica, como veremos.

29 Vange Leonel, cantora que, ate 0 momento, [eve como unico sucesso a canc;ao Noite Freta lerna de abertura da novela Vamp (Rede Globa, 1992). In: "Os Vinte Homens Mais Poderosos da Musica Brasileira", BIZZ, Editora Azul, Ano 9, nU06, Edil'iio 95, junho de 1993, p. 41.

30 Ricardo Henrique, entao diretor artfstico da Radio Jovern Pan, na reportagern citada acima. Da mesma forma, as telenovelas sao espa~os privilegiados para a divulgac;ao de produtos das mais variadas naturezas. Ver, por exemplo, "Ator diz que inventou merchandising". In, FoibadeS.Pauio, 27-11-94, 5-3 e ORTIZ, BORELLI e ORTIZ RAMOS, op. cit.

31 A revista BIZZ, citada, aponta Mariozinho Rocha como sendo este poderoso hornem, nos anos 90.

Page 32: Os donos da voz - Márcia Tosta Dias

pi!

! ~ 62 Os donos da voz

do, nas trilhas sonoras, muslcas ja gravadas, que se identificam com as personagens e as situa~5es das narrativas".32 E mais, devem' afinar-se aos interesses promocionais das gravadoras que esco­Ihem produtos especificos para divulgar, em tais condi~5es. Assim, a disputa pelas trilhas pode ser entendida da seguinte forma: se a gravadora quer promover um artista novo, que tenha um trabalho pronto, ela pode procurar a emissora de TV e prop~r a sua divul­ga~ao como trilha. Se 0 artista ja esta fazendo sucesso, 0 interesse de fazer sua can~ao integrar uma trilha diminui, uma vez que a compra do disco da novela, motivada por aquela can~ao especifi­ca, pode significar que nao se comprou 0 disco do artista, 0 que nao e vantagem para a gravadora. Por outro lado, a emissora de TV, pode sugerir uma troca: promove uma can~ao de um artista novo e a gravadora oferece outra, de um consagrado.33

No mesmo sentido, e notavel a intera~ao que se observa nos mercados fonografico e publicitario, que envolve, mais freqiientemente, a televisao e 0 radio. Propagandas mundializadas, como ados cigarros Marlboro e Hollywood", como tantas outras, veiculam can~5es que estarao sempre associadas a tais produtos:

Nos anos 80, os comerciais do cigarro Hollywood, eram feitos com

musicas incidentais, criadas para a ocasHto. Uma vez eu cheguei

para 0 publicitario e propus que ele usasse uma musica de urn artista meu. Assim, imagens tao bonitas como asas-delta, bugues na

praia, usariam uma musica minha. Eu faco com que seu produto

seja conhecido no radio e voc~ faz com que minha musica seja conhecida na televisao, unimos as forc;as, voce ganha e eu ganho.

Toda vez que uma pessoa escutar a musica no radio, vai se lembrar

do seu comercial e toda vez que a pessoa ver 0 seu comercial, vai

32 FREITAG, L.V. "A trilha sonora na novela brasileira - Problemas de identidade cultural". In: D.O. Lellura, 9-10-90, p. 4.

33 De acordo com varias fontes citadas. "Voc~ recebe as miisicas da novela. As miisicas que voc~ vai ter que toear na novela sao essas, e voc~ encaixa. Af fica aquele neg6cio, eles ficam procurando cena onde eles possam botar a miisica para vender 0 disco". Depoimento de Silvio de Abreu. In: ORTIZ, BORELLI e RAMOS, op. cit., p. 147.

34 cr. ORTIZ, 1994, especialmente Capitulo V.

Trajet6ria da industria fonografica brasileira: anos 70 e 80 63

se lembrar da minha musica. N6s trocamos as figurinhas, voce ga­nha e eu ganho35 .

A intera~ao de varios setores da industria cultural, a grande simbiose de val ores culturais industrializados e mundializados e sua definitiva consolida~ao no Brasil dos anos 70, sao exemplarmente observados na estrategia de marketing que lan~ou a cantora brasileira Rita Lee, entao vocalista do grupo musical Mutantes, em carreira solo". Em 1970, 0 interesse de Andr~ Midani, presidente da Philips (a grava­dora do grupo) em investir na artista, fez com que sugerisse seu nome para Llvio Rangan, presidente da Rhodia no Brasil, para estrelar um show de lan~amento da cole~ao de tecidos da empresa, no inlcio do referido ano. A estrategia viria colaborar para 0 fim do grupo, nos anos subseqiientes e a ascensao de Rita Lee como grande nome do rock brasileiro, tal como planejara Midani. Foram dois, os shows­desfiles estrelados por Rita. No primeiro, de nome Nbo Look, a canto­ra promovia a propoSta estetica da Rhodia para a ocasiiio, baseada numa slntese peculiar do mundo rural europeu e brasileiro: vestidos inspirados nas camponesas europeias eram apresentados ao som de musica sertaneja local. A tendencia sugeria algo como um "caipira chique". Rita cantava acompanhada de uma banda interiorana de ca­torze musicos, ao lado de duplas "caipiras", como Tonico e Tinoc037.

Mas, em agosto do mesmo ano, surgiu 0 segundo espetaculo, mais vultuoso e elaborado, a partir do sucesso do primeiro. A Rhodia montou uma super-produ~ao para 0 lan~amento de sua segunda co­le~ao, estrelado, da mesma forma, por Rita Lee que, simultaneamen­te, lan~ava seu primeiro disco solo. Tanto 0 show-desfile, quanto 0

disco, tinham 0 emblematico nome de Build Up, que em ingles signi­fica construir, mas em termos de mldia, significa construir, articular a

35 Entrevista com Marcos Maynard, Presidente da PolyGram do Brasil, R): 06-09-94. Todos os excertos citados sao extrafdos da entrevista.

36 cr. CALADO, C. A Dtv/na Comiid/a dos MUlanles. RJ Editora 34, 1995, p. 220-233. 37 Waldenyr Caldas, em sua obra citada, aponta para urn outro aspecto presente em

Nho Look, quando ana lisa a concepcao musical do espet<1culo a partir de sua proposta estetica e dos argumentos apresentados por Rogerio Duprat, seu diretor musical. Para 0 aUlor, ao mesclar elemento~ da miisica caipira com a realidade urbana, 0 espetaculo teria inaugurado 0 segmento da country music brasileira, a miisica sertaneja. Op. cit., p. 44-53.

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do, nas trilhas sonoras, muslcas ja gravadas, que se identificam com as personagens e as situa~5es das narrativas".32 E mais, devem' afinar-se aos interesses promocionais das gravadoras que esco­Ihem produtos especificos para divulgar, em tais condi~5es. Assim, a disputa pelas trilhas pode ser entendida da seguinte forma: se a gravadora quer promover um artista novo, que tenha um trabalho pronto, ela pode procurar a emissora de TV e prop~r a sua divul­ga~ao como trilha. Se 0 artista ja esta fazendo sucesso, 0 interesse de fazer sua can~ao integrar uma trilha diminui, uma vez que a compra do disco da novela, motivada por aquela can~ao especifi­ca, pode significar que nao se comprou 0 disco do artista, 0 que nao e vantagem para a gravadora. Por outro lado, a emissora de TV, pode sugerir uma troca: promove uma can~ao de um artista novo e a gravadora oferece outra, de um consagrado.33

No mesmo sentido, e notavel a intera~ao que se observa nos mercados fonografico e publicitario, que envolve, mais freqiientemente, a televisao e 0 radio. Propagandas mundializadas, como ados cigarros Marlboro e Hollywood", como tantas outras, veiculam can~5es que estarao sempre associadas a tais produtos:

Nos anos 80, os comerciais do cigarro Hollywood, eram feitos com

musicas incidentais, criadas para a ocasHto. Uma vez eu cheguei

para 0 publicitario e propus que ele usasse uma musica de urn artista meu. Assim, imagens tao bonitas como asas-delta, bugues na

praia, usariam uma musica minha. Eu faco com que seu produto

seja conhecido no radio e voc~ faz com que minha musica seja conhecida na televisao, unimos as forc;as, voce ganha e eu ganho.

Toda vez que uma pessoa escutar a musica no radio, vai se lembrar

do seu comercial e toda vez que a pessoa ver 0 seu comercial, vai

32 FREITAG, L.V. "A trilha sonora na novela brasileira - Problemas de identidade cultural". In: D.O. Lellura, 9-10-90, p. 4.

33 De acordo com varias fontes citadas. "Voc~ recebe as miisicas da novela. As miisicas que voc~ vai ter que toear na novela sao essas, e voc~ encaixa. Af fica aquele neg6cio, eles ficam procurando cena onde eles possam botar a miisica para vender 0 disco". Depoimento de Silvio de Abreu. In: ORTIZ, BORELLI e RAMOS, op. cit., p. 147.

34 cr. ORTIZ, 1994, especialmente Capitulo V.

Trajet6ria da industria fonografica brasileira: anos 70 e 80 63

se lembrar da minha musica. N6s trocamos as figurinhas, voce ga­nha e eu ganho35 .

A intera~ao de varios setores da industria cultural, a grande simbiose de val ores culturais industrializados e mundializados e sua definitiva consolida~ao no Brasil dos anos 70, sao exemplarmente observados na estrategia de marketing que lan~ou a cantora brasileira Rita Lee, entao vocalista do grupo musical Mutantes, em carreira solo". Em 1970, 0 interesse de Andr~ Midani, presidente da Philips (a grava­dora do grupo) em investir na artista, fez com que sugerisse seu nome para Llvio Rangan, presidente da Rhodia no Brasil, para estrelar um show de lan~amento da cole~ao de tecidos da empresa, no inlcio do referido ano. A estrategia viria colaborar para 0 fim do grupo, nos anos subseqiientes e a ascensao de Rita Lee como grande nome do rock brasileiro, tal como planejara Midani. Foram dois, os shows­desfiles estrelados por Rita. No primeiro, de nome Nbo Look, a canto­ra promovia a propoSta estetica da Rhodia para a ocasiiio, baseada numa slntese peculiar do mundo rural europeu e brasileiro: vestidos inspirados nas camponesas europeias eram apresentados ao som de musica sertaneja local. A tendencia sugeria algo como um "caipira chique". Rita cantava acompanhada de uma banda interiorana de ca­torze musicos, ao lado de duplas "caipiras", como Tonico e Tinoc037.

Mas, em agosto do mesmo ano, surgiu 0 segundo espetaculo, mais vultuoso e elaborado, a partir do sucesso do primeiro. A Rhodia montou uma super-produ~ao para 0 lan~amento de sua segunda co­le~ao, estrelado, da mesma forma, por Rita Lee que, simultaneamen­te, lan~ava seu primeiro disco solo. Tanto 0 show-desfile, quanto 0

disco, tinham 0 emblematico nome de Build Up, que em ingles signi­fica construir, mas em termos de mldia, significa construir, articular a

35 Entrevista com Marcos Maynard, Presidente da PolyGram do Brasil, R): 06-09-94. Todos os excertos citados sao extrafdos da entrevista.

36 cr. CALADO, C. A Dtv/na Comiid/a dos MUlanles. RJ Editora 34, 1995, p. 220-233. 37 Waldenyr Caldas, em sua obra citada, aponta para urn outro aspecto presente em

Nho Look, quando ana lisa a concepcao musical do espet<1culo a partir de sua proposta estetica e dos argumentos apresentados por Rogerio Duprat, seu diretor musical. Para 0 aUlor, ao mesclar elemento~ da miisica caipira com a realidade urbana, 0 espetaculo teria inaugurado 0 segmento da country music brasileira, a miisica sertaneja. Op. cit., p. 44-53.

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64 Os donos da voz

imagem de urn artista, ou de urn produto, para que ele seja mais facilmente consumido e era, no [undo, 0 que eles queriam fazer com a Rita, exatamente 0 que eles estavam fazendo. Na verdade, foi quase urn produto feito em duas [rentes. A Rhodia montou urn show que era 0 seguinte, uma artista jovem que era a Rita, que ia passar por urn processo de build up na industria. Entao essa cantora ia ser uma modelo em come~o de carreira, ingenua, que ia fazer 0 contato com uma agencia de publicidade. Esse era 0 cenario do show. Vma agen­cia de publicidade onde, as contas eram dos mais variados produtos, por exemplo, tinha urn dentifricio, uma marca de carro, urn cosmeti­co. Varios produtos passam pela industria, articulados naquela agen­cia de propaganda e justamente, cada urn dos produtos para os quais a agencia ia bolando as propagandas, a Rita, como modelo, ia pro­movendo. E esses produtos eram aqueles que estavam pagando 0

show, eram .os pr6prios patrocinadores do show. Para a epoca, era uma coisa muito bern articulada"'.

A forma altamente elaborada apresentada pelo evento expressa, na realidade, 0 movimento de total sincronicidade pelo qual a indiistria cultural chega ao conjunto da vida social. No Brasil dos anos 70, 0

carater de mercadoria dos produtos culturais passa a ser evocado com maior naturalidade, por todas as partes envolvidas. Os numeros tern' grande imporuncia para a compreensao do contexto e expressam os

' .. ganhos do periodo. Se, por urn lado, consideramos 0 desenvolvimento economico como 0 grande impulsionador da modemiza~ao, por outro percebemos que a dimensao tomada pelas mudan~as na esfera cultural tern propor~oes imensuraveis, tomando complexa a sua configura~ao e, consequentemente, a sua analise. Nesse sentido, e preciso aproxi­mar 0 foco para a estrutura e organiza~ao da industria fonografica brasileira na epoca, considerando 0 panorama apresentado na busca de mais elementos para 0 seu entendimento.

38 Entrevista com Carlos Calado. jornalista e escritor, SP: 21-04-95. No livro citado, 0

assunto e tratado nas p. 220-233. Ao todo eram catorze patrocinadores (entre eles Esso, Hollywood, Bacardi, Old Eight, Caioi, Ford), a direcao musical, como apon­lei, era de Rogerio Duprat e Diogo Pacheco, dire~ao geral de Roberto Palmari. Participaram 16 manequins, 0 ator Paulo Jose e os cantares Jorge Ben, Juca Chaves, Tim Maia, Marisa e os grupos Trio Mocot6, Coral Crioulo dentre cutros e o cenario contava com sofisticadfssima aparelhagem audiovisual.

Trajet6ria da industria fonografica brasileira: anos 70 e 80 65

fa estou ate venda IMeu nome brllhando lEo mundo aplaudindo/ Ao me ver cantar I Ao me ver dan.ar I I wanna be a star I Como Ginger Rogers vou sapatear IMais de mil vestidos vou poder usarl Num show de cores em cinemascope I Eu direi adeus I Aos sonhos meus I Sucesso aqui vou eU,39 .

2. Estrutura e Organiza\;ao das Majors no Brasil: anos 1970 e 1980

A produ~ao de discos organizada em uma linha de montagem, era realidade no Brasil dos anos 70. Reservada a transnacional ou as empresas nacionais de grande porte, essa linha de produ~ao continha as seguintes etapas: concep~ao e planejamento do produto; prepara­~ao do artista, do repert6rio e da grava~ao; grava~ao em estudio; mixagem, prepara~ao da fita master; confec~ao da matriz, prensagem/ fabrica~ao; controle de qualidade; capa/embalagem; distribui~ao; marketing/divulga~ao e difusao. A consecu~ao dessas etapas envol­via profissionais das mais variadas areas: musicos, compositores, in­terpretes, tecnicos e engenheiros de som, artistas graficos, advoga­dos, publicitarios, divulgadores, contabilistas, funcionarios adminis­trativos, diretores, gerentes, operarios, vendedores. Seguindo a classi­fica~ao feita por Othon Jambeiro, podemos dizer que todas essas atividades estavam dispostas em quatro areas distintas: "a artistica, a tecnica, a comercial e a industria!'!40. Contudo, essa divisao nao distin­gue areas estanques, na medida em que as duas primeiras estao com­pletamente imbricadas, ficando reservado as duas ultimas, urn espa~o de natureza diferenciada, pr6prio a produ~ao de mercadorias. Os recursos tecnol6gicos sustentam toda a produ~ao.

Como tive oportunidade de apontar, a alta complexidade do processo esta no fato de concentrar, no produto final, duas dimen­soes essencialmente diversas: a produ~ao material e a produ0io artfs-

39 Trecho da can~ao Sucesso, do LP Build Up, de Rita Lee (composi~o de Rita Lee e Arnalda Balista, PalydOl', 1970). In, CALADO, 1995, p. 229.

40 JAMBEIRO, O. Carl{:ao de massa: As condi~i5es daprodttfiio. SP: Livr'dria Pioneira Edilara, 1975, p. 45.

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imagem de urn artista, ou de urn produto, para que ele seja mais facilmente consumido e era, no [undo, 0 que eles queriam fazer com a Rita, exatamente 0 que eles estavam fazendo. Na verdade, foi quase urn produto feito em duas [rentes. A Rhodia montou urn show que era 0 seguinte, uma artista jovem que era a Rita, que ia passar por urn processo de build up na industria. Entao essa cantora ia ser uma modelo em come~o de carreira, ingenua, que ia fazer 0 contato com uma agencia de publicidade. Esse era 0 cenario do show. Vma agen­cia de publicidade onde, as contas eram dos mais variados produtos, por exemplo, tinha urn dentifricio, uma marca de carro, urn cosmeti­co. Varios produtos passam pela industria, articulados naquela agen­cia de propaganda e justamente, cada urn dos produtos para os quais a agencia ia bolando as propagandas, a Rita, como modelo, ia pro­movendo. E esses produtos eram aqueles que estavam pagando 0

show, eram .os pr6prios patrocinadores do show. Para a epoca, era uma coisa muito bern articulada"'.

A forma altamente elaborada apresentada pelo evento expressa, na realidade, 0 movimento de total sincronicidade pelo qual a indiistria cultural chega ao conjunto da vida social. No Brasil dos anos 70, 0

carater de mercadoria dos produtos culturais passa a ser evocado com maior naturalidade, por todas as partes envolvidas. Os numeros tern' grande imporuncia para a compreensao do contexto e expressam os

' .. ganhos do periodo. Se, por urn lado, consideramos 0 desenvolvimento economico como 0 grande impulsionador da modemiza~ao, por outro percebemos que a dimensao tomada pelas mudan~as na esfera cultural tern propor~oes imensuraveis, tomando complexa a sua configura~ao e, consequentemente, a sua analise. Nesse sentido, e preciso aproxi­mar 0 foco para a estrutura e organiza~ao da industria fonografica brasileira na epoca, considerando 0 panorama apresentado na busca de mais elementos para 0 seu entendimento.

38 Entrevista com Carlos Calado. jornalista e escritor, SP: 21-04-95. No livro citado, 0

assunto e tratado nas p. 220-233. Ao todo eram catorze patrocinadores (entre eles Esso, Hollywood, Bacardi, Old Eight, Caioi, Ford), a direcao musical, como apon­lei, era de Rogerio Duprat e Diogo Pacheco, dire~ao geral de Roberto Palmari. Participaram 16 manequins, 0 ator Paulo Jose e os cantares Jorge Ben, Juca Chaves, Tim Maia, Marisa e os grupos Trio Mocot6, Coral Crioulo dentre cutros e o cenario contava com sofisticadfssima aparelhagem audiovisual.

Trajet6ria da industria fonografica brasileira: anos 70 e 80 65

fa estou ate venda IMeu nome brllhando lEo mundo aplaudindo/ Ao me ver cantar I Ao me ver dan.ar I I wanna be a star I Como Ginger Rogers vou sapatear IMais de mil vestidos vou poder usarl Num show de cores em cinemascope I Eu direi adeus I Aos sonhos meus I Sucesso aqui vou eU,39 .

2. Estrutura e Organiza\;ao das Majors no Brasil: anos 1970 e 1980

A produ~ao de discos organizada em uma linha de montagem, era realidade no Brasil dos anos 70. Reservada a transnacional ou as empresas nacionais de grande porte, essa linha de produ~ao continha as seguintes etapas: concep~ao e planejamento do produto; prepara­~ao do artista, do repert6rio e da grava~ao; grava~ao em estudio; mixagem, prepara~ao da fita master; confec~ao da matriz, prensagem/ fabrica~ao; controle de qualidade; capa/embalagem; distribui~ao; marketing/divulga~ao e difusao. A consecu~ao dessas etapas envol­via profissionais das mais variadas areas: musicos, compositores, in­terpretes, tecnicos e engenheiros de som, artistas graficos, advoga­dos, publicitarios, divulgadores, contabilistas, funcionarios adminis­trativos, diretores, gerentes, operarios, vendedores. Seguindo a classi­fica~ao feita por Othon Jambeiro, podemos dizer que todas essas atividades estavam dispostas em quatro areas distintas: "a artistica, a tecnica, a comercial e a industria!'!40. Contudo, essa divisao nao distin­gue areas estanques, na medida em que as duas primeiras estao com­pletamente imbricadas, ficando reservado as duas ultimas, urn espa~o de natureza diferenciada, pr6prio a produ~ao de mercadorias. Os recursos tecnol6gicos sustentam toda a produ~ao.

Como tive oportunidade de apontar, a alta complexidade do processo esta no fato de concentrar, no produto final, duas dimen­soes essencialmente diversas: a produ~ao material e a produ0io artfs-

39 Trecho da can~ao Sucesso, do LP Build Up, de Rita Lee (composi~o de Rita Lee e Arnalda Balista, PalydOl', 1970). In, CALADO, 1995, p. 229.

40 JAMBEIRO, O. Carl{:ao de massa: As condi~i5es daprodttfiio. SP: Livr'dria Pioneira Edilara, 1975, p. 45.

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tico-musical. Rita Morelli discute as implica~oes que a divisao entre produ~llo material e produ~iio cultural (em suas palavras) traz ao produto. Ve, nessa dualidade, a expressao da divisao social do traba­lho, tal como ocorre na industria do disco e, nessa qualidade, aparece objetivada na separa~ao entre fabrica e estudio' l .

Na realidade, a contradi~ao existente entre essas duas dimen­soes e fundante na industria cultural; e a evidencia da cultura admi­nistrada. No caso da industria do disco, a quesmo ganha maior sen­tido se vista do angulo da propriedade: "( ... ) enquanto 0 controle administrativo sobre processos vitais e concentrado, a propriedade permanece difusa".42 Um numero reduzido de palos produtores di­funde a mercadoria que sera consumida em escala muitas vezes maior do que, efetivamente, podem mostrar as pesq~isas de vendagem. Por· outro lado, 0 produto comprado, a posse do suporte, seja qual for, possibilita um tipo de "liberdade" de uso: ouvir onde, quando e quantas vezes quiser. "0 contraste tecnico entre poucos centros de produ~iio e uma recep~ao dispersa condicionaria a organiza¢o e 0 planeja­.mento pela dire~iio" .43

Diferentemente de Morelli, considero que a divisiio de trabalho existente na industria fonografica nao coincide com a divisiio entre produ~iio material e produ~iio artistico-cultural. Na grande industria, e frequente a sobreposi~ao dessas duas dimensoes em uma instancia executora do que e previamente planejado pela administra~iio central das firmas. Desta forma, estiio, de um lado, a administra~iio central Cinclui a dire~ao artistica) que, com seus departamentos de Artistas e Repertorio (A&R) e Marketing concebem 0 produto, da forma estetica as estrategias para divulga~iio. De outro, esta a produ~iio material propriamente dita, a execu~iio do que foi planejado, incluido 0 traba­lho do artista no estudio e todo 0 processo de grava~iio e tratamento tecnico a ele dispensado. Com a sofistica~iio dos aparatos tecnologicos,

41 "Para urn observador atentQ nao deve passar desapercebida a disdincia existente entre estudios e a fabrica de uma gravadora como a PolyGmm, no Rio de Janeiro -disd\ncia esta que pode ser vista como uma manifestacao daqueJa existente entre o Ceu e a Terra que tomamos como metMora da separa\20 vigente entre a cultura e a produ~ilo material ( ... )". In: MORELLI, 1991, p. 89.

42 ADORNO, SMp, p.123. 43 ADORNO e HORKHEIMER, DE, p. 114.

Trajet6ria da industria fonografica brasileira: anos 70 e 80 67

toda a esfera da produ~iio material do disco que, portanto, niio se restringe a fabrica~iio, vai tomando uma dimensao diferenciada, con­quistando certa autonomia com rela~iio ao todo. 0 trabalho de estu­dio, uma vez autonomizado, confunde-se com a esfera da produ~ao artistica. Mas, ao meu ver, essa e uma autonomia de gerenciamento do produto e niio de cria~llo artistica. Se existe um imbricamento entre as esferas tecnica e artistica, e a primeira que conquista 0 privi­legio de comandar 0 processo.

o problema e minuciosamente analisado por Eduardo Vicente, quando trata da estreita rela~iio existente entre 0 desenvolvimento da industria fonografica e 0 crescente aperfei~oamento de seus meios tecnicos de produ~iio. Nesse contexto, a busca de novos aparatos e equipamentos tais como os gravadores, sistemas de grava~iio em multi-canais, bem como as atuais tecnologias. digitais de produ~iio musical, marcam diferentes momentos e configura~oes para o con­junto da industria, ao longo dos tempos. No ambito do trabalho oos estudios, a sofistica~ao qualitativa e a gama de possibilidades esteti­cas que vao sendo transferidas ao produto final, no decorrer desse desenvolvimento, aproximam e confundem suas dimensoes tecnica e artistica44 • 0 processo de grava~iio tornou-se cada vez mais racio­nal e artificial e, como veremos adiante, definiu mudan~as radicais nas rela~oes de trabalho. Assim, as tecnologias de produ~ao musical vieram, definitivamente, distanciar a atmosfera de artesanalidade do processo de produ~ao na industria fonografica. Vicente lembra que, para Adorno, tal atmosfera era ~ecessaria it pseudo-individua~iio dos produtos, e alertava, prospectivamente (nos anos 40, quando

44 "(. .. ) na epoca da gravacao em disco, os muskos eram simp1esmente reunldos em torno do microfone para 0 registro de sua performance. J3. durante 0 usc dos primeiros tapes, eram freqUentemente separados por biombos dentro da sal~ e utilizavam fones de ouvido para que pudessem acompanhar as performances uns dos outros. Com 0 desenvolvimento das ttknicas de multi-canals esta separa~ao entre os participantes cia performance se radicalizou e os mdsicos passaram a tocar separadamente, gravando suas participa~oes a partir da audi~ao do registro das performances dos musicos que os antecederam. Com a sobreposi~ao das performances instrumentais, elas passam a ser objeto de uma maior racionaliza­~ao e planejamento para que nao surjam resultados indesejaveis de sua combina­~ao e, em fun~ao da ordem em que sao realizadas, passam a adquirir diferentes caracterlsticas". VICENTE, 1996, p. 29.

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tico-musical. Rita Morelli discute as implica~oes que a divisao entre produ~llo material e produ~iio cultural (em suas palavras) traz ao produto. Ve, nessa dualidade, a expressao da divisao social do traba­lho, tal como ocorre na industria do disco e, nessa qualidade, aparece objetivada na separa~ao entre fabrica e estudio' l .

Na realidade, a contradi~ao existente entre essas duas dimen­soes e fundante na industria cultural; e a evidencia da cultura admi­nistrada. No caso da industria do disco, a quesmo ganha maior sen­tido se vista do angulo da propriedade: "( ... ) enquanto 0 controle administrativo sobre processos vitais e concentrado, a propriedade permanece difusa".42 Um numero reduzido de palos produtores di­funde a mercadoria que sera consumida em escala muitas vezes maior do que, efetivamente, podem mostrar as pesq~isas de vendagem. Por· outro lado, 0 produto comprado, a posse do suporte, seja qual for, possibilita um tipo de "liberdade" de uso: ouvir onde, quando e quantas vezes quiser. "0 contraste tecnico entre poucos centros de produ~iio e uma recep~ao dispersa condicionaria a organiza¢o e 0 planeja­.mento pela dire~iio" .43

Diferentemente de Morelli, considero que a divisiio de trabalho existente na industria fonografica nao coincide com a divisiio entre produ~iio material e produ~iio artistico-cultural. Na grande industria, e frequente a sobreposi~ao dessas duas dimensoes em uma instancia executora do que e previamente planejado pela administra~iio central das firmas. Desta forma, estiio, de um lado, a administra~iio central Cinclui a dire~ao artistica) que, com seus departamentos de Artistas e Repertorio (A&R) e Marketing concebem 0 produto, da forma estetica as estrategias para divulga~iio. De outro, esta a produ~iio material propriamente dita, a execu~iio do que foi planejado, incluido 0 traba­lho do artista no estudio e todo 0 processo de grava~iio e tratamento tecnico a ele dispensado. Com a sofistica~iio dos aparatos tecnologicos,

41 "Para urn observador atentQ nao deve passar desapercebida a disdincia existente entre estudios e a fabrica de uma gravadora como a PolyGmm, no Rio de Janeiro -disd\ncia esta que pode ser vista como uma manifestacao daqueJa existente entre o Ceu e a Terra que tomamos como metMora da separa\20 vigente entre a cultura e a produ~ilo material ( ... )". In: MORELLI, 1991, p. 89.

42 ADORNO, SMp, p.123. 43 ADORNO e HORKHEIMER, DE, p. 114.

Trajet6ria da industria fonografica brasileira: anos 70 e 80 67

toda a esfera da produ~iio material do disco que, portanto, niio se restringe a fabrica~iio, vai tomando uma dimensao diferenciada, con­quistando certa autonomia com rela~iio ao todo. 0 trabalho de estu­dio, uma vez autonomizado, confunde-se com a esfera da produ~ao artistica. Mas, ao meu ver, essa e uma autonomia de gerenciamento do produto e niio de cria~llo artistica. Se existe um imbricamento entre as esferas tecnica e artistica, e a primeira que conquista 0 privi­legio de comandar 0 processo.

o problema e minuciosamente analisado por Eduardo Vicente, quando trata da estreita rela~iio existente entre 0 desenvolvimento da industria fonografica e 0 crescente aperfei~oamento de seus meios tecnicos de produ~iio. Nesse contexto, a busca de novos aparatos e equipamentos tais como os gravadores, sistemas de grava~iio em multi-canais, bem como as atuais tecnologias. digitais de produ~iio musical, marcam diferentes momentos e configura~oes para o con­junto da industria, ao longo dos tempos. No ambito do trabalho oos estudios, a sofistica~ao qualitativa e a gama de possibilidades esteti­cas que vao sendo transferidas ao produto final, no decorrer desse desenvolvimento, aproximam e confundem suas dimensoes tecnica e artistica44 • 0 processo de grava~iio tornou-se cada vez mais racio­nal e artificial e, como veremos adiante, definiu mudan~as radicais nas rela~oes de trabalho. Assim, as tecnologias de produ~ao musical vieram, definitivamente, distanciar a atmosfera de artesanalidade do processo de produ~ao na industria fonografica. Vicente lembra que, para Adorno, tal atmosfera era ~ecessaria it pseudo-individua~iio dos produtos, e alertava, prospectivamente (nos anos 40, quando

44 "(. .. ) na epoca da gravacao em disco, os muskos eram simp1esmente reunldos em torno do microfone para 0 registro de sua performance. J3. durante 0 usc dos primeiros tapes, eram freqUentemente separados por biombos dentro da sal~ e utilizavam fones de ouvido para que pudessem acompanhar as performances uns dos outros. Com 0 desenvolvimento das ttknicas de multi-canals esta separa~ao entre os participantes cia performance se radicalizou e os mdsicos passaram a tocar separadamente, gravando suas participa~oes a partir da audi~ao do registro das performances dos musicos que os antecederam. Com a sobreposi~ao das performances instrumentais, elas passam a ser objeto de uma maior racionaliza­~ao e planejamento para que nao surjam resultados indesejaveis de sua combina­~ao e, em fun~ao da ordem em que sao realizadas, passam a adquirir diferentes caracterlsticas". VICENTE, 1996, p. 29.

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escreve), para 0 fato de que um meio sintetico estaria sendo desen­volvido para substitui-la, garantindo a realiza~ao do processo de produ~ao, ja entao em escala industrial". Nesse sentido, 0 autar confirma 0 prognostico de Adorno e mostra que, com 0 advento das altas tecnologias de produ~ao musical, os ganhos para a produ~ao artistica sao limitados pela propria configura~ao tecnica dos apara­tos. E, no que diz respeito a divisao do trabalho, tais equipamentos acabam por promover, efetivamente, urna especie de sobreposi~ao das esferas antes estritamente tecnica e artistica, com a inegavel subordina~ao desta ultima a primeira.

Uma outra via para a analise do trabalho na industria fonogcifica, encontramos na posi~ao de autores que veem 0 disco como resultado de um processo de trabalho cada vez rnais coletivo. Para alem da aparente obviedade, tal afirma~ao quer questionar a existencia de urna rigida divisao do trabalho na industria fonografica. A. Hennion, autor de um dos raros estudos sociologicos sobre 0 processo de pro­du~ao na industria fonogcifica, ao analisar 0 universe da musica de variedade~ (que, neste trabalho, tenho chamado de rnusica popular ou can~ao popular de massa), afirma que 0 processo e realizado por um criador coletivo (por rnais que, posteriorrnente, a autoria do pro­duto final seja conferida a um criador unico), ou seja, por urna equipe de profissionais que, simultaneamente, incumbe-se dos varios aspectos da produr.;ao social de uma can~ao e, na seqUencia, do conjunto de can~oes organizadas em discO'6. Assim, a equipe deve possuir

45 ADORNO, SMP, p. 123. As relacoes existentes entre 0 desenvolvimento do apara­to tecnico da industria fonogl'Mica e a ideia de "meio sinteticon desenvolvida por Adorno, sao tambem objeto das preocupa~oes de ZAN, J. R. "Musica Popular: Produ~lo e Marketing". In: BORELLI, S.H.S (org.) Generosficctonais, produfaO e cotidiano na cU/lura popttlarde massa. Col. GTS/INTERCOM, nil 1, 1994, p. 86.

46 HENNION, A, Les Pro!essionnels du Disque. Une soci%gle des varietes. Paris: Editions A. M. Metailie. 1981. FLICHY, 1982, p. 43, ao reportar-se a tal coletiviza¢.i.o, inspira-se em analises de Hennion, No entanto, a questAo pode ser analisada de uma perspeetiva antropo16gica: varios elementos e refereneias musicais vao sen­do reunidos e registrados ao longo dos tempos at~ que se perca a ideia de urn eriador unfeo. Por outro lado, Vicente, em seu trabalho citado, estuda a eomple­xidade que as teeno!ogias de producao musical trazem ao problema da identifica­~~o do autor, na medida em que utilizam trechos musicais pre-elaborados, prin­cipalmente, por meio do uso dos samplers, "equipamentos que permitem a digitaliza~~o de amostras sonoras e seu posterior processamento", (p. 36): "( .. ,) a

Trajet6ria da industria fonografica brasileira: anos 70 e 80 69

conhecimentos musicais e artisticos, tanto quanta deve conhecer os aparatos tecnicos de produ~ao, 0 publico e 0 mercado. 0 produto final e 0 resultado de permanente negocia~ao entre 0 trabalho e os diferentes elementos que cada participante aporta ao processo. Para o autor, a can~ao e 0 disco de variedades sao socialmente produzi­dos, pois traduzem e expressam os desejos do publico que, na verda­de, e 0 nome que da as referencias culturais de seu consumidor po­tencial. Portanto, de acordo com essa perspectiva, 0 segredo do su­cesso da musica de variedades esta na mescla entre os elementos musicais e tais desejos.

Na minuciosa explora~ao que faz das varias esferas da produ~ao fonogcifica, Hennion ressalta a riqueza de suas particularidades e seve­ramente nega 0 seu condicionamento a interesses externos ao trabalho criativo, por, mais que considere igualrnente importantes, a busca do sucesso e do retorno economico das opera~oes47. Na realidade, quer mostrar que se 0 produto tem profunda identifica~ao popular, e por­que 0 seu processo de produ~o constitui-se de esferas autonornas, onde as partes tem grande dominio e liberdade de execu~ao do que vici a ser 0 produto final. Com rela~o ao trabalho de estudio, por exemplo, diz que "(. .. ) 0 tecnico controla sozinho uma serie de opera­~oes que estao ligadas 11. sua propria ideia da can~ao, que nao se pode reduzir aos meios tecnicos: (. .. ) nao seria impor tal ou tal solu~ao tecni­ca, considerando que diferentes realiza~oes de ideias de um diretor artistico podem ser wncebidas de maneiras muito divergentes" .'.

Ora, as particularidades das esferas da produ~ao do disco levanta­das pelo autor wnfirmam, paradoxalmente, a ideia de divisao do traba-

produ~~o de uma musica tende a tornar-se 0 resultado de uma montagem que envolve inumeros elementos pre-produzidos e, emhora apenas ante certos usos do sampler ocorram questionamentos legais acerca da propriedade sobre as so­noridades utilizadas, e fo~oso notar que todas as produ~Oes feitas no ambito do digital tendem a ser, necessariamente, 0 resultado de multiplas apropria~Oes des­te genero" (p. 95).

47 0 autor faz uma nftida distin~~o entre a produ~ao das transnacionais e a de pequenos produtores independentes, reservando a estes ultimos 0 merito de produzirem a verdadetra musica de variedades que, por sua autenticidade, corresponde aos anseios do publico. Considera que tal tipo de produ~~o torna-se tamhem viavel dado 0 pequeno tamanho da opera~ao econOmica de que faz parte.

48 HENNION, 1981, p. 136.

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68 Os donos da voz

escreve), para 0 fato de que um meio sintetico estaria sendo desen­volvido para substitui-la, garantindo a realiza~ao do processo de produ~ao, ja entao em escala industrial". Nesse sentido, 0 autar confirma 0 prognostico de Adorno e mostra que, com 0 advento das altas tecnologias de produ~ao musical, os ganhos para a produ~ao artistica sao limitados pela propria configura~ao tecnica dos apara­tos. E, no que diz respeito a divisao do trabalho, tais equipamentos acabam por promover, efetivamente, urna especie de sobreposi~ao das esferas antes estritamente tecnica e artistica, com a inegavel subordina~ao desta ultima a primeira.

Uma outra via para a analise do trabalho na industria fonogcifica, encontramos na posi~ao de autores que veem 0 disco como resultado de um processo de trabalho cada vez rnais coletivo. Para alem da aparente obviedade, tal afirma~ao quer questionar a existencia de urna rigida divisao do trabalho na industria fonografica. A. Hennion, autor de um dos raros estudos sociologicos sobre 0 processo de pro­du~ao na industria fonogcifica, ao analisar 0 universe da musica de variedade~ (que, neste trabalho, tenho chamado de rnusica popular ou can~ao popular de massa), afirma que 0 processo e realizado por um criador coletivo (por rnais que, posteriorrnente, a autoria do pro­duto final seja conferida a um criador unico), ou seja, por urna equipe de profissionais que, simultaneamente, incumbe-se dos varios aspectos da produr.;ao social de uma can~ao e, na seqUencia, do conjunto de can~oes organizadas em discO'6. Assim, a equipe deve possuir

45 ADORNO, SMP, p. 123. As relacoes existentes entre 0 desenvolvimento do apara­to tecnico da industria fonogl'Mica e a ideia de "meio sinteticon desenvolvida por Adorno, sao tambem objeto das preocupa~oes de ZAN, J. R. "Musica Popular: Produ~lo e Marketing". In: BORELLI, S.H.S (org.) Generosficctonais, produfaO e cotidiano na cU/lura popttlarde massa. Col. GTS/INTERCOM, nil 1, 1994, p. 86.

46 HENNION, A, Les Pro!essionnels du Disque. Une soci%gle des varietes. Paris: Editions A. M. Metailie. 1981. FLICHY, 1982, p. 43, ao reportar-se a tal coletiviza¢.i.o, inspira-se em analises de Hennion, No entanto, a questAo pode ser analisada de uma perspeetiva antropo16gica: varios elementos e refereneias musicais vao sen­do reunidos e registrados ao longo dos tempos at~ que se perca a ideia de urn eriador unfeo. Por outro lado, Vicente, em seu trabalho citado, estuda a eomple­xidade que as teeno!ogias de producao musical trazem ao problema da identifica­~~o do autor, na medida em que utilizam trechos musicais pre-elaborados, prin­cipalmente, por meio do uso dos samplers, "equipamentos que permitem a digitaliza~~o de amostras sonoras e seu posterior processamento", (p. 36): "( .. ,) a

Trajet6ria da industria fonografica brasileira: anos 70 e 80 69

conhecimentos musicais e artisticos, tanto quanta deve conhecer os aparatos tecnicos de produ~ao, 0 publico e 0 mercado. 0 produto final e 0 resultado de permanente negocia~ao entre 0 trabalho e os diferentes elementos que cada participante aporta ao processo. Para o autor, a can~ao e 0 disco de variedades sao socialmente produzi­dos, pois traduzem e expressam os desejos do publico que, na verda­de, e 0 nome que da as referencias culturais de seu consumidor po­tencial. Portanto, de acordo com essa perspectiva, 0 segredo do su­cesso da musica de variedades esta na mescla entre os elementos musicais e tais desejos.

Na minuciosa explora~ao que faz das varias esferas da produ~ao fonogcifica, Hennion ressalta a riqueza de suas particularidades e seve­ramente nega 0 seu condicionamento a interesses externos ao trabalho criativo, por, mais que considere igualrnente importantes, a busca do sucesso e do retorno economico das opera~oes47. Na realidade, quer mostrar que se 0 produto tem profunda identifica~ao popular, e por­que 0 seu processo de produ~o constitui-se de esferas autonornas, onde as partes tem grande dominio e liberdade de execu~ao do que vici a ser 0 produto final. Com rela~o ao trabalho de estudio, por exemplo, diz que "(. .. ) 0 tecnico controla sozinho uma serie de opera­~oes que estao ligadas 11. sua propria ideia da can~ao, que nao se pode reduzir aos meios tecnicos: (. .. ) nao seria impor tal ou tal solu~ao tecni­ca, considerando que diferentes realiza~oes de ideias de um diretor artistico podem ser wncebidas de maneiras muito divergentes" .'.

Ora, as particularidades das esferas da produ~ao do disco levanta­das pelo autor wnfirmam, paradoxalmente, a ideia de divisao do traba-

produ~~o de uma musica tende a tornar-se 0 resultado de uma montagem que envolve inumeros elementos pre-produzidos e, emhora apenas ante certos usos do sampler ocorram questionamentos legais acerca da propriedade sobre as so­noridades utilizadas, e fo~oso notar que todas as produ~Oes feitas no ambito do digital tendem a ser, necessariamente, 0 resultado de multiplas apropria~Oes des­te genero" (p. 95).

47 0 autor faz uma nftida distin~~o entre a produ~ao das transnacionais e a de pequenos produtores independentes, reservando a estes ultimos 0 merito de produzirem a verdadetra musica de variedades que, por sua autenticidade, corresponde aos anseios do publico. Considera que tal tipo de produ~~o torna-se tamhem viavel dado 0 pequeno tamanho da opera~ao econOmica de que faz parte.

48 HENNION, 1981, p. 136.

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lho aqui proposta. 0 pr6prio autor encarrega-se de arrolar os elementos que permitem 0 questionamento de sua tese da total espontaneidade e independencia da produ~ao de musica de variedades, principalmente quando fala da subserviencia as f6rmulas pre-estabelecidas, do que as variedades sao um primoroso exemplo. Mesmo a diferen~a apontada entre grandes e pequenos produtores fonogriificos perde sentido, na medida em que os pequenos acabam porapropriarem-se e especializa­rem-se em generos e estilos consagrados pelos grandes. Tambem a auto­nomia de trabalho, que aflrrna possulrem algumas esferas da produ~o (como no exemplo citado do tecnico de estl1dio), sugere fortemente que e "liberdade" de execu~o de um projeto previamente elaborado, de otimiza~ao dos pr6prios recursos tecnicos envolvidos e nao liberdade de cria~ao art"lStica. 0 texto de Hennion e rico de exemplos: "E sempre a mesma can~ao, mas e preciso vesti-la de novo", diz um dos depoentes a sua pesquisa; em suas pr6prias palavras: "Cliche talvez, mas cliche social, carregado de sentido e atualidade que, sozinho, provoca 0 reconheci­mento do publico e 0 conseqilente sucesso duriivel do cantor". 49

Proxima do argumento utilizado pelos dirigentes da industria fonografica, de que produzem "0 que 0 povo gosta", a analise de Hennion nos remete de volta a nossa argumenta~ao. Entendo que 0 planejamento e a execu~ao da produ~ao na industria fonografica sin­tetizam a essencia da divisao do trabalho existente. A instancia definidora dos rumos e do desenvolvimento da produ~ao e a do alto executivo da empresa, por meio das a~oes do diretor geral (0 presi­dente ou ainda, 0 produtor fonogriifico) e do diretor artlstico. Contu­do, 0 produtor musical, personagem de grande importancia no pro­cesso, trafega entre a esfera do planejamento e a da execu~a050.

49 Idem; respectivamente p. 36 e p. 49. 50 Cabe aqui, uma nota explicativa: refiro-me ao prochJtor fonografico como sendo

o industrial, aquele que produz fonogramas, nos seus varios formatas. 0 produ­tor fonografico, portanto. pode ser a empresa, seja de qual tamanho for, ou seu diretor geral. 0 diretor artistico e 0 responsavel pela polftica de atua¢.lo da em­presa, juntamente com 0 diretor geral ou presidente. Nessa quaUdacte, define cast, segmentos, lanc;amentos, regras gerais para 0 marketing e orc;amentos glo­bais. 0 produtor musical e 0 coordenador da execu~o do projeto, 0 que detem conhecimentos espedficos que possibilitam a realiza~ao cia prodw;:ao da forma como foi pensada. Partilha da elabora~ao musical do produto, ao mesmo tempo que representa, nessa esfera, 0 executivo da empresa.

Trajet6ria da industria fonografica brasileira: anos 70 e 80 71

Um olhar em perspectiva para a estrutura geral de grandes empresas do disco no Brasil, nos anos 70, pode nos ajudar a enten­der melhor a questao. 0 organograma abaixo apresenta um modele de empresa que, na epoca, contava com departamentos e fun~oes gerenciais especlficos e especiaJizados, assim como estudios, fabrica, griifica e editora. Grosso modo, podemos dizer que essa organiza~ao vai perdurar, com varia~oes entre as empresas, ate 0 final dos anos 1980 e come~o dos 1990.

Organograma I. ESTRUTURA DA GRANDE EMPRESA FONOGRAFICA: BRASIl- - anos 70-80

DirelOr de Venda:>

Ger~llcia d,

Pl'OITlOI;Oes

Ger!ncin de RepcnOrio

lnternacional

Fonte: Disco em Siio Paulo, 1980, p. 32

G:r6ncia de RepretOrio Nacional

Gcr8ncia de Fabricu e EstUdio

Bstudio

Cone

Trata-se, sem duvida, de um processo coletivo de trabalho, onde as varias esferas da produ~ao antes de serem autonomas, Sao interdependentes. Nesse modele distinguem-se como nuc!eo, em tor­no do qual gravitam todos os outros setores, a dire~ao geral, as geren­cias de repert6rio nacional e internacional e a dire~ao artlstica. Esta, por sua vez, ocupa-se fundamentalmente da produ~ao nacional mas, por meio de analises estrategicas, pode sugerir produtos internacio­nais a serem lan~ados no mercado locaI5!.

51 0 diretor artistico da BMG-Ariola Sergio Carvalho, que foi produtor musical' contratado da PolyGram durante dez anos, tendo produzido discos como Mells Caros Amigos, de Chico Buarque (1978), descreve seu universo de trabalho,

, .

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lho aqui proposta. 0 pr6prio autor encarrega-se de arrolar os elementos que permitem 0 questionamento de sua tese da total espontaneidade e independencia da produ~ao de musica de variedades, principalmente quando fala da subserviencia as f6rmulas pre-estabelecidas, do que as variedades sao um primoroso exemplo. Mesmo a diferen~a apontada entre grandes e pequenos produtores fonogriificos perde sentido, na medida em que os pequenos acabam porapropriarem-se e especializa­rem-se em generos e estilos consagrados pelos grandes. Tambem a auto­nomia de trabalho, que aflrrna possulrem algumas esferas da produ~o (como no exemplo citado do tecnico de estl1dio), sugere fortemente que e "liberdade" de execu~o de um projeto previamente elaborado, de otimiza~ao dos pr6prios recursos tecnicos envolvidos e nao liberdade de cria~ao art"lStica. 0 texto de Hennion e rico de exemplos: "E sempre a mesma can~ao, mas e preciso vesti-la de novo", diz um dos depoentes a sua pesquisa; em suas pr6prias palavras: "Cliche talvez, mas cliche social, carregado de sentido e atualidade que, sozinho, provoca 0 reconheci­mento do publico e 0 conseqilente sucesso duriivel do cantor". 49

Proxima do argumento utilizado pelos dirigentes da industria fonografica, de que produzem "0 que 0 povo gosta", a analise de Hennion nos remete de volta a nossa argumenta~ao. Entendo que 0 planejamento e a execu~ao da produ~ao na industria fonografica sin­tetizam a essencia da divisao do trabalho existente. A instancia definidora dos rumos e do desenvolvimento da produ~ao e a do alto executivo da empresa, por meio das a~oes do diretor geral (0 presi­dente ou ainda, 0 produtor fonogriifico) e do diretor artlstico. Contu­do, 0 produtor musical, personagem de grande importancia no pro­cesso, trafega entre a esfera do planejamento e a da execu~a050.

49 Idem; respectivamente p. 36 e p. 49. 50 Cabe aqui, uma nota explicativa: refiro-me ao prochJtor fonografico como sendo

o industrial, aquele que produz fonogramas, nos seus varios formatas. 0 produ­tor fonografico, portanto. pode ser a empresa, seja de qual tamanho for, ou seu diretor geral. 0 diretor artistico e 0 responsavel pela polftica de atua¢.lo da em­presa, juntamente com 0 diretor geral ou presidente. Nessa quaUdacte, define cast, segmentos, lanc;amentos, regras gerais para 0 marketing e orc;amentos glo­bais. 0 produtor musical e 0 coordenador da execu~o do projeto, 0 que detem conhecimentos espedficos que possibilitam a realiza~ao cia prodw;:ao da forma como foi pensada. Partilha da elabora~ao musical do produto, ao mesmo tempo que representa, nessa esfera, 0 executivo da empresa.

Trajet6ria da industria fonografica brasileira: anos 70 e 80 71

Um olhar em perspectiva para a estrutura geral de grandes empresas do disco no Brasil, nos anos 70, pode nos ajudar a enten­der melhor a questao. 0 organograma abaixo apresenta um modele de empresa que, na epoca, contava com departamentos e fun~oes gerenciais especlficos e especiaJizados, assim como estudios, fabrica, griifica e editora. Grosso modo, podemos dizer que essa organiza~ao vai perdurar, com varia~oes entre as empresas, ate 0 final dos anos 1980 e come~o dos 1990.

Organograma I. ESTRUTURA DA GRANDE EMPRESA FONOGRAFICA: BRASIl- - anos 70-80

DirelOr de Venda:>

Ger~llcia d,

Pl'OITlOI;Oes

Ger!ncin de RepcnOrio

lnternacional

Fonte: Disco em Siio Paulo, 1980, p. 32

G:r6ncia de RepretOrio Nacional

Gcr8ncia de Fabricu e EstUdio

Bstudio

Cone

Trata-se, sem duvida, de um processo coletivo de trabalho, onde as varias esferas da produ~ao antes de serem autonomas, Sao interdependentes. Nesse modele distinguem-se como nuc!eo, em tor­no do qual gravitam todos os outros setores, a dire~ao geral, as geren­cias de repert6rio nacional e internacional e a dire~ao artlstica. Esta, por sua vez, ocupa-se fundamentalmente da produ~ao nacional mas, por meio de analises estrategicas, pode sugerir produtos internacio­nais a serem lan~ados no mercado locaI5!.

51 0 diretor artistico da BMG-Ariola Sergio Carvalho, que foi produtor musical' contratado da PolyGram durante dez anos, tendo produzido discos como Mells Caros Amigos, de Chico Buarque (1978), descreve seu universo de trabalho,

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• 72 Os dones da voz

o organograma nos possibilita constatar ainda, que 0 artista nao tem um lugar na empresa; 0 cast nao existe espacialmente nela. Apesar de conferir a necessaria essencialidade ao processo, 0 artista, paradoxalmente, nao faz parte da industria. Ele passa por ela, nego­cia, grava seu disco, trabalha, muitas vezes, arduamente na divulga­~ao do produto. Oferece contratualmente seu savoir !aire, seu talen­to, sua personalidade artistica, seu nome, sua imagem, ate quando 0

neg6cio se mantenha interessante para todas as partes envolvidas, caso contrario, sera substituido".

que apesar de reportar-se a atualidade, apresenta elementos muito pr6ximos a situa{;3.o verificada nos anos anteriores: "Fa{;o a dire~ao artistica nacional. Na verdade, meu trabalho e dividido em alguns segmentos. 0 primeiro e urn elen­co consolidado que a BMG tern e, com base n05 interesses comerciais e, e 16gico, os do artista, fazemos os lan~amentos no ano. A partir dal, se tern urna base do que sera gravado durante 0 ano. Nestes produtos, ha diferencia{;Oes. Artistas'que sao co~positores, outros sao interpretes, outros sao compositores e interpretes. Quando ha urn projeto, a primeira coisa e fechar 0 repert6rio deste projeto. Se 0 ar(ista e compositor, a gente ajuda na escolha das musicas. Mesmo com 0 Chico (BuarqueJ, se ha vinte musicas e, como nao vai gravar todas, orientamos na escolha. ( ... ) Tern que ficar de olho no mercado, nas tendencias, para tentar compor a repert6rio, sem agredir 0 lado artfstico. Outra coisa e administrar essas produ~oes. Normalmente e escolhido urn produtor em acordo com 0 artista, que dirigirti todo 0 projeto e 0 diretor artistico faz urn acompa­nhamento. ( .. .)Deve-se ficar atento ao mercado para ver 0 que esta acontecen­do de novo, seria a parte de renova~ao da companhia. Entao, estamos sempre indo a shows, produtores me procuram. Os pr6prios artistas vern ate n6s. ( .. .)Mi­nha vida e escutar musica, muita musica, nadonal e estrangeira. Alem da parte de administra~ao, cuidando de todo 0 planejamento, lan~amentos etc., tntba­Ihamos tambem com prazos, pOis urn planejamento de lan~amento envolve tape gravado, capa, estrategia de marketing. Em conjunto: dire~ao artistica, marketing, promo~ao. De certa forma, conduzo isso tudo para que chegue ao tape. (, .. ) Acompanhar depois toda a promo~o, a execu(;ao, as vendas, acom­panhar 0 que esta tocando, 0 que esta funcionando, pois tambem estamos pensando no pr6ximo~. Entrevista com Sergio Carvalho, RJ: 26-09-94. Todos os trechos de depoimentos do empresario citados, Sao extraidos da entrevista.

52 No universo da industria, proliferam opini5es que passam uma ideia do artista como que coisificado no produto ou nas possibilidades de vir a se-Io. Por exem­plo, na opiniao do produtor musical e ex-diretor arti'stico da WEA, Marco Aurelio Mazola "artista novo e como urn jogador jovem de futebol. Ele tern muita saude, carre 0 campo todo, faz 0 que 0 tecnico manda e custa muito barato". In: "Vozes para os anos 80", VE'JA, 17-10-79, p. 84.

Trajet6ria da industria fonografica brasileira: anos 70 e 80 73

Por outro lado, na esfera da produ~ao material - aiem do que ja foi apontado sobre 0 trabalho de estudio - 0 corte e a fabrica~ao53 obedecem a determina~oes industriais que, isoladas, nada de especial conferem ao produto, alem do efetivo controle de qualidade.

E possive! me!hor compreender a estrutura das majors e sua imanente divisao de trabalho, observando 0 panorama das empresas presentes no mercado brasileiro de discos da decada de 70. Entre gran des e medias empresas, 21 estavam atuando: RCA, Basf, Marcus Pereira, Carmona, Polydisc, Central Park, RGE, ]apoti, Chantecler, Continental, Crazy, Copacabana, Phonogram, Ktel, Padrao, Tapecar, Top Tape, Som Livre, Odeon, Cid, e CBS". No entanto, esse total nao considera grande numero de selos e pequenas empresas. Sao qualifi­cadas como sendo de medio porte empresas que possuem de vinte a cinqiienta funcionarios, que administram varias etapas da produ~ao com capacidade para "distribuir e comercializar seus discos de forma mais eficiente e fixa, muitas vezes em suas pr6prias iojas. Mas ainda nao tem capacidade para possuir estudios e fabrica pr6prios"".

Ao referir-se it decada de 70, a cita~ao remete it vincula~ao que tem sido observada, entre empresas transnacionais pioneiras e possi­bilidades de realiza~ao de todas as etapas da produ~ao, sobretudo aquelas referentes it reprodu~ao: grava~ao, fabrica~ao e distribui~ao e todas as outras derivadas destas. Nao podemos esquecer que 0 neg6-cio do disco come~a com 0 desenvolvimento e a propriedade das maquinas de grava~ao e reprodu~ao e e em torno desta propriedade que tem sempre se mantido.

Nesse sentido, das 21 empresas relacionadas, 7 possuem estu­dio pr6prio (RCA, Chantecler, Continental, Copacabana, Phonogram, Odeon e CBS) e oito possuem fabrica (RCA, Continental, Crazy, Copacabana, Phonogram, Tapecar, Odeon e CBS).

53 0 corte constitui a primeira fase do processo industrial, na qual a musica ja registrada ern fita magnetica e gravada no suleo de urn primeiro disco, 0 acetato, do qual serno feitos, na fabrica, varios moldes meralicos que, no processo indus­trial, darao origem aos discos. In: Disco em sao Paulo, op. cit., p. 76. Vale lembrar que 0 processo refere-se a produ~ao de discos de vini! (processo anaI6gico).

54 Dados coletados em 1976 e apresentados em DIsco em Sao Paulo, p. 21-22. 55 Idem, p. 26.

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o organograma nos possibilita constatar ainda, que 0 artista nao tem um lugar na empresa; 0 cast nao existe espacialmente nela. Apesar de conferir a necessaria essencialidade ao processo, 0 artista, paradoxalmente, nao faz parte da industria. Ele passa por ela, nego­cia, grava seu disco, trabalha, muitas vezes, arduamente na divulga­~ao do produto. Oferece contratualmente seu savoir !aire, seu talen­to, sua personalidade artistica, seu nome, sua imagem, ate quando 0

neg6cio se mantenha interessante para todas as partes envolvidas, caso contrario, sera substituido".

que apesar de reportar-se a atualidade, apresenta elementos muito pr6ximos a situa{;3.o verificada nos anos anteriores: "Fa{;o a dire~ao artistica nacional. Na verdade, meu trabalho e dividido em alguns segmentos. 0 primeiro e urn elen­co consolidado que a BMG tern e, com base n05 interesses comerciais e, e 16gico, os do artista, fazemos os lan~amentos no ano. A partir dal, se tern urna base do que sera gravado durante 0 ano. Nestes produtos, ha diferencia{;Oes. Artistas'que sao co~positores, outros sao interpretes, outros sao compositores e interpretes. Quando ha urn projeto, a primeira coisa e fechar 0 repert6rio deste projeto. Se 0 ar(ista e compositor, a gente ajuda na escolha das musicas. Mesmo com 0 Chico (BuarqueJ, se ha vinte musicas e, como nao vai gravar todas, orientamos na escolha. ( ... ) Tern que ficar de olho no mercado, nas tendencias, para tentar compor a repert6rio, sem agredir 0 lado artfstico. Outra coisa e administrar essas produ~oes. Normalmente e escolhido urn produtor em acordo com 0 artista, que dirigirti todo 0 projeto e 0 diretor artistico faz urn acompa­nhamento. ( .. .)Deve-se ficar atento ao mercado para ver 0 que esta acontecen­do de novo, seria a parte de renova~ao da companhia. Entao, estamos sempre indo a shows, produtores me procuram. Os pr6prios artistas vern ate n6s. ( .. .)Mi­nha vida e escutar musica, muita musica, nadonal e estrangeira. Alem da parte de administra~ao, cuidando de todo 0 planejamento, lan~amentos etc., tntba­Ihamos tambem com prazos, pOis urn planejamento de lan~amento envolve tape gravado, capa, estrategia de marketing. Em conjunto: dire~ao artistica, marketing, promo~ao. De certa forma, conduzo isso tudo para que chegue ao tape. (, .. ) Acompanhar depois toda a promo~o, a execu(;ao, as vendas, acom­panhar 0 que esta tocando, 0 que esta funcionando, pois tambem estamos pensando no pr6ximo~. Entrevista com Sergio Carvalho, RJ: 26-09-94. Todos os trechos de depoimentos do empresario citados, Sao extraidos da entrevista.

52 No universo da industria, proliferam opini5es que passam uma ideia do artista como que coisificado no produto ou nas possibilidades de vir a se-Io. Por exem­plo, na opiniao do produtor musical e ex-diretor arti'stico da WEA, Marco Aurelio Mazola "artista novo e como urn jogador jovem de futebol. Ele tern muita saude, carre 0 campo todo, faz 0 que 0 tecnico manda e custa muito barato". In: "Vozes para os anos 80", VE'JA, 17-10-79, p. 84.

Trajet6ria da industria fonografica brasileira: anos 70 e 80 73

Por outro lado, na esfera da produ~ao material - aiem do que ja foi apontado sobre 0 trabalho de estudio - 0 corte e a fabrica~ao53 obedecem a determina~oes industriais que, isoladas, nada de especial conferem ao produto, alem do efetivo controle de qualidade.

E possive! me!hor compreender a estrutura das majors e sua imanente divisao de trabalho, observando 0 panorama das empresas presentes no mercado brasileiro de discos da decada de 70. Entre gran des e medias empresas, 21 estavam atuando: RCA, Basf, Marcus Pereira, Carmona, Polydisc, Central Park, RGE, ]apoti, Chantecler, Continental, Crazy, Copacabana, Phonogram, Ktel, Padrao, Tapecar, Top Tape, Som Livre, Odeon, Cid, e CBS". No entanto, esse total nao considera grande numero de selos e pequenas empresas. Sao qualifi­cadas como sendo de medio porte empresas que possuem de vinte a cinqiienta funcionarios, que administram varias etapas da produ~ao com capacidade para "distribuir e comercializar seus discos de forma mais eficiente e fixa, muitas vezes em suas pr6prias iojas. Mas ainda nao tem capacidade para possuir estudios e fabrica pr6prios"".

Ao referir-se it decada de 70, a cita~ao remete it vincula~ao que tem sido observada, entre empresas transnacionais pioneiras e possi­bilidades de realiza~ao de todas as etapas da produ~ao, sobretudo aquelas referentes it reprodu~ao: grava~ao, fabrica~ao e distribui~ao e todas as outras derivadas destas. Nao podemos esquecer que 0 neg6-cio do disco come~a com 0 desenvolvimento e a propriedade das maquinas de grava~ao e reprodu~ao e e em torno desta propriedade que tem sempre se mantido.

Nesse sentido, das 21 empresas relacionadas, 7 possuem estu­dio pr6prio (RCA, Chantecler, Continental, Copacabana, Phonogram, Odeon e CBS) e oito possuem fabrica (RCA, Continental, Crazy, Copacabana, Phonogram, Tapecar, Odeon e CBS).

53 0 corte constitui a primeira fase do processo industrial, na qual a musica ja registrada ern fita magnetica e gravada no suleo de urn primeiro disco, 0 acetato, do qual serno feitos, na fabrica, varios moldes meralicos que, no processo indus­trial, darao origem aos discos. In: Disco em sao Paulo, op. cit., p. 76. Vale lembrar que 0 processo refere-se a produ~ao de discos de vini! (processo anaI6gico).

54 Dados coletados em 1976 e apresentados em DIsco em Sao Paulo, p. 21-22. 55 Idem, p. 26.

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74 Os donos da voz

Quadro III. COMPANHIAS FONOGRAFICAS COM FABRICA E ESTUDIO: BRASIL - anos 70

Esilldio' RCA Continental Copacabana Phonogram Odeon CBS Chantecler

F~brica RCA Continental Copacabana Phonogram Odeon CBS Tapecar

Fonte:· Disco em Silo Paulo, p. 22

Entre 1974 e 1975, temos a seguinte classifica~ao das maiores empresas no mercado brasileiro: Phonogram, Odeon, CBS, RCA, Con­tinental, Sigla, Copacabana, sendo que as tres ultimas sao empresas nacionais. Fica claro, portanto, que a grande empresa e aquela que possui infra-estrutura capaz de desenvolver todo 0 processo de pro­du~ao. Estima-se que em 1979, as empresas dividiam 0 faturamento na seguinte propor~ao: Som Livre, 25%; CBS, 16%; PolyGram, 13%; RCA, 12%; WEA, 5%; Copacabana e Continental, 4,5% cada uma; Fermata, 3%; Odeon (EM!), 2%; K-Tel,2%; Top Tape e Tapecar, 1% cada uma; outras 11%56. Considerando a natureza peculiar e as condi­~6es privilegiadas desfrutadas pela Som Livre, os numeros confirmam a posi~ao de lideran~a das transnacionais.

No entanto, vale ressaltar a importancia que empresas nacio­nais pioneiras como a Continental e a Copacabana tiveram (e, no caso da Continental, continua tendo, mesmo que de maneira diferen­te, como veremos) no panorama fonografico brasileiro. Fundadas res­pectivamente em 1946 e 1948, ocuparam-se essencialmente da pro­du~ao de musica brasileira, sobretudo sertaneja e regional. Nos anos 70, a Continental atingiu ponto alto em termos de organiza~ao e infra­estrutura, desenvolvendo todas as etapas do processo, com produ~ao media mensal de 15 LPs e dez compactos simples, contados entre os gerados internamente e os que realizava para empresas de pequeno e medio portes". A forte concorrencia das transnacionais foi, aos pou­cos, desestrutlJrando essa performance.

De 1980 em diante, consolida-se 0 grande movimento de con­centra~ao das empresas participantes do mercado. A Copacabana e a RGE-Fermata pediram concordata. A Som Livre comprou a Top Tape

56 MAKALE, J., 1982, p. 74, com base nos dados da ABPD. 57 In: Disco em Sdo Paulo, p. 33.

Trajet6ria da industria fonografica brasileira: anos 70 e 80 75

e a RGE58. A unica nacional a resistir bravamente foi a Continental , sustentada, ja nessa epoca, pelo segmento sertanej0 59. Em 1988, as sete maiores empresas do setor fonografico atuantes no mercado bra­sileiro eram: a CBS, a RCA-Ariola, a PolyGram, a WEA, a EMI-Odeon e a Som Livre, sem que estejam, necessariamente, citadas em ordem de grandeza60.

]a tive a oportunidade de salientar os fatores que tornaram altamente rentavel a performance da grande transnacional de discos no Brasil. Assim,gostaria de explorar alguns aspectos presentes na dinamica da produ~ao fonografica no final dos anos 1970 e a partir dos 1980, e assim conhecer urn pouco mals sobre os atores envolvi­dos no processo de produ~ao e 0 pr6prio funcionamento das compa­nhias fonograficas. Trata-se de salientar algumas estrategias escolhi­das e as decorrentes taticas utilizadas.

Na decada de 70, a segmenta~ao do mercado de discos ja era uma estrategia efetivamente operada pelas gravadoras. Paiano ve no tratamento diferenciado que os altistas passam a receber para a pro­du~ao e promo~ao de seus produtos uma sofistica~ao na atua~ao das gravadoras61 . Consolidado 0 poder da grande transnacional do disco no pars, a MPB passou a dividir espa~o tanto com segmentos ja cons­titurdos, tais como 0 regional e 0 sertanejo e outros emergentes. As­sim, em termos de musica brasileira, podramos encontrar no mercado de discos, no final dos anos 70, musicos como os do Pessoal do Ceara (Elba Ramalho, Ze Ramalho, Ednardo, Alceu Valen~a, Belchior e

58 Segundo a ABPD, a gravadora Copacabana acabou se dissolvendo e vendendo 0

seu canllogo para outras empresas, catalago este que contava com uma preciosi­dade: a dupla Chitaozinho e XOl'o1'6, que lan~ou sete discos peJa companhia. A Copacabana ainda esta em atividade, e produz discos que sao distribuidos por OU(1'a5 empresas. A Top Tape, que passou a produzir videos, retornou em 1994 a produc;ao de discos e filiou-se novamente a AMPD.

59 Mesmo estando em dificuldades, a Continental absolveu a Tapecar. 60 A dificuldade de precisar, nessa epoca, a palticipa~ao que cada gravadora tinha

no mercado foi assim obselVada: "Nem mesmo a ABPD - entidade que, teorica­mente, deveria ter, acesso a esses dados de vendas - os possui, ja que por uma antiga pnitica das pr6prias gravadoras eles sao enviados separadarnente a urn instituto de pesquisas e este remete apenas os resultados gerais a Associa~o." In: "Mercado de Discos Enfrenta a Crise", Folha de S.Pau/o: 17-01-1988, p. A-60. Se verdadeira ou nao, a justificativa acionava uma safda diplomatica para a situa~ao de grande concorrencia entre as empresas.

61 PAtANO, 1994, p. 204 e segs.

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Quadro III. COMPANHIAS FONOGRAFICAS COM FABRICA E ESTUDIO: BRASIL - anos 70

Esilldio' RCA Continental Copacabana Phonogram Odeon CBS Chantecler

F~brica RCA Continental Copacabana Phonogram Odeon CBS Tapecar

Fonte:· Disco em Silo Paulo, p. 22

Entre 1974 e 1975, temos a seguinte classifica~ao das maiores empresas no mercado brasileiro: Phonogram, Odeon, CBS, RCA, Con­tinental, Sigla, Copacabana, sendo que as tres ultimas sao empresas nacionais. Fica claro, portanto, que a grande empresa e aquela que possui infra-estrutura capaz de desenvolver todo 0 processo de pro­du~ao. Estima-se que em 1979, as empresas dividiam 0 faturamento na seguinte propor~ao: Som Livre, 25%; CBS, 16%; PolyGram, 13%; RCA, 12%; WEA, 5%; Copacabana e Continental, 4,5% cada uma; Fermata, 3%; Odeon (EM!), 2%; K-Tel,2%; Top Tape e Tapecar, 1% cada uma; outras 11%56. Considerando a natureza peculiar e as condi­~6es privilegiadas desfrutadas pela Som Livre, os numeros confirmam a posi~ao de lideran~a das transnacionais.

No entanto, vale ressaltar a importancia que empresas nacio­nais pioneiras como a Continental e a Copacabana tiveram (e, no caso da Continental, continua tendo, mesmo que de maneira diferen­te, como veremos) no panorama fonografico brasileiro. Fundadas res­pectivamente em 1946 e 1948, ocuparam-se essencialmente da pro­du~ao de musica brasileira, sobretudo sertaneja e regional. Nos anos 70, a Continental atingiu ponto alto em termos de organiza~ao e infra­estrutura, desenvolvendo todas as etapas do processo, com produ~ao media mensal de 15 LPs e dez compactos simples, contados entre os gerados internamente e os que realizava para empresas de pequeno e medio portes". A forte concorrencia das transnacionais foi, aos pou­cos, desestrutlJrando essa performance.

De 1980 em diante, consolida-se 0 grande movimento de con­centra~ao das empresas participantes do mercado. A Copacabana e a RGE-Fermata pediram concordata. A Som Livre comprou a Top Tape

56 MAKALE, J., 1982, p. 74, com base nos dados da ABPD. 57 In: Disco em Sdo Paulo, p. 33.

Trajet6ria da industria fonografica brasileira: anos 70 e 80 75

e a RGE58. A unica nacional a resistir bravamente foi a Continental , sustentada, ja nessa epoca, pelo segmento sertanej0 59. Em 1988, as sete maiores empresas do setor fonografico atuantes no mercado bra­sileiro eram: a CBS, a RCA-Ariola, a PolyGram, a WEA, a EMI-Odeon e a Som Livre, sem que estejam, necessariamente, citadas em ordem de grandeza60.

]a tive a oportunidade de salientar os fatores que tornaram altamente rentavel a performance da grande transnacional de discos no Brasil. Assim,gostaria de explorar alguns aspectos presentes na dinamica da produ~ao fonografica no final dos anos 1970 e a partir dos 1980, e assim conhecer urn pouco mals sobre os atores envolvi­dos no processo de produ~ao e 0 pr6prio funcionamento das compa­nhias fonograficas. Trata-se de salientar algumas estrategias escolhi­das e as decorrentes taticas utilizadas.

Na decada de 70, a segmenta~ao do mercado de discos ja era uma estrategia efetivamente operada pelas gravadoras. Paiano ve no tratamento diferenciado que os altistas passam a receber para a pro­du~ao e promo~ao de seus produtos uma sofistica~ao na atua~ao das gravadoras61 . Consolidado 0 poder da grande transnacional do disco no pars, a MPB passou a dividir espa~o tanto com segmentos ja cons­titurdos, tais como 0 regional e 0 sertanejo e outros emergentes. As­sim, em termos de musica brasileira, podramos encontrar no mercado de discos, no final dos anos 70, musicos como os do Pessoal do Ceara (Elba Ramalho, Ze Ramalho, Ednardo, Alceu Valen~a, Belchior e

58 Segundo a ABPD, a gravadora Copacabana acabou se dissolvendo e vendendo 0

seu canllogo para outras empresas, catalago este que contava com uma preciosi­dade: a dupla Chitaozinho e XOl'o1'6, que lan~ou sete discos peJa companhia. A Copacabana ainda esta em atividade, e produz discos que sao distribuidos por OU(1'a5 empresas. A Top Tape, que passou a produzir videos, retornou em 1994 a produc;ao de discos e filiou-se novamente a AMPD.

59 Mesmo estando em dificuldades, a Continental absolveu a Tapecar. 60 A dificuldade de precisar, nessa epoca, a palticipa~ao que cada gravadora tinha

no mercado foi assim obselVada: "Nem mesmo a ABPD - entidade que, teorica­mente, deveria ter, acesso a esses dados de vendas - os possui, ja que por uma antiga pnitica das pr6prias gravadoras eles sao enviados separadarnente a urn instituto de pesquisas e este remete apenas os resultados gerais a Associa~o." In: "Mercado de Discos Enfrenta a Crise", Folha de S.Pau/o: 17-01-1988, p. A-60. Se verdadeira ou nao, a justificativa acionava uma safda diplomatica para a situa~ao de grande concorrencia entre as empresas.

61 PAtANO, 1994, p. 204 e segs.

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76 Os donos da voz

Fagner"'); timida produ~ao de rock nacional (Mutantes, Rita Lee, 0 Ter~o, Casa das Maquinas); samba (0 sambao-j6ia, de Antonio Carlos e Jocafi, Luis Airao, Benito de Paula e os tipos-ideais do atual pagode, Os Originais do Samba) e grande fatia de musica popular "romantica" (Wanderley Cardoso, Odair Jose, Paulo Sergio e tantos outroS)63.

No campo da mundializa~ao dos generos e estilos musicais, alem da significativa fatia ocupada pela musica estrangeira (nao somente de lingua inglesa, como tambem francesa e italiana, por exemplo) e igual­mente notavel a presen~a da musica negra americana, genero romanti­co derivado do blues, que teve sua versao brasileira no movimento Black Rio. 0 segmento envolveu tres das maiores gravadoras do pais (WEA, CBS e Phonogram) e outras como a Top Tape, Tapecar e Conti­nental, numa tentativa de explorar comercialmente a atividade de gru­pos musicais revelados em encontros de jovens nos suburbios do Rio de Janeiro, em bailes ao som da black music.

Em torno de 1977178, a musica dan~ante das discotecas, a dan­ce music, surge no Brasil, na esteira do boom americano (e mundial) do generq64 e tem sua expressao nacional com As Freneticas, conjun­to musical concebido e orientado pelo produtor musical Nelson Motta. o grupo teve seu sucesso devidamente amparado pela novela Dancing' Days (1978179), da Rede Globo, para a qual gravaram 0 tema de abertura. 0 nome da novela estampava, igualmente, 0 nome da boate onde se apresentavam, no Rio de Janeiro (Frenetic Dancing' Days Discotheque, idealizada pelo mesmo Nelson Motta)·'. .

62 As performances de Fagner e de Belquior. nesse contexte, foram especialmente analisadas por MORELLI, 1991.

63 Nesse sentido, e exemplar a tabela de mais vendidos no ano de 1970, elaborada pela Radio Bandeirantes e apresentada por JAMBEIRO, 1975. p. 118. Analise similar encontramos em PAIANO, 1994, p. 210.

64 Cf. "Discotecas: urn neg6cio levado a serio por quem ganha dinheiro". In:jornal do Brasil, 01-07-78.

65 Os dais movimentos sao analisados por BAHIANA, A.M. Nada serd como antes -MPB nos anos 70. RJ: Editora Civilizacao Brasileira, 1980, respectivamente no capitulo "Enlatando 0 Black Rio", p. 216-222 e "Freneticas - Urn Jogo de Espe­Ihos", p. 248-256. Sobre 0 sucesso das discotecas e sua estreita sintonia com 0

mundo do consumo, urn' artigo no jorna! do Brasil apresenta a seguinte descri­~ao da casa noturna Papagaio Disco Club, do empresario "da noite" Ricardo Amaral: "E esse publico vai consumir tudo 0 que 0 Papagaio anuncia, do chao ate o teto, onde estao penduradas algumas bicicletas Caloi de 10 marchas, ja parte do merchandising insistente que continua pelas paredes e esta ate nos aventais dos

Trajet6ria da industria fonografica brasileira: anos 70 e 80 77

Essa diversifica~ao da produ~ao vai permitir a industria fonografica atingir, em 1979, numero recorde de 64.104 milhoes de unidades vendidas, dos quais 23.480 milhoes eram de musica estran­geira e 40.624 milhoes, nacional66, em plena situa~ao de recessao economica. No entanto, esse numero cai, nos anos seguintes, sobre­tudo em fun~ao do agravamento da crise economico-institucional, advinda da derrocada do milagre brasileiro·7 •

Dessa forma, na decada de 80, os numeros do mercado fonografico retratam a inconstancia e a incerteza da vida economica nacional. Desde 1979, quando 0 pais chegou a ocupar a quinta posi­~ao no mercado mundial, os numeros passam a ser decrescentes, ate 1986, quando se recupera, mesmo que de maneira inconstante. Antes disso, uma tenue rea~ao e percebida em 1982. A dificuldade de pla­nejar e definir or~amentos globais e assim traduzida por um executi­vo do setor: "Do pr6prio governo partem proje~oes [dos indices de infla~aol que vao de 75% a 275%"68. A sucessao de pianos de ajuste economico que assistimos na decada (Plano Cruzado - 02-86; Cruza­do II - 11-86; Bresser - 06-87; Verno - 01-89), alem de conturbar dema­siadamente 0 cotidiano social, levou 11 taxa de infla~ao recorde de 1.764%, em 1989 69•

gar~ons, patrocinados a cada noite por uma firma diferente. Os manequins de madei1"J. assistem passivamente a dan~a, vestidos pela etiqueta Gledson (a mesma da roupa dos gar~ons). Os halterofilistas de acrflico levantam pneus Pirelli e urn grande sino, logo a entrada, espera os badalos de qualquer freqOentador, lem­brando mais uma vez a marca Bell's, 0 unico uisque nacional vendido na casa. Ainda entre os produtos de consumo imediato, os cigarros Marlboro e 0 Martini Sao vistos em filmes de 16 mm e naturalmente cresce, a partir dar, 0 numero de pedidos das bebidas e dos cigarros Phillip Morris, a unica marca a venda no Papagaio". In: "Arrombou a festa",jornal do Brasil, 14-08-77.

66 Fonte" ABPD e Folha de S.Pat/lo, 06-06-82, p.74. 67 Cf. OUVEIRA, F. "Padrees de acumula~ao, oligop6lios e Estado no Brasil 0950-

1976)". In: A .Iiconomia da Dependencla Imperfeita. 3' edi~ilo, RJ: Edi~oes do Graal, 1980, p. 76-113.

68 lOaD Carlos MUller Chaves, entao diretor da Som Livre. In: "Crise ap6s crise, a industria fonografica procura a safda", OEstadodeS.Pattio, 25-12-83, p.24.

69 FARO, C. (org.) Piano Collor. Aval~fies e Perspectivas. SP, RJ: Livros Tecnicos e Cientlficos Editora, 1990, Introdu~ao.

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Fagner"'); timida produ~ao de rock nacional (Mutantes, Rita Lee, 0 Ter~o, Casa das Maquinas); samba (0 sambao-j6ia, de Antonio Carlos e Jocafi, Luis Airao, Benito de Paula e os tipos-ideais do atual pagode, Os Originais do Samba) e grande fatia de musica popular "romantica" (Wanderley Cardoso, Odair Jose, Paulo Sergio e tantos outroS)63.

No campo da mundializa~ao dos generos e estilos musicais, alem da significativa fatia ocupada pela musica estrangeira (nao somente de lingua inglesa, como tambem francesa e italiana, por exemplo) e igual­mente notavel a presen~a da musica negra americana, genero romanti­co derivado do blues, que teve sua versao brasileira no movimento Black Rio. 0 segmento envolveu tres das maiores gravadoras do pais (WEA, CBS e Phonogram) e outras como a Top Tape, Tapecar e Conti­nental, numa tentativa de explorar comercialmente a atividade de gru­pos musicais revelados em encontros de jovens nos suburbios do Rio de Janeiro, em bailes ao som da black music.

Em torno de 1977178, a musica dan~ante das discotecas, a dan­ce music, surge no Brasil, na esteira do boom americano (e mundial) do generq64 e tem sua expressao nacional com As Freneticas, conjun­to musical concebido e orientado pelo produtor musical Nelson Motta. o grupo teve seu sucesso devidamente amparado pela novela Dancing' Days (1978179), da Rede Globo, para a qual gravaram 0 tema de abertura. 0 nome da novela estampava, igualmente, 0 nome da boate onde se apresentavam, no Rio de Janeiro (Frenetic Dancing' Days Discotheque, idealizada pelo mesmo Nelson Motta)·'. .

62 As performances de Fagner e de Belquior. nesse contexte, foram especialmente analisadas por MORELLI, 1991.

63 Nesse sentido, e exemplar a tabela de mais vendidos no ano de 1970, elaborada pela Radio Bandeirantes e apresentada por JAMBEIRO, 1975. p. 118. Analise similar encontramos em PAIANO, 1994, p. 210.

64 Cf. "Discotecas: urn neg6cio levado a serio por quem ganha dinheiro". In:jornal do Brasil, 01-07-78.

65 Os dais movimentos sao analisados por BAHIANA, A.M. Nada serd como antes -MPB nos anos 70. RJ: Editora Civilizacao Brasileira, 1980, respectivamente no capitulo "Enlatando 0 Black Rio", p. 216-222 e "Freneticas - Urn Jogo de Espe­Ihos", p. 248-256. Sobre 0 sucesso das discotecas e sua estreita sintonia com 0

mundo do consumo, urn' artigo no jorna! do Brasil apresenta a seguinte descri­~ao da casa noturna Papagaio Disco Club, do empresario "da noite" Ricardo Amaral: "E esse publico vai consumir tudo 0 que 0 Papagaio anuncia, do chao ate o teto, onde estao penduradas algumas bicicletas Caloi de 10 marchas, ja parte do merchandising insistente que continua pelas paredes e esta ate nos aventais dos

Trajet6ria da industria fonografica brasileira: anos 70 e 80 77

Essa diversifica~ao da produ~ao vai permitir a industria fonografica atingir, em 1979, numero recorde de 64.104 milhoes de unidades vendidas, dos quais 23.480 milhoes eram de musica estran­geira e 40.624 milhoes, nacional66, em plena situa~ao de recessao economica. No entanto, esse numero cai, nos anos seguintes, sobre­tudo em fun~ao do agravamento da crise economico-institucional, advinda da derrocada do milagre brasileiro·7 •

Dessa forma, na decada de 80, os numeros do mercado fonografico retratam a inconstancia e a incerteza da vida economica nacional. Desde 1979, quando 0 pais chegou a ocupar a quinta posi­~ao no mercado mundial, os numeros passam a ser decrescentes, ate 1986, quando se recupera, mesmo que de maneira inconstante. Antes disso, uma tenue rea~ao e percebida em 1982. A dificuldade de pla­nejar e definir or~amentos globais e assim traduzida por um executi­vo do setor: "Do pr6prio governo partem proje~oes [dos indices de infla~aol que vao de 75% a 275%"68. A sucessao de pianos de ajuste economico que assistimos na decada (Plano Cruzado - 02-86; Cruza­do II - 11-86; Bresser - 06-87; Verno - 01-89), alem de conturbar dema­siadamente 0 cotidiano social, levou 11 taxa de infla~ao recorde de 1.764%, em 1989 69•

gar~ons, patrocinados a cada noite por uma firma diferente. Os manequins de madei1"J. assistem passivamente a dan~a, vestidos pela etiqueta Gledson (a mesma da roupa dos gar~ons). Os halterofilistas de acrflico levantam pneus Pirelli e urn grande sino, logo a entrada, espera os badalos de qualquer freqOentador, lem­brando mais uma vez a marca Bell's, 0 unico uisque nacional vendido na casa. Ainda entre os produtos de consumo imediato, os cigarros Marlboro e 0 Martini Sao vistos em filmes de 16 mm e naturalmente cresce, a partir dar, 0 numero de pedidos das bebidas e dos cigarros Phillip Morris, a unica marca a venda no Papagaio". In: "Arrombou a festa",jornal do Brasil, 14-08-77.

66 Fonte" ABPD e Folha de S.Pat/lo, 06-06-82, p.74. 67 Cf. OUVEIRA, F. "Padrees de acumula~ao, oligop6lios e Estado no Brasil 0950-

1976)". In: A .Iiconomia da Dependencla Imperfeita. 3' edi~ilo, RJ: Edi~oes do Graal, 1980, p. 76-113.

68 lOaD Carlos MUller Chaves, entao diretor da Som Livre. In: "Crise ap6s crise, a industria fonografica procura a safda", OEstadodeS.Pattio, 25-12-83, p.24.

69 FARO, C. (org.) Piano Collor. Aval~fies e Perspectivas. SP, RJ: Livros Tecnicos e Cientlficos Editora, 1990, Introdu~ao.

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78 Os donos da voz

Tabela IV. VENDA DE PRODUTOS E FATURAMENTO DA INDUS­TRIA FONOGRAFICA BRASILEIRA: BRASIL - 1982-1990 (em mi­lhOes de unid. e US$)

Ano Unidades' Faturamento

1981 45.419 250

1982 60.000 365

1983 52.457 260

1984 43.994 210

1985 45.153 225

1986 74.366 239.1

1987 72.626 187

1988 56.013 232.8

1989 76.975 371.2

1990 45.225 237.6

Fonte" ABPD, Rj- 03-95 e IFPI (InternaNonal Federation oftbe Phonographic Industry) Londres, 11-96.

~ Cds sao computados a partir de 1988.

A segmenta~ao do mereado e a diversifica~o dos investimentos, para serem melhor analisadas, devem ser vistas como subordinadas a urn outro tipo de diferencia~ao que a industria fonografica dispensa aos seus produtos. Diz respeito a distin~o entre artistas de marketing e artistas de catilogo. Ja tive oportunidade de referir-me it institui~ao destes ultirnos como resultado de uma mudan~ na atua~o da industria quando, no inicio dos anos 70, passa a investir em urn cast estivel, oom artistas ligados' a MPB, que produzem discos com venda garantida por varios anos, mes­mo que em pequenas quantidades. 0 artista de marketing e 0 que e concebido e produzido, ele, 0 seu produto e todo 0 esquema promocional que os envolve, a urn custo relativamente baixo, com 0 objetivo de fazer sucesso, vender milhares de c6pias, mesmo que por urn tempo reduzido"'. Nao podemos esquecer que as subsidiarias locrus das transnacionais traba­lham sob pressao das matrizes, para que mantenham patarnares satisfat6rios

70 Para 0 produto do artista de catalogo, a maior parcela do investimento e destina­da it prodw;ao (mdsicos, apamtos tecnicos etc.). Contrariamente, pam os produ­tos dos artistas de marketing, e a esfera da promo~ao que recebe maior apaio financeiro.

!

Trajet6ria da industria fonografica brasileira: anos 70 e 80 79

de lucratividade, 0 que justifica ainda mais os investirnentos nos projetos de artistas de marketing, que sao eles mesmos inteiramente emblematioos da produ~o de mercadorias culturais. Portanto, e em tome dessas duas vias de a~ao que a grande industria brasileira do disco e talvez mesmo, a mundial, organiza a sua produ~ao e define as areas e formas a serem tomadas pela segmenta~o, dos anos 70 ate os dias atuais.

Mesmo que esteja analisando 0 contexto pr6prio aos anos 90, que ainda nao esta sob 0 nosso foco, vale apresentar os argumentos de Marcos Maynard, quando reflete sobre 0 assunto:

Existe 0 projeto de marketing e 0 artista de marketing, esses sim s6 existem se existir uma gravadora. 0 artista verdadeiro, urn movimento musical, existem mesmo se nao existir uma gravadora. Se nao existisse nenhuma gravadora e nenhuma radio no mundo, mesmo assim existiria Bossa Nova, Roberto Carlos, }ovem Guarda, Tropicalismo, Axe [music], Sertanejo. S6 nao teria sido 0 grande sucesso que foi. N6s s6 ajudamas a propag-.ar as ondas sonoras, n6s e os meios de comunica~ao.

. 0 artista de marketing e 0 Menudo, que s6 existe por que uma compa­nhia criou aquela ideia. New Kids On The Block e Domin6 sao outros exemplos. Sao artistas que existem porque n6s pensamos em formal' urn grupo para um momento de mercado. Num momento determina­

do, nao tern nada· acontecendo no mercado e voce precisa sustentar os artistas do seu cast. Como e que voce ganha dinheiro para sustenta­los, para gravar artistas que nao estao fazendo tanto sucesso e fazer 0

marketing para eles? Voce tem que pegar um projeto de marketing, meter no mercado, estoura e voce tern dinheiro para reinvestir nos seus artistas e, esses sim, ficam para sempre. 0 projeto de marketing e para um determinado periodo (no caso dos grupos infanto-juvenis], ate que os caras cresl):am. 0 Balao Magico, urn grupo que n6s inventa­

mos quando eu estava na Sony, depois de urn determinado tempo nao pode mais ser chamado de Balao Magico. 0 Domin6, depois que ficaram barbudos nao podem mais ser Domin6. 0 Menudo entao ...

A trajet6ria dos grupos infanto-juvenis parece sintetizar a atua­~ao na area do puro marketing mas, evidentemente, nao se restrin­ge a eles. Claudio Conde, entao vice-presidente da CBS brasileira, diria em 1988:

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Tabela IV. VENDA DE PRODUTOS E FATURAMENTO DA INDUS­TRIA FONOGRAFICA BRASILEIRA: BRASIL - 1982-1990 (em mi­lhOes de unid. e US$)

Ano Unidades' Faturamento

1981 45.419 250

1982 60.000 365

1983 52.457 260

1984 43.994 210

1985 45.153 225

1986 74.366 239.1

1987 72.626 187

1988 56.013 232.8

1989 76.975 371.2

1990 45.225 237.6

Fonte" ABPD, Rj- 03-95 e IFPI (InternaNonal Federation oftbe Phonographic Industry) Londres, 11-96.

~ Cds sao computados a partir de 1988.

A segmenta~ao do mereado e a diversifica~o dos investimentos, para serem melhor analisadas, devem ser vistas como subordinadas a urn outro tipo de diferencia~ao que a industria fonografica dispensa aos seus produtos. Diz respeito a distin~o entre artistas de marketing e artistas de catilogo. Ja tive oportunidade de referir-me it institui~ao destes ultirnos como resultado de uma mudan~ na atua~o da industria quando, no inicio dos anos 70, passa a investir em urn cast estivel, oom artistas ligados' a MPB, que produzem discos com venda garantida por varios anos, mes­mo que em pequenas quantidades. 0 artista de marketing e 0 que e concebido e produzido, ele, 0 seu produto e todo 0 esquema promocional que os envolve, a urn custo relativamente baixo, com 0 objetivo de fazer sucesso, vender milhares de c6pias, mesmo que por urn tempo reduzido"'. Nao podemos esquecer que as subsidiarias locrus das transnacionais traba­lham sob pressao das matrizes, para que mantenham patarnares satisfat6rios

70 Para 0 produto do artista de catalogo, a maior parcela do investimento e destina­da it prodw;ao (mdsicos, apamtos tecnicos etc.). Contrariamente, pam os produ­tos dos artistas de marketing, e a esfera da promo~ao que recebe maior apaio financeiro.

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de lucratividade, 0 que justifica ainda mais os investirnentos nos projetos de artistas de marketing, que sao eles mesmos inteiramente emblematioos da produ~o de mercadorias culturais. Portanto, e em tome dessas duas vias de a~ao que a grande industria brasileira do disco e talvez mesmo, a mundial, organiza a sua produ~ao e define as areas e formas a serem tomadas pela segmenta~o, dos anos 70 ate os dias atuais.

Mesmo que esteja analisando 0 contexto pr6prio aos anos 90, que ainda nao esta sob 0 nosso foco, vale apresentar os argumentos de Marcos Maynard, quando reflete sobre 0 assunto:

Existe 0 projeto de marketing e 0 artista de marketing, esses sim s6 existem se existir uma gravadora. 0 artista verdadeiro, urn movimento musical, existem mesmo se nao existir uma gravadora. Se nao existisse nenhuma gravadora e nenhuma radio no mundo, mesmo assim existiria Bossa Nova, Roberto Carlos, }ovem Guarda, Tropicalismo, Axe [music], Sertanejo. S6 nao teria sido 0 grande sucesso que foi. N6s s6 ajudamas a propag-.ar as ondas sonoras, n6s e os meios de comunica~ao.

. 0 artista de marketing e 0 Menudo, que s6 existe por que uma compa­nhia criou aquela ideia. New Kids On The Block e Domin6 sao outros exemplos. Sao artistas que existem porque n6s pensamos em formal' urn grupo para um momento de mercado. Num momento determina­

do, nao tern nada· acontecendo no mercado e voce precisa sustentar os artistas do seu cast. Como e que voce ganha dinheiro para sustenta­los, para gravar artistas que nao estao fazendo tanto sucesso e fazer 0

marketing para eles? Voce tem que pegar um projeto de marketing, meter no mercado, estoura e voce tern dinheiro para reinvestir nos seus artistas e, esses sim, ficam para sempre. 0 projeto de marketing e para um determinado periodo (no caso dos grupos infanto-juvenis], ate que os caras cresl):am. 0 Balao Magico, urn grupo que n6s inventa­

mos quando eu estava na Sony, depois de urn determinado tempo nao pode mais ser chamado de Balao Magico. 0 Domin6, depois que ficaram barbudos nao podem mais ser Domin6. 0 Menudo entao ...

A trajet6ria dos grupos infanto-juvenis parece sintetizar a atua­~ao na area do puro marketing mas, evidentemente, nao se restrin­ge a eles. Claudio Conde, entao vice-presidente da CBS brasileira, diria em 1988:

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80 AS donos da voz

o disco tern que se vender pelo fenomeno que representa, com artis­

tas que voce possa cfabricar' e urn repert6rio comercial. 0 Domin6 foi

criado na esteira do Menudo, com uma produ~ao mais pop, mais vol­

tada para 0 rock (".). Mas e claro que isso e aplicavel apenas aos produtos que a companhia tern 1000/0 de poder de decisao, 0 que nilo se aplica a uma Simone ou a urn Milton Nascimento. Ai existe urn

dialogoj nesse caso a companhia viabiliza as ideias desses artistas71•

o investimento em artistas de marketing nos permite melhor entender 0 fenomeno das modas musicais, as ondas de sucesso de determinados estilos ou generos musicais, automaticamente identifi­cados a um artista, empresario, produtor musical ou companhia fonografica 72. Seriam tais ondas de sucesso uma produ~ao cultural espontanea das sociedades, devidamente veiculadas e difundidas pela industria fonografica ou, ao contrario, seriam produtos engendrados dentro destas, por seus profissionais, no intuito de produzir, de tem­pos em tempos, uma nova onda de consumo?

O. exame da questao demanda uma etapa preliminar: a de en­tender alguns aspectos presentes nas tomadas de decisao nas compa­nhias fonograficas. No ambito da organiza~ao empresarial, 0 grande desenvolvimento alcan~ado pela industria, combinado com a eviden­te concentra~ao de poder nas maos do executivo, tanto de empresas nacionais como de transnacionais presentes no Brasil, tem permitido

71 In: "Mercado de discos enfrenta a crise", Fo/hadeSPaulo, 17-01-1988, p. A-60. Apesar de nao apresentar rela~ao direta com 0 assunto, e inevitivel nao conside­rar uma passagem de Sobre Mastca Popu./ar, p. 28-29. quando Adorno trata da utiliza~ao de elementos do universo infantil. na musica popular, como tecnica para sua transforma~ao em hit. Vale lembrar que urn dos maiores recordes de vendas da industria fonografica pertence a esse filao: no final dos anos 80 a apresentadora Xuxa vendeu 3.2 milhoes de c6pias de urn unico disco. Cf. ainda "Gravadoras apostam em trilhas infantis". In: rolba de S.Pau/o, 08-10-95, caderno TV Folha, p. 07.

72 Urn exemplo! Em 1990, Jose Roberto Verta, supervisor de repert6rio internacional da BMG-Ariola, dava a seguinte sugestao sobre 0 tipo de musica que devia mere­cer a atenc;ao dos promotores: "Sem duvida a 'dance music' ainda vai dominar este ano. Primeiro tem uma 'house' mais eletronica. bem Kraftwerk. Depois 0

'ciber punk', um punk cibernetico, alem da 'hip house', que j;1 come~a a aconte­cer." In: .. 'Dance Music' e muita MPB devem dominar mercado do disco no pais", Folba de S.Pau/a, 01-01-90, p. E-l.

Trajet6ria da industria fonografica brasileira: anos 70 e 80 81

a emergencia de alguns personagens desses postos-chave, que passam a personificar a atua~ao e 0 sucesso das empresas de que fazem parte. Como esse nao e um fenomeno tipicamente brasileiro, alguns autores diagnosticam 0 personalismo como caracteristica marcante da adminis­

. tra~ao da industria fonografica73• Assim, a competencia, a personalida­de, as razoes e mesmo as vontades de um diretor geral ou de um diretor artfstico, podem alterar radicalmente os rumos da atua~ao de uma determinada companhia. Tal fenomeno e melhor observado em tempos de troca dos profissionais ocupantes de tais posi~oes74.

o personalismo e marca e ideologia da industria fonografica, aparencia socialmente necessaria. 0 poder personificado no presiden­te da companhia ou aquele conferido a determinado diretor artfstico ou produtor musical fazedor de sucessos simboliza, como ja tive opor­tunidade de apontar, a ampla gama de interesses em jogo, que podem extrapolar ate mesmo a esfera da industria cultural. Se no final dos anos 60, a CBS americana entrou finalmente no mercado de rock, com quase quinze anos de atraso, a conjuntura de mercado vigente na epoca, torna um tanto 6bvia a safda encontrada para a crise vivida pela empre­sa, apontada como extraordinaria. Com isto quero ressaltar a necessi­dade de analisar 0 poder pessoal adquirido por tais profissionais; como capacidade de entender, interpretar e traduzir em estrategias de atua-' ~ao, as oportunidades socioculturais e mercadol6gicas que determina­dos produtos encerram, muitas vezes em escala mundial. Sobretudo em momentos de crise, as potencialidades e suscetibilidades do merca­do ficam confusas, enevoadas, dificultando uma a~ao dirigida. Portan­to, nao se trata simplesmente, do exerdcio do poder pessoal, mas sim da capacidade profissional de articular, sintonizar e otimizar 0 potencial da por~ao ocupada pela empresa num todo, muito mais complexo e poderoso que essa parte.

73 cr., pOl' exemplo, DANNEM, 1990; CHRISTIANEN, 1995 e PAIANO, 1994. 74 No que concerne ao cenario americano, e muito citado na literatura 0 fato de que

a CBS s6 tenha comec;ado a investir no segmento rock, no final dos anos 60, sendo que 0 rnovirnento em torno do g~nero surgiu em meados da d~cada de 50. No periodo, a empresa atravessou dificuldades. A troca de executivos possibilitou que a CBS se reerguesse e os meritos pela mudan~a sao creditados a Clive Davis, o executivo que trouxe 0 rock para a empresa. 0 assunto ~ discutido nas obms citadas na nota anterior, como, por exemplo, em CHRISTIANEN, 1995, p. 89 e detalhadamente tratado por DANNEM, 1990, p. 58-78.

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o disco tern que se vender pelo fenomeno que representa, com artis­

tas que voce possa cfabricar' e urn repert6rio comercial. 0 Domin6 foi

criado na esteira do Menudo, com uma produ~ao mais pop, mais vol­

tada para 0 rock (".). Mas e claro que isso e aplicavel apenas aos produtos que a companhia tern 1000/0 de poder de decisao, 0 que nilo se aplica a uma Simone ou a urn Milton Nascimento. Ai existe urn

dialogoj nesse caso a companhia viabiliza as ideias desses artistas71•

o investimento em artistas de marketing nos permite melhor entender 0 fenomeno das modas musicais, as ondas de sucesso de determinados estilos ou generos musicais, automaticamente identifi­cados a um artista, empresario, produtor musical ou companhia fonografica 72. Seriam tais ondas de sucesso uma produ~ao cultural espontanea das sociedades, devidamente veiculadas e difundidas pela industria fonografica ou, ao contrario, seriam produtos engendrados dentro destas, por seus profissionais, no intuito de produzir, de tem­pos em tempos, uma nova onda de consumo?

O. exame da questao demanda uma etapa preliminar: a de en­tender alguns aspectos presentes nas tomadas de decisao nas compa­nhias fonograficas. No ambito da organiza~ao empresarial, 0 grande desenvolvimento alcan~ado pela industria, combinado com a eviden­te concentra~ao de poder nas maos do executivo, tanto de empresas nacionais como de transnacionais presentes no Brasil, tem permitido

71 In: "Mercado de discos enfrenta a crise", Fo/hadeSPaulo, 17-01-1988, p. A-60. Apesar de nao apresentar rela~ao direta com 0 assunto, e inevitivel nao conside­rar uma passagem de Sobre Mastca Popu./ar, p. 28-29. quando Adorno trata da utiliza~ao de elementos do universo infantil. na musica popular, como tecnica para sua transforma~ao em hit. Vale lembrar que urn dos maiores recordes de vendas da industria fonografica pertence a esse filao: no final dos anos 80 a apresentadora Xuxa vendeu 3.2 milhoes de c6pias de urn unico disco. Cf. ainda "Gravadoras apostam em trilhas infantis". In: rolba de S.Pau/o, 08-10-95, caderno TV Folha, p. 07.

72 Urn exemplo! Em 1990, Jose Roberto Verta, supervisor de repert6rio internacional da BMG-Ariola, dava a seguinte sugestao sobre 0 tipo de musica que devia mere­cer a atenc;ao dos promotores: "Sem duvida a 'dance music' ainda vai dominar este ano. Primeiro tem uma 'house' mais eletronica. bem Kraftwerk. Depois 0

'ciber punk', um punk cibernetico, alem da 'hip house', que j;1 come~a a aconte­cer." In: .. 'Dance Music' e muita MPB devem dominar mercado do disco no pais", Folba de S.Pau/a, 01-01-90, p. E-l.

Trajet6ria da industria fonografica brasileira: anos 70 e 80 81

a emergencia de alguns personagens desses postos-chave, que passam a personificar a atua~ao e 0 sucesso das empresas de que fazem parte. Como esse nao e um fenomeno tipicamente brasileiro, alguns autores diagnosticam 0 personalismo como caracteristica marcante da adminis­

. tra~ao da industria fonografica73• Assim, a competencia, a personalida­de, as razoes e mesmo as vontades de um diretor geral ou de um diretor artfstico, podem alterar radicalmente os rumos da atua~ao de uma determinada companhia. Tal fenomeno e melhor observado em tempos de troca dos profissionais ocupantes de tais posi~oes74.

o personalismo e marca e ideologia da industria fonografica, aparencia socialmente necessaria. 0 poder personificado no presiden­te da companhia ou aquele conferido a determinado diretor artfstico ou produtor musical fazedor de sucessos simboliza, como ja tive opor­tunidade de apontar, a ampla gama de interesses em jogo, que podem extrapolar ate mesmo a esfera da industria cultural. Se no final dos anos 60, a CBS americana entrou finalmente no mercado de rock, com quase quinze anos de atraso, a conjuntura de mercado vigente na epoca, torna um tanto 6bvia a safda encontrada para a crise vivida pela empre­sa, apontada como extraordinaria. Com isto quero ressaltar a necessi­dade de analisar 0 poder pessoal adquirido por tais profissionais; como capacidade de entender, interpretar e traduzir em estrategias de atua-' ~ao, as oportunidades socioculturais e mercadol6gicas que determina­dos produtos encerram, muitas vezes em escala mundial. Sobretudo em momentos de crise, as potencialidades e suscetibilidades do merca­do ficam confusas, enevoadas, dificultando uma a~ao dirigida. Portan­to, nao se trata simplesmente, do exerdcio do poder pessoal, mas sim da capacidade profissional de articular, sintonizar e otimizar 0 potencial da por~ao ocupada pela empresa num todo, muito mais complexo e poderoso que essa parte.

73 cr., pOl' exemplo, DANNEM, 1990; CHRISTIANEN, 1995 e PAIANO, 1994. 74 No que concerne ao cenario americano, e muito citado na literatura 0 fato de que

a CBS s6 tenha comec;ado a investir no segmento rock, no final dos anos 60, sendo que 0 rnovirnento em torno do g~nero surgiu em meados da d~cada de 50. No periodo, a empresa atravessou dificuldades. A troca de executivos possibilitou que a CBS se reerguesse e os meritos pela mudan~a sao creditados a Clive Davis, o executivo que trouxe 0 rock para a empresa. 0 assunto ~ discutido nas obms citadas na nota anterior, como, por exemplo, em CHRISTIANEN, 1995, p. 89 e detalhadamente tratado por DANNEM, 1990, p. 58-78.

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82 Os donos da voz

Ii nesse sentido que a performance de Andre Midani na admi­nistracao do setor fonogriifico, tornou-o famoso no Brasil e no mun­do. Ocupando postos de direcao na Odeon, no final dos anos 50 e na CBD (Companhia Brasileira de Discos, hoje PolyGram), no fim da decada de 60, ficou conhecido como incentivador da musica popular brasileira por seu trabalho com a Bossa Nova na primeira companhia e com 0 grande movimento em torno da MPB Onc1uindo 0

Tropicalismo), na virada dos 60/70, na segunda75.

Em 1977, 0 empresario deixa a Philips-Phonogram para fundar a WEA, 0 braco brasileiro da Warner Bros., da qual seria presidente e co-proprietario. Seu objetivo principal: consoIidar 0 consumo de dis­cos entre os jovens, por meio de um segmento de mercado especifi­co. No Brasil, durante os anos 70, 0 comprador de discos tinha mais de 30 anos, sendo que, no mercado internacional, esse comprador tinha de 13 a 25'6. Empenhado em tal tarefa, Midani "profetizou": "0 futuro imediato da MPB esta no rock".n

Dos segmentos que tiveram sua atuacao incrementada nos anos .80, alem dos que ja estavam em atividade, somente 0 rock ganhou ares de nbvidade, seguido, no final da decada, por uma remodelagem do segmento sertanejo, que tambem adquiriu elementos do pop. 0 rock desenvolve-se a partir de dois movimentos complementares: ecos do processo de mundializacaoda cultura e, conseqUentemente, da producao fonografica, subsidiaram a expansao e chegada do genero a, regioes do Brasil. Prontamente, observa-se 0 engajamento das com­panhias locais no sentido de produzir, promover e difundir 0 pop rock brasileiro, interessadas no mercado consumidor jovem. Ii dess': contexto que emergem alguns profissionais que personificam as es­trategias empresariais. 0 ponto de vista do produtor musical e fonografico Pena Schmidt, que apresento a seguir, pode ser visto des­se angulo. Conhecido e respeitado no meio artistico por seu trabalho

75 Faziam parte do cast cia entJ.o Philips-Phonogram em 1973: Chico Buarque, Nara Leao, Caetano Velaso. Gilberta Gil, Gal Costa, Maria Bethania, Jorge Mautner, Raul Seixas, Sergio Sampaio, lards Makaie, Luiz Melodia e Fagner. Ver MORELLI, 1991, p. 59-60.

76 MORELLI, 1992, citando dados apresentados por Midani, p. 67. A constituicao desse rnercado consumidor jovem e minuciosarnente analisada por GROPPO, 1996.

77 "A MPB estii em alta", entrevista com Andre Midani. In: VEJA, 12-12-90, p. 5.

Trajet6ria da industria fonografica brasileira: anos 70 e 80 83

como engenheiro de som de estudios e de palcos, diretor artistico e produtor musical em companhias como a Continental e a Warner, Schmidt conta a sua vivencia nesse movimento":

Eu vou contar a minha participa~ao na investida das gravadoras no rock nos anos 80: era segunda-feira de manhil, eu abro a Folha de S. Paulo e, nessa epoca, sala as segundas, um resumo dos programas da semana. Eu vi que tinha quarenta shows de rock anunciados para aqueia semana, uma p:igina inteira. Ai eu pensei assim: se voce vai no pasto e todo dia conta 50 cogumelos e num outro dia voce olha e conta 500 cogumelos, alguma coisa est:i acontecendo, choveu, mudou

a Iua, mas alguma coisa aconteceu.

Schmidt aponta que, nessa epoca, 0 jovem brasileiro estava sintonizado com noticias do rock internacional, como 0 movimento punk na Inglaterra de 1977/78, cuja irreverencia contagiou a juventu­de dos quatro cantos do mundo:

Entao, eles vao aprendendo a tocar guitarra, vilo formando suas bandinhas, come9am a procurar mercado de trabalho, um lugar para mostrar 0 trabalho. Ao mesmo tempo que em Silo Paulo multiplica­vamwse casas noturnas como Napalm, Rose Bombom, Madame Sata, Acido PI'stico, dentre outras. Eu olhei para essas bandas todas e falei: est. acontecendo alguma coisa. (".). Entao eu fui procurar 0 Andre Midani. Disse que a situa9ao que tinhamos nito era normal. Quando aparece uma oferla dessas, e inevit.vei que alguns se destaquem, e uma questao simples, darwiniana. Se tem 40 no jomal, e sinal que a oferta e, na verdade, muito maior. Ele disse: "entao vamos fazer um projeto". Quase nao tinha mereado de rock, nao tinha banda de rock, tinha, na verdade, um mercado para sete mil discos. Decidimos, entao, fazer urn compacta, duas musiqui­nhas s6 para ver a que acontecia. Aconteceram sucessos como "Imltil" e "Eu Me Amo" [Ultragea Rigor], "Sou Boy" [MagazineJ, "Pobre PauliSIa"

78 Os trechos que se seguem foram extrafdos de entreViSta reallzada com 0 produtor em SP, 09-12-92. No entanto, cabe obs"",ar que busco resSaltar as explica¢es, os argu­mentes utilizados peto auter para a sua versao do movimento. 0 fate de nao fazer, de algumas afirmacOes. objetos de debate, nao signlfica que esteu de acordo com, elas.

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82 Os donos da voz

Ii nesse sentido que a performance de Andre Midani na admi­nistracao do setor fonogriifico, tornou-o famoso no Brasil e no mun­do. Ocupando postos de direcao na Odeon, no final dos anos 50 e na CBD (Companhia Brasileira de Discos, hoje PolyGram), no fim da decada de 60, ficou conhecido como incentivador da musica popular brasileira por seu trabalho com a Bossa Nova na primeira companhia e com 0 grande movimento em torno da MPB Onc1uindo 0

Tropicalismo), na virada dos 60/70, na segunda75.

Em 1977, 0 empresario deixa a Philips-Phonogram para fundar a WEA, 0 braco brasileiro da Warner Bros., da qual seria presidente e co-proprietario. Seu objetivo principal: consoIidar 0 consumo de dis­cos entre os jovens, por meio de um segmento de mercado especifi­co. No Brasil, durante os anos 70, 0 comprador de discos tinha mais de 30 anos, sendo que, no mercado internacional, esse comprador tinha de 13 a 25'6. Empenhado em tal tarefa, Midani "profetizou": "0 futuro imediato da MPB esta no rock".n

Dos segmentos que tiveram sua atuacao incrementada nos anos .80, alem dos que ja estavam em atividade, somente 0 rock ganhou ares de nbvidade, seguido, no final da decada, por uma remodelagem do segmento sertanejo, que tambem adquiriu elementos do pop. 0 rock desenvolve-se a partir de dois movimentos complementares: ecos do processo de mundializacaoda cultura e, conseqUentemente, da producao fonografica, subsidiaram a expansao e chegada do genero a, regioes do Brasil. Prontamente, observa-se 0 engajamento das com­panhias locais no sentido de produzir, promover e difundir 0 pop rock brasileiro, interessadas no mercado consumidor jovem. Ii dess': contexto que emergem alguns profissionais que personificam as es­trategias empresariais. 0 ponto de vista do produtor musical e fonografico Pena Schmidt, que apresento a seguir, pode ser visto des­se angulo. Conhecido e respeitado no meio artistico por seu trabalho

75 Faziam parte do cast cia entJ.o Philips-Phonogram em 1973: Chico Buarque, Nara Leao, Caetano Velaso. Gilberta Gil, Gal Costa, Maria Bethania, Jorge Mautner, Raul Seixas, Sergio Sampaio, lards Makaie, Luiz Melodia e Fagner. Ver MORELLI, 1991, p. 59-60.

76 MORELLI, 1992, citando dados apresentados por Midani, p. 67. A constituicao desse rnercado consumidor jovem e minuciosarnente analisada por GROPPO, 1996.

77 "A MPB estii em alta", entrevista com Andre Midani. In: VEJA, 12-12-90, p. 5.

Trajet6ria da industria fonografica brasileira: anos 70 e 80 83

como engenheiro de som de estudios e de palcos, diretor artistico e produtor musical em companhias como a Continental e a Warner, Schmidt conta a sua vivencia nesse movimento":

Eu vou contar a minha participa~ao na investida das gravadoras no rock nos anos 80: era segunda-feira de manhil, eu abro a Folha de S. Paulo e, nessa epoca, sala as segundas, um resumo dos programas da semana. Eu vi que tinha quarenta shows de rock anunciados para aqueia semana, uma p:igina inteira. Ai eu pensei assim: se voce vai no pasto e todo dia conta 50 cogumelos e num outro dia voce olha e conta 500 cogumelos, alguma coisa est:i acontecendo, choveu, mudou

a Iua, mas alguma coisa aconteceu.

Schmidt aponta que, nessa epoca, 0 jovem brasileiro estava sintonizado com noticias do rock internacional, como 0 movimento punk na Inglaterra de 1977/78, cuja irreverencia contagiou a juventu­de dos quatro cantos do mundo:

Entao, eles vao aprendendo a tocar guitarra, vilo formando suas bandinhas, come9am a procurar mercado de trabalho, um lugar para mostrar 0 trabalho. Ao mesmo tempo que em Silo Paulo multiplica­vamwse casas noturnas como Napalm, Rose Bombom, Madame Sata, Acido PI'stico, dentre outras. Eu olhei para essas bandas todas e falei: est. acontecendo alguma coisa. (".). Entao eu fui procurar 0 Andre Midani. Disse que a situa9ao que tinhamos nito era normal. Quando aparece uma oferla dessas, e inevit.vei que alguns se destaquem, e uma questao simples, darwiniana. Se tem 40 no jomal, e sinal que a oferta e, na verdade, muito maior. Ele disse: "entao vamos fazer um projeto". Quase nao tinha mereado de rock, nao tinha banda de rock, tinha, na verdade, um mercado para sete mil discos. Decidimos, entao, fazer urn compacta, duas musiqui­nhas s6 para ver a que acontecia. Aconteceram sucessos como "Imltil" e "Eu Me Amo" [Ultragea Rigor], "Sou Boy" [MagazineJ, "Pobre PauliSIa"

78 Os trechos que se seguem foram extrafdos de entreViSta reallzada com 0 produtor em SP, 09-12-92. No entanto, cabe obs"",ar que busco resSaltar as explica¢es, os argu­mentes utilizados peto auter para a sua versao do movimento. 0 fate de nao fazer, de algumas afirmacOes. objetos de debate, nao signlfica que esteu de acordo com, elas.

Page 43: Os donos da voz - Márcia Tosta Dias

84 Os donos da voz

[Ira!), "Sonffera IIha" [Titlis]. Chegavamos para os grupos e dizfamos, vamos escolher as musicas, eu escolho uma que eu acho que pade sec de .mercado e Dutra voces escolhem, como autores. IS50 tudo ia acontecendo devagar, a gente ia conversando com as pessoas, ia fazendo urn compacta desses por mes e, ao longo de urn

ano, ja tinhamos uma hist6ria para mostrar. Em 83, saiu 0 primeiro LP dos Titas e em 85, 0 Ultraje a Rigor vendeu 350 mil c6pias do LP "N6s Vamos Invadir Sua Praia". Tambem em 85 os Titils fizeram 0 "Cabe~a Dinossauro", vendendo rambem 350 mil c6pias. Em 86, 0 Ira! emplacou a ml1sica na novela da

Globo [0 Outro/1986] e na propaganda da Fiat e vendeu 200 mil c6pias; e uma curva longa e linda de carreira. Tuda issa na Warner e tudo prodw;ao minha. Voce pega essa musica de cora~ao, voce reco­lhe, transforma em produto e os deixa trabalharem com 0 publico durante dais, tres aoos. o meu papel nessa hist6ria e 0 de ter aberto 0 olho e percebido alguma coisa que ja estava acontecendo fazia tempo. C.) Eu nao criei nada.

Pena Schmidt contextualiza seu ponto de vista:

Em 82 veio uma gera~ao e disse: ja foi decretado 0 niilismo como filosofia oficial. 0 jovem olha em sua volta e nao acredita no que esta vendo e diz "a gente somas inutil" [referenda a can~ao do grupo Vltrage a Rigor]. Brinca com a poetica ao contrario como em "Sonffera Ilha", urn lugar onde esta todo mundo dormindo. "Acordo as 7 horas, pego 0 onibus lotado" [trecho de "Sou Boy", do grupo Magazine] tern urn apelo com humor, uma poetica popular. ( .. ,) Forarn eles que aproveitaram a abertura, foram eles que trouxeram a luz urn texto sem censura interior. Eles nao foram censurados porque, como adolescentes, eles nao erarn censuraveis, aquela coisa de cultura de adolescente que adora 0 idiota, 0 nao 16gico, 0 nao. Isso e altamente apetitoso do ponto de vista do entretenimento. Porque rima f,leil no ouvido, e uma linguagem infantil, espontanea, que todo mundo esta a

fim de ouvir, pois fazia 20 anos que ninguem ouvia, estavam entao altamente identificados com a gera~ao, de Porto Alegre a Recife esta­yam querendo se expressar da mesma forma e dizer: essa vida amarga e a sua e nao a minha; a minha vai ser muito legal. Essa juventude que parecia oca, vazia, parecia altamente "produto", produto mesmo da

Trajet6ria da industria fonogrMica brasileira: anos 70 e 80 85

industria cultural. Vma coisa implantada, nao era. A industria apenas

fez constatar.

Se, de urn lado, consideramos a efelVescencia criativa apontada por Schmidt veremos que, por outro, a natural adequa~ao do rock a forma mercadoria, tambem por ele apontada, une-se urn outro fator, igualmente "apetitoso" para a industria: a grande viabilidade economi­ca do genero, ajustando-se perfeitamente aos tempos de crise e de incertezas quanto aos rumos da conjuntura economica. Diz 0 produtor:

o rock como produ~ao e muito barato. A musica de interprete requer maestro, arranjador, musicos acompanhantes, que ganham caches es­tipulados por sindicatos, 0 que transforma uma musica em milhares de d6lares. 0 rock como fen6meno mundial tem uma raiz econ6mica fortfssima, ele e eficiente para sobreviver daIWinianamente, como for­ma de vida, ele e perfeito, ele se auto contem, tern as ingredientes da musica com tres, quatro, cinco pessoas. Tres e 0 mInima, quatro se tiver um cantando, cinco para colocar urn teclado, seis para fiear rico, oito ja e urn deliria C .. ). Voce tern uma forma razoavelmente pequena, portatil, que se sustenta dentro de si, ela nao recebe cache, os musicos sao os autores, entram no estudio e nao custam nada para trabalhar.

Existia entao urn profundo interesse da industria, no Brasil, para que a

rock desse cecto, por essa razao econ6mica.

o baixo pre~o da produ~ao de rock aparece traduzido nos se­guintes numeros, apresentados em noricia sobre encontro de gravado­ras, realizado em Canela/RS, em junho de 1983, quando anunciou-se que 0 mercado de discos no Brasil, no referido ano, seria movimentado pelo rock e pelo "brega": " 'Sou Boy', por exemplo, custou a miseravel despesa de Cr$ 100 mil de produ~ao. A produ~ao da maioria dos discos de rock e 'brega' nao ultrapassa Cr$ 1 milhao. Enquanto isso, os discos de produ\;ao rnais sofisticada estiio custando as gravadoras em torno de Cr$ 10 milhoes, podendo chegar a Cr$ 50 milhoes, como no caso do ultimo disco de Djavan, mixado em Los Angeles"".

Faz sentido a afirma~o de Schmidt de que a industria nao fez mals que constatar a grande movimenta~ao existente no Brasil dos anos

79 In: "Rock e 'brega' na ilha da fantasia", FolhadeS.Paulo, 26·06-83, p. 70.,

84 Os donos da voz

[Ira!), "Sonffera IIha" [Titlis]. Chegavamos para os grupos e dizfamos, vamos escolher as musicas, eu escolho uma que eu acho que pade sec de .mercado e Dutra voces escolhem, como autores. IS50 tudo ia acontecendo devagar, a gente ia conversando com as pessoas, ia fazendo urn compacta desses por mes e, ao longo de urn

ano, ja tinhamos uma hist6ria para mostrar. Em 83, saiu 0 primeiro LP dos Titas e em 85, 0 Ultraje a Rigor vendeu 350 mil c6pias do LP "N6s Vamos Invadir Sua Praia". Tambem em 85 os Titils fizeram 0 "Cabe~a Dinossauro", vendendo rambem 350 mil c6pias. Em 86, 0 Ira! emplacou a ml1sica na novela da

Globo [0 Outro/1986] e na propaganda da Fiat e vendeu 200 mil c6pias; e uma curva longa e linda de carreira. Tuda issa na Warner e tudo prodw;ao minha. Voce pega essa musica de cora~ao, voce reco­lhe, transforma em produto e os deixa trabalharem com 0 publico durante dais, tres aoos. o meu papel nessa hist6ria e 0 de ter aberto 0 olho e percebido alguma coisa que ja estava acontecendo fazia tempo. C.) Eu nao criei nada.

Pena Schmidt contextualiza seu ponto de vista:

Em 82 veio uma gera~ao e disse: ja foi decretado 0 niilismo como filosofia oficial. 0 jovem olha em sua volta e nao acredita no que esta vendo e diz "a gente somas inutil" [referenda a can~ao do grupo Vltrage a Rigor]. Brinca com a poetica ao contrario como em "Sonffera Ilha", urn lugar onde esta todo mundo dormindo. "Acordo as 7 horas, pego 0 onibus lotado" [trecho de "Sou Boy", do grupo Magazine] tern urn apelo com humor, uma poetica popular. ( .. ,) Forarn eles que aproveitaram a abertura, foram eles que trouxeram a luz urn texto sem censura interior. Eles nao foram censurados porque, como adolescentes, eles nao erarn censuraveis, aquela coisa de cultura de adolescente que adora 0 idiota, 0 nao 16gico, 0 nao. Isso e altamente apetitoso do ponto de vista do entretenimento. Porque rima f,leil no ouvido, e uma linguagem infantil, espontanea, que todo mundo esta a

fim de ouvir, pois fazia 20 anos que ninguem ouvia, estavam entao altamente identificados com a gera~ao, de Porto Alegre a Recife esta­yam querendo se expressar da mesma forma e dizer: essa vida amarga e a sua e nao a minha; a minha vai ser muito legal. Essa juventude que parecia oca, vazia, parecia altamente "produto", produto mesmo da

Trajet6ria da industria fonogrMica brasileira: anos 70 e 80 85

industria cultural. Vma coisa implantada, nao era. A industria apenas

fez constatar.

Se, de urn lado, consideramos a efelVescencia criativa apontada por Schmidt veremos que, por outro, a natural adequa~ao do rock a forma mercadoria, tambem por ele apontada, une-se urn outro fator, igualmente "apetitoso" para a industria: a grande viabilidade economi­ca do genero, ajustando-se perfeitamente aos tempos de crise e de incertezas quanto aos rumos da conjuntura economica. Diz 0 produtor:

o rock como produ~ao e muito barato. A musica de interprete requer maestro, arranjador, musicos acompanhantes, que ganham caches es­tipulados por sindicatos, 0 que transforma uma musica em milhares de d6lares. 0 rock como fen6meno mundial tem uma raiz econ6mica fortfssima, ele e eficiente para sobreviver daIWinianamente, como for­ma de vida, ele e perfeito, ele se auto contem, tern as ingredientes da musica com tres, quatro, cinco pessoas. Tres e 0 mInima, quatro se tiver um cantando, cinco para colocar urn teclado, seis para fiear rico, oito ja e urn deliria C .. ). Voce tern uma forma razoavelmente pequena, portatil, que se sustenta dentro de si, ela nao recebe cache, os musicos sao os autores, entram no estudio e nao custam nada para trabalhar.

Existia entao urn profundo interesse da industria, no Brasil, para que a

rock desse cecto, por essa razao econ6mica.

o baixo pre~o da produ~ao de rock aparece traduzido nos se­guintes numeros, apresentados em noricia sobre encontro de gravado­ras, realizado em Canela/RS, em junho de 1983, quando anunciou-se que 0 mercado de discos no Brasil, no referido ano, seria movimentado pelo rock e pelo "brega": " 'Sou Boy', por exemplo, custou a miseravel despesa de Cr$ 100 mil de produ~ao. A produ~ao da maioria dos discos de rock e 'brega' nao ultrapassa Cr$ 1 milhao. Enquanto isso, os discos de produ\;ao rnais sofisticada estiio custando as gravadoras em torno de Cr$ 10 milhoes, podendo chegar a Cr$ 50 milhoes, como no caso do ultimo disco de Djavan, mixado em Los Angeles"".

Faz sentido a afirma~o de Schmidt de que a industria nao fez mals que constatar a grande movimenta~ao existente no Brasil dos anos

79 In: "Rock e 'brega' na ilha da fantasia", FolhadeS.Paulo, 26·06-83, p. 70.,

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86 Os donos da voz

80 em torno do rock. De fato, existia uma produ~o que, por sua vez, espelhava-se em produtos mundializados, difundidos, consumidos e re­produzidos no pals e muito ja se falou sobre a capacidade do rock, de sintonizar valores universalizados pr6prios a juventude, seja ela de que lugar forBO. Na primeira metade dos anos 80 intensifica-se ainda mais a circula~o mundial do rock; 0 Brasil passa a integrar as turnes internacio­nais de grandes grupos, criando uma rede complementar de mercadorias que, alem dos discos, incluia roupas, revistas, acess6rios etc 8'. Porranto, a indUstria fez por constatar mais: a debilidade do mercado de bens culturais destinados aos jovens, 0 baixo custo da produ~ao do rock e fatores de ordem conjuntural (tais com "a crise", insatisfa~Oes, irreverencia, busca de "novidades") que faziam extremamente atual, no Brasil e no mundo, 0 rock como produto cultural, quase 30 anos depois de seu surgimento.

o problema estava nas escolhas feitas pela industria, do que deveria ser veiculado, considerando 0 conjunto da oferta. Schmidt aponta para 0 lade ingenuo, infantil, engra~ado, facilmente digerivel, apetitoso

. do ponte;> de vista da industria cultural, do que encontrou e escolheu como produto, depois de pesquisar 0 que acontecia no cenario"'. Como

80 Nesse senti do, e exemplar a discussao sabre 0 advento do punk rock, no Brasil e alhures. GROPPO, 1996, p. 189. afirma que 0 fato de existir uma movimenta~ao em torno do punk rock no Brasil em 19n. quase que ao mesrno tempo que na Ingla­terra, sua terra natal, explica-se pelo interesse dos jovens em buscar novidades musicais, uma vez que 0 punk tetia chegado no Bmsil "sem nenhuma campanha de marketing articulada pela industria musical". Venda de maneira diferente, consi­dero que ~ a propria segmenta~o da produ~ao fonografica que permitiu ao punk rock usufruir de uma promor;ao diferenciada, 0 fato de urn produto nao receber 0

tratamento promocional tradicionalmente massificado, ao meu ver, nao significa que ele tenha estado fora dos esquemas promocionais das gl"'dvadoras. Ademais, 0

punk conquistou grandes espa~os na midia impressa como movimento que prega~ va uma atitude e urn comportamento especfficos, com dimensao cultural e mesmo polltica. Portanto, a industria fonogrMica era apenas uma etas partes envolvidas. Transformado progressivamente em produto eta industria cultural (como demons­tra 0 pr6prio autor, na p. 68), 0 punk rock vai encontrar, em faixas da juventude das sociedades urbanas e industrializadas do mundo, 0 mercado consumidor ideal.

81 GROPPO, 1996, p. 193-194. 82 Por outro lado; ha que se ressaltar a qualidade de muitos dos trabalhos surgidos

no perfodo, sobretudo se comparados ao atual panorama, tanto do rock, quanta da MPB. Vistos em perspectiva, muitos artistas surgidos nos anos 80 podem ser considerados como frutos de efetiva efervescencia cultural, nao mais observada nos 3nos seguintes.

(

"~

Trajet6ria da industria fonogclfica brasileira: anos 70 e 80 87

veremos adlante, OS anos 80 sao 0 palco de uma substanciosa produ­~o musical e cultural, que nao foi absorvida pela grande industria. Porranto, apesar do rock ter uma imporrancia cultural diferenciada, permitindo a sobrevivencia de uma produ~ao desvinculada dos media e da grande industria, 0 que e veiculado e consumido, em larga escala, e resultado de um planejamento exato, com estrategias muito bem definidas. Se 0 rock e cultural mente distinto de uma simples moda, sob sua egide existiram e continuam a existir muitas bandas de um s6 sucesso, de um s6 verno"'.

Ampliando 0 cenario, gostaria de trazer para a discussao outros pontos de vista. Como vimos, para Marcos Maynard, as gravadoras simplesmente ajudam a propagar as ondas sonoras. Questionado se a industria fonografica faz pesquisa de opiniao para saber 0 que as pessoas estao querendo ouvir ou para conhecer 0 que esta sendo produzido para, enta~, ser propagado, Maynard responde:

Nossa industria nao funciona assim, porque voce esta mexeodo com sensibilidade e nao com sabonete. Voce nao pode criar oodas, nem pesquisar a opiniao publica para saber 0 que 0 publico quer, porque 0

publico, em termos de musica, e intuitivo. A musica esta no ar, esta na criatividade dos artistas que a gravadora propaga. Porque ° meu produ­to e um produto que pensa, sente, dorme, respira, fala bobagem, fala coisa certa, e inteligente, nao e inteligente. Agora, 0 sabonete e 0 sabo­nete, voce 0 coloca ali"na prateleira; ele fica parado, voce faz 0 marketing que quiser desse produto, diz que ele e dourado, que e maravilhoso, que cheira bem e ele nao vai dizer nada. Agora, se voce falar que 0 seu artista e bonito, simpatico, de repente muita gente pode MO achar ( ... ). Se um artista nao grava bem por qualquer tipo de problemas pessoais, ele nilo vai passar 0 que ele deveria atraves da miisica e isso e perceptivel atraves das ondas sonoras, 0 publico percebe isso claramente. Ele noo sabe por que gosta mais de uma musica do que de outra, de um artista do que de ~Utro, mas e i8S0: a em~o propagada pela8 ondas sonoras.

A opiniao de Luis Oscar Niemeyer, presidente da BMG-Ariola, apresenra significativas semelhan~as com a de Maynard:

83 GROPPO, 1996, p. 199.

#

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86 Os donos da voz

80 em torno do rock. De fato, existia uma produ~o que, por sua vez, espelhava-se em produtos mundializados, difundidos, consumidos e re­produzidos no pals e muito ja se falou sobre a capacidade do rock, de sintonizar valores universalizados pr6prios a juventude, seja ela de que lugar forBO. Na primeira metade dos anos 80 intensifica-se ainda mais a circula~o mundial do rock; 0 Brasil passa a integrar as turnes internacio­nais de grandes grupos, criando uma rede complementar de mercadorias que, alem dos discos, incluia roupas, revistas, acess6rios etc 8'. Porranto, a indUstria fez por constatar mais: a debilidade do mercado de bens culturais destinados aos jovens, 0 baixo custo da produ~ao do rock e fatores de ordem conjuntural (tais com "a crise", insatisfa~Oes, irreverencia, busca de "novidades") que faziam extremamente atual, no Brasil e no mundo, 0 rock como produto cultural, quase 30 anos depois de seu surgimento.

o problema estava nas escolhas feitas pela industria, do que deveria ser veiculado, considerando 0 conjunto da oferta. Schmidt aponta para 0 lade ingenuo, infantil, engra~ado, facilmente digerivel, apetitoso

. do ponte;> de vista da industria cultural, do que encontrou e escolheu como produto, depois de pesquisar 0 que acontecia no cenario"'. Como

80 Nesse senti do, e exemplar a discussao sabre 0 advento do punk rock, no Brasil e alhures. GROPPO, 1996, p. 189. afirma que 0 fato de existir uma movimenta~ao em torno do punk rock no Brasil em 19n. quase que ao mesrno tempo que na Ingla­terra, sua terra natal, explica-se pelo interesse dos jovens em buscar novidades musicais, uma vez que 0 punk tetia chegado no Bmsil "sem nenhuma campanha de marketing articulada pela industria musical". Venda de maneira diferente, consi­dero que ~ a propria segmenta~o da produ~ao fonografica que permitiu ao punk rock usufruir de uma promor;ao diferenciada, 0 fato de urn produto nao receber 0

tratamento promocional tradicionalmente massificado, ao meu ver, nao significa que ele tenha estado fora dos esquemas promocionais das gl"'dvadoras. Ademais, 0

punk conquistou grandes espa~os na midia impressa como movimento que prega~ va uma atitude e urn comportamento especfficos, com dimensao cultural e mesmo polltica. Portanto, a industria fonogrMica era apenas uma etas partes envolvidas. Transformado progressivamente em produto eta industria cultural (como demons­tra 0 pr6prio autor, na p. 68), 0 punk rock vai encontrar, em faixas da juventude das sociedades urbanas e industrializadas do mundo, 0 mercado consumidor ideal.

81 GROPPO, 1996, p. 193-194. 82 Por outro lado; ha que se ressaltar a qualidade de muitos dos trabalhos surgidos

no perfodo, sobretudo se comparados ao atual panorama, tanto do rock, quanta da MPB. Vistos em perspectiva, muitos artistas surgidos nos anos 80 podem ser considerados como frutos de efetiva efervescencia cultural, nao mais observada nos 3nos seguintes.

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Trajet6ria da industria fonogclfica brasileira: anos 70 e 80 87

veremos adlante, OS anos 80 sao 0 palco de uma substanciosa produ­~o musical e cultural, que nao foi absorvida pela grande industria. Porranto, apesar do rock ter uma imporrancia cultural diferenciada, permitindo a sobrevivencia de uma produ~ao desvinculada dos media e da grande industria, 0 que e veiculado e consumido, em larga escala, e resultado de um planejamento exato, com estrategias muito bem definidas. Se 0 rock e cultural mente distinto de uma simples moda, sob sua egide existiram e continuam a existir muitas bandas de um s6 sucesso, de um s6 verno"'.

Ampliando 0 cenario, gostaria de trazer para a discussao outros pontos de vista. Como vimos, para Marcos Maynard, as gravadoras simplesmente ajudam a propagar as ondas sonoras. Questionado se a industria fonografica faz pesquisa de opiniao para saber 0 que as pessoas estao querendo ouvir ou para conhecer 0 que esta sendo produzido para, enta~, ser propagado, Maynard responde:

Nossa industria nao funciona assim, porque voce esta mexeodo com sensibilidade e nao com sabonete. Voce nao pode criar oodas, nem pesquisar a opiniao publica para saber 0 que 0 publico quer, porque 0

publico, em termos de musica, e intuitivo. A musica esta no ar, esta na criatividade dos artistas que a gravadora propaga. Porque ° meu produ­to e um produto que pensa, sente, dorme, respira, fala bobagem, fala coisa certa, e inteligente, nao e inteligente. Agora, 0 sabonete e 0 sabo­nete, voce 0 coloca ali"na prateleira; ele fica parado, voce faz 0 marketing que quiser desse produto, diz que ele e dourado, que e maravilhoso, que cheira bem e ele nao vai dizer nada. Agora, se voce falar que 0 seu artista e bonito, simpatico, de repente muita gente pode MO achar ( ... ). Se um artista nao grava bem por qualquer tipo de problemas pessoais, ele nilo vai passar 0 que ele deveria atraves da miisica e isso e perceptivel atraves das ondas sonoras, 0 publico percebe isso claramente. Ele noo sabe por que gosta mais de uma musica do que de outra, de um artista do que de ~Utro, mas e i8S0: a em~o propagada pela8 ondas sonoras.

A opiniao de Luis Oscar Niemeyer, presidente da BMG-Ariola, apresenra significativas semelhan~as com a de Maynard:

83 GROPPO, 1996, p. 199.

Page 45: Os donos da voz - Márcia Tosta Dias

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88 Os donos da voz

Nao contratamos de acordo com a tendencia de mercado. Evidente­

mente estamos atentos ao momento, as coisas que estao acontecendo

nas areas de cria~ao e, e 6bvio que onde ha uma oportunidade, pro­

curamos ataca-la. Mas 0 mercado da musica e muito instaveL Voce

tern de estar bern localizado em cada urn destes segmentos. Houve

uma epoca em que a musica romantica explodiu. Noutra, foi 0 rock,

depois a MPB. N6s estamos muito presentes em todo 0 mercado. Se a

genera rock, por exemplo, voltar, continuamos acreditando neste segmen­

to. Tern sido assim. Nao e como um sabao novo, com pesquisa. A

musica e muito vulneravel. Nao ha como medir. Jorge Benjor, por

exemplo, explodiu de repente. Nao foi apenas marketing, mas uma

nova geras;:ao, que nao 0 conhecia, come~ou a ·consumi-l0. A coisa

nao e cientifica.84

A partir da distinfao entre artistas de marketing e artistas de catalogo, no final dos anos 80, a maioria das gravadoras aderiu a uma estrategia horizontal de atuafao, trabalhando com varios estilos, aper­

. feifoando a segmentafao. Assim, e POSSIVe! encontrar, por exemplo, argumenios como a de "investir mais, para lucrar mais", como fazia a BMG-Ariola, com urn cast de 65 artistas nas areas de MPB, samba, pop/rock, musica romantica, regional e infanto-juvenil. A justificava estava no fato de, ao cobrir todas as areas, tornava-se posslvel fugir dos modismos. Outra gravadora com atuafao horizontal na epoca era a SQm Livre, que continuou trabalhando com trilhas de novelas, fil­mes e coletaneas·5• A especificidade de seus produtos the permitiu manter e consolidar, nas decadas de 80 e 90, sua posi~ao entre as maiores vendedoras de discos do paIs. Joao Araujo, diretor geral da Som Livre, justificava 0 sucesso da empresa, afirmando que, no mer-

84 Entrevista corn Luis Oscar Niemeyer, RJ: 26-09-94. Todos os excertos citados sao extrafdos da entrevista. Parecem constituir-se num jargao do meio, as compara­coes de m(isica corn sabonete oU sabao. Leo Monteiro de Barros, enrno diretor de Marketing da BMG, afirrna que a diferenca "entre 0 marketing do disco e de outro produto qualquer e que 0 '0 sabonete nao da entrevista'. (, .. ) Nos outros produ­tos 0 marketing pode moldar toda a personaHdade do produto, mas corn 0 artista nao e assim". In: "A explosao do show biz", EXAME, ano 29, n'I 8, 04-96, SP: Ed. Abril, p. 39.

85 Desde 0 final dos anos 80, a (mica artista contratada da Som Livre e a apresenta­dora Xuxa.

Trajetoria da industria fonografica brasileira: anos 70 e 80 89

cado brasjleiro de discos, as classes Bee representam de 60 a 65% do mercado. "Nosso publico e esse. Mas a classe A, que e pequena e consome jazz e musica erudita, tambem compra discos de artistas consagrados" .• 6

Uma estrategia verticalizada e menos comum era utilizada por uma empresa como a WEA. Andre Midani, garantindo 0 retorno do que propos fazer na companhia, afirmava em 1988: "Somos a grava­dora mais vertical de todas. Nosso publico tern de 15 a 35 anos e pertence as classes A e B - especialmente estudantes de colegio e de universidade. Estamos atras de pessoas nessa faixa e que sejam inconformadas com tudo".·'

Estabelecida a segmentafao como firme estrategia de diversifi­cafao de riscos, uma empresa da importancia da PolyGram faz a sua escolha, como afirma Marcos Maynard:

Se hoje em dia, a PolyGram produzir somente urn estilo de musica, ela

corre 0 risco de ter que fechar as portas. Por exemplo, se voce s6

grava rock'n roll e, de repente, 0 estilo nao e mais rock'n roB e ama­

nha passa a ser ~e music e eu nao tenho nenhurn artista de axe, 0

. que eu fa,o? 0 que eu fa,o com todos aqueles artistas de rock que hoje vendem urn milhao de c6pias cada urn e amanha vendem tres

discos? Entao a PolyGram e todas as outras companhias de discos tern urn cast

ecletico, tern que ter artistas de estilos diferentes. Porque, na hora que

o samba estiver em baixa no mercado, como e que voce vai sustentar

os artistas de samba? Vai parar de fazer seus discos? Vai manda-los

para a rua? Nao! Tern que manle-los. Voce vai gastar mais dinheiro

sustentando-os, mas se de repente 0 samba sobe, enta~ eles vendem.

Mais uma vez, encontramos proximidade entre as opiniOes dos executivos:

A BMG tern urn elenco dos mais diversificados. N6s nao escolhemos

urn segmento especifico do mercado. Entendemos que a cena musical

no Brasil e superdiversificada e abrangente, ou seja, que temos varios

86 "Mercado de discos enfrenta crise". In: f<btha de S.Pau/o, 17-01-88, p. A-60. S? Idem.

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88 Os donos da voz

Nao contratamos de acordo com a tendencia de mercado. Evidente­

mente estamos atentos ao momento, as coisas que estao acontecendo

nas areas de cria~ao e, e 6bvio que onde ha uma oportunidade, pro­

curamos ataca-la. Mas 0 mercado da musica e muito instaveL Voce

tern de estar bern localizado em cada urn destes segmentos. Houve

uma epoca em que a musica romantica explodiu. Noutra, foi 0 rock,

depois a MPB. N6s estamos muito presentes em todo 0 mercado. Se a

genera rock, por exemplo, voltar, continuamos acreditando neste segmen­

to. Tern sido assim. Nao e como um sabao novo, com pesquisa. A

musica e muito vulneravel. Nao ha como medir. Jorge Benjor, por

exemplo, explodiu de repente. Nao foi apenas marketing, mas uma

nova geras;:ao, que nao 0 conhecia, come~ou a ·consumi-l0. A coisa

nao e cientifica.84

A partir da distinfao entre artistas de marketing e artistas de catalogo, no final dos anos 80, a maioria das gravadoras aderiu a uma estrategia horizontal de atuafao, trabalhando com varios estilos, aper­

. feifoando a segmentafao. Assim, e POSSIVe! encontrar, por exemplo, argumenios como a de "investir mais, para lucrar mais", como fazia a BMG-Ariola, com urn cast de 65 artistas nas areas de MPB, samba, pop/rock, musica romantica, regional e infanto-juvenil. A justificava estava no fato de, ao cobrir todas as areas, tornava-se posslvel fugir dos modismos. Outra gravadora com atuafao horizontal na epoca era a SQm Livre, que continuou trabalhando com trilhas de novelas, fil­mes e coletaneas·5• A especificidade de seus produtos the permitiu manter e consolidar, nas decadas de 80 e 90, sua posi~ao entre as maiores vendedoras de discos do paIs. Joao Araujo, diretor geral da Som Livre, justificava 0 sucesso da empresa, afirmando que, no mer-

84 Entrevista corn Luis Oscar Niemeyer, RJ: 26-09-94. Todos os excertos citados sao extrafdos da entrevista. Parecem constituir-se num jargao do meio, as compara­coes de m(isica corn sabonete oU sabao. Leo Monteiro de Barros, enrno diretor de Marketing da BMG, afirrna que a diferenca "entre 0 marketing do disco e de outro produto qualquer e que 0 '0 sabonete nao da entrevista'. (, .. ) Nos outros produ­tos 0 marketing pode moldar toda a personaHdade do produto, mas corn 0 artista nao e assim". In: "A explosao do show biz", EXAME, ano 29, n'I 8, 04-96, SP: Ed. Abril, p. 39.

85 Desde 0 final dos anos 80, a (mica artista contratada da Som Livre e a apresenta­dora Xuxa.

Trajetoria da industria fonografica brasileira: anos 70 e 80 89

cado brasjleiro de discos, as classes Bee representam de 60 a 65% do mercado. "Nosso publico e esse. Mas a classe A, que e pequena e consome jazz e musica erudita, tambem compra discos de artistas consagrados" .• 6

Uma estrategia verticalizada e menos comum era utilizada por uma empresa como a WEA. Andre Midani, garantindo 0 retorno do que propos fazer na companhia, afirmava em 1988: "Somos a grava­dora mais vertical de todas. Nosso publico tern de 15 a 35 anos e pertence as classes A e B - especialmente estudantes de colegio e de universidade. Estamos atras de pessoas nessa faixa e que sejam inconformadas com tudo".·'

Estabelecida a segmentafao como firme estrategia de diversifi­cafao de riscos, uma empresa da importancia da PolyGram faz a sua escolha, como afirma Marcos Maynard:

Se hoje em dia, a PolyGram produzir somente urn estilo de musica, ela

corre 0 risco de ter que fechar as portas. Por exemplo, se voce s6

grava rock'n roll e, de repente, 0 estilo nao e mais rock'n roB e ama­

nha passa a ser ~e music e eu nao tenho nenhurn artista de axe, 0

. que eu fa,o? 0 que eu fa,o com todos aqueles artistas de rock que hoje vendem urn milhao de c6pias cada urn e amanha vendem tres

discos? Entao a PolyGram e todas as outras companhias de discos tern urn cast

ecletico, tern que ter artistas de estilos diferentes. Porque, na hora que

o samba estiver em baixa no mercado, como e que voce vai sustentar

os artistas de samba? Vai parar de fazer seus discos? Vai manda-los

para a rua? Nao! Tern que manle-los. Voce vai gastar mais dinheiro

sustentando-os, mas se de repente 0 samba sobe, enta~ eles vendem.

Mais uma vez, encontramos proximidade entre as opiniOes dos executivos:

A BMG tern urn elenco dos mais diversificados. N6s nao escolhemos

urn segmento especifico do mercado. Entendemos que a cena musical

no Brasil e superdiversificada e abrangente, ou seja, que temos varios

86 "Mercado de discos enfrenta crise". In: f<btha de S.Pau/o, 17-01-88, p. A-60. S? Idem.

Page 46: Os donos da voz - Márcia Tosta Dias

,.. 90 Os donos da voz

nichos no mercado. Temos, talvez, 0 elenco mais consistente. Por

exemplo, na area de rOffiantico popular, 0 Amado Batista - que nao entra muito no Rio de Janeiro -, Fabio Jr., Jose Augusto. Na area de MPB, Chico Buarque, Gal Costa, Fagnerj no samba, Alcione, Paulinho da Viola, grupo Ra~a, Bezerra da Silva, Liga das Escolas de Samba; no rock, 0 Lulu Santos, Engenheiros do Hawai, Arnalda Antunes, Roupa Nova; ern sertanejo, Gian e Giovanni. Nao somas uma gravador~ que

escolhe uma area para sermos os melhores.

Segundo a 16gica dos empresarios, 0 mercado consumidor de produtos dos artistas de marketing deve financiar a permanencia de artistas autenticos (artistas verdadeiros, de acordo com Maynard), nao fabricados nas companhias, considerando 0 alto custo destes ultimos e 0 retorno, a medio prazo, dos investimentos. Desta forma, a indus­tria gera, com velocidade e competencia, grande quantidade de pro­dutos que serno veiculados a exaustao e substituidos de acordo com os indices de vendagem alcan~ados. Teremos a oportunidade de ve­

. rificar ql.!e sao os produtos dos artistas de marke.ting que movem a grande industria fonografica. Mais uma vez, a questao que permane­ce diz respeito 11 pouquissima disposi~ao da industria de inovar, ou simplesmente melhorar, a qualidade dos produtos destinados ao gran­de publico consumidor, ou os produtos para os quais se espera gran­de vendagem. A repeti~ao das mesmas f6rmulas (para nao dizer da mesma f6rmula) cativa 0 consumidor pela situa~ao de conforto e familiaridade promovidas pelo reconhecimento, como foi apontado por alguns autores e, desta forma, garante a industria urn lucrativo e imediato retorno financeiro.

Considerando as questoes ate aqui apcesentadas, gostaria de passar ao pr6ximo capitulo, que tern a inten~ao de analisar os cami­nhos que levam as mudan~as na organiza~ao e na estrutura de funcio­namento da industria fonografica brasileira, que se efetuam definiti­vamente nos anos 90. 0 fio condutor continua sendo 0 da produ~ao, mas gostaria de iniciar a explora~ao do problema pela analise do universe de trabalho do produtor musical, enfatizando os instrumen­tos de que dispoe, para a realiza~ao dos produtos e, muitas vezes, para a constru~ao da carreira de astros e estrelas do disco.

Os anos 90 e as mudans;as na industria fonografica brasileira

1. Ainda 0 processo de produ\;1io: 0 produtor musical

As mudan~as ha estrutura e organiza~ao da produ~ao na indus­tria fonografica, que os anos 90 enunciam e instituem, podem ser analisadas a partir de varios enfoques. No intuito de reunir alguns dados para a reflexao do sentido que tais mudan~as adquirem, gosta­ria de partir da analise de alguns aspectos do trabalho do produtor musical. Personagem da maior importancia no processo, 0 produtor musical parece concentrar, em sua trajet6ria, a real dimensa,o das mudan~as.

Se 0 disco e urn produto cuja caracteristica primordial e a de encerrar a contradi~ao entre produ~ao material e produ~ao artistica, 0

produtor musical concentra, ele mesmo, contradi~ao similar, que se expressa na esfera da execu~ao do planejamento efetuado para 0

produto. Nesse sentido, a partir de urn trabalho altamente tecnico e especializado, 0 produtor musical concilia interesses diversos, t6r­nando 0 produto musicalmente atrativo e economicamente eficiente; como parte do quadro funcional da companhia, realiza, no estudio, a proposta de atua~ao desta.

o trabalho do produtor musical tern dimensao ampla e se realiza em varias etapas do processo. Coordena todo 0 trabalho de grava~ao, escolhendo os musicos, arranjadores, estddio e recursos tecnicos. Pen­sa na montagem do disco, na seqiiencia em que as musicas devem ser· apresentadas e escolhe as faixas de trabalho (musicas que serno usadas para a divulga~ao nas radios e na televisao). Cuida tambem para que seja cumprido 0 or~mento destinado ao projeto. Os setores de marketing e vendas precisam, muitas vezes, da orienta~ao do produtor para que possam otimizar seu trabalho, considerando a nature~a do produt'? e 0

,.. 90 Os donos da voz

nichos no mercado. Temos, talvez, 0 elenco mais consistente. Por

exemplo, na area de rOffiantico popular, 0 Amado Batista - que nao entra muito no Rio de Janeiro -, Fabio Jr., Jose Augusto. Na area de MPB, Chico Buarque, Gal Costa, Fagnerj no samba, Alcione, Paulinho da Viola, grupo Ra~a, Bezerra da Silva, Liga das Escolas de Samba; no rock, 0 Lulu Santos, Engenheiros do Hawai, Arnalda Antunes, Roupa Nova; ern sertanejo, Gian e Giovanni. Nao somas uma gravador~ que

escolhe uma area para sermos os melhores.

Segundo a 16gica dos empresarios, 0 mercado consumidor de produtos dos artistas de marketing deve financiar a permanencia de artistas autenticos (artistas verdadeiros, de acordo com Maynard), nao fabricados nas companhias, considerando 0 alto custo destes ultimos e 0 retorno, a medio prazo, dos investimentos. Desta forma, a indus­tria gera, com velocidade e competencia, grande quantidade de pro­dutos que serno veiculados a exaustao e substituidos de acordo com os indices de vendagem alcan~ados. Teremos a oportunidade de ve­

. rificar ql.!e sao os produtos dos artistas de marke.ting que movem a grande industria fonografica. Mais uma vez, a questao que permane­ce diz respeito 11 pouquissima disposi~ao da industria de inovar, ou simplesmente melhorar, a qualidade dos produtos destinados ao gran­de publico consumidor, ou os produtos para os quais se espera gran­de vendagem. A repeti~ao das mesmas f6rmulas (para nao dizer da mesma f6rmula) cativa 0 consumidor pela situa~ao de conforto e familiaridade promovidas pelo reconhecimento, como foi apontado por alguns autores e, desta forma, garante a industria urn lucrativo e imediato retorno financeiro.

Considerando as questoes ate aqui apcesentadas, gostaria de passar ao pr6ximo capitulo, que tern a inten~ao de analisar os cami­nhos que levam as mudan~as na organiza~ao e na estrutura de funcio­namento da industria fonografica brasileira, que se efetuam definiti­vamente nos anos 90. 0 fio condutor continua sendo 0 da produ~ao, mas gostaria de iniciar a explora~ao do problema pela analise do universe de trabalho do produtor musical, enfatizando os instrumen­tos de que dispoe, para a realiza~ao dos produtos e, muitas vezes, para a constru~ao da carreira de astros e estrelas do disco.

Os anos 90 e as mudans;as na industria fonografica brasileira

1. Ainda 0 processo de produ\;1io: 0 produtor musical

As mudan~as ha estrutura e organiza~ao da produ~ao na indus­tria fonografica, que os anos 90 enunciam e instituem, podem ser analisadas a partir de varios enfoques. No intuito de reunir alguns dados para a reflexao do sentido que tais mudan~as adquirem, gosta­ria de partir da analise de alguns aspectos do trabalho do produtor musical. Personagem da maior importancia no processo, 0 produtor musical parece concentrar, em sua trajet6ria, a real dimensa,o das mudan~as.

Se 0 disco e urn produto cuja caracteristica primordial e a de encerrar a contradi~ao entre produ~ao material e produ~ao artistica, 0

produtor musical concentra, ele mesmo, contradi~ao similar, que se expressa na esfera da execu~ao do planejamento efetuado para 0

produto. Nesse sentido, a partir de urn trabalho altamente tecnico e especializado, 0 produtor musical concilia interesses diversos, t6r­nando 0 produto musicalmente atrativo e economicamente eficiente; como parte do quadro funcional da companhia, realiza, no estudio, a proposta de atua~ao desta.

o trabalho do produtor musical tern dimensao ampla e se realiza em varias etapas do processo. Coordena todo 0 trabalho de grava~ao, escolhendo os musicos, arranjadores, estddio e recursos tecnicos. Pen­sa na montagem do disco, na seqiiencia em que as musicas devem ser· apresentadas e escolhe as faixas de trabalho (musicas que serno usadas para a divulga~ao nas radios e na televisao). Cuida tambem para que seja cumprido 0 or~mento destinado ao projeto. Os setores de marketing e vendas precisam, muitas vezes, da orienta~ao do produtor para que possam otimizar seu trabalho, considerando a nature~a do produt'? e 0

Page 47: Os donos da voz - Márcia Tosta Dias

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92 AS donas da voz

seu publico preferencial. a lado "ca~a talentos" requer conhecimentos sobre a mercado e grande sintonia com as ofertas de shows, discos independentes, ou seja, toda movimenta~ao musical que ainda nao tenha sido capitalizada pelas grandes companhias.

Finalmente, e na transferencia do conhecimento tecnico de como relacionar musica e mercadoria de maneira competente e lucrativa, que se centra 0 trabalho do produtor. Conhecimento musical, do mercado, do publico e, sobretudo, dos detalhes tecnicos que pode­rao transformar um disco e um artista num produto musicalmente sofisticado, ou de sucesso (considerando que nao sao freqtientes os casos em que os dois coexistam): eis as principais caracterlsticas de seu savoir jaire.

Se alguns artistas do cenario nacional e internacional conquis­tam autonomia para conceberem seus proprios trabalhos, da escolha do repertorio 11 estampa da capa (mesmo que com algumas conces­soes), uma grande parcela destes segue subordinada aos interesses das empresas. Se para os primeiros, a a~ao do produtor e, muitas yezes, a garantia de qualidade e de aprimoramento do produto, para os ultimos, 0 seu trabalho pode significar sucesso, fama e submissao e tolhimento artlsticos, presentes na transforma~ao do musico ou cantor, em um ator que representa um personagem. Portanto e, sobretudo, na esfera da produ~ao da can~ao popular de massa, que 0 produtor pode atuar construindo Idolos, criando personagens, promovendo transforma~oes na carreira de alguns artistas ou simplesmente reite~ rando, atraves da repeti~ao incessante de formulas conhecidas e con­sagradas, os modelos padronizados das estrelas de sucesso.

A trajetoria de dois artistas brasileiros no ano de 1977 e resgata­da por Ana Maria Bahiana: os cantores Peninha e Sidney Magal, "ex­poentes verdadeiros do que se chama pop music - musica industrial, de massa, pronta para 0 consumo em larga escala - venderam discos aos milhares e nisso se concentra, como eles proprios afirmam, seu maior e qui~a unico merito. Sao produtos de linha de montagem, bem sucedidos e lucrativos. E gostam disso".1 A estrategia se efetivou na gravadora Phonogram, pelo selo Polydor, especializado em musi­ca popular romantica, sob a orienta~ao do produtor musical argenti-

1 BAHIANA, 1980, p. 239. 0 fato de sec peculiar aos anos 70 naQ compromere a contemporaneidade do exemplo.

as anos 90 e as mudan,as na industria fonografica brasileira 93

no Roberto Livi, radicado no Brasil e contratado da empresa. Livi come~ou sua carreira no Brasil como cantor, mudando depois sua area de atua~ao, a exemplo de muitos outros diretores artlsticos, pro­dutores musicais e presidentes de gravadoras2

• A respeito dessa mu­dan~a, ele explica:

Eu vi que era como produtor que me realizaria. Vi que tinha uma visao, urn faro incrivel para sentir exatamente 0 que seria 0 Sllcesso e como ele deveria sec feitD. C ... ) Custou muita para 0 cantor e 0 compo­

sitor morrerem dentro de mim C,,), Acima de tudo eu nao queria sec

aquela coisa ehata, 0 produtor que e urn cantor frustrado e coloca suas frustra90es no trabalho dos outros'.

A concep~ao dos artistas em questao se deu a partir da constru­~ao de dois personagens'. Um, tlmido, franzino, de origem muito humilde, com carreira ate entao marginal e sobretudo romantico: Peninha. 0 outro, um tipo sensual, masculo, moreno, alto, adepto das paixoes violentas, dan~ndo e gesticulando dramaticamente, usan­do roupas provocantes: Magal'.

No caso de Peninha, seu primeiro sucesso, 0 compacto com a musica Sonhos 6, de sua autoria, vendeu 400 mil copias, mesmo sendo

2 Dentre os varios exemplos, vale citar: Marcos Maynard, foi guitarrista do conjunto Lee Jackson e Miguel Plopschi, diretor artfstico da Sony Music, saxofonista dos Fevers, ambos nos anos 60nO. Michael Sullivan, da dupla de produtores/compo­sitores de hits Sullivan & Massadas, tambem integrava os Fevers, alem de ter feito carreira solo cantando rnusicas romanticas em ingl~s.

3 BAHIANA, 1980, p. 240. Sao muitas as hist6rias de problemas nas rela~oes entre artistas e produtores. FreqOentemente 0 produtor e apontado como musico frus­trado, que quer impingir ao artista urn modelo que ele pr6prio nao conseguiu seguir. HENNION, op. cit., p. 7Sn6, apresenta opinioes de produtores musicais que reclamam 0 reconhecimento de seu trabalho, com 0 argumento de estarem sempre na sombra do trabalho do artista, com uma diferen{,:a: se 0 disco e born, o merito e do artista, se e ruim, a culpa e do produtor.

4 Segundo PAIANO, 1992, p. 209, a Phonogram inaugurou, no come{,:o dos_anos 70, urn Departamento de Cria~ao, responsavei pelas campanhas publicitArias de seus lan~amentos. No entanto, 0 departamento tambem criava "biografias fictfcias

para cantores popuiares, forjando assim urn carisma pessoal ". S Sobre Magal, cf. tambem "Cantando leva a vida, 56 que no interior". In: Folha de

S.Pall/o, 05-05-84, p. 4l. 6 A can~ao foi gravada, quatro anos mais tarde, por Caetano Veloso no disco Cores

e Nomes, PolyGram: 1981.

p

92 AS donas da voz

seu publico preferencial. a lado "ca~a talentos" requer conhecimentos sobre a mercado e grande sintonia com as ofertas de shows, discos independentes, ou seja, toda movimenta~ao musical que ainda nao tenha sido capitalizada pelas grandes companhias.

Finalmente, e na transferencia do conhecimento tecnico de como relacionar musica e mercadoria de maneira competente e lucrativa, que se centra 0 trabalho do produtor. Conhecimento musical, do mercado, do publico e, sobretudo, dos detalhes tecnicos que pode­rao transformar um disco e um artista num produto musicalmente sofisticado, ou de sucesso (considerando que nao sao freqtientes os casos em que os dois coexistam): eis as principais caracterlsticas de seu savoir jaire.

Se alguns artistas do cenario nacional e internacional conquis­tam autonomia para conceberem seus proprios trabalhos, da escolha do repertorio 11 estampa da capa (mesmo que com algumas conces­soes), uma grande parcela destes segue subordinada aos interesses das empresas. Se para os primeiros, a a~ao do produtor e, muitas yezes, a garantia de qualidade e de aprimoramento do produto, para os ultimos, 0 seu trabalho pode significar sucesso, fama e submissao e tolhimento artlsticos, presentes na transforma~ao do musico ou cantor, em um ator que representa um personagem. Portanto e, sobretudo, na esfera da produ~ao da can~ao popular de massa, que 0 produtor pode atuar construindo Idolos, criando personagens, promovendo transforma~oes na carreira de alguns artistas ou simplesmente reite~ rando, atraves da repeti~ao incessante de formulas conhecidas e con­sagradas, os modelos padronizados das estrelas de sucesso.

A trajetoria de dois artistas brasileiros no ano de 1977 e resgata­da por Ana Maria Bahiana: os cantores Peninha e Sidney Magal, "ex­poentes verdadeiros do que se chama pop music - musica industrial, de massa, pronta para 0 consumo em larga escala - venderam discos aos milhares e nisso se concentra, como eles proprios afirmam, seu maior e qui~a unico merito. Sao produtos de linha de montagem, bem sucedidos e lucrativos. E gostam disso".1 A estrategia se efetivou na gravadora Phonogram, pelo selo Polydor, especializado em musi­ca popular romantica, sob a orienta~ao do produtor musical argenti-

1 BAHIANA, 1980, p. 239. 0 fato de sec peculiar aos anos 70 naQ compromere a contemporaneidade do exemplo.

as anos 90 e as mudan,as na industria fonografica brasileira 93

no Roberto Livi, radicado no Brasil e contratado da empresa. Livi come~ou sua carreira no Brasil como cantor, mudando depois sua area de atua~ao, a exemplo de muitos outros diretores artlsticos, pro­dutores musicais e presidentes de gravadoras2

• A respeito dessa mu­dan~a, ele explica:

Eu vi que era como produtor que me realizaria. Vi que tinha uma visao, urn faro incrivel para sentir exatamente 0 que seria 0 Sllcesso e como ele deveria sec feitD. C ... ) Custou muita para 0 cantor e 0 compo­

sitor morrerem dentro de mim C,,), Acima de tudo eu nao queria sec

aquela coisa ehata, 0 produtor que e urn cantor frustrado e coloca suas frustra90es no trabalho dos outros'.

A concep~ao dos artistas em questao se deu a partir da constru­~ao de dois personagens'. Um, tlmido, franzino, de origem muito humilde, com carreira ate entao marginal e sobretudo romantico: Peninha. 0 outro, um tipo sensual, masculo, moreno, alto, adepto das paixoes violentas, dan~ndo e gesticulando dramaticamente, usan­do roupas provocantes: Magal'.

No caso de Peninha, seu primeiro sucesso, 0 compacto com a musica Sonhos 6, de sua autoria, vendeu 400 mil copias, mesmo sendo

2 Dentre os varios exemplos, vale citar: Marcos Maynard, foi guitarrista do conjunto Lee Jackson e Miguel Plopschi, diretor artfstico da Sony Music, saxofonista dos Fevers, ambos nos anos 60nO. Michael Sullivan, da dupla de produtores/compo­sitores de hits Sullivan & Massadas, tambem integrava os Fevers, alem de ter feito carreira solo cantando rnusicas romanticas em ingl~s.

3 BAHIANA, 1980, p. 240. Sao muitas as hist6rias de problemas nas rela~oes entre artistas e produtores. FreqOentemente 0 produtor e apontado como musico frus­trado, que quer impingir ao artista urn modelo que ele pr6prio nao conseguiu seguir. HENNION, op. cit., p. 7Sn6, apresenta opinioes de produtores musicais que reclamam 0 reconhecimento de seu trabalho, com 0 argumento de estarem sempre na sombra do trabalho do artista, com uma diferen{,:a: se 0 disco e born, o merito e do artista, se e ruim, a culpa e do produtor.

4 Segundo PAIANO, 1992, p. 209, a Phonogram inaugurou, no come{,:o dos_anos 70, urn Departamento de Cria~ao, responsavei pelas campanhas publicitArias de seus lan~amentos. No entanto, 0 departamento tambem criava "biografias fictfcias

para cantores popuiares, forjando assim urn carisma pessoal ". S Sobre Magal, cf. tambem "Cantando leva a vida, 56 que no interior". In: Folha de

S.Pall/o, 05-05-84, p. 4l. 6 A can~ao foi gravada, quatro anos mais tarde, por Caetano Veloso no disco Cores

e Nomes, PolyGram: 1981.

Page 48: Os donos da voz - Márcia Tosta Dias

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94 Os donos da voz

considerada de dificil assimila~ao, por apresentar uma letra longa. 0 produtor explica porque a estrategia deu certo:

Acontece 0 seguinte: 0 Peninha e urn artista sincero que trata de

coisas, problemas que acontecem com a maioria da popula~ilo. E e issa que interessa. Nao adianta nada fazer uma coisa que cada artista ache genial e que nilo vende nada, nilo atinge 0 povilo. 0 Chico [Buarquel e genial, esta certo, mas ele tinha alguma coisa. para dar as pessoas, senilo, nilo vendia 600 mil c6pias, nilo. S6 genialidade nilo adianta nada, nao faz vender disco. E 0 artista tern e que vender disco, se nao pra que ele serve? Pra tocar em casa, pros amigos? Tuda bern, mas naD venha gravar entao e dizer que nae quer suces­so. 0 Peninha quer 0 sucesso e sabe como atingir. As pessoas, 0

pavao, se identificam com as can~6es dele. Por iSBa ele vende e e urn artista popular. E romantico, mas e assim mesmo, conhe~o 0

publico latino, e romantico demais 7,

E P~ninha.fala sobre 0 sucesso:

Para mim 0 sucesso era levar algumas coisas de mirn ao maior ndmero posslvel de pessoas. Se hoje eu consegui isso, acho 6timo. (. .. ) E claro que 0 sucesso tambem traz problemas ( ... ). Antes eu era urn vagabun­do, hoje sou uma pessoa respeitada, com conta no banco, posso com­prar roupas, carro. Essa que e a diferen~a8.

Com Sidney Magal 0 risco foi um pouco maior. No momenta do encontro com Roberto Livi (e os encontros sao sempre casuais, sobretudo nos corredores das gravadoras!) 0 cantor ja tinha um com­pacto gravado na empresa, com a versao Se te agarro com outro te

7 BAHlANA, 1980, p. 242. Tern esse mesmo sentido a opiniao do produtor musical Michel Sullivan: '~rtista quer vender sua alte, quer que 0 aplaudam. que a amem, e sua maneira de viver. c..) Claro que voc~ pade fazer urn disco e apenas 100 mil irlo gastal' dele. Nao e por issa que e mim, e a verdade dele. A nossa musica e a vel'dade nossa e do pava. Vo~ vende emo~ao e naQ urn produto paJp~vel. feijao, palmito, sapato, e urn produto abstrato. Tern altista que pensa na em~ao dele, mas voc~ tern que chegar no pava. Esse e 0 nossa lema e naD vamos mudar nunca." In, "A A1quimia do Sucesso", Jornal "" Tarde, sp, 24-03-88, p. 25.

8 BAHlANA, 1980, p. 242.

Os anos 90 e as mudan~as na industria fonografica brasileira 95

mato, que tinha sido fortemente recusado pelos meios difusores. Livi resolveu insistir na promo~ao do disco. "E conseguiu. Em breve, as mesmas radios e TVs estavam querendo Sidney Magal. E 0 disco co­me~ou a vender".9 Segundo 0 produtor, a causa da radical mudan~a nos resultados estava nos 6timos relacionamentos que tinha com as pessoas do meio. Bahiana qualifica 0 sucesso alcan~ado como "fulmi­nante, intense e estrondoso". Gravado 0 LP, foram extraldos dois com­pactos: 0 Meu Sangue Ferve Por Voce (243 mil c6pias vendidas) e Amante Latino (115 mil c6pias vendidas). Diz 0 produtor:

Eu sabia como transformar 0 Magal em Sllcesso. Sabia exatamente 0 tipo de musica que servia para ele: tinha que ser uma coisa violenta, passional, nao 0 tipo de cancao romantica que havia antes no Brasil. ( ... ) Eu sabia que ia dar certo. Magal tern toda estampa de Idolo latino, tern inclusive aquela coisa cafona que os idolos tern que ter, que Elvis, por exemplo. tinha. Por issa eu insisti tanto na televisao, no apelo visual. Eu sabia que, na realidade, 0 que ia vender Magal, nilo seriam nem bern suas musicas, mas mais sua imagem (. "yo.

A opiniao do artista:

Eu queria ver as multidoes gritando, me aclamando, eu queria me dar cada vez mais para cada vez mais pessoas porque sabia que assim eu receberia cada vez mais, nao em dinheiro, mas em satisfacao. C .. ) Eu sei que, assim, eu alimento os saohas dos fas, eu sou a pessoa que venceu na vida fazendo 0 que gosta e e com isso que eles gostam de se identi­ficar. Eu trago esperan~, alegria, para milhares de pessoas ( ... )".

A opera~ao realizada por Livi e emblematica de parte consi­deravel dos produtos gerados nas gran des companhias. E notavel a

9 Idem, p. 244. 10 Ibidem. 11 Ibidem, p. 246. 0 cantor e compositor Peninha, que por muito tempo naQ foi

al~m de seu "Sonho5" I tenta revitalizar sua carreira, no mesmo sentido apontado. Sidney Magal tern revezado sua atuat;ao na divuigacao de varias e consecutivas modas, tais como a lambada e 0 gipsy Cmusica e dant;a ciganas). No momento investe na carreira de ator de telenovela.

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94 Os donos da voz

considerada de dificil assimila~ao, por apresentar uma letra longa. 0 produtor explica porque a estrategia deu certo:

Acontece 0 seguinte: 0 Peninha e urn artista sincero que trata de

coisas, problemas que acontecem com a maioria da popula~ilo. E e issa que interessa. Nao adianta nada fazer uma coisa que cada artista ache genial e que nilo vende nada, nilo atinge 0 povilo. 0 Chico [Buarquel e genial, esta certo, mas ele tinha alguma coisa. para dar as pessoas, senilo, nilo vendia 600 mil c6pias, nilo. S6 genialidade nilo adianta nada, nao faz vender disco. E 0 artista tern e que vender disco, se nao pra que ele serve? Pra tocar em casa, pros amigos? Tuda bern, mas naD venha gravar entao e dizer que nae quer suces­so. 0 Peninha quer 0 sucesso e sabe como atingir. As pessoas, 0

pavao, se identificam com as can~6es dele. Por iSBa ele vende e e urn artista popular. E romantico, mas e assim mesmo, conhe~o 0

publico latino, e romantico demais 7,

E P~ninha.fala sobre 0 sucesso:

Para mim 0 sucesso era levar algumas coisas de mirn ao maior ndmero posslvel de pessoas. Se hoje eu consegui isso, acho 6timo. (. .. ) E claro que 0 sucesso tambem traz problemas ( ... ). Antes eu era urn vagabun­do, hoje sou uma pessoa respeitada, com conta no banco, posso com­prar roupas, carro. Essa que e a diferen~a8.

Com Sidney Magal 0 risco foi um pouco maior. No momenta do encontro com Roberto Livi (e os encontros sao sempre casuais, sobretudo nos corredores das gravadoras!) 0 cantor ja tinha um com­pacto gravado na empresa, com a versao Se te agarro com outro te

7 BAHlANA, 1980, p. 242. Tern esse mesmo sentido a opiniao do produtor musical Michel Sullivan: '~rtista quer vender sua alte, quer que 0 aplaudam. que a amem, e sua maneira de viver. c..) Claro que voc~ pade fazer urn disco e apenas 100 mil irlo gastal' dele. Nao e por issa que e mim, e a verdade dele. A nossa musica e a vel'dade nossa e do pava. Vo~ vende emo~ao e naQ urn produto paJp~vel. feijao, palmito, sapato, e urn produto abstrato. Tern altista que pensa na em~ao dele, mas voc~ tern que chegar no pava. Esse e 0 nossa lema e naD vamos mudar nunca." In, "A A1quimia do Sucesso", Jornal "" Tarde, sp, 24-03-88, p. 25.

8 BAHlANA, 1980, p. 242.

Os anos 90 e as mudan~as na industria fonografica brasileira 95

mato, que tinha sido fortemente recusado pelos meios difusores. Livi resolveu insistir na promo~ao do disco. "E conseguiu. Em breve, as mesmas radios e TVs estavam querendo Sidney Magal. E 0 disco co­me~ou a vender".9 Segundo 0 produtor, a causa da radical mudan~a nos resultados estava nos 6timos relacionamentos que tinha com as pessoas do meio. Bahiana qualifica 0 sucesso alcan~ado como "fulmi­nante, intense e estrondoso". Gravado 0 LP, foram extraldos dois com­pactos: 0 Meu Sangue Ferve Por Voce (243 mil c6pias vendidas) e Amante Latino (115 mil c6pias vendidas). Diz 0 produtor:

Eu sabia como transformar 0 Magal em Sllcesso. Sabia exatamente 0 tipo de musica que servia para ele: tinha que ser uma coisa violenta, passional, nao 0 tipo de cancao romantica que havia antes no Brasil. ( ... ) Eu sabia que ia dar certo. Magal tern toda estampa de Idolo latino, tern inclusive aquela coisa cafona que os idolos tern que ter, que Elvis, por exemplo. tinha. Por issa eu insisti tanto na televisao, no apelo visual. Eu sabia que, na realidade, 0 que ia vender Magal, nilo seriam nem bern suas musicas, mas mais sua imagem (. "yo.

A opiniao do artista:

Eu queria ver as multidoes gritando, me aclamando, eu queria me dar cada vez mais para cada vez mais pessoas porque sabia que assim eu receberia cada vez mais, nao em dinheiro, mas em satisfacao. C .. ) Eu sei que, assim, eu alimento os saohas dos fas, eu sou a pessoa que venceu na vida fazendo 0 que gosta e e com isso que eles gostam de se identi­ficar. Eu trago esperan~, alegria, para milhares de pessoas ( ... )".

A opera~ao realizada por Livi e emblematica de parte consi­deravel dos produtos gerados nas gran des companhias. E notavel a

9 Idem, p. 244. 10 Ibidem. 11 Ibidem, p. 246. 0 cantor e compositor Peninha, que por muito tempo naQ foi

al~m de seu "Sonho5" I tenta revitalizar sua carreira, no mesmo sentido apontado. Sidney Magal tern revezado sua atuat;ao na divuigacao de varias e consecutivas modas, tais como a lambada e 0 gipsy Cmusica e dant;a ciganas). No momento investe na carreira de ator de telenovela.

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96 Os donos da voz

objetividade dos argumentos do produtor, quando expoe a inten~ao estritamente comercial de sua atividade. Da mesma forma, as justifi­cativas of ere cern alguns dados sobre as rela~oes artistalgravadora.

Mas, e de fundamental importancia para a analise considerar o argumento apresentado de que, os produtos em questao, sao lu­crativos por tocarem fundo a subjetividade de seu publico preferen­cial: coisas de amor interessam a toda a gente. Assim, oferecer his­t6rias ou produtos daquele que "vence na vida", hist6rias de final feliz, sempre foram urn valioso instrumento da industria cultural. T. W. Adorno, ao apontar 0 uso do glamour como tecnica dessa indus­tria, diz que "0 glamour e transformado na eterna can~ao de con­quistador do homem comum; ele, a quem jamais e permitido conquis­tar na vida, conquista no glamour. 0 triunfo e, de fato, 0 triunfo auto-estilizado do homem de neg6cios que anuncia que pretende . oferecer 0 mesmo produto por urn pre~o menor".12 Assim, a musica popular romantica, sobretudo aquela feita sob tais inten~oes, e exemplo primoroso de reitera~ao de urn modelo, que ouve pelo

. ouvinte~consumidor, entorpece e satisfaz seus sentidos e desejos, limitando 0 exercfcio de sua sensibilidade. Finalmente, percebe-se que 0 argumento utilizado por Livi, por Sullivan e outros, esta constrangedoramente pr6ximo ao de alguns estudiosos, que veem uma estreita conexao de valores entre 0 sujeito "ouvinte" e a musica, que se realiza de maneira consciente. Penso que 0 problema vai se esclarecendo, na medida em que observamos outras frentes de a~ao do produtor musical.

A partir do interesse da companhia, 0 produtor pode promover transforma~oes na trajet6ria do artista, a partir de mudan~as no seu estilo pessoal e no tipo de musica que faz. 0 produtor musical Marco Aurelio Mazola, conhecido no meio fonogcifico brasileiro por produ­zir discos de Rita Lee, Elis Regina e outros nomes da MPB, em depoi­mento de 1988, considera que,

c .. ) com raras exce~6es, ha muitos produtores que deturpam tudo no artista, fazem urn sambista cantar rock'n roll. Nao pode dar certo.

Quando me dispus a ser produtor, me dispus tambem a ter cenheci-

12 ADORNO, SMP, p. 127.

..

-t:'

I !

Os anos 90 e as mudan~as na industria fonografica brasileira 97

mento. Fa~e cursos, viajo muito. Aqui dizem que tal artista teve uma grande ideia, mas nos Estados Unidos 0 produtor ganha Grammysl3.

Talvez, a experiencia tenha permitido ao produtor rever suas posi~oes. No final dos anos 70, aproveitando 0 interesse comercial pelo genero discoteca, Mazola dispensou tratamento tecnico especial a algumas can~oes de musica popular brasileira, em especial as do cantor e compositor Belchior:

Eu transformei teda a musica para que virasse uma coisa com apelo

de fazer sucesso. C.') E ele foi sucesso. Na mesma epoca estavam

surg!ndo as danceterias, enta~ eu fiz As F~neticas, com "Dancing days"

e fiz 0 Belchior e fiz 0 Ney [MatogrossoJ, com "Nao existe pecado ao sui do Equador"C .. ). Os tres nos Estados Unidos. Eu cheguei I .. e pe­guei os tres melhores musicos de danceteria. Digo: 01ha, eu quero fazer isso para discoteca. Ai foi difidlimo 0 neg6cio do Belchior, por­que nao dava ... eu tive que fazer, mudar a segunda parte da musica,

tudo. C .. ) E todo mundo, na hora em que recebeu 0 disco, todo mun­de s6 faltou me matarJ4.

o problema estava no fato de que as mudan~as introduzidas nao duravam mais que urn sucesso. Depois de tantas concessoes, a carreira de Belquior, despersonalizada, nao recuperou mais 0 seu ritmo ascendente, como mostra Morelli. E comum verm~s artistas mudarem de genero ou segmento de atua~ao em fun~ao do advento de modas criadas nacional ou internacionalmente, pelas maos de pro­dutores. Com raras exce~oes, suas carreiras repetem a trajet6ria da­quela seguida por Belchior.

E quando urn artista resolve dispensar 0 trabalho de urn produ­tor e fazer, ele pr6prio, 0 trabalho de produ~ao? Marcos Maynard apresenta urn exemplo e sua maneira de ver a questao:

13 Em: "A alquimia do sucesso", op. cit., Mazola afirma ainda que: "Nunca me preocupo .se a radio quer rock, se quer funk e vou fazer· rock ou funk. Mlnha preocupa~o e com a quaJidade da musica". Sobre 0 fato de que seu trabalho com Elis Regina teria sido muito tumultuado, diz que "ela nao vendia discos e eu disse que ela poderia fazer uma coisa mais popular".

14 MORELLI, 1992, p. 81.

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96 Os donos da voz

objetividade dos argumentos do produtor, quando expoe a inten~ao estritamente comercial de sua atividade. Da mesma forma, as justifi­cativas of ere cern alguns dados sobre as rela~oes artistalgravadora.

Mas, e de fundamental importancia para a analise considerar o argumento apresentado de que, os produtos em questao, sao lu­crativos por tocarem fundo a subjetividade de seu publico preferen­cial: coisas de amor interessam a toda a gente. Assim, oferecer his­t6rias ou produtos daquele que "vence na vida", hist6rias de final feliz, sempre foram urn valioso instrumento da industria cultural. T. W. Adorno, ao apontar 0 uso do glamour como tecnica dessa indus­tria, diz que "0 glamour e transformado na eterna can~ao de con­quistador do homem comum; ele, a quem jamais e permitido conquis­tar na vida, conquista no glamour. 0 triunfo e, de fato, 0 triunfo auto-estilizado do homem de neg6cios que anuncia que pretende . oferecer 0 mesmo produto por urn pre~o menor".12 Assim, a musica popular romantica, sobretudo aquela feita sob tais inten~oes, e exemplo primoroso de reitera~ao de urn modelo, que ouve pelo

. ouvinte~consumidor, entorpece e satisfaz seus sentidos e desejos, limitando 0 exercfcio de sua sensibilidade. Finalmente, percebe-se que 0 argumento utilizado por Livi, por Sullivan e outros, esta constrangedoramente pr6ximo ao de alguns estudiosos, que veem uma estreita conexao de valores entre 0 sujeito "ouvinte" e a musica, que se realiza de maneira consciente. Penso que 0 problema vai se esclarecendo, na medida em que observamos outras frentes de a~ao do produtor musical.

A partir do interesse da companhia, 0 produtor pode promover transforma~oes na trajet6ria do artista, a partir de mudan~as no seu estilo pessoal e no tipo de musica que faz. 0 produtor musical Marco Aurelio Mazola, conhecido no meio fonogcifico brasileiro por produ­zir discos de Rita Lee, Elis Regina e outros nomes da MPB, em depoi­mento de 1988, considera que,

c .. ) com raras exce~6es, ha muitos produtores que deturpam tudo no artista, fazem urn sambista cantar rock'n roll. Nao pode dar certo.

Quando me dispus a ser produtor, me dispus tambem a ter cenheci-

12 ADORNO, SMP, p. 127.

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I !

Os anos 90 e as mudan~as na industria fonografica brasileira 97

mento. Fa~e cursos, viajo muito. Aqui dizem que tal artista teve uma grande ideia, mas nos Estados Unidos 0 produtor ganha Grammysl3.

Talvez, a experiencia tenha permitido ao produtor rever suas posi~oes. No final dos anos 70, aproveitando 0 interesse comercial pelo genero discoteca, Mazola dispensou tratamento tecnico especial a algumas can~oes de musica popular brasileira, em especial as do cantor e compositor Belchior:

Eu transformei teda a musica para que virasse uma coisa com apelo

de fazer sucesso. C.') E ele foi sucesso. Na mesma epoca estavam

surg!ndo as danceterias, enta~ eu fiz As F~neticas, com "Dancing days"

e fiz 0 Belchior e fiz 0 Ney [MatogrossoJ, com "Nao existe pecado ao sui do Equador"C .. ). Os tres nos Estados Unidos. Eu cheguei I .. e pe­guei os tres melhores musicos de danceteria. Digo: 01ha, eu quero fazer isso para discoteca. Ai foi difidlimo 0 neg6cio do Belchior, por­que nao dava ... eu tive que fazer, mudar a segunda parte da musica,

tudo. C .. ) E todo mundo, na hora em que recebeu 0 disco, todo mun­de s6 faltou me matarJ4.

o problema estava no fato de que as mudan~as introduzidas nao duravam mais que urn sucesso. Depois de tantas concessoes, a carreira de Belquior, despersonalizada, nao recuperou mais 0 seu ritmo ascendente, como mostra Morelli. E comum verm~s artistas mudarem de genero ou segmento de atua~ao em fun~ao do advento de modas criadas nacional ou internacionalmente, pelas maos de pro­dutores. Com raras exce~oes, suas carreiras repetem a trajet6ria da­quela seguida por Belchior.

E quando urn artista resolve dispensar 0 trabalho de urn produ­tor e fazer, ele pr6prio, 0 trabalho de produ~ao? Marcos Maynard apresenta urn exemplo e sua maneira de ver a questao:

13 Em: "A alquimia do sucesso", op. cit., Mazola afirma ainda que: "Nunca me preocupo .se a radio quer rock, se quer funk e vou fazer· rock ou funk. Mlnha preocupa~o e com a quaJidade da musica". Sobre 0 fato de que seu trabalho com Elis Regina teria sido muito tumultuado, diz que "ela nao vendia discos e eu disse que ela poderia fazer uma coisa mais popular".

14 MORELLI, 1992, p. 81.

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98 Os donos da voz

Michael Jackson, depois de dais discos de urn sucesso nunca visto na hist6ria da industria fonografica, Triller, 35 milhi'ies de c6pias e Bad, 20 milhi'ies de c6pias, decide fazer urn disco sem 0 produtor dos ante­riares, Quincy Jones. 0 resultado foi Dangerous, urn disco que nao chegou sequer it marca de 10 milhi'ies de c6pias, por ter estado aquem da qualidade presente em Trlller ou Bad. Eu escutei Dangerous em primicia. Fui urn dos dez prirneiros executivos do rnundo a escutar 0 disco e sat de hi urn pouco preocupado. Se voce escutar as tres prirneiras faixas do disco voce vera que, sozinhas, elas sao geniais, mas na sequencia do disco, elas tomam-se cansativas. E outro grande segredo: a montagem do disco. Tern que saber montar, organizar as faixas C .. ) e fundamental pensar no ouvinte. C .. ) Eu acho que 0 Michael errou no repert6rio, algumas musicas eu nao colocaria naquele disco. Ele tarnbem tornou algumas musicas mais longas e outras mais curtas. Foi 0

seu erro. Mas ele quis COlTer 0 risco e fazer a coisa cia cabe~ dele, ele tern ' direito de fazer isso. Foi born que ele tenha feito para poder perceber a importinda do produtor. Os artistas, as vezes, querem fazer experiencias e temos que deixar que eles as fa~m. Nao podemos cercear 0 artista, mas temos que ter cuidado, temos que orientar.

No entanto, 0 empresario lembra que, 1Is vezes, a a{:ao do artis­ta-produtor, da certo:

o Caetano Veloso fez agora urn disco em espanhol lFina estampa, 1994J. Dei a maior for~a para ele, e esta af 0 resultado: ja e disco de ouro. Todo mundo esta falando do disco maravilhoso que 0 Caetano fez.C .. ) 0 Caetano, por exemplo, na~ precisa [de orienta~aoJ, porque ele sabe tudo, ate mais do que a gente, mas damos uma for\=a para ele realizar urn sonho.

o epis6dio narrado pode ser visto tamb~m no seguinte senti­do: a industria fonografica nao pode prescindir de um esquema que lhe garante um retorno de 20 a 35 milhoes de discos vendidos em escala mundial. Da mesma forma, 0 exemplo dado pelo empresario nos permite refletir sobre os caminhos que levam as companhias a repetir f6rmulas consagradas. No caso de Jackson, a industria teve oportunidade de testar, mais de uma vez, a viabilidade e eficiencia do modelo, dirigido por Quincy Jones. Mas, talvez, a questao nao se

" ~;, .'

Os anos 90 e as mudan{:as na industria fonografica brasileira 99

resuma somente na saida do produtor. Da mesma forma que se justi­fica a queda da qualidade do produto pela ausencia de Jones, poder­se-ia alegar outra mudan~a qualquer, que tivesse sido efetuada por Jackson. 0 fato e que, alem de alterar um modelo altamente lucrativo para todas as partes em jogo e modificar drasticamente os patamares de lucro, essa autonomia conquistada pelo amsta mostra-se totalmente desinteressante para a industria, na medida em que, de cena forma, rompe com seu esquema interne de divisao de trabalho, podendo in­centivar iniciativas semelhantes por parte dos pr6prios anistas.

Do ponto de vista da organiza~ao interna, os vinculos do pro­dutor musical com a grande empresa fonografica vaG sofrendo uma serie de mudanps, que se consolidam na decada de 80. A crescente segmenta{:ao do mercado fonografico, que, como apontei, perrnite as grandes gravadoras investirem em varios estilos musicais, diversificando riscos e, assim, garantindo retorno constante para suas opera~oes, pode nos auxiliar no entendimento de tais mudan~as. 0 trabalho do produtor vai se especializando cada vez mais, ate desprender-se formalmente da estrutura da grande empresa. Deixa de ser econornicamente viavel, para as companhias, ter em seus quadros produtores assalariados, especializados nos varios segmentos em que atuam. Desta forma, tor­nam-se profissionais autonomos, contratados pelas empresas para realizar trabalhos especificos15.

o desenvolvimento das tecnologias de produ~ao e grava~ao tam­bem tem subsidiado esse processo, queimando etapas, encurtando 0

tempo e 0 or~amento a ele dispensados. Vicente mostra como as tecnologias de produ~ao musical, sobretudo as digitais, van promover uma nova configura~ao na divisao do trabalho, quando os aparatos tecnicos passam a substituir varias etapas da produ~ao, especialmente aquela reservada as atividades do produtor. Assim, muito do trabalho estritamente tecnico desenvolvido por ele, como 0 planejamento e a realiza~ao das grava~oes, escolha dos musicos e arranjadores Celes mesmos substituidos por maquinas) e coordena~ao de todo 0 trabalho de estudio, passara a ser oferecido no mercado, concentrado e sinteti-

15 Isso nao quer dizer que nao existiram produtores autonomos nos anos 70, e tampouco que nao encontremos produtores contratados, atualmente, nas compa­nhias. De fato, a mudan~a se apresenta como tendencia, empiricamente verificada em varias situa~oes.

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Michael Jackson, depois de dais discos de urn sucesso nunca visto na hist6ria da industria fonografica, Triller, 35 milhi'ies de c6pias e Bad, 20 milhi'ies de c6pias, decide fazer urn disco sem 0 produtor dos ante­riares, Quincy Jones. 0 resultado foi Dangerous, urn disco que nao chegou sequer it marca de 10 milhi'ies de c6pias, por ter estado aquem da qualidade presente em Trlller ou Bad. Eu escutei Dangerous em primicia. Fui urn dos dez prirneiros executivos do rnundo a escutar 0 disco e sat de hi urn pouco preocupado. Se voce escutar as tres prirneiras faixas do disco voce vera que, sozinhas, elas sao geniais, mas na sequencia do disco, elas tomam-se cansativas. E outro grande segredo: a montagem do disco. Tern que saber montar, organizar as faixas C .. ) e fundamental pensar no ouvinte. C .. ) Eu acho que 0 Michael errou no repert6rio, algumas musicas eu nao colocaria naquele disco. Ele tarnbem tornou algumas musicas mais longas e outras mais curtas. Foi 0

seu erro. Mas ele quis COlTer 0 risco e fazer a coisa cia cabe~ dele, ele tern ' direito de fazer isso. Foi born que ele tenha feito para poder perceber a importinda do produtor. Os artistas, as vezes, querem fazer experiencias e temos que deixar que eles as fa~m. Nao podemos cercear 0 artista, mas temos que ter cuidado, temos que orientar.

No entanto, 0 empresario lembra que, 1Is vezes, a a{:ao do artis­ta-produtor, da certo:

o Caetano Veloso fez agora urn disco em espanhol lFina estampa, 1994J. Dei a maior for~a para ele, e esta af 0 resultado: ja e disco de ouro. Todo mundo esta falando do disco maravilhoso que 0 Caetano fez.C .. ) 0 Caetano, por exemplo, na~ precisa [de orienta~aoJ, porque ele sabe tudo, ate mais do que a gente, mas damos uma for\=a para ele realizar urn sonho.

o epis6dio narrado pode ser visto tamb~m no seguinte senti­do: a industria fonografica nao pode prescindir de um esquema que lhe garante um retorno de 20 a 35 milhoes de discos vendidos em escala mundial. Da mesma forma, 0 exemplo dado pelo empresario nos permite refletir sobre os caminhos que levam as companhias a repetir f6rmulas consagradas. No caso de Jackson, a industria teve oportunidade de testar, mais de uma vez, a viabilidade e eficiencia do modelo, dirigido por Quincy Jones. Mas, talvez, a questao nao se

" ~;, .'

Os anos 90 e as mudan{:as na industria fonografica brasileira 99

resuma somente na saida do produtor. Da mesma forma que se justi­fica a queda da qualidade do produto pela ausencia de Jones, poder­se-ia alegar outra mudan~a qualquer, que tivesse sido efetuada por Jackson. 0 fato e que, alem de alterar um modelo altamente lucrativo para todas as partes em jogo e modificar drasticamente os patamares de lucro, essa autonomia conquistada pelo amsta mostra-se totalmente desinteressante para a industria, na medida em que, de cena forma, rompe com seu esquema interne de divisao de trabalho, podendo in­centivar iniciativas semelhantes por parte dos pr6prios anistas.

Do ponto de vista da organiza~ao interna, os vinculos do pro­dutor musical com a grande empresa fonografica vaG sofrendo uma serie de mudanps, que se consolidam na decada de 80. A crescente segmenta{:ao do mercado fonografico, que, como apontei, perrnite as grandes gravadoras investirem em varios estilos musicais, diversificando riscos e, assim, garantindo retorno constante para suas opera~oes, pode nos auxiliar no entendimento de tais mudan~as. 0 trabalho do produtor vai se especializando cada vez mais, ate desprender-se formalmente da estrutura da grande empresa. Deixa de ser econornicamente viavel, para as companhias, ter em seus quadros produtores assalariados, especializados nos varios segmentos em que atuam. Desta forma, tor­nam-se profissionais autonomos, contratados pelas empresas para realizar trabalhos especificos15.

o desenvolvimento das tecnologias de produ~ao e grava~ao tam­bem tem subsidiado esse processo, queimando etapas, encurtando 0

tempo e 0 or~amento a ele dispensados. Vicente mostra como as tecnologias de produ~ao musical, sobretudo as digitais, van promover uma nova configura~ao na divisao do trabalho, quando os aparatos tecnicos passam a substituir varias etapas da produ~ao, especialmente aquela reservada as atividades do produtor. Assim, muito do trabalho estritamente tecnico desenvolvido por ele, como 0 planejamento e a realiza~ao das grava~oes, escolha dos musicos e arranjadores Celes mesmos substituidos por maquinas) e coordena~ao de todo 0 trabalho de estudio, passara a ser oferecido no mercado, concentrado e sinteti-

15 Isso nao quer dizer que nao existiram produtores autonomos nos anos 70, e tampouco que nao encontremos produtores contratados, atualmente, nas compa­nhias. De fato, a mudan~a se apresenta como tendencia, empiricamente verificada em varias situa~oes.

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zado em alguns equipamentos: "C ... ) 0 maior imbricamento entre as forma~oes de musico e tecnico proposto pelo digital, acaba permitindo que um mesmo profissional realize, simultaneamente, as fun~oes de tecnico de grava~ao, executante, regente e produtor"'6. No entanto, tal substitui~ao e gradativa, limitando-se a esfera do trabalho nos est6dios. Para 0 conjunto da industria, 0 trabalho do produtor, que tem maior abrangencia, continuara sendo fundamental; a mudan~a e restrita a maneira como se vincula a empresa. Vejamos alguns exemplos.

Inserida em amplo movimento de reestrutura~ao, a BMG-Ariola nao tem mais produtores musicais nos seus quadros, como explica seu diretor artistico Sergio Carvalho:

Eles sao independentes e eu os contrato para fazer urn detenninado tra­balho. Fui produtor da PolyGram por dez anos e vejo que 0 pr6prio mercado vai se modificando. Eu mesmo, quando deixei de ser funcion:i­rio, me senti mais a vontade para criar. Entendi bern quando isso acabou. o pradutor, entao, nao faz parte do staffde uma gravadora, e urn prestador de .seIViCo, terceirizado. Nao se pode obrigar urn artista a ser produzido por urn prafissional, 56 porque e contratado de uma gravadora. Por outro lado, 0 artista tern mais Iiberdade com quem se identifica melhor.

Dependendo do tipo de trabalho a ser desenvolvido pelo artis­ta, um profissional e contratado para produzi-lo. Se 0 artista ja tem um produtor, a empresa pode aceira-lo ou designar um outro, que considere mais conveniente aos seus prop6sitos. 0 profissional pode ser brasileiro ou estrangeiro.

Mas nao e todo artista que tem 0 privilegio de trabalhar com um produtor estrangeiro, considerando 0 tamanho de uma opera~o econo­mica deste tipo. No infcio de 1993, a Warner trouxe 0 produtor musical americana Jack Endino para produzir 0 disco Titanomaquia (lan~ado em 1994), do grupo brasileiro de rock Titas. 0 produtor, especializado na modalidade do rock que valoriza "0 tosco, 0 cru, com metodos sofis­ticados de experimenta~ao, C.) que para ele e simples tecniCa"17, tor­nou-se conhecido por trabalhar com varios grupos americanos no inicio

16 VICENTE, 1996, p. 57. 0 capitulo 2 e especialmente importante no tratamento dessa questao,

17 "Tesouro da Juventude". BIZZ, Ano 9. n" 06, 06-93, p. 30.

Os anos 90 e as mudancas na industria fonogriifica brasileira 101

dos anos 90, especialmente os que surgiram em Seattle, no movimento denominado grunge Cdo qual 0 grupo Nirvana foi grande expressao). Por sua vez, a gravadora estava buscando algo mais do que um requinte tecnico. 0 grupo tentava reverter 0 quadro instaurado com seu disco anterior, Tudo ao mesmo tempo agora (1991) que, ao ser duramente criticado pela imprensa especializada, nao conseguiu veicula~ao satisfat6ria nas radios, nem por for~ dos esquemas promocionais. Diz Endino:

Meu trabalho e fazer 0 disco do jeito que eles los musicosl sao. Eu nao entendo por que alguem vai fazer urn disco com uma banda e fica

querendo mudar 0 jeito dela ser. Tentar faze-la soar "melhor" do que ela realmente e. Eu acho que urn disco e legal quando a banda soa como nos ShOWS18.

A forma de trabalho de Endino e muito expressiva do universe em que 0 produtor musical passa a atuar, especializado em segmen­tos e/ou generos, ou ainda, em tecnicas especificas de interferencia no trabalho ou na trajet6ria dos artistas. Mas 0 produtor estrangeiro pode, tambem, atuar emprestando seu nome ou posi~ao a um proje­to, conferindo-lhe legitimidade. Assim, um disco gravado em estl1dios e com produtor estrangeiros, adquire originalmente um bom argu­mento de marketing e divulga~ao, considerando que as justificativas para realiza-lo dessa forma nao se encontram na competencia e espe­cialidade do produtor musical e/ou do equipamento utilizado'9. Um

18 Idem. Neste sentido, 0 produtor Pena Schmidt diz que, nos anos 90, 0 rock "C .. ) e uma linguagem essencialmente de dominio tecnol6gico, por mais crua que ela pare~a ser, por mais anti-maquina, anti-acabamento, que ela queira ser. Para soar 'de garagem' precisa ter muito dominio da tecnologia". Entrevista, 09-12-92. So­bre 0 disco criticado dos Titas, sabe-se que alem das alegadas "defici~ncias tecni­cas", 0 grupo escolheu para faixa de trabalho a canc;ao "Clit6ris", cuja veiculacao foi amplamente censurada pelas radios.

19 Pode ser vista, nesse sentido, a experiencia do grupo brasileiro Paralamas do Sucesso, que gravou 0 disco Severino (EMI, 1994) no esn1dio do produtor musi­cal Phil Manzanera, em Londres: "N6s sempre quisemos experimentar urn produ­tor gringo. E pensamos em varios, ate sugerir 0 Phil Manzanera. Poi sensacional. Ele viu 0 som da gente com outros olhos, deu uns palpites' legais e puxou por nossa brasilidade. Algumas coisas bern brasileiras do disco foram sugestoes dele, como a ideia de usarmos violas". "Entregando 0 Severino'''. BIZZ, Ano 10, ng 3, edi,ao 104, mar<;o-1994, p. 46 e segs.

100 Os donos da VOZ

zado em alguns equipamentos: "C ... ) 0 maior imbricamento entre as forma~oes de musico e tecnico proposto pelo digital, acaba permitindo que um mesmo profissional realize, simultaneamente, as fun~oes de tecnico de grava~ao, executante, regente e produtor"'6. No entanto, tal substitui~ao e gradativa, limitando-se a esfera do trabalho nos est6dios. Para 0 conjunto da industria, 0 trabalho do produtor, que tem maior abrangencia, continuara sendo fundamental; a mudan~a e restrita a maneira como se vincula a empresa. Vejamos alguns exemplos.

Inserida em amplo movimento de reestrutura~ao, a BMG-Ariola nao tem mais produtores musicais nos seus quadros, como explica seu diretor artistico Sergio Carvalho:

Eles sao independentes e eu os contrato para fazer urn detenninado tra­balho. Fui produtor da PolyGram por dez anos e vejo que 0 pr6prio mercado vai se modificando. Eu mesmo, quando deixei de ser funcion:i­rio, me senti mais a vontade para criar. Entendi bern quando isso acabou. o pradutor, entao, nao faz parte do staffde uma gravadora, e urn prestador de .seIViCo, terceirizado. Nao se pode obrigar urn artista a ser produzido por urn prafissional, 56 porque e contratado de uma gravadora. Por outro lado, 0 artista tern mais Iiberdade com quem se identifica melhor.

Dependendo do tipo de trabalho a ser desenvolvido pelo artis­ta, um profissional e contratado para produzi-lo. Se 0 artista ja tem um produtor, a empresa pode aceira-lo ou designar um outro, que considere mais conveniente aos seus prop6sitos. 0 profissional pode ser brasileiro ou estrangeiro.

Mas nao e todo artista que tem 0 privilegio de trabalhar com um produtor estrangeiro, considerando 0 tamanho de uma opera~o econo­mica deste tipo. No infcio de 1993, a Warner trouxe 0 produtor musical americana Jack Endino para produzir 0 disco Titanomaquia (lan~ado em 1994), do grupo brasileiro de rock Titas. 0 produtor, especializado na modalidade do rock que valoriza "0 tosco, 0 cru, com metodos sofis­ticados de experimenta~ao, C.) que para ele e simples tecniCa"17, tor­nou-se conhecido por trabalhar com varios grupos americanos no inicio

16 VICENTE, 1996, p. 57. 0 capitulo 2 e especialmente importante no tratamento dessa questao,

17 "Tesouro da Juventude". BIZZ, Ano 9. n" 06, 06-93, p. 30.

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dos anos 90, especialmente os que surgiram em Seattle, no movimento denominado grunge Cdo qual 0 grupo Nirvana foi grande expressao). Por sua vez, a gravadora estava buscando algo mais do que um requinte tecnico. 0 grupo tentava reverter 0 quadro instaurado com seu disco anterior, Tudo ao mesmo tempo agora (1991) que, ao ser duramente criticado pela imprensa especializada, nao conseguiu veicula~ao satisfat6ria nas radios, nem por for~ dos esquemas promocionais. Diz Endino:

Meu trabalho e fazer 0 disco do jeito que eles los musicosl sao. Eu nao entendo por que alguem vai fazer urn disco com uma banda e fica

querendo mudar 0 jeito dela ser. Tentar faze-la soar "melhor" do que ela realmente e. Eu acho que urn disco e legal quando a banda soa como nos ShOWS18.

A forma de trabalho de Endino e muito expressiva do universe em que 0 produtor musical passa a atuar, especializado em segmen­tos e/ou generos, ou ainda, em tecnicas especificas de interferencia no trabalho ou na trajet6ria dos artistas. Mas 0 produtor estrangeiro pode, tambem, atuar emprestando seu nome ou posi~ao a um proje­to, conferindo-lhe legitimidade. Assim, um disco gravado em estl1dios e com produtor estrangeiros, adquire originalmente um bom argu­mento de marketing e divulga~ao, considerando que as justificativas para realiza-lo dessa forma nao se encontram na competencia e espe­cialidade do produtor musical e/ou do equipamento utilizado'9. Um

18 Idem. Neste sentido, 0 produtor Pena Schmidt diz que, nos anos 90, 0 rock "C .. ) e uma linguagem essencialmente de dominio tecnol6gico, por mais crua que ela pare~a ser, por mais anti-maquina, anti-acabamento, que ela queira ser. Para soar 'de garagem' precisa ter muito dominio da tecnologia". Entrevista, 09-12-92. So­bre 0 disco criticado dos Titas, sabe-se que alem das alegadas "defici~ncias tecni­cas", 0 grupo escolheu para faixa de trabalho a canc;ao "Clit6ris", cuja veiculacao foi amplamente censurada pelas radios.

19 Pode ser vista, nesse sentido, a experiencia do grupo brasileiro Paralamas do Sucesso, que gravou 0 disco Severino (EMI, 1994) no esn1dio do produtor musi­cal Phil Manzanera, em Londres: "N6s sempre quisemos experimentar urn produ­tor gringo. E pensamos em varios, ate sugerir 0 Phil Manzanera. Poi sensacional. Ele viu 0 som da gente com outros olhos, deu uns palpites' legais e puxou por nossa brasilidade. Algumas coisas bern brasileiras do disco foram sugestoes dele, como a ideia de usarmos violas". "Entregando 0 Severino'''. BIZZ, Ano 10, ng 3, edi,ao 104, mar<;o-1994, p. 46 e segs.

Page 52: Os donos da voz - Márcia Tosta Dias

102 Os donos da voz

projeto desta natureza pode responder tambem a um tipo de premio concedido ao artista ou grupo por desempenhos satisfat6rios con­qUistados e nilo como busca de recursos esteticos espedficos.

Finalmente, 0 in1ciQ.da fragmenta~ilo da linha de produ~ilo na industria fonogcifica, que as mudan~as na area da produ~ilo musi­cal anunciam, nilo pode ser entendidos destacados da grave crise economica e institucional do Brasil no come~o dos 1980 e do decor­rente clima de inseguran~a e incerteza, presentes nesse ambito, apon­tados anteriormente. Varias silo as alternativas que vilo sendo utili­zadas no sentido de conviver com a crise. Por exemplo, e possivel observar, nessa epoca, que algumas empresas passam a oferecer um determinado montante para que alguns de seus artistas gerenciem integralmente a grava~ilo de seus discos, con tan do, inclusive, com a possibilidade de escolha de repert6rio e produtor'". Silo iniciativas deste tipo que vilo se disseminar, aos poucos, no conjunto da pro­du~ilo. Buscando um melhor entendimento da questilo, gostaria de reunir 11 analise outros elementos que compoem 0 quadro de trans­.forma~o,:s.

2. A terceiriza\;ao

A primeira vista, 0 vigente processo de fragmenta~ilo da pro­du~ilo fonografica, que podemos observar em algumas empresas do setor, no Brasil do inicio dos anos 90, pode parecer um simples rearranjo funcional local. Mas um olhar um pouco mais atento evi­dencia sua estreita sintonia com um movimento mais amplo, de redefini~ilo da posi~ilo dos pares no cenario economico mundial, de uma nova configura~ilo adquirida pelo capitalismo mundial, nes­te fim de seculo.

Difundida, contraditoriamente, por realidades sociais das mais diversas, a maneira fordista de produ~ilo capitalista vive, a partir dos anos 70, um colapso. Alem de ter transformado as bases de acumula­~ilo ao imprimir-lhe a divisilo do processo de trabalho, 0 fordismo perpetrou sua 16gica ao todo da vida social: "0 prop6sito do dia de oito horas e cinco d6lares s6 em parte era obrigar 0 trabalhador a

20 "Crise ap6s crise, a industria fonografica procura a sarda", op. cit., p. 24.

Os anos 90 e as mudan~as na industria fonografica brasileira 103

adquirir a disciplina necessaria a opera~ilo do sistema de linha de montagem de alta produtividade. Era tambem dar aos trabalhadores renda e tempo de lazer suficientes para que consumissem os produ­tos produzidos em massa que as corpora~oes estavam por fabricar em quantidades cada vez maiores"'!.

A "combina~ilo de estado do bem-estar social, administra~ilo economica keynesiana e controle das rela~oes de salario"" atingiu sua exaustilo e 0 capitalismo mundial, a partir de sua pr6pria dina­mica, busca maneiras de tratamento para suas eternas contradi~oes23. Na 16gica das empresas transnacionais, 0 Estado torna-se menor que seus interesses: as fronteiras nacionais vilo, aos poucos, sofren­do uma definitiva dilata~ilo e as na~oes nilo fazem mais que subsidiar e garantir, mais uma vez, a consolida~ilo do capitalismo global.

Procurando alternativas para 0 alto custo social do trabalho nos paises centrais, grandes corpora~oes instalam-se em paises perifericos. As linhas de produ~ilo tornam-se inviaveis, sobretudo em conjunturas recessivas, e 0 processo de trabalho se fragmenta. A velocidade do de­senvolvimento tecnol6gko e da informa~ilo imprime uma 16gica diferen­te a pr6pria acumula~ilo capitalista. As partes fragmentadas do processo de trabalho passam por um processo de especializa~ilo e cada uma tor­na-se um micro-universo produtivo. Uma maneira de conceituar estas mudan~s, encontramos em David Harvey: "A acumula~ilo f1exivel, como YOU chama-la, e marcada por um confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se ap6ia na f1exibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padr5es de consumo. Caracteriza­se pelo surgimento de setores de produ~ilo inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de servi~os fmanceiros, novos mercados e sobretudo taxas altamente intensificadas de inova~ilo comercial, tecnol6gica e organizacional. A acumula~o f1exivel envolve cipidas mudan~as dos padr5es de desenvolvimento desigual, tanto entre setores como entre regi5es geogclficas, criando, por exemplo, um vasto movi­mento de emprego no chamado setor de servi~os, bem como conjuntos industriais completamente novos em regi5es ate enta~ subdesenvolvidas

21 HARVEY, 1993, p. 122. 22 Idem, p. 130. 23 CL IANNI, O. "A dialetiea da globalizaCiio".ln: Teorfascia giobailzafao. RJ: Civi­

lizacao BrASileira, 1995, p. 135-162.

102 Os donos da voz

projeto desta natureza pode responder tambem a um tipo de premio concedido ao artista ou grupo por desempenhos satisfat6rios con­qUistados e nilo como busca de recursos esteticos espedficos.

Finalmente, 0 in1ciQ.da fragmenta~ilo da linha de produ~ilo na industria fonogcifica, que as mudan~as na area da produ~ilo musi­cal anunciam, nilo pode ser entendidos destacados da grave crise economica e institucional do Brasil no come~o dos 1980 e do decor­rente clima de inseguran~a e incerteza, presentes nesse ambito, apon­tados anteriormente. Varias silo as alternativas que vilo sendo utili­zadas no sentido de conviver com a crise. Por exemplo, e possivel observar, nessa epoca, que algumas empresas passam a oferecer um determinado montante para que alguns de seus artistas gerenciem integralmente a grava~ilo de seus discos, con tan do, inclusive, com a possibilidade de escolha de repert6rio e produtor'". Silo iniciativas deste tipo que vilo se disseminar, aos poucos, no conjunto da pro­du~ilo. Buscando um melhor entendimento da questilo, gostaria de reunir 11 analise outros elementos que compoem 0 quadro de trans­.forma~o,:s.

2. A terceiriza\;ao

A primeira vista, 0 vigente processo de fragmenta~ilo da pro­du~ilo fonografica, que podemos observar em algumas empresas do setor, no Brasil do inicio dos anos 90, pode parecer um simples rearranjo funcional local. Mas um olhar um pouco mais atento evi­dencia sua estreita sintonia com um movimento mais amplo, de redefini~ilo da posi~ilo dos pares no cenario economico mundial, de uma nova configura~ilo adquirida pelo capitalismo mundial, nes­te fim de seculo.

Difundida, contraditoriamente, por realidades sociais das mais diversas, a maneira fordista de produ~ilo capitalista vive, a partir dos anos 70, um colapso. Alem de ter transformado as bases de acumula­~ilo ao imprimir-lhe a divisilo do processo de trabalho, 0 fordismo perpetrou sua 16gica ao todo da vida social: "0 prop6sito do dia de oito horas e cinco d6lares s6 em parte era obrigar 0 trabalhador a

20 "Crise ap6s crise, a industria fonografica procura a sarda", op. cit., p. 24.

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adquirir a disciplina necessaria a opera~ilo do sistema de linha de montagem de alta produtividade. Era tambem dar aos trabalhadores renda e tempo de lazer suficientes para que consumissem os produ­tos produzidos em massa que as corpora~oes estavam por fabricar em quantidades cada vez maiores"'!.

A "combina~ilo de estado do bem-estar social, administra~ilo economica keynesiana e controle das rela~oes de salario"" atingiu sua exaustilo e 0 capitalismo mundial, a partir de sua pr6pria dina­mica, busca maneiras de tratamento para suas eternas contradi~oes23. Na 16gica das empresas transnacionais, 0 Estado torna-se menor que seus interesses: as fronteiras nacionais vilo, aos poucos, sofren­do uma definitiva dilata~ilo e as na~oes nilo fazem mais que subsidiar e garantir, mais uma vez, a consolida~ilo do capitalismo global.

Procurando alternativas para 0 alto custo social do trabalho nos paises centrais, grandes corpora~oes instalam-se em paises perifericos. As linhas de produ~ilo tornam-se inviaveis, sobretudo em conjunturas recessivas, e 0 processo de trabalho se fragmenta. A velocidade do de­senvolvimento tecnol6gko e da informa~ilo imprime uma 16gica diferen­te a pr6pria acumula~ilo capitalista. As partes fragmentadas do processo de trabalho passam por um processo de especializa~ilo e cada uma tor­na-se um micro-universo produtivo. Uma maneira de conceituar estas mudan~s, encontramos em David Harvey: "A acumula~ilo f1exivel, como YOU chama-la, e marcada por um confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se ap6ia na f1exibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padr5es de consumo. Caracteriza­se pelo surgimento de setores de produ~ilo inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de servi~os fmanceiros, novos mercados e sobretudo taxas altamente intensificadas de inova~ilo comercial, tecnol6gica e organizacional. A acumula~o f1exivel envolve cipidas mudan~as dos padr5es de desenvolvimento desigual, tanto entre setores como entre regi5es geogclficas, criando, por exemplo, um vasto movi­mento de emprego no chamado setor de servi~os, bem como conjuntos industriais completamente novos em regi5es ate enta~ subdesenvolvidas

21 HARVEY, 1993, p. 122. 22 Idem, p. 130. 23 CL IANNI, O. "A dialetiea da globalizaCiio".ln: Teorfascia giobailzafao. RJ: Civi­

lizacao BrASileira, 1995, p. 135-162.

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pa

104 Os donos da voz

C ... ). Ela tambem envolve urn novo movimento que chamarei de 'com­pressao de espaco-tempo' C .. ,) no mundo capitalista - os horizontes tem­porais da tomada de decisoes privada e publica se estreitam. enquanto a comunicacao via satelite e a queda dos custos de transporte possibilita­ram cada vez mais a difusao imediata dessas decisoes num espaco cada vez mais amplo e variegado"".

De toda complexidade caracteristica desta fase do capitalismo mundial. e do debate lan"ado para 0 seu entendimento. quero voltar­me especificamente para as suas implica"oes com relacao ao contex­to atual da industria fonogriifica.

Sintetizando 0 que chama de revolufao no marketing do disco brasileiro, consolidada em meados dos anos 70. Paiano aponta tres etapas entao concluidas: a consolidacao de urn cast de artistas de MPB. a definicao da segmentacao como estrategia de atua"ao no mercado e a defini"ao do LP como produto principal. A partir de entao "[as] empresas passaram a investir em outras areas: basica­mente na infra-estrutura de gravacao. prensagem, duplica"ao e dis­

·tribuicao:'25. Paiano apresenta tambem urn depoimento de Andre Midani, na epoca 11 frente da Phonogram (1974), sobre 0 processo de reorganizacao interna que a empresa vivia: "C ... ) em 1968 havia 170 empregados para 150 artistas, em 1974 serao 500 empregados para 28 artistas"26. 0 empresario refere-se 11 espantosa mudanca nos numeros, como exemplo da sofisticacao atingida pela organizacao da companhia. Esta estrutura, que foi gradativamente "inchando" com a especializacao e ampliacao dos departamentos, parece ter resistido ate 0 final dos anos 80, quando passou a onerar demasia­damente os custos de producao.

No que diz respeito aos m1meros do mercado, se em meados da decada de 70 0 Brasil figurava como 0 quinto mercado de discos

24 HARVEY, 1993. p. 140. 25 PAIANO, 1994, p. 216. A esse respeito, diz 0 secretario executivo da Associa{;ao

Brasileira de Produtores de Discos, )03.0 Carlos MOller Chaves: "Eu participei de duas inaugura{;oes de estddios sofisticadissimos, 0 da PolyGram, na Barra, em 1973-74, e 0 da Odeon, em 76, ambos com um tra(amento acustico fantastico. ° estudio da PolyGram tinha a sofistica\ilo de ser uma C'clixa de concreto dentro do predio, flutuando sobre molas e madeira para evitar qualquer vibra{;3.o". Entrevis­ta; RJ. 12-03-95.

26 PAIANO, 1994. p. 217.

Os anos 90 e as mudancas na industria fonografica brasileira 105

do mundo, em 1988 passamos para 0 13" lugar27. Na primeira meta­de da decada de 80, a media de unidades vendidas foi de 51 mi­lhoes e na segunda metade, 65 milhoes de unidades2S • 0 crescimen­to verificado respondeu 11 consolidacao do mercado de musica para jovens, 0 pop-rock, e 11 lenta ascensao de outros segmentos, como 0

de musica sertaneja. Mas a instabilidade da decada de 80 ja se anunciava e os anos 90 chegam em meio 11 mais grave crise que 0

setor ja assistiu. A conjuntura subsidia 0 nosso entendimento: a sucessao de

pianos economicos a que assistimos, desde 1986, com 0 Plano Cruza­do. os que foram efetivados pelo governo Collor 0990192 - Pianos Collor I e 11), empreendeu urn tratamento de choque it economia e 11 sociedade. Medidas como 0 sequestro dos ativos financeiros, conge­lamento de precos e salarios, execucao de urn plano nacional de desestatizacao, pregavam, uma vez mais, 0 fim da inflacao e a moder­nizacao do Estado e da economia29. A debilidade das medidas e de sua concepcao polltica foi coroada pela desmoralizacao legal do go­verno efetivada pelo impeachement do presidente da Republica.

Nesse contexto, de 76.686 milhOes de unidades vendidas em 1989, retrocede-se a 45.225 milhoes em 1990, mantendo-se os mesmos indices em 1991, com 45.130 unidades. Mas ni:imeros menores ainda apareceriam. Apesar das expectativas de melhorias alimentadas pelos executivos do setor, 0 balanco final de 1992 aponta 30.958 milhoes de unidades. Vale lembrar que 0 mercado s6 apresentou numeros parecidos C31.098 mi­lhoes) em 1974, quando estava em franca expansao, com crescimento medio de 20% ao ano. No quadro a seguir, podemos observar tambem variacoes na relacao vendagem-faturamento, produto das mudancas nas moedas vigentes, e em seus respectivos valores.

27 "Mercado brasileiro ja foi 0 quinto do mundo". HIT, dez.-91, Ano 1, nQ 1. SP: Azul, p. 13. A revista traz uma cOmpara{;30 interessante: em 1988, a arrecada{;ao da industria fonografica brasileira foi de 232 milhoes de d6lares, contra 6.250 bilhoes de d61ares para 0 mercado americano, 0 primeiro do mundo. 0 mercado ameri­cano seria 27 vezes maior que 0 brasileiro.

28 Os dados sao da ABPD e de HIT, mar{;0-92, Ano 1, nQ 4. SP: Azul, p. 25. 29 Ver, por exemplo, Plano Collor: AvaJia{;oes e perspectivas, 1990.

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C ... ). Ela tambem envolve urn novo movimento que chamarei de 'com­pressao de espaco-tempo' C .. ,) no mundo capitalista - os horizontes tem­porais da tomada de decisoes privada e publica se estreitam. enquanto a comunicacao via satelite e a queda dos custos de transporte possibilita­ram cada vez mais a difusao imediata dessas decisoes num espaco cada vez mais amplo e variegado"".

De toda complexidade caracteristica desta fase do capitalismo mundial. e do debate lan"ado para 0 seu entendimento. quero voltar­me especificamente para as suas implica"oes com relacao ao contex­to atual da industria fonogriifica.

Sintetizando 0 que chama de revolufao no marketing do disco brasileiro, consolidada em meados dos anos 70. Paiano aponta tres etapas entao concluidas: a consolidacao de urn cast de artistas de MPB. a definicao da segmentacao como estrategia de atua"ao no mercado e a defini"ao do LP como produto principal. A partir de entao "[as] empresas passaram a investir em outras areas: basica­mente na infra-estrutura de gravacao. prensagem, duplica"ao e dis­

·tribuicao:'25. Paiano apresenta tambem urn depoimento de Andre Midani, na epoca 11 frente da Phonogram (1974), sobre 0 processo de reorganizacao interna que a empresa vivia: "C ... ) em 1968 havia 170 empregados para 150 artistas, em 1974 serao 500 empregados para 28 artistas"26. 0 empresario refere-se 11 espantosa mudanca nos numeros, como exemplo da sofisticacao atingida pela organizacao da companhia. Esta estrutura, que foi gradativamente "inchando" com a especializacao e ampliacao dos departamentos, parece ter resistido ate 0 final dos anos 80, quando passou a onerar demasia­damente os custos de producao.

No que diz respeito aos m1meros do mercado, se em meados da decada de 70 0 Brasil figurava como 0 quinto mercado de discos

24 HARVEY, 1993. p. 140. 25 PAIANO, 1994, p. 216. A esse respeito, diz 0 secretario executivo da Associa{;ao

Brasileira de Produtores de Discos, )03.0 Carlos MOller Chaves: "Eu participei de duas inaugura{;oes de estddios sofisticadissimos, 0 da PolyGram, na Barra, em 1973-74, e 0 da Odeon, em 76, ambos com um tra(amento acustico fantastico. ° estudio da PolyGram tinha a sofistica\ilo de ser uma C'clixa de concreto dentro do predio, flutuando sobre molas e madeira para evitar qualquer vibra{;3.o". Entrevis­ta; RJ. 12-03-95.

26 PAIANO, 1994. p. 217.

Os anos 90 e as mudancas na industria fonografica brasileira 105

do mundo, em 1988 passamos para 0 13" lugar27. Na primeira meta­de da decada de 80, a media de unidades vendidas foi de 51 mi­lhoes e na segunda metade, 65 milhoes de unidades2S • 0 crescimen­to verificado respondeu 11 consolidacao do mercado de musica para jovens, 0 pop-rock, e 11 lenta ascensao de outros segmentos, como 0

de musica sertaneja. Mas a instabilidade da decada de 80 ja se anunciava e os anos 90 chegam em meio 11 mais grave crise que 0

setor ja assistiu. A conjuntura subsidia 0 nosso entendimento: a sucessao de

pianos economicos a que assistimos, desde 1986, com 0 Plano Cruza­do. os que foram efetivados pelo governo Collor 0990192 - Pianos Collor I e 11), empreendeu urn tratamento de choque it economia e 11 sociedade. Medidas como 0 sequestro dos ativos financeiros, conge­lamento de precos e salarios, execucao de urn plano nacional de desestatizacao, pregavam, uma vez mais, 0 fim da inflacao e a moder­nizacao do Estado e da economia29. A debilidade das medidas e de sua concepcao polltica foi coroada pela desmoralizacao legal do go­verno efetivada pelo impeachement do presidente da Republica.

Nesse contexto, de 76.686 milhOes de unidades vendidas em 1989, retrocede-se a 45.225 milhoes em 1990, mantendo-se os mesmos indices em 1991, com 45.130 unidades. Mas ni:imeros menores ainda apareceriam. Apesar das expectativas de melhorias alimentadas pelos executivos do setor, 0 balanco final de 1992 aponta 30.958 milhoes de unidades. Vale lembrar que 0 mercado s6 apresentou numeros parecidos C31.098 mi­lhoes) em 1974, quando estava em franca expansao, com crescimento medio de 20% ao ano. No quadro a seguir, podemos observar tambem variacoes na relacao vendagem-faturamento, produto das mudancas nas moedas vigentes, e em seus respectivos valores.

27 "Mercado brasileiro ja foi 0 quinto do mundo". HIT, dez.-91, Ano 1, nQ 1. SP: Azul, p. 13. A revista traz uma cOmpara{;30 interessante: em 1988, a arrecada{;ao da industria fonografica brasileira foi de 232 milhoes de d6lares, contra 6.250 bilhoes de d61ares para 0 mercado americano, 0 primeiro do mundo. 0 mercado ameri­cano seria 27 vezes maior que 0 brasileiro.

28 Os dados sao da ABPD e de HIT, mar{;0-92, Ano 1, nQ 4. SP: Azul, p. 25. 29 Ver, por exemplo, Plano Collor: AvaJia{;oes e perspectivas, 1990.

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106 Os donos da voz

Tabela V. VENDA DE PRODUTOS E FATURAMENTO DA INDUSTRIA FONOGRAFICA: BRASIL - 1989-1995 (em milhoes de unid. e US$)

ano IP K7 CD total faturamento

1989 56.7 17.8 2.2 76.6 371.2

1990 31.4 9.9 3.9 45.2 237.6

1991 28.4 9.0 7.7 45.1 374.8

1992 15.8 5.3 9.8 30.9 262.4

1993 16.3 6.8 21.0 44.1 437.2

1994 14.4 8.5 40.1 63.0 782.5

1995 7.2 7.1 56.7 71.0 930'

Fonte: ABPD, RJ 03-95, e IFP!, Londres: 11-96 . • De acoedo com Exame, edic;ao 607, 10-04-96, p. 36.

A dinamiza,ao do mercado brasileiro de discos no terceiro ano da decada de 90 pode ser analisada a partir de dois fatores complementares: a relativa estabiliza,ao da economia ou, no mini­mo, 0 confrole dos indices de infla,ao, e a populariza,ao do compact­disc, 0 CD". As medidas economicas implementadas pelo Plano FHC (993) e pelo Plano Real (994), no governo !tamar Franco 0993-1994) se, por um lado, provocaram grande alta nos pre,os, decorrente da equipara,ao da moeda nacional, 0 real, ao d6lar, por outro, com 0 controle da infla,ao (3.681% ao ano, em 1993, no inicio do governo !tamar Franco)3l, gradativamente estimularam 0

consumo e, no caso espedfico da industria fonografica, possibilita­ram a expansao de um formato mais sofisticado e mais caro, para 0

consum~ musical. Mas 0 fenomeno e mais abrangente, e 0 advento do CD promo­

ve grande transforma,ao no panorama fonografico mundial, estabe­lecendo um novo patamar tecnol6gico para as rela,oes hardware!

30 0 CD e urn disco compacta [eiro de alumfnio, revestido de pIastico, com 12 centimetros de diametro e 16 gramas de peso, com capacidade de armazenamento de 70 minutos de som, 0 dobro eta capacidade do disco de vinil. 0 som e, nele, gravado por meio digital e, por esse mesmo rneio e tambem reproduzido, neces­sitando, portanto, de reproduror espedfico (toea-disco laser).

31 cr.: "Itamar d. ultimato para sucesso do Real". Folha deSPauto, 19-06-94, p. 16.

",,',

.'

Os anos 90 e as mudan,as na industria fonografica brasileira 107

software, alterando gradativamente os habitos e condi,oes de consu­mo, na medida em que 0 usc do novo formato depende da aquisi,ao de um novo reprodutor. Desde 0 inicio de sua comercializa,ao, em 1983, 0 CD consolidou-se como padrao de consumo da mercadoria musical, primeiramente nos paises centrais (Europa!EUA), e sua ex­pansao global se faz lentamente na decada subseqiiente.

Tabela VI. EVOLUt;:Ao DO MERCADO MUNDIAL DE COMPACT­DISC 1983-1995 (em milhoes de unidades)

Ano 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995

CDs 6 20 61 140 260 400 600 m 981 1.167 1.395 1.756 1.956

Fonte: IFPI -International Federation of the Phonographic Industry, Londres: 11-1996.

Se em 1989, no mercado mundial, 0 CD ja tinha 24% do total das unidades vendidas (entre LPs e cassetes), no mesmo ano o Brasil era 0 segundo pais do, mundo em consumo de LPs". 0 alto pre,o do reprodutor (cerca de mil d6lares, nessa mesma epo­ca) aliado a uma conjuntura economica in6spita ao consumo, difi­cultaram sua expansao. De qualquer modo, em 1990 os fabricantes do equipamento contabilizavam um crescimento de 58% do mer­cado" e, aos poucos, verifica-se uma redu,ao em seu pre,o. Da­dosapontam que no final de 1993 0 toca-disco laser custava 30% menos que no final de 199234. Outros fatores contribuiram para a queda do pre,o do equipamento: a miniaturiza,ao, com 0 lan,a­mento dos reprodutores portateis e 0 aumento da circula,ao de produtos importados, inclusive aqueles livres de impostos, adqui­ridos no mercado informal. Da mesma forma, 0 pre,o do CD tam­bem foi caindo. Em 1987, a rela,ao com 0 pre,o do vinil estava em cinco LPs para um CD; em 1991, passamos para dois para um. Atualmente, e dificil estabelecer uma reia,ao deste tipo, conside­rando-se 0 baixo numero de lan,amentos em vinil e a varia,ao que

32 Cf.: "CD ja atende lodos os segmentos". HIT, Ano I, nO 1, dez.-91, p. 18, a partir de dados da revista inglesa MBI. Segundo a mesma fonte, a Uniao Sovietica tinha o maior mercado consumidor de LPs, em 1989.

33 Idem. 34 "A expIosiio do CD". VEJA, 29-12-93, p. 106.

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106 Os donos da voz

Tabela V. VENDA DE PRODUTOS E FATURAMENTO DA INDUSTRIA FONOGRAFICA: BRASIL - 1989-1995 (em milhoes de unid. e US$)

ano IP K7 CD total faturamento

1989 56.7 17.8 2.2 76.6 371.2

1990 31.4 9.9 3.9 45.2 237.6

1991 28.4 9.0 7.7 45.1 374.8

1992 15.8 5.3 9.8 30.9 262.4

1993 16.3 6.8 21.0 44.1 437.2

1994 14.4 8.5 40.1 63.0 782.5

1995 7.2 7.1 56.7 71.0 930'

Fonte: ABPD, RJ 03-95, e IFP!, Londres: 11-96 . • De acoedo com Exame, edic;ao 607, 10-04-96, p. 36.

A dinamiza,ao do mercado brasileiro de discos no terceiro ano da decada de 90 pode ser analisada a partir de dois fatores complementares: a relativa estabiliza,ao da economia ou, no mini­mo, 0 confrole dos indices de infla,ao, e a populariza,ao do compact­disc, 0 CD". As medidas economicas implementadas pelo Plano FHC (993) e pelo Plano Real (994), no governo !tamar Franco 0993-1994) se, por um lado, provocaram grande alta nos pre,os, decorrente da equipara,ao da moeda nacional, 0 real, ao d6lar, por outro, com 0 controle da infla,ao (3.681% ao ano, em 1993, no inicio do governo !tamar Franco)3l, gradativamente estimularam 0

consumo e, no caso espedfico da industria fonografica, possibilita­ram a expansao de um formato mais sofisticado e mais caro, para 0

consum~ musical. Mas 0 fenomeno e mais abrangente, e 0 advento do CD promo­

ve grande transforma,ao no panorama fonografico mundial, estabe­lecendo um novo patamar tecnol6gico para as rela,oes hardware!

30 0 CD e urn disco compacta [eiro de alumfnio, revestido de pIastico, com 12 centimetros de diametro e 16 gramas de peso, com capacidade de armazenamento de 70 minutos de som, 0 dobro eta capacidade do disco de vinil. 0 som e, nele, gravado por meio digital e, por esse mesmo rneio e tambem reproduzido, neces­sitando, portanto, de reproduror espedfico (toea-disco laser).

31 cr.: "Itamar d. ultimato para sucesso do Real". Folha deSPauto, 19-06-94, p. 16.

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.'

Os anos 90 e as mudan,as na industria fonografica brasileira 107

software, alterando gradativamente os habitos e condi,oes de consu­mo, na medida em que 0 usc do novo formato depende da aquisi,ao de um novo reprodutor. Desde 0 inicio de sua comercializa,ao, em 1983, 0 CD consolidou-se como padrao de consumo da mercadoria musical, primeiramente nos paises centrais (Europa!EUA), e sua ex­pansao global se faz lentamente na decada subseqiiente.

Tabela VI. EVOLUt;:Ao DO MERCADO MUNDIAL DE COMPACT­DISC 1983-1995 (em milhoes de unidades)

Ano 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995

CDs 6 20 61 140 260 400 600 m 981 1.167 1.395 1.756 1.956

Fonte: IFPI -International Federation of the Phonographic Industry, Londres: 11-1996.

Se em 1989, no mercado mundial, 0 CD ja tinha 24% do total das unidades vendidas (entre LPs e cassetes), no mesmo ano o Brasil era 0 segundo pais do, mundo em consumo de LPs". 0 alto pre,o do reprodutor (cerca de mil d6lares, nessa mesma epo­ca) aliado a uma conjuntura economica in6spita ao consumo, difi­cultaram sua expansao. De qualquer modo, em 1990 os fabricantes do equipamento contabilizavam um crescimento de 58% do mer­cado" e, aos poucos, verifica-se uma redu,ao em seu pre,o. Da­dosapontam que no final de 1993 0 toca-disco laser custava 30% menos que no final de 199234. Outros fatores contribuiram para a queda do pre,o do equipamento: a miniaturiza,ao, com 0 lan,a­mento dos reprodutores portateis e 0 aumento da circula,ao de produtos importados, inclusive aqueles livres de impostos, adqui­ridos no mercado informal. Da mesma forma, 0 pre,o do CD tam­bem foi caindo. Em 1987, a rela,ao com 0 pre,o do vinil estava em cinco LPs para um CD; em 1991, passamos para dois para um. Atualmente, e dificil estabelecer uma reia,ao deste tipo, conside­rando-se 0 baixo numero de lan,amentos em vinil e a varia,ao que

32 Cf.: "CD ja atende lodos os segmentos". HIT, Ano I, nO 1, dez.-91, p. 18, a partir de dados da revista inglesa MBI. Segundo a mesma fonte, a Uniao Sovietica tinha o maior mercado consumidor de LPs, em 1989.

33 Idem. 34 "A expIosiio do CD". VEJA, 29-12-93, p. 106.

Page 55: Os donos da voz - Márcia Tosta Dias

ps

I I

108 Os donos da voz

seus pre~os adquirem no mercado. 0 pre~o medio do CD no mer­cado internacional e de U$ 12 e no mercado brasileiro, R$ 18".

Por tratar-se de produto tecnologicamente sofisticado e, conse­qiientemente, de custo elevado, inicialmente foram lan~ados em CD titulos de musica erudita, jazz e MPB. Com a redu~ao dos custos do hardware, sua expansao tornou-se possivel, e entao foram realizados lan~amentos em todos os segmentos. Mas e fundamental considerar a importancia dos relan~amentos para a movimenta~ao do mercado, e nesse sentido 0 ana de 1993 e emblemiitico. Nos primeiros doze meses em que as vendas de CDs superaram as de LPs, metade dos titulos em CD eram relan~amentos de antigos sucessos. 0 consumidor come~a a buscar no mercado titulos em CD do que jii possuia em vinil, e essa procura permite a industria desenvolver uma estrategia de vendas alta­mente lucrativa, sem arcar com os custos de produ~ao36. Alem dos discos jii lan~ados em vinil, 0 mercado foi inundado por cole~5es (como Grandes Mestres da Mt1sica), coletaneas (0 melhor de .. .) ou lan~amen­tos do tipo Dois em Urn que apresenta em urn CD dois discos de

. determinado interprete. 0 ganho para 0 consumidor seria grande, nao fosse 0 fato de 0 produto ser oferecido, na grande maioria das vezes, sem a capa e encartes originais ou informa~5es complementares sobre as obras, desfigurando-as. Portanto, 0 advento do CD nao traz consigo uma mudan~a conceitual para 0 produto, como ocorreu quando da substitui~o dos compactos pelos LPs. E urn suporte mais avan~do tecnologicamente e, conseqiientemente, mais caro, transferindo uma lucratividade jamais vista ao setor37.

35 Desde 1994, 0 Brasil conta com quatro fabricas de CDs: Microservice, Sony, Videolar e Fonopress. ~Indusria fonografica devera ter venda recorde". 0 Estatio de S.Pat/lo, 17-03-96, p. B-ll

36 A rnesma materia da revista VEJA, dtada acirna, apresenta os seguintes dados: ~Um disco inedito gravado com tecnologia de ponta predsa vender 100 mil c6pias para dar lucro. C .. ) Urn relan~amento paga-se com apenas 3 mil c6pias C .. )".

37 Os empresarios confirmam 0 comercio do novo Formato como responsavei pelos lucros da industria fonografica, ressaltando que essa e uma saida para a atual "crise de talento". Segundo Luis Oscar Niemeyer, "a produ~ao de discos, em nivel mundial, se nao vern crescendo, vern se mantendo nos mesmos patamares nos ultimos dez anos. E verdade que uma das coisas que influenciou diretamente esta manuten~ao de mercado foi'o aparecimento de uma nova tecnologia, que e o compact-disc. Embora no Brasil este seja urn fen6meno mais recente, em geraJ, no mundo todo, isto vern fazendo com que as pessoas renovem suas discotecas.

Os anos 90 e as mudan~as na industria fonografica brasileira 109

Finalmente, vale ressaltar que 0 advento do CD e urn fenomeno inteiramente caracteristico da industria cultural. Tornado simbolo de distin~ao, ancorado por suas reais e efetivas qualidades, seu consumo e sinonimo de modernidade. 0 formato tornou-se mais importante que 0

conteudo. Adorno, ao discutir as possibilidades do novo na industria cultural, argumenta da seguinte forma: "0 fato de que suas inova~5es caracteristicas nao passem de aperfei~oamentos da produ~o em mas­sa nao e exterior ao sistema. E com razao que 0 interesse. de inumeros consumidores se prende 11 tecnica, nao aos conteudos teimosamente repetidos, ocos e jii em parte abandonados. 0 poderio social que os espectadores adoram e mais eficazmente afirmado na onipresen~a do estere6tipo imposto pela tecnica do que nas ideologias ran~osas pelas quais os conteudos efemeros devem responder"38.

Da perspectiva da estrutura e administra~ao das empresas fonogriificas brasileiras, a crise do inicio dos anos 90 promoveu uma serie de importantes mudan~as. De demiss5es a tentativas de con ten­~ao de gastos, algumas empresas acabaram por realizar uma verda­deira reengenharia, com toda contemporaneidade que a palavra pode ter". Gostaria de apresentar dois exemplos de reestrutura~ao, ocorri­dos nas empresas BMG-Ariola e PolyGram.

Luis Oscar Niemeyer faz a apresenta~ao da empresa que dirige:

A BMG-Ariola e a divisao de musica do grupo alemao Bertelsmann, a segunda empresa de mfdia do mundo, que atua em quatro areas. Uma e Iivros: edita, distribui livros no mundo inteiro, atraves do errculo do Livro. Tem um faturamento anual nesta area de 7.2 bilhOes de marcos. Na area industrial tem fiibrica de vinil, CD e cassete. Na area de im­prensa esrao as revistas. As principais publica~oes na Europa, como a revista Stern, sao do grupG Berteismann, com urn faturamento de 13

Ou seja, eS[a nova tecnologia teve urn pape! fundamental, no sentido de dar continuidade ao business, de manter 0 mercado aquecido. Na verdade, 0 merca­do cresceu muUo em termos de faturamento em fun~ao desta nova tecno!ogia. Acho que 0 problema da musica mundial esta muito mais na area de talento que na area de producao e de mercado".

38 ADORNO e HORKHEIMER. DE. p. 127. 39 "Crise aperta com demissoes". Hn; jan-92, Ano 1, nil 2. SP: Azul, p. 17. A mat~ria

apresenta os seguintes nurneros de demissoes nas majors, em 1991: Sony Music, 130; EMI-Odeon, 43; PolyGram, 20; BMG-Ariola, 20.

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108 Os donos da voz

seus pre~os adquirem no mercado. 0 pre~o medio do CD no mer­cado internacional e de U$ 12 e no mercado brasileiro, R$ 18".

Por tratar-se de produto tecnologicamente sofisticado e, conse­qiientemente, de custo elevado, inicialmente foram lan~ados em CD titulos de musica erudita, jazz e MPB. Com a redu~ao dos custos do hardware, sua expansao tornou-se possivel, e entao foram realizados lan~amentos em todos os segmentos. Mas e fundamental considerar a importancia dos relan~amentos para a movimenta~ao do mercado, e nesse sentido 0 ana de 1993 e emblemiitico. Nos primeiros doze meses em que as vendas de CDs superaram as de LPs, metade dos titulos em CD eram relan~amentos de antigos sucessos. 0 consumidor come~a a buscar no mercado titulos em CD do que jii possuia em vinil, e essa procura permite a industria desenvolver uma estrategia de vendas alta­mente lucrativa, sem arcar com os custos de produ~ao36. Alem dos discos jii lan~ados em vinil, 0 mercado foi inundado por cole~5es (como Grandes Mestres da Mt1sica), coletaneas (0 melhor de .. .) ou lan~amen­tos do tipo Dois em Urn que apresenta em urn CD dois discos de

. determinado interprete. 0 ganho para 0 consumidor seria grande, nao fosse 0 fato de 0 produto ser oferecido, na grande maioria das vezes, sem a capa e encartes originais ou informa~5es complementares sobre as obras, desfigurando-as. Portanto, 0 advento do CD nao traz consigo uma mudan~a conceitual para 0 produto, como ocorreu quando da substitui~o dos compactos pelos LPs. E urn suporte mais avan~do tecnologicamente e, conseqiientemente, mais caro, transferindo uma lucratividade jamais vista ao setor37.

35 Desde 1994, 0 Brasil conta com quatro fabricas de CDs: Microservice, Sony, Videolar e Fonopress. ~Indusria fonografica devera ter venda recorde". 0 Estatio de S.Pat/lo, 17-03-96, p. B-ll

36 A rnesma materia da revista VEJA, dtada acirna, apresenta os seguintes dados: ~Um disco inedito gravado com tecnologia de ponta predsa vender 100 mil c6pias para dar lucro. C .. ) Urn relan~amento paga-se com apenas 3 mil c6pias C .. )".

37 Os empresarios confirmam 0 comercio do novo Formato como responsavei pelos lucros da industria fonografica, ressaltando que essa e uma saida para a atual "crise de talento". Segundo Luis Oscar Niemeyer, "a produ~ao de discos, em nivel mundial, se nao vern crescendo, vern se mantendo nos mesmos patamares nos ultimos dez anos. E verdade que uma das coisas que influenciou diretamente esta manuten~ao de mercado foi'o aparecimento de uma nova tecnologia, que e o compact-disc. Embora no Brasil este seja urn fen6meno mais recente, em geraJ, no mundo todo, isto vern fazendo com que as pessoas renovem suas discotecas.

Os anos 90 e as mudan~as na industria fonografica brasileira 109

Finalmente, vale ressaltar que 0 advento do CD e urn fenomeno inteiramente caracteristico da industria cultural. Tornado simbolo de distin~ao, ancorado por suas reais e efetivas qualidades, seu consumo e sinonimo de modernidade. 0 formato tornou-se mais importante que 0

conteudo. Adorno, ao discutir as possibilidades do novo na industria cultural, argumenta da seguinte forma: "0 fato de que suas inova~5es caracteristicas nao passem de aperfei~oamentos da produ~o em mas­sa nao e exterior ao sistema. E com razao que 0 interesse. de inumeros consumidores se prende 11 tecnica, nao aos conteudos teimosamente repetidos, ocos e jii em parte abandonados. 0 poderio social que os espectadores adoram e mais eficazmente afirmado na onipresen~a do estere6tipo imposto pela tecnica do que nas ideologias ran~osas pelas quais os conteudos efemeros devem responder"38.

Da perspectiva da estrutura e administra~ao das empresas fonogriificas brasileiras, a crise do inicio dos anos 90 promoveu uma serie de importantes mudan~as. De demiss5es a tentativas de con ten­~ao de gastos, algumas empresas acabaram por realizar uma verda­deira reengenharia, com toda contemporaneidade que a palavra pode ter". Gostaria de apresentar dois exemplos de reestrutura~ao, ocorri­dos nas empresas BMG-Ariola e PolyGram.

Luis Oscar Niemeyer faz a apresenta~ao da empresa que dirige:

A BMG-Ariola e a divisao de musica do grupo alemao Bertelsmann, a segunda empresa de mfdia do mundo, que atua em quatro areas. Uma e Iivros: edita, distribui livros no mundo inteiro, atraves do errculo do Livro. Tem um faturamento anual nesta area de 7.2 bilhOes de marcos. Na area industrial tem fiibrica de vinil, CD e cassete. Na area de im­prensa esrao as revistas. As principais publica~oes na Europa, como a revista Stern, sao do grupG Berteismann, com urn faturamento de 13

Ou seja, eS[a nova tecnologia teve urn pape! fundamental, no sentido de dar continuidade ao business, de manter 0 mercado aquecido. Na verdade, 0 merca­do cresceu muUo em termos de faturamento em fun~ao desta nova tecno!ogia. Acho que 0 problema da musica mundial esta muito mais na area de talento que na area de producao e de mercado".

38 ADORNO e HORKHEIMER. DE. p. 127. 39 "Crise aperta com demissoes". Hn; jan-92, Ano 1, nil 2. SP: Azul, p. 17. A mat~ria

apresenta os seguintes nurneros de demissoes nas majors, em 1991: Sony Music, 130; EMI-Odeon, 43; PolyGram, 20; BMG-Ariola, 20.

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110 AS donos da voz

bilh5es de d61ares por ano. A BMG hoje esta em quarenta paises, instalada como esta no Brasil. A parte de musica fatura em torno de 4 bilhoes de d61ares por ano. Este grupo come~ou a crescer depois da guerra, 0 forte era 0 efeculo do Livro, com distribuicao e fabricac;ao. Comec;aram a crescer, entrar na area de revistas, na area industrial, e tinha uma companhia de discos pequena, a Ariola, ligada ao grupe. Em 1986-87, 0 Grupo Bertelsmann comprou a RCA americana e criou a BMG-Ariola, que e a jun¢o da RCA com a Ariola. A partir dai, de 1986 para ca, come90u uma atua¢o em nivel global, mundial. A BMG, a parte musical, ja e a terceira do mundo, atras apenas da Sony e da Warner. Esta parte da RCA, sec;ao brasileira, foi obviamente incorporada por ela, e a RCA tern uma tradi9'0 grande no Brasil. A RCA e a empresa que lan90u 0 Elvis [Presley]. N6s temos todo 0 catalogo do Elvis. Quan­do a BMG comprau a RCA no munde inteiro, comprou todo 0 acervo que ela tinha. A RCA atuava tambem em outras areas. Por exemplo, aqui no Brasil, n6s incorporamos Carmen Miranda, Orlando SHva, Nel­son Goncalves, au seja, tada a historia da MPB passa muito pela RCA''iO.

A BMG tem, no Brasil, uma divisao industrial e uma divisao mUSical, chamada de label company. Conta ainda uma editortt de musicas, a BMG-Arabela, a BMG-Video (home video) e a BMG­Multimldia. Todos esses setores tem administra~ao pr6pria e repor­tam-se diretamente 11 Alemanha, como acontece com a fabrica de CDs Microservice, que produz para a pr6pria BMG e para outras empresas de medio e pequeno porte. Atualmente, a Microservice fabrica, tam­bem, CDs para uso na area de informatica.

A divisao musical conta cem funcionarios, tem sede no Rio de Janeiro e um escrit6rio de representa~ao em Sao Paulo, com 18 funcio­narios. A empresa se estrutura, basicamente, em torno de tres areas:

40 0 diretor-presidente da BMG-Ariola e publicitario, e antes de assumir a func;ao atuou na area da promoC;ao de grandes eventos musicais, atraves de sua empresa, Mills e Niemeyer, realizando espetaculos tais como show de Frank Sinatra, Paul McCartney, Rock in Rio 1 e 2, Hollywood Rock 1, 2 e 3. Preside a companhia desde julho de 1993. E filho do arquiteto Oscar Niemeyer. Todos os trechos que se seguem foram extraidos dessa entrevista. Sobre a compra da RCA pelo gropo Berte)smann, ver BARNET e CAVANAGH. "If music be the food of love". In: Global dreams: Imperial cotporations and the New World Order. Nova York: Simon & Schuster, 1994, p. 112-136, espedalmente p. 116-124.

as anos 90 e as mudan~as na industria fonografica brasileira 1\\

artfstica, de finan~as e de marketing. i\, area de marketing estao liga­dos os departamentos de vendas e promo~ao e suas representa~iies em todos os estados do pais (divulgadores e representantes comerciais). Na area financeira estilo a contabilidade, os setores de royalties, direitos autorais e desenvolvimento de informatica. A area artlstica gerencia as grava~iies, estuda as contrata~iies de novos artistas e acompanha toda a produ~ao. Ligado a esta area esta 0 selo Plug, que trabalha com novos artistas do segmento de pop/rock".

No setor de distribui~ao do produto, entendido no seu aspecto fisico, a BMG promoveu uma associa~ao com a Warner Music. Um centro de distribui~ao e estocagem, sediado em Sao Paulo, incumbe­se das vendas das duas empresas. E a terceiriza~ao da distribui~ao42. o estudio que a companhia tinha, ate 1993, foi vendido para os pr6-prios funcionarios da empresa, que 0 mantem e alugam para outras empresas e/ou artistas.

Niemeyer fala das mudan~as e sintetiza 0 que considera a ativi­dade primordial da BMG:

( ... )Promovemos uma reengenharia grande. Hoje uma operae;ao que tinha quinhentos funcionarios, tem cem. Principalmente nos anos de 1991 e 1992 as empresas tiveram que entender 0 que era uma

terceirizae;ao e avaliar melhor 0 que era a produtividade de cada urn. ( ... ) Nosso neg6cio e 0 desenvolvimento de artistas e marketing, que

e 0 que fazemos, na realidade e 0 que faz com que sejamos uma

empresa lucrativa.

o trabalho exclusivo em Artistas & Repert6rio, marketing e vendas: eis a grande tendencia para a atua~ao das gran des empresas do setor fonografico.

41 Em 1994, ano da entrevista, a companhia tinha um cast de 33 artistas. Como ja apontei, em 1988 esse numero era de 65.

42 A Distribuidora BMG-Warner e gerida por um conselho com representantes das duas partes. As vantagens de uma associaC;ao deste tipo sao assim colocadas por MOlier Chaves: "Urn grande drama nosso e que se voce esta a dois meses sem urn grande sucesso na prac;a, os lojistas te poem de castigo, preferindo pagar em dia quem tem sucesso. Agora, se voce trabalha com duas ou tres companhias, voce tern mais chance de ter algo sempre fazendo sucesso, entao sua forc;a de cobranc;a aumenta".

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110 AS donos da voz

bilh5es de d61ares por ano. A BMG hoje esta em quarenta paises, instalada como esta no Brasil. A parte de musica fatura em torno de 4 bilhoes de d61ares por ano. Este grupo come~ou a crescer depois da guerra, 0 forte era 0 efeculo do Livro, com distribuicao e fabricac;ao. Comec;aram a crescer, entrar na area de revistas, na area industrial, e tinha uma companhia de discos pequena, a Ariola, ligada ao grupe. Em 1986-87, 0 Grupo Bertelsmann comprou a RCA americana e criou a BMG-Ariola, que e a jun¢o da RCA com a Ariola. A partir dai, de 1986 para ca, come90u uma atua¢o em nivel global, mundial. A BMG, a parte musical, ja e a terceira do mundo, atras apenas da Sony e da Warner. Esta parte da RCA, sec;ao brasileira, foi obviamente incorporada por ela, e a RCA tern uma tradi9'0 grande no Brasil. A RCA e a empresa que lan90u 0 Elvis [Presley]. N6s temos todo 0 catalogo do Elvis. Quan­do a BMG comprau a RCA no munde inteiro, comprou todo 0 acervo que ela tinha. A RCA atuava tambem em outras areas. Por exemplo, aqui no Brasil, n6s incorporamos Carmen Miranda, Orlando SHva, Nel­son Goncalves, au seja, tada a historia da MPB passa muito pela RCA''iO.

A BMG tem, no Brasil, uma divisao industrial e uma divisao mUSical, chamada de label company. Conta ainda uma editortt de musicas, a BMG-Arabela, a BMG-Video (home video) e a BMG­Multimldia. Todos esses setores tem administra~ao pr6pria e repor­tam-se diretamente 11 Alemanha, como acontece com a fabrica de CDs Microservice, que produz para a pr6pria BMG e para outras empresas de medio e pequeno porte. Atualmente, a Microservice fabrica, tam­bem, CDs para uso na area de informatica.

A divisao musical conta cem funcionarios, tem sede no Rio de Janeiro e um escrit6rio de representa~ao em Sao Paulo, com 18 funcio­narios. A empresa se estrutura, basicamente, em torno de tres areas:

40 0 diretor-presidente da BMG-Ariola e publicitario, e antes de assumir a func;ao atuou na area da promoC;ao de grandes eventos musicais, atraves de sua empresa, Mills e Niemeyer, realizando espetaculos tais como show de Frank Sinatra, Paul McCartney, Rock in Rio 1 e 2, Hollywood Rock 1, 2 e 3. Preside a companhia desde julho de 1993. E filho do arquiteto Oscar Niemeyer. Todos os trechos que se seguem foram extraidos dessa entrevista. Sobre a compra da RCA pelo gropo Berte)smann, ver BARNET e CAVANAGH. "If music be the food of love". In: Global dreams: Imperial cotporations and the New World Order. Nova York: Simon & Schuster, 1994, p. 112-136, espedalmente p. 116-124.

as anos 90 e as mudan~as na industria fonografica brasileira 1\\

artfstica, de finan~as e de marketing. i\, area de marketing estao liga­dos os departamentos de vendas e promo~ao e suas representa~iies em todos os estados do pais (divulgadores e representantes comerciais). Na area financeira estilo a contabilidade, os setores de royalties, direitos autorais e desenvolvimento de informatica. A area artlstica gerencia as grava~iies, estuda as contrata~iies de novos artistas e acompanha toda a produ~ao. Ligado a esta area esta 0 selo Plug, que trabalha com novos artistas do segmento de pop/rock".

No setor de distribui~ao do produto, entendido no seu aspecto fisico, a BMG promoveu uma associa~ao com a Warner Music. Um centro de distribui~ao e estocagem, sediado em Sao Paulo, incumbe­se das vendas das duas empresas. E a terceiriza~ao da distribui~ao42. o estudio que a companhia tinha, ate 1993, foi vendido para os pr6-prios funcionarios da empresa, que 0 mantem e alugam para outras empresas e/ou artistas.

Niemeyer fala das mudan~as e sintetiza 0 que considera a ativi­dade primordial da BMG:

( ... )Promovemos uma reengenharia grande. Hoje uma operae;ao que tinha quinhentos funcionarios, tem cem. Principalmente nos anos de 1991 e 1992 as empresas tiveram que entender 0 que era uma

terceirizae;ao e avaliar melhor 0 que era a produtividade de cada urn. ( ... ) Nosso neg6cio e 0 desenvolvimento de artistas e marketing, que

e 0 que fazemos, na realidade e 0 que faz com que sejamos uma

empresa lucrativa.

o trabalho exclusivo em Artistas & Repert6rio, marketing e vendas: eis a grande tendencia para a atua~ao das gran des empresas do setor fonografico.

41 Em 1994, ano da entrevista, a companhia tinha um cast de 33 artistas. Como ja apontei, em 1988 esse numero era de 65.

42 A Distribuidora BMG-Warner e gerida por um conselho com representantes das duas partes. As vantagens de uma associaC;ao deste tipo sao assim colocadas por MOlier Chaves: "Urn grande drama nosso e que se voce esta a dois meses sem urn grande sucesso na prac;a, os lojistas te poem de castigo, preferindo pagar em dia quem tem sucesso. Agora, se voce trabalha com duas ou tres companhias, voce tern mais chance de ter algo sempre fazendo sucesso, entao sua forc;a de cobranc;a aumenta".

Page 57: Os donos da voz - Márcia Tosta Dias

u

112 Os donos da voz

Organograma II. ESTRUTURA DA GRANDE EMPRESA FONOGAAFICA: BRASIL - anos 90

Di~ilo Artfstica

Gerencia de Marketing

I Gerencia de Adm. e Finan.;:as I

Fonte: Entrevistas.

I Servlr;os de Terceiros

Produ~o Musical

Estudios

Fabrica

Distribui\lilo Ffsica

A PolyGram tem expressiva participa~ao na hist6ria da produ­~ao de discos no pais, como empresa nacional, antes de tornar-se 0

bra~o fonografico da transnacional Philips. Fundada em 1945, a Sinter, como se chamava na epoca, passa, em 1948, a representar, no Brasil, '0 selo americano Capitol (que nos anos 70 se instala no pais de ma­neira independente). Em 1950, sao lan~ados seus primeiros discos em 78 rpm e em 1951, apresenta ao mercado 0 primeiro LP brasileiro (Carnaval Brasil). Sob 0 controle acionario da familia. Pittigliani, tor­na-se a Companhia Brasileira de Discos, a CBD (1955). Mesmo sob 0

comando dos Pittigliani, a empresa e absorvida pela transnacional Philips e seus produtos sao beneficiados com consideraveis avan~os tecnicos, possibilitados pela matriz (disco estereo, disco inquebravel, compacto simples em 33,1/2 rpm e mais tarde, 0 compact-disc). Em 1971, torna-se Cia Brasileira de Discos Phonogram; em 1978, PolyGram Discos Ltda e em 1983, PolyGram do Brasil Ltda".

Marcos Maynard, que esta na presidencia da empresa desde 1992, discorre sobre a atual orienta~ao da companhia":

a que a empresa deve saber claramente fazer e 0 marketing dos artis­

tas, saber promover esses artistas e, em primeiro lugar, saber gravar

43 Dados do documento interno da PolyGram intitulado "PolyGram: Dados Biogra­ficos", de 1994, fornecido pela empresa.

44 Marcos Maynard e musico, advogado e administrador de empresas. Foi funciona­rio da PolyGram mas, antes de dirigir a empresa, chefiou a se~o da Sony Music no Mexico. E filho do folclorista Alceu Maynard de Araujo.

,

, .

Os anos 90 e as mudan~as na industria fonografica brasileira 113

bern. Eu sou especialista em gravar bern e promover 0 meu artista. A

parte industrial e uma coisa que pode ser feita por quem quer que

seja, ate mesmo nos Estados Unidos. A estrutura atual da empresa e dimensionada pelo tamanho do mercado brasileiro. E por isso que a dire~ao dos dois principais selos da empresa, 0 Polydor e 0 Phonogram, esta sob a coordena~lio do presidente da empresa. Temos que ter poucos artistas nacionais e financiar [a promOt;aO del poucos artistas

internacionais, s6 os mais selecionados, que a gente sabe que tern

mais aceitat;ao no mercado brasileiro. Tenho entaD 0 diretor de

marketing, que cuida de todos os selos; gerentes, como' 0 gerente

internacional, que tern os seus label managers, onde cada urn fala la fora com seus selos correspondentes. Tenho tambem urn gerente de special marketing, que cuida das distribuidoras do Brasil [selos indepen­dentes que slio distribuidos pela companhia], que e 0 caso do contrato com 0 selo Tinitus, do Pena Schmidt e com 0 selo Stallo, da Bahia,

distribuidos apenas no Brasil"45.

Maynard diz nao acreditar que 0 movimento de terceiriza~ao, que avan~a na empresa que preside, tenha qualquer rela~ao com 0

momento economico brasileiro e/ou mundial. No entanto, enumera as mudan~as que vem promovendo, que come~am pela reorganiza­~ao' do processo de produ~ao:

A empresa tern urn diretor artistico que nao e terceirizado, e eu tenho

aqui na minha companhia 0 Max Pierre. Ai e que se criam as coisas, ai

e que se cqntratam os artistas, que se prepara a gravat;ao do artista, que

se contrata 0 estudio que vai gravar, os musicos que vao tocar, 0. maes­

tro que vai produzir e que vai reger e se contrata 0 produtor que vai

produzir 0 disco. Todos esses profissionais nao tern nada a ver com a

minha companhia"Slio contratados na hora de fazer 0 disco. (. .. ) N6s alugamos estiidios para grava~lio. Hoje em elia e bobagem ter estiidio. N6s tfnhamos dois aqui embaixo e eu os fechei, pois meu neg6cio e vender discos e nilo administrar estiidios. Estuelio e s6 des-

45 No documento "PolyGram: Dados Biograficos". consta ainda a existencia das seguintes diretorias nos quadros da empresa, alem das ja citadas: Diretoria Arti's­tica, Diretoria de Business Affairs, Diretoria de Vendas e Diretoria de Administra­~ao e Finan~as.

u

112 Os donos da voz

Organograma II. ESTRUTURA DA GRANDE EMPRESA FONOGAAFICA: BRASIL - anos 90

Di~ilo Artfstica

Gerencia de Marketing

I Gerencia de Adm. e Finan.;:as I

Fonte: Entrevistas.

I Servlr;os de Terceiros

Produ~o Musical

Estudios

Fabrica

Distribui\lilo Ffsica

A PolyGram tem expressiva participa~ao na hist6ria da produ­~ao de discos no pais, como empresa nacional, antes de tornar-se 0

bra~o fonografico da transnacional Philips. Fundada em 1945, a Sinter, como se chamava na epoca, passa, em 1948, a representar, no Brasil, '0 selo americano Capitol (que nos anos 70 se instala no pais de ma­neira independente). Em 1950, sao lan~ados seus primeiros discos em 78 rpm e em 1951, apresenta ao mercado 0 primeiro LP brasileiro (Carnaval Brasil). Sob 0 controle acionario da familia. Pittigliani, tor­na-se a Companhia Brasileira de Discos, a CBD (1955). Mesmo sob 0

comando dos Pittigliani, a empresa e absorvida pela transnacional Philips e seus produtos sao beneficiados com consideraveis avan~os tecnicos, possibilitados pela matriz (disco estereo, disco inquebravel, compacto simples em 33,1/2 rpm e mais tarde, 0 compact-disc). Em 1971, torna-se Cia Brasileira de Discos Phonogram; em 1978, PolyGram Discos Ltda e em 1983, PolyGram do Brasil Ltda".

Marcos Maynard, que esta na presidencia da empresa desde 1992, discorre sobre a atual orienta~ao da companhia":

a que a empresa deve saber claramente fazer e 0 marketing dos artis­

tas, saber promover esses artistas e, em primeiro lugar, saber gravar

43 Dados do documento interno da PolyGram intitulado "PolyGram: Dados Biogra­ficos", de 1994, fornecido pela empresa.

44 Marcos Maynard e musico, advogado e administrador de empresas. Foi funciona­rio da PolyGram mas, antes de dirigir a empresa, chefiou a se~o da Sony Music no Mexico. E filho do folclorista Alceu Maynard de Araujo.

,

, .

Os anos 90 e as mudan~as na industria fonografica brasileira 113

bern. Eu sou especialista em gravar bern e promover 0 meu artista. A

parte industrial e uma coisa que pode ser feita por quem quer que

seja, ate mesmo nos Estados Unidos. A estrutura atual da empresa e dimensionada pelo tamanho do mercado brasileiro. E por isso que a dire~ao dos dois principais selos da empresa, 0 Polydor e 0 Phonogram, esta sob a coordena~lio do presidente da empresa. Temos que ter poucos artistas nacionais e financiar [a promOt;aO del poucos artistas

internacionais, s6 os mais selecionados, que a gente sabe que tern

mais aceitat;ao no mercado brasileiro. Tenho entaD 0 diretor de

marketing, que cuida de todos os selos; gerentes, como' 0 gerente

internacional, que tern os seus label managers, onde cada urn fala la fora com seus selos correspondentes. Tenho tambem urn gerente de special marketing, que cuida das distribuidoras do Brasil [selos indepen­dentes que slio distribuidos pela companhia], que e 0 caso do contrato com 0 selo Tinitus, do Pena Schmidt e com 0 selo Stallo, da Bahia,

distribuidos apenas no Brasil"45.

Maynard diz nao acreditar que 0 movimento de terceiriza~ao, que avan~a na empresa que preside, tenha qualquer rela~ao com 0

momento economico brasileiro e/ou mundial. No entanto, enumera as mudan~as que vem promovendo, que come~am pela reorganiza­~ao' do processo de produ~ao:

A empresa tern urn diretor artistico que nao e terceirizado, e eu tenho

aqui na minha companhia 0 Max Pierre. Ai e que se criam as coisas, ai

e que se cqntratam os artistas, que se prepara a gravat;ao do artista, que

se contrata 0 estudio que vai gravar, os musicos que vao tocar, 0. maes­

tro que vai produzir e que vai reger e se contrata 0 produtor que vai

produzir 0 disco. Todos esses profissionais nao tern nada a ver com a

minha companhia"Slio contratados na hora de fazer 0 disco. (. .. ) N6s alugamos estiidios para grava~lio. Hoje em elia e bobagem ter estiidio. N6s tfnhamos dois aqui embaixo e eu os fechei, pois meu neg6cio e vender discos e nilo administrar estiidios. Estuelio e s6 des-

45 No documento "PolyGram: Dados Biograficos". consta ainda a existencia das seguintes diretorias nos quadros da empresa, alem das ja citadas: Diretoria Arti's­tica, Diretoria de Business Affairs, Diretoria de Vendas e Diretoria de Administra­~ao e Finan~as.

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114 Os donos da voz

pesa (. .. ) tern que estar sempre atualizado. E os artistas nem sempre gostam de gravar num mesmo estudio (. .. ). Eu prefiro alugar urn estu­dio, pois acabou a grava.ao, fecha-se a porta e 0 dono do estudio fica hi, eu 0 pago e pronto. (. .. ) N6s nao temos fabrica de CD, cassete oU LP. Isso tudo e feito por terceiros, eu noo preciso ter fabrica. Eu posso ter, se eu quiser. A Sony do Mexico, onde eu estava, tinha fabrica de cassete, tinha grafica. A Sony brasileira tern fabrica de CD, K7, LP e grafica. Entao, isso varia de companhia para companhia. 0 fato e que voce pode melhorar os custos tendo uma fabrica, mas tambem quando tern ociosidade esses custos aumentam muitot pois voce tern que manter os funcionarios parados la. (. . .) A PolyGram alugou 0 dep6sito da Philips por ser 0 mais competente. Por mais que a Phillips detenha 75% das a~oes da PolyGram, eu pode­ria alugar qualquer dep6sito que eu escolhesse. Para mim e mais facil ter urn dep6sito em Sao Paulo, onde estao as fabricas de CD e onde esta 40% do mercado. (. .. ) Eu mando essa fita para·a fabrica de CD, a fabrica de CD manufa­turi, eu fa~o a arte grafica comigo, fotografo a capa, mando para uma grafica, eu olho, dou 0 ok e, af sim, a graEica faz em escala industrial, comercial. Isso tudo uma companhia de discos pode ter ou nao.

Finalmente, Maynard faz a defesa do jelling necessario para ser urn executivo da musica. Diz que esse felling s6 se consegue conhe­cendo e gostando muito de musica. 0 profissional pode ter forma~iio s6lida, ter 6timo desempenho na area de marketing e assim ser urn born executivo em qualquer area, mas talvez nilo tenha sucesso em empresas fonograficas, tal a especificidade do produto. Ele conta que deixou a Sony Music do Mexico porque a empresa "ficou burocratica" e, cansado de pol1tica, decidiu vir para 0 que considera ser "uma empresa mais criativa".

Por mais que se empenhe em demonstrar 0 contrario, os argu­mentos apresentados pelo empresario nos remetem as compara~oes anteriormente citadas, que de alguma forma aproximam musica e sabonete. DHufdas na l6gica da produ~ilo capitalista, as especificidades do processo de produ~ao de discos desaparecem e em seu lugar poderiam surgir produtos dos mais variados tipos. Adorno ja mostra­va, em 1941, que os empresarios da industria cultural nilo tinham

Os anos 90 e as mudan~as na industria fonografica brasHeira 115

problemas em afirmar 0 carater estritamente capitalista de seus pro­dutos. Chama aten~ilo nas explica~6es de Maynard 0 tom personalista, o verbo sempre conjugado na primeira pessoa, a sua empresa, 0 seu artista, a sua musica. E a voz do dono. Tal personalismo, no entanto, em nada difere daquele ja apontado aqui. 0 empresario pode nilo ser mais personalista que os outros, mas sua performance e emblematica e reveladora do jogo que se estabelece na produ~ao, a partir dos pressupostos da pr6pria logica capitalista.

Vale ainda lembrar a movimenta~ao que se deu no inlcio da decada de 1990, entre os executivos ocupantes de postos-chave em varias companhias, como alias, acontece em qualquer ambito do mun­do empresarial. A vinda de Marcos Maynard da Sony do Mexico para 0

BrasH coincide com a substitui~ao de quase todo 0 alto staffmunclial da PolyGram por aquele que estava na Sony, inclusive seu presidente mundial e aquele para a America Latina. Da mesma forma, Claudio Conde, entao presidente da Sony brasHeira (em 1988 era vice-presiden­te da CBS), foi chefiar a Sony espanhola, deixando 0 cargo para Roberto Augusto, a epoca vice-presidente. 0 ex-presidente da EMI-Odeon, Beto Boaventura, assumiu a presidencia da Warner brasHeira em 1991, quan­do da ida de Andre Midani para a vice-presidencia da companhia em Nova York. Joao Araujo, presidente da Som Livre desde sua funda~ao, em 1967, tinha anteriormente clirigido a Copacabana, assim como foi diretor artistico da CBD, atual PolyGram. Porlanto, os quadros clirigen­tes das companhras fonograficas brasHeiras sao, na maioria dos casos, formados dentro das pr6prias empresas. Funcionarios de carreira, mui­tas vezes com experiencia na vida artistica, vilo pouco a pouco ascen­dendo aos postos-chave e, posteriormente, revezando-se dentro das companhias. Somente Luis Oscar Niemeyer, que vern da area de publi­cidade e atuou como empresario da area de promo.ao de espetliculos musicais ao vivo, nilo obedece a essa regra geral. E posslve! observar, ainda, que alguns produtores e cliretores de majors fundaram empresas (selos) independentes, como e 0 caso de Pena Schmidt (Tinitus) e Mairton Bahia (Radical Records), entre outroS'6.

46 Os dados sobre a trajet6ria dos executivos foram obtidos nas entrevistas realiza~ das e nas revistas Hn; Ano 1, ng 1, dez-91, SP: Azul, pp. 12-16 e BIZZ, Ano 9.

n' 6, jun. 93, p. 42-43.

p

114 Os donos da voz

pesa (. .. ) tern que estar sempre atualizado. E os artistas nem sempre gostam de gravar num mesmo estudio (. .. ). Eu prefiro alugar urn estu­dio, pois acabou a grava.ao, fecha-se a porta e 0 dono do estudio fica hi, eu 0 pago e pronto. (. .. ) N6s nao temos fabrica de CD, cassete oU LP. Isso tudo e feito por terceiros, eu noo preciso ter fabrica. Eu posso ter, se eu quiser. A Sony do Mexico, onde eu estava, tinha fabrica de cassete, tinha grafica. A Sony brasileira tern fabrica de CD, K7, LP e grafica. Entao, isso varia de companhia para companhia. 0 fato e que voce pode melhorar os custos tendo uma fabrica, mas tambem quando tern ociosidade esses custos aumentam muitot pois voce tern que manter os funcionarios parados la. (. . .) A PolyGram alugou 0 dep6sito da Philips por ser 0 mais competente. Por mais que a Phillips detenha 75% das a~oes da PolyGram, eu pode­ria alugar qualquer dep6sito que eu escolhesse. Para mim e mais facil ter urn dep6sito em Sao Paulo, onde estao as fabricas de CD e onde esta 40% do mercado. (. .. ) Eu mando essa fita para·a fabrica de CD, a fabrica de CD manufa­turi, eu fa~o a arte grafica comigo, fotografo a capa, mando para uma grafica, eu olho, dou 0 ok e, af sim, a graEica faz em escala industrial, comercial. Isso tudo uma companhia de discos pode ter ou nao.

Finalmente, Maynard faz a defesa do jelling necessario para ser urn executivo da musica. Diz que esse felling s6 se consegue conhe­cendo e gostando muito de musica. 0 profissional pode ter forma~iio s6lida, ter 6timo desempenho na area de marketing e assim ser urn born executivo em qualquer area, mas talvez nilo tenha sucesso em empresas fonograficas, tal a especificidade do produto. Ele conta que deixou a Sony Music do Mexico porque a empresa "ficou burocratica" e, cansado de pol1tica, decidiu vir para 0 que considera ser "uma empresa mais criativa".

Por mais que se empenhe em demonstrar 0 contrario, os argu­mentos apresentados pelo empresario nos remetem as compara~oes anteriormente citadas, que de alguma forma aproximam musica e sabonete. DHufdas na l6gica da produ~ilo capitalista, as especificidades do processo de produ~ao de discos desaparecem e em seu lugar poderiam surgir produtos dos mais variados tipos. Adorno ja mostra­va, em 1941, que os empresarios da industria cultural nilo tinham

Os anos 90 e as mudan~as na industria fonografica brasHeira 115

problemas em afirmar 0 carater estritamente capitalista de seus pro­dutos. Chama aten~ilo nas explica~6es de Maynard 0 tom personalista, o verbo sempre conjugado na primeira pessoa, a sua empresa, 0 seu artista, a sua musica. E a voz do dono. Tal personalismo, no entanto, em nada difere daquele ja apontado aqui. 0 empresario pode nilo ser mais personalista que os outros, mas sua performance e emblematica e reveladora do jogo que se estabelece na produ~ao, a partir dos pressupostos da pr6pria logica capitalista.

Vale ainda lembrar a movimenta~ao que se deu no inlcio da decada de 1990, entre os executivos ocupantes de postos-chave em varias companhias, como alias, acontece em qualquer ambito do mun­do empresarial. A vinda de Marcos Maynard da Sony do Mexico para 0

BrasH coincide com a substitui~ao de quase todo 0 alto staffmunclial da PolyGram por aquele que estava na Sony, inclusive seu presidente mundial e aquele para a America Latina. Da mesma forma, Claudio Conde, entao presidente da Sony brasHeira (em 1988 era vice-presiden­te da CBS), foi chefiar a Sony espanhola, deixando 0 cargo para Roberto Augusto, a epoca vice-presidente. 0 ex-presidente da EMI-Odeon, Beto Boaventura, assumiu a presidencia da Warner brasHeira em 1991, quan­do da ida de Andre Midani para a vice-presidencia da companhia em Nova York. Joao Araujo, presidente da Som Livre desde sua funda~ao, em 1967, tinha anteriormente clirigido a Copacabana, assim como foi diretor artistico da CBD, atual PolyGram. Porlanto, os quadros clirigen­tes das companhras fonograficas brasHeiras sao, na maioria dos casos, formados dentro das pr6prias empresas. Funcionarios de carreira, mui­tas vezes com experiencia na vida artistica, vilo pouco a pouco ascen­dendo aos postos-chave e, posteriormente, revezando-se dentro das companhias. Somente Luis Oscar Niemeyer, que vern da area de publi­cidade e atuou como empresario da area de promo.ao de espetliculos musicais ao vivo, nilo obedece a essa regra geral. E posslve! observar, ainda, que alguns produtores e cliretores de majors fundaram empresas (selos) independentes, como e 0 caso de Pena Schmidt (Tinitus) e Mairton Bahia (Radical Records), entre outroS'6.

46 Os dados sobre a trajet6ria dos executivos foram obtidos nas entrevistas realiza~ das e nas revistas Hn; Ano 1, ng 1, dez-91, SP: Azul, pp. 12-16 e BIZZ, Ano 9.

n' 6, jun. 93, p. 42-43.

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116 AS donos da voz

Finalmente, e importante reafirmar que as mudan~as que se efetivam e rearranjam as for~as produtivas na industria do disco fragmentando 0 processo de produ~ao e fornecendo uma diferent~ configura~ao ao cenario, nao podem ser compreendidas destacadas do movimento de reestrutura~ao pelo qual passa 0 capitalismo, neste final de seculo. A complexidade do processo, no entanto, indica que a industria fonografica, modernizada, parece reafirmar 0 seu velho modo de acumula~ao.

3. Formas da mundializa~ao da industria fonogr:ifica

Se as particularidades das mercadorias musicais tern incrementado, desde seus prim6rdios, a capacidade de transpor fron­teiras e de, assim, possibilitar formas de consumo deslocalizadas mundializadas, em tempos de globaliza~ao essa capacidade ~ potencializada e atinge a esfera da produ~ao.

Assim, nao e for~oso considerar que as mudan~as na estrutura e na organiza~ao da produ~ao fonografica, que estao em pleno curso, sao uma conseqtiencia direta do movimento de globaliza~ao que, ao impor urn rearranjo de todo 0 processo produtivo, promove fen ome­nos como 0 da fragmenta~ao da produ~ao.

Alem desse rearranjo estrutural, 0 ritmo acelerado da globaiiza~ao da economia e da sociedade e a complexidade adquirida pelo movi­mento de mundializa~ao da cultura estao presentes, de outras formas, no conjunto da industria e da produ~ao fonografica, dificultando, muitas vezes, 0 seu entendimento. Gostaria de chamar a aten~ao para algu-mas de suas manifesta~oes47. .

A fragmenta~ao do processo produtivo, ao conferir relativa au­tonomia as esferas eilVolvidas, tern possibilitado 0 seu deslocamento para espa~os e tempos diferenciados, desterritorializando a produ­~ao. Desta forma, e pratica corrente, sobretudo nas grandes compa­nhias, executar a produ~ao de urn disco em varias partes do mundo, amda que 0 desenvolvimento tecnol6gico esteja permitindo que pai-

47 Para esta reflexao feuno exemplos que, antes de representarem fatos isolados e e~entuais, ~ro~uram subsidiar 0 entendimento de urn fen6meno recente que amda naQ dlspoe de dados e informa~oes sistematizadas.

'; ·,r

as anos 90 e as mudan~as na industria fonografica brasileira 117

ses de regioes e condi~oes as mais diversas tenham acesso a sofisticados equipamentos de grava~o e reprodu,ao musicais. Busca-se assim en­contrar 0 produtor musical adequado, 0 estudio com determinados requintes tecnicos, uma orquestra com qualidade incomparavel, 0 me­lhor sistema de mixagem existente ou mesmo boas justificativas de marketing para 0 produto. No Brasil, dos anos 60 ate 0 come,o dos 90, era procedimento muito comum mixar as grava,5es locais nos EUA ou mesmo grava-Ias em esttidios americanos ou europeus, por imperativ~s de ordem tecnol6gica, procedimento, este, sempre restrito as grandes estrelas do disco.

Nos dias de hoje, urn disco pode ser produzido em varias par­tes do mundo, envolvendo profissionais de varios paises, a partir de uma concep,ao unica e clara de produto. A justificativa para a produ­~ao deslocalizada de discos pode estar numa estrategia de marketing, na busca de sofistica~ao tecnica, no exerdcio da mundializa,ao da produ,ao ou na articula,ao da aparencia socialmente necessaria a difusao do produto. Vejamos 0 exemplo apresentado por Maynard, da produ,ao do disco Canr/5es que voce fez para mim (PolyGram, 1994), de Maria B~thania:

No caso da Bethania, Max Pierre, 0 meu diretor artfstico, deu a ela a

ideia de gravar as grandes musicas do Roberto Carlos, a sua forma. Ela achou boa a ideia. C.,) Ai, mandamos os discos para ela, eia ouviu e

escolheu as musicas que gostaria de gravar, e escolheu 0 Guto Gra~a Mello como produtor. N6s gostamos da escolha dela. Fizemos urn or~amento da gravac;ao. Precisavamos saber quem seria 0

maestro que iria fazer os arranjos e escolheram dois ou tres

arranjadores.(. .. ) Entao, n6s demos a ideia de fazer os arranjos de cordas com Graham Piscked", que ja fez arranjos para Paul McCartney, urn londrino, que e meu amigo, e eles acharam que era uma boa

ideia. E os metais, quem vai fazer? Ai pensamos que poderfamos fazer

os metais com Jerry Ray, que e urn americano de Los Angeles, que faz

muito bem esse tipo de coisa, e ele topou. C .. ) Entao partimos para a

a~ao. Alugarnos urn estudio aqui no Rio de Janeiro, gravaram-se as

bases aqui, ela pegou urn aviao, foi com 0 produtor, com as fitas

48 Nao foi possivel confirmar a grafia correta do nome do arranjador.

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116 AS donos da voz

Finalmente, e importante reafirmar que as mudan~as que se efetivam e rearranjam as for~as produtivas na industria do disco fragmentando 0 processo de produ~ao e fornecendo uma diferent~ configura~ao ao cenario, nao podem ser compreendidas destacadas do movimento de reestrutura~ao pelo qual passa 0 capitalismo, neste final de seculo. A complexidade do processo, no entanto, indica que a industria fonografica, modernizada, parece reafirmar 0 seu velho modo de acumula~ao.

3. Formas da mundializa~ao da industria fonogr:ifica

Se as particularidades das mercadorias musicais tern incrementado, desde seus prim6rdios, a capacidade de transpor fron­teiras e de, assim, possibilitar formas de consumo deslocalizadas mundializadas, em tempos de globaliza~ao essa capacidade ~ potencializada e atinge a esfera da produ~ao.

Assim, nao e for~oso considerar que as mudan~as na estrutura e na organiza~ao da produ~ao fonografica, que estao em pleno curso, sao uma conseqtiencia direta do movimento de globaliza~ao que, ao impor urn rearranjo de todo 0 processo produtivo, promove fen ome­nos como 0 da fragmenta~ao da produ~ao.

Alem desse rearranjo estrutural, 0 ritmo acelerado da globaiiza~ao da economia e da sociedade e a complexidade adquirida pelo movi­mento de mundializa~ao da cultura estao presentes, de outras formas, no conjunto da industria e da produ~ao fonografica, dificultando, muitas vezes, 0 seu entendimento. Gostaria de chamar a aten~ao para algu-mas de suas manifesta~oes47. .

A fragmenta~ao do processo produtivo, ao conferir relativa au­tonomia as esferas eilVolvidas, tern possibilitado 0 seu deslocamento para espa~os e tempos diferenciados, desterritorializando a produ­~ao. Desta forma, e pratica corrente, sobretudo nas grandes compa­nhias, executar a produ~ao de urn disco em varias partes do mundo, amda que 0 desenvolvimento tecnol6gico esteja permitindo que pai-

47 Para esta reflexao feuno exemplos que, antes de representarem fatos isolados e e~entuais, ~ro~uram subsidiar 0 entendimento de urn fen6meno recente que amda naQ dlspoe de dados e informa~oes sistematizadas.

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as anos 90 e as mudan~as na industria fonografica brasileira 117

ses de regioes e condi~oes as mais diversas tenham acesso a sofisticados equipamentos de grava~o e reprodu,ao musicais. Busca-se assim en­contrar 0 produtor musical adequado, 0 estudio com determinados requintes tecnicos, uma orquestra com qualidade incomparavel, 0 me­lhor sistema de mixagem existente ou mesmo boas justificativas de marketing para 0 produto. No Brasil, dos anos 60 ate 0 come,o dos 90, era procedimento muito comum mixar as grava,5es locais nos EUA ou mesmo grava-Ias em esttidios americanos ou europeus, por imperativ~s de ordem tecnol6gica, procedimento, este, sempre restrito as grandes estrelas do disco.

Nos dias de hoje, urn disco pode ser produzido em varias par­tes do mundo, envolvendo profissionais de varios paises, a partir de uma concep,ao unica e clara de produto. A justificativa para a produ­~ao deslocalizada de discos pode estar numa estrategia de marketing, na busca de sofistica~ao tecnica, no exerdcio da mundializa,ao da produ,ao ou na articula,ao da aparencia socialmente necessaria a difusao do produto. Vejamos 0 exemplo apresentado por Maynard, da produ,ao do disco Canr/5es que voce fez para mim (PolyGram, 1994), de Maria B~thania:

No caso da Bethania, Max Pierre, 0 meu diretor artfstico, deu a ela a

ideia de gravar as grandes musicas do Roberto Carlos, a sua forma. Ela achou boa a ideia. C.,) Ai, mandamos os discos para ela, eia ouviu e

escolheu as musicas que gostaria de gravar, e escolheu 0 Guto Gra~a Mello como produtor. N6s gostamos da escolha dela. Fizemos urn or~amento da gravac;ao. Precisavamos saber quem seria 0

maestro que iria fazer os arranjos e escolheram dois ou tres

arranjadores.(. .. ) Entao, n6s demos a ideia de fazer os arranjos de cordas com Graham Piscked", que ja fez arranjos para Paul McCartney, urn londrino, que e meu amigo, e eles acharam que era uma boa

ideia. E os metais, quem vai fazer? Ai pensamos que poderfamos fazer

os metais com Jerry Ray, que e urn americano de Los Angeles, que faz

muito bem esse tipo de coisa, e ele topou. C .. ) Entao partimos para a

a~ao. Alugarnos urn estudio aqui no Rio de Janeiro, gravaram-se as

bases aqui, ela pegou urn aviao, foi com 0 produtor, com as fitas

48 Nao foi possivel confirmar a grafia correta do nome do arranjador.

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118 Os donos da voz

debaixo do bral'O, para a Inglaterra, gravou as cordas num estUdio Iii. Saiu de Iii, pegou 0 aviao e foi para Los Angeles e gravou os metais. Tern urn rapaz brasileiro hi que mixa muita bern, e urn grande enge­nheiro de SOffi, trabalhava na Sam Livre. Ele mixou 0 disco, ela calo­COll a voz hi em Los Angeles e veio embora j deixando 0 produtor com o engenheiro de som terminando a mixagem. Terminada a mixagem, eles masterizaram a fita numa companhia muita importante de Los Angeles, para que os nlveis da mixagem estivessem todos compatl­veis. Trouxemos a fita para cl e mandamos para uma fabric3, para transformarem em CD, cassete all LP.

De fato, 0 processo de produ~ao, amplamente desterritorializado, resultou num trabalho tecnicamente sofisticado, fazendo retornar a empresa 0 investimento realizado. Vendeu 1 milhao de discos, con­trariando a media de vendagem dos discos da cantora, que girava em

. torno de 100 mil copias. No entanto, nao e a sofistica~ao de suas formas e tecnicas de produ~ao mundializadas que conferiu 0 sucesso ao produto, e sim a utiliza~ao de uma formula de pouqulssimos ris­cos: regravar sucessos de Roberto Carlos, que e urn dos maiores cam­peoes de vendas de discos do Brasil. Por outro lado, sao utilizadas sofisticadas tecnicas de produ~ao para a elabora~ao de produtos for­temente estandardizados e repetitivos (por mais que nao se questio­ne, nesse caso, as peculiaridades artisticas especialmente impressas no produto pelo trabalho da artista).

Depois do sucesso alcan~ado, foi sugerido a Maria Bethania que gravasse urn segundo volume com musicas do mesmo compo­sitor. Por nao concordar com a proposta, a cantora mudou-se para a EM!-Odeon'9. Quase simultaneamente, a PolyGram contratou a can­tora Simone, que, como trabalho de estreia na casa, gravou urn disco com as mais tradicionais e conhecidas can,oes de Natal, lan­,ado em novembro de 1995, tendo vendido 1,1 milhao de copias".

49 "A explosao do show biz", EXAME, citada.Quando Marcos Maynard assumiu seu posta na Sony mexicana, a empresa estava na quinta coJoca~ao da classifica~o local, em quatro anos estaV"J. na lideran~a. Dessa mesma forma ele tern procedido em sua gestao na PolyGram brasileira.

50 "Explosao nacional". IIBjA, Ano 29, n· 12, 20-03-96, pp. 114-115.

Os anos 90 e as mudan~as na industria fonografica brasileira 119

o aperfei,oamento do aparato tecnologico possibilita que se realize uma outra forma de desterritorializa~ao da produ,ao, que pode ser entendida no mesmo sentido que a primeira: sua realiza~ao nao responde a uma exigencia da produ~ao, e sim a urn requinte, urn apelo ou urn detalhe que confere distin,ao. Diz respeito a grava~ao de musicas feitas por teiefone, reunindo, ao mesmo tempo, diferentes interpretes, tal como fez Frank Sinatra em seus discos Duets 1 e Duets 2. Para a realiza~ao do projeto, foram escolhidos parceiros i1ustres, de varios lugares do mundo e seguidores de varios generos musicais, para fazer os duetos com 0 cantor. Nesses casos, a grava~ao das vozes passa por uma Iimpeza e a mixagem garante grande qualidade sono­ra ao produtos, .

No mesmo sentido, as possibilidades colocadas pela tecnologia digital tern permitido a utiliza~ao de vozes previamente gravadas de artistas mortos, que, transferidas a novos produtos, vendem milhares de discos. E 0 caso de Nat King Cole, John Lennon, Freddie Mercury e Clara Nunes. Os discos dos dois ultimos tern nomes exemplares, tais como Made in heaven (EM!, 1995) e Clara com vida (EM!, 1995), respectivamente. Em geral, as grava~oes das vozes dos artistas faleci­dos sao reunidas outras de convidados ou de seus grupos de origems,. A diferen~a apresentada por esse filao estii no fato de nao se buscar simplesmente urn detalhe a mais para 0 produto, mas sim, explorar, ao maximo, os recursos existentes.

Ao encurtar distiincias, comprimir as rela~oes espa,o-tempo -como define David Harvey - e, mesmo ao tentar transpor Iimites natu­rais, como no caso dos artistas mortos, as condi,Oes tecnicas colocadas pela desterritorializa,ao colocam a produ~ao de mercadorias musicais e sua difusao mundializada num palamar realmente novo. 0 problema e que "( ... ) 0 espa~o desterritorializado 'se esvazia' de seus conteudos

51 "Frank Sinatra Jan~a nova serle de duetos". Folha de S.Paulo, 16-11-94, p. 5-1.0 musico brasileiro Tom Jobim participou do volume 2 do Duets, cantando a musi­ca Fly me to the moon, de Gershwin, sem sair do Rio de Janeiro. 0 primeiro volume cia serie vendeu 5 milhOes de c6pias. Por mais que' a reciproca seja valida, a prop6sito desta questao torna enorme sentido na seguinte afirma¢.lo de Octavio Ianni, 1992, p. 100: "C .. ) 0 processo de desterritorializa~o tern acentua­do e generalizado as condit;Oes de solidao".

52 "Musicos mortos sao campeaes de vendagem". Folha de S.Pauio, 25-1~-95, p. 5-1 e "Beades relornam por milhOes de d6Iares". Folba de S.Pauio, 15-11-95, p. 5-1.

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118 Os donos da voz

debaixo do bral'O, para a Inglaterra, gravou as cordas num estUdio Iii. Saiu de Iii, pegou 0 aviao e foi para Los Angeles e gravou os metais. Tern urn rapaz brasileiro hi que mixa muita bern, e urn grande enge­nheiro de SOffi, trabalhava na Sam Livre. Ele mixou 0 disco, ela calo­COll a voz hi em Los Angeles e veio embora j deixando 0 produtor com o engenheiro de som terminando a mixagem. Terminada a mixagem, eles masterizaram a fita numa companhia muita importante de Los Angeles, para que os nlveis da mixagem estivessem todos compatl­veis. Trouxemos a fita para cl e mandamos para uma fabric3, para transformarem em CD, cassete all LP.

De fato, 0 processo de produ~ao, amplamente desterritorializado, resultou num trabalho tecnicamente sofisticado, fazendo retornar a empresa 0 investimento realizado. Vendeu 1 milhao de discos, con­trariando a media de vendagem dos discos da cantora, que girava em

. torno de 100 mil copias. No entanto, nao e a sofistica~ao de suas formas e tecnicas de produ~ao mundializadas que conferiu 0 sucesso ao produto, e sim a utiliza~ao de uma formula de pouqulssimos ris­cos: regravar sucessos de Roberto Carlos, que e urn dos maiores cam­peoes de vendas de discos do Brasil. Por outro lado, sao utilizadas sofisticadas tecnicas de produ~ao para a elabora~ao de produtos for­temente estandardizados e repetitivos (por mais que nao se questio­ne, nesse caso, as peculiaridades artisticas especialmente impressas no produto pelo trabalho da artista).

Depois do sucesso alcan~ado, foi sugerido a Maria Bethania que gravasse urn segundo volume com musicas do mesmo compo­sitor. Por nao concordar com a proposta, a cantora mudou-se para a EM!-Odeon'9. Quase simultaneamente, a PolyGram contratou a can­tora Simone, que, como trabalho de estreia na casa, gravou urn disco com as mais tradicionais e conhecidas can,oes de Natal, lan­,ado em novembro de 1995, tendo vendido 1,1 milhao de copias".

49 "A explosao do show biz", EXAME, citada.Quando Marcos Maynard assumiu seu posta na Sony mexicana, a empresa estava na quinta coJoca~ao da classifica~o local, em quatro anos estaV"J. na lideran~a. Dessa mesma forma ele tern procedido em sua gestao na PolyGram brasileira.

50 "Explosao nacional". IIBjA, Ano 29, n· 12, 20-03-96, pp. 114-115.

Os anos 90 e as mudan~as na industria fonografica brasileira 119

o aperfei,oamento do aparato tecnologico possibilita que se realize uma outra forma de desterritorializa~ao da produ,ao, que pode ser entendida no mesmo sentido que a primeira: sua realiza~ao nao responde a uma exigencia da produ~ao, e sim a urn requinte, urn apelo ou urn detalhe que confere distin,ao. Diz respeito a grava~ao de musicas feitas por teiefone, reunindo, ao mesmo tempo, diferentes interpretes, tal como fez Frank Sinatra em seus discos Duets 1 e Duets 2. Para a realiza~ao do projeto, foram escolhidos parceiros i1ustres, de varios lugares do mundo e seguidores de varios generos musicais, para fazer os duetos com 0 cantor. Nesses casos, a grava~ao das vozes passa por uma Iimpeza e a mixagem garante grande qualidade sono­ra ao produtos, .

No mesmo sentido, as possibilidades colocadas pela tecnologia digital tern permitido a utiliza~ao de vozes previamente gravadas de artistas mortos, que, transferidas a novos produtos, vendem milhares de discos. E 0 caso de Nat King Cole, John Lennon, Freddie Mercury e Clara Nunes. Os discos dos dois ultimos tern nomes exemplares, tais como Made in heaven (EM!, 1995) e Clara com vida (EM!, 1995), respectivamente. Em geral, as grava~oes das vozes dos artistas faleci­dos sao reunidas outras de convidados ou de seus grupos de origems,. A diferen~a apresentada por esse filao estii no fato de nao se buscar simplesmente urn detalhe a mais para 0 produto, mas sim, explorar, ao maximo, os recursos existentes.

Ao encurtar distiincias, comprimir as rela~oes espa,o-tempo -como define David Harvey - e, mesmo ao tentar transpor Iimites natu­rais, como no caso dos artistas mortos, as condi,Oes tecnicas colocadas pela desterritorializa,ao colocam a produ~ao de mercadorias musicais e sua difusao mundializada num palamar realmente novo. 0 problema e que "( ... ) 0 espa~o desterritorializado 'se esvazia' de seus conteudos

51 "Frank Sinatra Jan~a nova serle de duetos". Folha de S.Paulo, 16-11-94, p. 5-1.0 musico brasileiro Tom Jobim participou do volume 2 do Duets, cantando a musi­ca Fly me to the moon, de Gershwin, sem sair do Rio de Janeiro. 0 primeiro volume cia serie vendeu 5 milhOes de c6pias. Por mais que' a reciproca seja valida, a prop6sito desta questao torna enorme sentido na seguinte afirma¢.lo de Octavio Ianni, 1992, p. 100: "C .. ) 0 processo de desterritorializa~o tern acentua­do e generalizado as condit;Oes de solidao".

52 "Musicos mortos sao campeaes de vendagem". Folha de S.Pauio, 25-1~-95, p. 5-1 e "Beades relornam por milhOes de d6Iares". Folba de S.Pauio, 15-11-95, p. 5-1.

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120 Os donos da voz

particulares"". A universaliza~ao das tecnicas e a consagra~ao mundial de f6rmulas musicais padronizadas conferem urn ar de semelhan~a a produ~o rnais diversiflcada e dUui 0 que, potencialmente, os recursos tecnol6gicos poderiam ressaltar como especificidades dos produtos. Tais condi~oes, desterritorializadas, de produ~ao devem ser vistas tam­bern sob a 6tica da segmenta~ao do mercado, que, como estrategia fundante da pr6pria industria cultural, esta constantemente explorando novos nichos de produ~ao e consumo.

Nesse sentido, no grande mercado musical a nacionalidade dos produtos deixa de ser uma particularidade, salvo se tern a fun~ao de conferir distin~ao, de ser a caracteristica principal para 0 trabalho de marketing". Assim, parte da produ~ao brasileira se realiza com vistas ao mercado internacional. Musicos locais gravam discos em espanhol, vislumbrando a atua~ao no mercado latino-americano, e tornam-se muitas vezes grandes vendedores de discos, sobretudo nos paises par­ticipantes do Mercosul. Alem de Roberto Carlos e duplas sertanejas como Chitaozinho e Xoror6, outros artistas tern conquistado 0 mercado latino. 0 grupo brasileiro Paralamas do Sucesso vendeu na Argentina 8 mil c6pias a mais do que no Brasil, de seu disco Severino (EM!, 1994). No mesmo pais, Daniela Mercury vendeu 200 mil c6pias de 0 canto da cidade (Sony, 1994) e a apresentadora Xuxa vendeu meio milhiio de discos no pais, entre 1991 a 199555•

Com efeito, 0 idiorna pode limitar a expansao de mercadorias musicais por determinadas regioes do globo. Por rna is que a segmenta~ao esteja trazendo para 0 grande mercado produtos das

53 ORTIZ, 1994, p. 105. 54 HENNION, 1981, p. 195, mostra que os discos disponlveis no mercado frances

podem ser produ~Oes francesas de uma firma francesa, produc;oes francesas de uma multinacional, produ~oes estrangeiras distribufdas na Franc;a por uma empressa francesa e produ~es estrangeiras distribuidas na Frans;:a por uma multinacional, dificultando a identifica~ao da nacionalidade dos produtos.

55 In Mercosul, 26-01-95, publica~ao dos jornais Clarin e Folba de S.Pattio, p. 42-45. Reportagem do jornal argentino La Naci6n, 14-11-95, p. 2, se~ao 2, Economia & Neg6cios, Buenos Aires, Argentina, "Por que un producto se vende como pan caliente", ao apresentar as varhiveis locais que determinarn a prodw;,;ao e osuces­so de urn hit, aponta para temas bastante conhecidos como crise de talentos, necessidade de marketing bem-feito, hits pre-fabricados por produtores, televi­sao como meio poderoso de divulga~ao, crian~as e adolescoentes como "alvos" faceis para os hits.

Os anos 90 e as mudan~as na industria fonografica brasileira 121

mais diversas procedencias, a conquista de urn mercado como 0 ame­ricano, por exemplo, por can~oes que nao sejam cantadas em ingles e muito dificil. Urn dos simbolos da cultura mundializada, a· llngua inglesa e 0 passaporte para a entrada de produtos musicais em todos os cantos do planeta, mesmo que nao seja conhecida pelo consumi­dor'6. Para 0 empresario Andre Midani, a conquista de mercados ex­ternos exige, na maioria das vezes, 0 desterro do artista: "Acho que 0

artista brasileiro que quer se candidatar a urn lugar no mercado ame­ricano, no segmento do grande sucesso, (. .. ) vai colocar a questao do idioma entre suas preocupa~oes fundamentais. Ele tera, primeiro, que falar bern ingles, segundo, pronunciar bern 0 ingles e, terceiro, saber expressar suas emo~oes no idioma. A segunda barreira e ter que morar no lugar onde voce quer abrir mercado. 0 que seria de Caeta­no, Gil, Bethania e Gal se tivessem continuado em Salvador? (. .. ) Para conquistar urn mercado, e preciso ir ate 0 seu umbigo - Nova York, no caSo dos Estados Unidos. E como fez 0 Sergio Mendes: foi para Los Angeles, passou fome tres anos e depois venceu. Com Tom Jobim aconteceu a mesma coisa: sua musica foi muito divulgada nos EUA pelos cantores e pelos musicos, mas chegou uma hora que ele teve que ir para la, se iristalar, abrir uma editora para suas partituras, par­ticipar da vida de la"57.

Falar a lingua do mercado mundializado, explorar urn lugar es­pedfico que, no entanto, nao seja diferente, vestir 0 diferente com uma roupa conhecida. Obedecendo a essas regras gerais da cultura mundializada, algumas gravadoras buscam uma versao estetica mais universalizada para os produtos de alguns artistas. Em 1994, 0 musico brasileiro Jorge Benjor regravou can~oes de sua autoria em urn grande estudio dos EUA, substituindo 0 caracteristico ritmo de samba de sua musica por aqueJe da dance music. Tratava-se de "refazer os sucessos do cantor, atraves de arranjos menos locais e mais internacionais". "A ideia de transformar os arranjos das can~oes de Jorge, nao significa que estamos pensando s6 no que a Europa e EUA pensarao de seu traba-

56 "( ... ) 0 ingles, ao se caracterizar como lfngua mundial, deixa de ser britanico ou americano. 0 idioma perde sua territorialidade original para se constituir em lingua 'bastarda', adaptada as 'distor~oes' que as culturas Ihe infligem." In: ORTIZ, 1994, p. 192.

57 "A MPB esta em alta". VEJA, 12-12-90, p. 5.

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particulares"". A universaliza~ao das tecnicas e a consagra~ao mundial de f6rmulas musicais padronizadas conferem urn ar de semelhan~a a produ~o rnais diversiflcada e dUui 0 que, potencialmente, os recursos tecnol6gicos poderiam ressaltar como especificidades dos produtos. Tais condi~oes, desterritorializadas, de produ~ao devem ser vistas tam­bern sob a 6tica da segmenta~ao do mercado, que, como estrategia fundante da pr6pria industria cultural, esta constantemente explorando novos nichos de produ~ao e consumo.

Nesse sentido, no grande mercado musical a nacionalidade dos produtos deixa de ser uma particularidade, salvo se tern a fun~ao de conferir distin~ao, de ser a caracteristica principal para 0 trabalho de marketing". Assim, parte da produ~ao brasileira se realiza com vistas ao mercado internacional. Musicos locais gravam discos em espanhol, vislumbrando a atua~ao no mercado latino-americano, e tornam-se muitas vezes grandes vendedores de discos, sobretudo nos paises par­ticipantes do Mercosul. Alem de Roberto Carlos e duplas sertanejas como Chitaozinho e Xoror6, outros artistas tern conquistado 0 mercado latino. 0 grupo brasileiro Paralamas do Sucesso vendeu na Argentina 8 mil c6pias a mais do que no Brasil, de seu disco Severino (EM!, 1994). No mesmo pais, Daniela Mercury vendeu 200 mil c6pias de 0 canto da cidade (Sony, 1994) e a apresentadora Xuxa vendeu meio milhiio de discos no pais, entre 1991 a 199555•

Com efeito, 0 idiorna pode limitar a expansao de mercadorias musicais por determinadas regioes do globo. Por rna is que a segmenta~ao esteja trazendo para 0 grande mercado produtos das

53 ORTIZ, 1994, p. 105. 54 HENNION, 1981, p. 195, mostra que os discos disponlveis no mercado frances

podem ser produ~Oes francesas de uma firma francesa, produc;oes francesas de uma multinacional, produ~oes estrangeiras distribufdas na Franc;a por uma empressa francesa e produ~es estrangeiras distribuidas na Frans;:a por uma multinacional, dificultando a identifica~ao da nacionalidade dos produtos.

55 In Mercosul, 26-01-95, publica~ao dos jornais Clarin e Folba de S.Pattio, p. 42-45. Reportagem do jornal argentino La Naci6n, 14-11-95, p. 2, se~ao 2, Economia & Neg6cios, Buenos Aires, Argentina, "Por que un producto se vende como pan caliente", ao apresentar as varhiveis locais que determinarn a prodw;,;ao e osuces­so de urn hit, aponta para temas bastante conhecidos como crise de talentos, necessidade de marketing bem-feito, hits pre-fabricados por produtores, televi­sao como meio poderoso de divulga~ao, crian~as e adolescoentes como "alvos" faceis para os hits.

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mais diversas procedencias, a conquista de urn mercado como 0 ame­ricano, por exemplo, por can~oes que nao sejam cantadas em ingles e muito dificil. Urn dos simbolos da cultura mundializada, a· llngua inglesa e 0 passaporte para a entrada de produtos musicais em todos os cantos do planeta, mesmo que nao seja conhecida pelo consumi­dor'6. Para 0 empresario Andre Midani, a conquista de mercados ex­ternos exige, na maioria das vezes, 0 desterro do artista: "Acho que 0

artista brasileiro que quer se candidatar a urn lugar no mercado ame­ricano, no segmento do grande sucesso, (. .. ) vai colocar a questao do idioma entre suas preocupa~oes fundamentais. Ele tera, primeiro, que falar bern ingles, segundo, pronunciar bern 0 ingles e, terceiro, saber expressar suas emo~oes no idioma. A segunda barreira e ter que morar no lugar onde voce quer abrir mercado. 0 que seria de Caeta­no, Gil, Bethania e Gal se tivessem continuado em Salvador? (. .. ) Para conquistar urn mercado, e preciso ir ate 0 seu umbigo - Nova York, no caSo dos Estados Unidos. E como fez 0 Sergio Mendes: foi para Los Angeles, passou fome tres anos e depois venceu. Com Tom Jobim aconteceu a mesma coisa: sua musica foi muito divulgada nos EUA pelos cantores e pelos musicos, mas chegou uma hora que ele teve que ir para la, se iristalar, abrir uma editora para suas partituras, par­ticipar da vida de la"57.

Falar a lingua do mercado mundializado, explorar urn lugar es­pedfico que, no entanto, nao seja diferente, vestir 0 diferente com uma roupa conhecida. Obedecendo a essas regras gerais da cultura mundializada, algumas gravadoras buscam uma versao estetica mais universalizada para os produtos de alguns artistas. Em 1994, 0 musico brasileiro Jorge Benjor regravou can~oes de sua autoria em urn grande estudio dos EUA, substituindo 0 caracteristico ritmo de samba de sua musica por aqueJe da dance music. Tratava-se de "refazer os sucessos do cantor, atraves de arranjos menos locais e mais internacionais". "A ideia de transformar os arranjos das can~oes de Jorge, nao significa que estamos pensando s6 no que a Europa e EUA pensarao de seu traba-

56 "( ... ) 0 ingles, ao se caracterizar como lfngua mundial, deixa de ser britanico ou americano. 0 idioma perde sua territorialidade original para se constituir em lingua 'bastarda', adaptada as 'distor~oes' que as culturas Ihe infligem." In: ORTIZ, 1994, p. 192.

57 "A MPB esta em alta". VEJA, 12-12-90, p. 5.

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Iho. Esse e urn disco para tambem estourar no Brasil"58. 0 mesmo movimento que coloca Benjor, definitivamente, no grande mercado mundial traz, dos confins da Africa, Asia, Oceania, musicos e artistas locais, ate entao alheios ao circuito de trocas de mercadorias musicais. o segmento e conhecido como World Music, e 0 debate em torno do tema e intenso. Alguns autores defendem a ideia de que a industria fonogrilfica, f1exibilizada, "democratizada", permite a integra~o de uma produ~o diferenciada, com acento etnico-cultural, confirmando 0 adven­to da era do p6s-imperialismo cultural 59. Outros concluem que 0 inves­timento na World Music responde simplesmente a estrategias de prospec~o de novos segmentos para prodU~dO e consumo, impingindo­Ihe condi~6es de produ~ao fortemente padronizadas60. De fato, muitos artistas locais conquistam formas de produ~ao e difusao de sua musica, mas nao conseguem faze.lo de acordo com sua produ~ao original; os produtos sao, invariavelmente, vestidos de uma roupagem pop - 0

conjunto de notas e arranjos mais emblematico da mundializa~ao das mercadorias musicais - e esse diiilogo com a Iinguagem instituida pelo mercado ocidental possibilita que ocorra 0 grande encontro de culturas, segundo 0 slogan usado pela 'industria cultural. Ii 0 reino da tecnica derrubando as ultimas fronteiras e permitindo as companhias fatura­rem mais que urn nutritivo segmento de atua~ao. Ao incentivar a pro­du~ao local, alimentam urn espa~o frutifero que, alem de estimular 0

consumo, pode fazer vingar produtos para difusao no mercado mun­dial"! . A pergunta fundamental e colocada por Gabriel Cohn: "( ... ) de quem e a iniciativa nesse processo? Dizer que a fragmenta~ao e a

58 Ruby Marchand, diretora artfstica da W.amer Internarional. "Benjor grava nos es­tlldios de Prince". Foiba de S.Palllo, 15-08-94, p. 5-1.

59 GAROFAW, 1993. 60 Tal e a posi~o de VICENTE, "World Music". Campinas: mimeo, 1995. Sobre

World Music ver ainda PAIANO. E. "Homogeneidade e diversidade na culturd glo""I, 0 caso da World Music". In, BORELLI, S. (org.) Generosjlcclonats, prod,,­fao e cotidiano na cuJlttra popular. SP: GTslIntercom, nO 1, 1994. p. 95-104. e GIL, G. "The music of the world is bigger than World Music", AJropop War/wide Listener's GUide - 1993. Nova York: World Music Productions.

61 "( ... ) a maioria dos produtores africanos gravam em Pari$, levam a fita matriz para seu pais, prensam ca5setes e discos, vendem 0 que podem e depois voltam a Paris para ceder os direitos a empresas especializadas." Jose cia Silva, prQdutol' musical cabo-vel'diano, proprietario do selo Lusafrica. In: "Produtor critica 0 rotu-10 'world music"', OEstadodeSPa.do, 30-05-94, p. D-IO.

Os anos 90 e as mudan~as na industria fonografica brasileira 123

heterogeneidade contemporaneas (na medida em que existam) deslo­caram a autonomia e a iniciativa para os individuos e os grupos locais seria no minimo precipitado,>6,. Assim, sem a interferencia do poder economico da grande empresa produtora de discos, e portanto, sem a World Music, muito da produ~ao musical dos paises perifericos certa­mente continuaria excluida do mercado mundial, mas a analise dos ganhos e vantagens das partes envolvidas no processo deve considerar os aspectos musicais, culturais, sociais, economicos e politicos.

Do conjunto de transforma~6es que se ope ram, cabe-nos retomar 11 reestrutura~ao do processo de produ~ao da industria fonografica, ele mesmo nucleo difusor das mudan~as. Das eta pas da produ~ao que se autonomizam e se especializam, uma tern, aos poucos, adqui­rido for~a e potencialidade de fomecer urn fato novo 11 ordem tao bern estabelecida da industria fonogriifica: a prolifera~ao de peque­nas empresas produtoras de discos, que, aliadas as facilidades postas pelo desenvolvimento do aparato tecnol6gico, especializam-se na area de aperfei~oamento de Artistas & Repert6rio. Esse e mais urn setor que tern sido terceirizado pelas majors, que podem escolher os pro­dutos prontos para fabrica~ao e distribui~ao-difusao, eximindo-se, nes­ses casos, da prospec~ao de novos talentos e de todo 0 trabalho de produ~ao. Da rela~ao entre grandes e pequenas empresas e que pre­tendo me ocupar no capitulo que se segue,

62 COHN, G. "Alfinetes e barbarie". Folha deS.Paulo, 19-11-95, Caderno Mats, p. 5-7.

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Iho. Esse e urn disco para tambem estourar no Brasil"58. 0 mesmo movimento que coloca Benjor, definitivamente, no grande mercado mundial traz, dos confins da Africa, Asia, Oceania, musicos e artistas locais, ate entao alheios ao circuito de trocas de mercadorias musicais. o segmento e conhecido como World Music, e 0 debate em torno do tema e intenso. Alguns autores defendem a ideia de que a industria fonogrilfica, f1exibilizada, "democratizada", permite a integra~o de uma produ~o diferenciada, com acento etnico-cultural, confirmando 0 adven­to da era do p6s-imperialismo cultural 59. Outros concluem que 0 inves­timento na World Music responde simplesmente a estrategias de prospec~o de novos segmentos para prodU~dO e consumo, impingindo­Ihe condi~6es de produ~ao fortemente padronizadas60. De fato, muitos artistas locais conquistam formas de produ~ao e difusao de sua musica, mas nao conseguem faze.lo de acordo com sua produ~ao original; os produtos sao, invariavelmente, vestidos de uma roupagem pop - 0

conjunto de notas e arranjos mais emblematico da mundializa~ao das mercadorias musicais - e esse diiilogo com a Iinguagem instituida pelo mercado ocidental possibilita que ocorra 0 grande encontro de culturas, segundo 0 slogan usado pela 'industria cultural. Ii 0 reino da tecnica derrubando as ultimas fronteiras e permitindo as companhias fatura­rem mais que urn nutritivo segmento de atua~ao. Ao incentivar a pro­du~ao local, alimentam urn espa~o frutifero que, alem de estimular 0

consumo, pode fazer vingar produtos para difusao no mercado mun­dial"! . A pergunta fundamental e colocada por Gabriel Cohn: "( ... ) de quem e a iniciativa nesse processo? Dizer que a fragmenta~ao e a

58 Ruby Marchand, diretora artfstica da W.amer Internarional. "Benjor grava nos es­tlldios de Prince". Foiba de S.Palllo, 15-08-94, p. 5-1.

59 GAROFAW, 1993. 60 Tal e a posi~o de VICENTE, "World Music". Campinas: mimeo, 1995. Sobre

World Music ver ainda PAIANO. E. "Homogeneidade e diversidade na culturd glo""I, 0 caso da World Music". In, BORELLI, S. (org.) Generosjlcclonats, prod,,­fao e cotidiano na cuJlttra popular. SP: GTslIntercom, nO 1, 1994. p. 95-104. e GIL, G. "The music of the world is bigger than World Music", AJropop War/wide Listener's GUide - 1993. Nova York: World Music Productions.

61 "( ... ) a maioria dos produtores africanos gravam em Pari$, levam a fita matriz para seu pais, prensam ca5setes e discos, vendem 0 que podem e depois voltam a Paris para ceder os direitos a empresas especializadas." Jose cia Silva, prQdutol' musical cabo-vel'diano, proprietario do selo Lusafrica. In: "Produtor critica 0 rotu-10 'world music"', OEstadodeSPa.do, 30-05-94, p. D-IO.

Os anos 90 e as mudan~as na industria fonografica brasileira 123

heterogeneidade contemporaneas (na medida em que existam) deslo­caram a autonomia e a iniciativa para os individuos e os grupos locais seria no minimo precipitado,>6,. Assim, sem a interferencia do poder economico da grande empresa produtora de discos, e portanto, sem a World Music, muito da produ~ao musical dos paises perifericos certa­mente continuaria excluida do mercado mundial, mas a analise dos ganhos e vantagens das partes envolvidas no processo deve considerar os aspectos musicais, culturais, sociais, economicos e politicos.

Do conjunto de transforma~6es que se ope ram, cabe-nos retomar 11 reestrutura~ao do processo de produ~ao da industria fonografica, ele mesmo nucleo difusor das mudan~as. Das eta pas da produ~ao que se autonomizam e se especializam, uma tern, aos poucos, adqui­rido for~a e potencialidade de fomecer urn fato novo 11 ordem tao bern estabelecida da industria fonogriifica: a prolifera~ao de peque­nas empresas produtoras de discos, que, aliadas as facilidades postas pelo desenvolvimento do aparato tecnol6gico, especializam-se na area de aperfei~oamento de Artistas & Repert6rio. Esse e mais urn setor que tern sido terceirizado pelas majors, que podem escolher os pro­dutos prontos para fabrica~ao e distribui~ao-difusao, eximindo-se, nes­ses casos, da prospec~ao de novos talentos e de todo 0 trabalho de produ~ao. Da rela~ao entre grandes e pequenas empresas e que pre­tendo me ocupar no capitulo que se segue,

62 COHN, G. "Alfinetes e barbarie". Folha deS.Paulo, 19-11-95, Caderno Mats, p. 5-7.

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o espa~o da produ~ao independente

1. Pressu pastas

o universo da pequena empresa produtora de discos pare­ce, 11 primeira vista, completamente alheio a dina mica das majors, expressando muitas vezes a sua nega~ao. Urn olhar mais atento pode evidenciar, no entanto, a estreita sintonia existente entre suas l6gicas que, pr6prias a industria cultural, acabam por desenvolver uma rela~ao de complementaridade, mesmo que indireta e apa­rentemente conflituosa. Assim, a performance das empresas cha­madas independentes, nas varias formas que tern tornado, consti­tui-se a partir da trajet6ria das majors e muda de acordo com ela. A forte concentra~ao caracteristica de toda a hist6ria da produ~ao fonografica deve ser considerada como fator primordial da exis­tencia das indies. Alerp. do dominio das majors na area de hardware, o panorama sempre evidenciou a contradi~ao existente entre a farta produtividade e efervescencia musicais e as restritas possibi­lidades de acesso as condi~oes de produ~ao e difusao. A complementaridade pode, entao, ser vista das seguintes perspec­tivas: a indie, ao absorver parte do excedente da produ~ao musical nao capitalizada pelas majors, alem de permitir a diminui~ao da tensao no panorama cultural, derivada da busca de oportunidades, acaba por testar produtos, mesmo que num espa~o restrito, permi­tindo a major realizar escolhas mais seguras no momenta em que decide investir em novos nomes. Nos dias de hoje, assistimos a urn aperfei~oamento dessa rela~ao, quando a major busca, na indie, produtos acabados, prontos para a difusao.

Muitos estudos lembram a contribui~ao de autores como Peterson e Berger, e Paul Lopes, ja citados aqui, para a analise dessa questiio, na medida em que consideram serem as companhias inde­pendentes sao os agentes da diversidade e da inova{'ao no panora~a

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126 Os donos da voz

fonogriifico l . Eles divergem, no entanto, sobre a maneira como sua produ~ao chega ao mercado. No entender de Peterson e Berger, a industria passa por cielos de concentra~ao e distensao, nos quais a urn periodo de intensa concentra~ao corresponde urn grau de baixa diver­sidade e inova~ao na produ~ao. A demanda insatisfeita estimularia 0 surgimento de produ~oes independentes, que povoariam 0 mercado com novidades. 0 cielo se realizaria na medida em que a grande industria incorporaria lentamente essa diversidade, comprando 0 cast das pequenas companhias, ate alcan~ar urn novo momento de con­centra~ao, refazendo 0 cielo'. Exemplificando, eles mostram a impor­tiincia das gravadoras independentes no processo de revela~ao e di­fusao do rock'n roll. Paul Lopes nao concorda com a ideia de cielos e mostra que nao e a concentra~ao que varia, e sim 0 sistema de desen­volvimento e produ~ao efetivado pela grande companhia. Tal siste­ma, a partir dos anos 80, passa a ser urn sistema aberto, incorporando a inova~ao e a diversidade como estrategia de manuten~o do con­trole do mercado, garantindo a concentra~ao nas areas de fabrica~ao e distribui~ao-difusa03.

E fundamental para a compreensao da expansao das indies considerar 0 desenvolvimento das tecnologias de grava~ao. Vicente aponta que, ja nos anos SO, 0 surgimento dos gravadores permitiu a entrada de novos produtores no cenario fonogriifico, sobretudo ame­ricano, nao somente pelas facilidades tecnicas oferecidas, como tam-

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Como fazem. por exempJo, ZAN, 1994: VICENTE, 1996, que trata detalhadamente da questao no segundo capitulo de sua disserta~ao, e PAIANO, 1994, MUlier Chaves tern opiniilo similar: "Eu cheguei a conclusao de que tudo na vida se resume a dois movJmentos: sistole e diastole. H:i momentos em que 0 Mercado se concentra, as grandes come~am a comprar repert6rio das pequenas e ficam poucas empresas. Isso gera obviamente - 6 a natureza das coisas - uma dirninui­~ao de oportunidades para novos talentos. As empresas grandes sao mais conser­vadoras. Entao ~ preciso que os pequenos vottem apostando em ta]entos novos e se desenvolvam, 0 destino das pequenas empresas em geral e uma belfssima venda do seu repert6rio para uma grande. ( ... ) Mas as pequenas sao vitais essen~ ciais para a maior elasticidade arti'stica; as pequenas t~m mais coragem digamos assim, e elas segmentam mais 0 mercado". ' Alguns autores apontam problemas na conceitua~ao de inova~ao e de diversida~ de. ZAN, 1994, p. 85, por exemplo, afirma que "n~o seria absurdo afirmar que pelo menos parte dos fen6menos reconhecidos como diversifica~o e inova¢.\o na musica popular, tanto por Peterson & Berger como por Paul Lopes, nao pas~ sam de pseudo-individua~ao".

o espa~o da produ~ao independente 127

bern pela consequente redu~ao dos custos de produ~ao. Mesmo que dependessem das transnacionais para a fabrica~ao dos discos, 0 aces­so aos estudios ou as condi~oes basicas de produ~ao (estudios, traba­lho dos tecnicos e equipamentos de grava~ao e finaliza~ao) foi gradativamente ampliado. No entanto, tais facilidades contrastam com os problemas enfrentados pelas indies na esfera da distribui~ao e difusao de seus produtos. As dificuldades de distribui~ao fisica dos produtos as lojas sao acrescidas pela falta de interesse das mesmas por produtos que nao venham com a marca das majors, considerada uma garantia de sucesso. Da mesma forma se comportam os meios instituidos de promo~ao e difusao, que raramente abrem espa~o para produ~oes alternativas. Assim, ao lade do dominio das majors, as indies tern se desenvolvido num contexte permeado de contradi~oes.

o constante aprimoramento do aparato tecnico tern permitido urn aumento de seu raio de atua~ao. Vicente, preocupado com 0 momenta atual, mostra que 0 advento dos meios digitais de grava~ao, ao restringir 0 numero de equipamentos envolvidos na produ~ao e grava~ao, sintetizando-os em versoes compactas, permitiu a diminui­~ao de custos de instala~ao e opera~ao dos estudios. Assim, observa­se a redu~o do pre~o da montagem de urn estddio, dos servi~os oferecidos por este (pre~o da hora-estddio e do numero de horas utilizadas nas grava~oes; custo de materiais e insumos) e de outros custos de produ~ao, tais como 0 numero de musicos envolvidos. "A essa redu~ao dos custos de instala~ao e opera~ao de urn estddio de grava~ao corresponde, e claro, uma significativa redu~ao tambem dos pre~os de produ~ao dos trabalhos. Sob esse aspecto, e inegavel que hoje a produ~ao em estudio seja mais acessivel do que em qual­quer epoca anterior e que, por isso, tenha havido re.almente uma amplia~ao das possibilidades de produ~ao dos seus trabalhos para os artistas independentes"'.

4 VICENTE, 1996, capitulo 2, p. 65. Segundo 0 autor, il epoca em que realizou sua pesquisa, a montagem de urn estUdio digital de dezesseis canais podia ser realiza~ da com 0 custo de US$ 50.000,00. Outra estimativa mostra que com urn investi~ mento de US$ 30.000,00 se pode obter urn estddio capacitado para prestar servi­~os profissionais de grava~ao e produ~ao de discos. Avalia~se que 0 custo de mil CDs, computados da grava~ao a entrega do produto acabado, pode ser coberto com 0 investimento de R$ 5.000,00. "Nunca foi tao f~cil gravar urn disco". Folha

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128 Os donos da voz

No conjunto das condi~oes de produ~ao da industria fonografica, essa mudan~a na configura~ao e nos custos do aparato tecnico, alem de permitir 0 acesso de novos agentes promove a especializa~ao dessa area da produ~ao, possibilitando 0 surgimento de pequenas empresas especializadas na produ~ao e grava~ao de discos. A contemporaneidade e a especificidade desse processo evi­denciam sua afinidade com fen6menos pr6prios da globaliza~ao da produ~ao capitalista e com 0 movimento que alguns autores deno­minam especializar;;ao flexivel (flexible specialization), podemos ver, por exemplo, em Hesmondhalgh'. A especializa~ao das etapas do processo de produ~ao, ja apontada, vai gradualmente atingindo outras esferas da produ~ao, chegando ao seu centro vital: a gera~ao de artistas e repert6rio (A&R). As empresas independentes tornam-se agentes desse processo, transformando-se em fornecedoras de pro­dutos acabados para as grandes. Para Hesmondhalgh, esta e a ex­pressao da especializa~ao flexlvel, tal como acontece na industria fonografica6•

de S.Paulo, 26-12-95, p. 1-5. Uma alternativa redutora de custos e a realiza~ao de coletaneas e a conseqUente divisao dos custos de produ~ao do disco entre os varios grupos participantes. Da mesma forma, a utiliza910 de sons digitalizados, ao substituir 0 trabalho dos musicos, diminui igualmente as custos de produ\=3o. Vicente estima, ainda, que 0 retorno do investimento em mil CDs pode ser obtido com a venda de qUinhentas unidades (p. 66-67),

5 HESMONDHALGH, D. "FleXibility, post-Fordism and the music industries", op. cit.

6 Sao frequentes as notfcias sabre a transfer~ncia de artistas e repert6rio de indjes para majors, no eixo EUA-Europa. Pard. citar alguns exemplos, nos EUA selos como Interscope e Death Row, distribuidos pela MCA/Geffen, sao responsaveis par 3,4% do mercado americano, 0 primeiro do mundo. A MCA Utrabalha com vinle selos, num leque que vai do blues da Chess ao rock 'alternativ~' da Fort Apache (urn estudio famoso por ter gravado a nata do underground americano)". Folha de S.Paulo, 25-10-95, p. 5-1. No inicio da decada de 90, 0 selo americana Sub Pop foi responsavel por grande movimentacao no mercado fonografico mundial, revelando grupos como NilVana e MUdhoney. Outro celeiro indie no mundo e a Jamaica. 0 pars onde se originou 0 reggae tern grande concentracao de pequenos selos e fabricas. Na decada de 80, algumas fabricas faziam discos quase artesanalmente. Mas os artistas que se consagram tem 0 mesmo caminho: as majors. Em 1993, quinze artistas populares da Jamaica assinaram contrato com grandes companhias. In: ''Jamaica volta a ser Meca das gravadoras". Folha de S.Pau/o, 30-11-93, p. 5-6.

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o espa~o da produ~ao independente 129

Autores tais como Christianen e Vicente7 corroboram, de maneiras diversas, essa ideia. 0 primeiro considera que essa nova configura~ao do cenario fonografico faz parte de mais urn dclo de concentra~ao e distensao que se efetiva num outro patamar, com maior autonomia das produtoras independentes, que, apoiadas pelas altas tecnologias e pela segmenta~ao do mercado, conseguem melhores condi~Oes de aceita~ao de seus pro­dutos, garantindo diversidade e inova~o para 0 panorama fono,grafico. Vicente discute as reais possibilic;lades de inova~ao que sao, atualmente, trazidas ao mercado pelas indies. Por mais que sua atua~o tenha se iniciado em segmentos nao muito explorados, as atuais relap'ies entre indies e majors, pautadas pelo que ele chama de radicaliza~ao do siste­ma aberto pensado por Lopes, podem agravar as condi~c'ies de monop6-lio, bern como a padroniza~ao da produ~ao.

Tra~ando urn paralelo com 0 que ocorre, nos dias atuais, na industria cinematografica americana, David Hesmondhalgh afirma que urn grande otimismo tern marcado a analise da participa~ao de peque­nas empresas na produ~ao da industria cultural. Ele pondera que se assiste, na realidade, a uma reorganiza~ao da industria do filme, em que a performance dos produtores independentes nao tern alterado 0

poder das majors do setor mas, ao contrario, confere-lhe melhores condi~oes de produ~ao. 0 mesmo processo parece peculiar a industria do disco. As rela~oes entre grandes e pequenos produtores esmo sen­do vistas como cooperar;;ao, simbiose e trabalho em network. As indies tornam-se ainda mais versateis e sua capaddade de testar fatias de mer­cado tern aproximado as majors - preocupadas em garantir cada vez mais a segmenta~ao do mercado - de seu trabalho. Licenciamento (na­cional ou internacionai), compra de repert6rio, de catiilogo ou mesmo de todo 0 selo ou ainda contratos de distribui~ao: essas sao as formas pelas quais se' concretizam as rela~oes formais entre indies e majors. Utilizando exemplos do que ocorre na Inglaterra, onde as indies

7 CHRISTIANEN, 1995; VICENTE, 11)96, p. 61, afirma que "( ... ) de fato, incontaveis bandas e artistas individuais estao podendo, atualmente, gravar suas demos e albuns em pequenos estudios digitais. Mfdias digitais gravaveis e portateis como o DAT e 0 Minidisc Ihes possibilitam a divulgacao de seus trabalhos atraves de radios ou, ainda, sua dupJicacao domestica em fitas cassete para comercializa~ao. Desse modo, a apresentacao aos selos de trabalhos ja totalmente produzidos, visando a negociacao apenas de sua prensagem e distribuicao tern se tornado uma pratica freqUente" .

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adquiriram hist6rica importllncia quando do movimento punk e do rock dos anos 80, 0 autor mostra que para as indies a situa~ao continua a sec de inseguran~. Muitos selos tern vida economica curta·. Seus neg6cios com as majors nile garantem urn reinvestimento na produ~ao e esmo sempre subordinado a elas. Uma das unicas alternativas e a atua~ao em segmentos muito espedficos.

Para nossa analise, as questOes colocadas por autores como Lopes, Hesmondhalgh e Vicente adquirem grande sentido e propriedade. A fragmenta~ilo da produ~ilo e as condi~oes colocadas pela tecnologia favorecem a diversifica~ilo de agentes produtores. Mas 0 afunilamento que as majors realizam no momento de escolher produtos oriundos das indies (seja para estabelecer contratos de distribui~o ou para com­pra de catalogo e/ou produtos) limita consideravelmente a ocorrencia de efetivas parcerias ou situa~oes de terceiriza~ao que garantam a con­quista do mercado por produtos portadores de inova~ilo. Por outro lado, sao completamente adversas as condi~oes autonomas de distri­bui~ao, marketing e difusilo enfrentadas pelas pequenas, se desejarem prosseguir atuando em todo 0 processo. A salda e ousar pouco e reite­rar 0 modelo de sucesso institufdo pela major. Assim, a fragmenta~ilo, a segmenta~ilo, 0 desenvolvimento tecnol6gico e a diversidade (entendi­da como variedade) tornam-se caracterfsticas altamente sofisticadas do processo de produ~o consagrado pela grande transnacional, agora ainda mais racionalizado.

Apesar da preocupa~ao com a qualidade, sustentada por peque­nos produtores, muitos selos aparecem por iniciativa do pr6prio artista para viabilizar 0 seu ti'abalho, independentemente do genero elou estilo musical. A indie deixa 0 seu valor agregado de slmbolo da quali­dade musical e de ve1culo de crfticas e inova~oes para, igualmente, desenvolver f6rmulas previsfveis e consagradas. Portanto, a fragmenta­~o e seus desdobramentos, que teriam, teoricamente, 0 poder de trans­formar as bases da produ~o e do modo de acumula~o da industria fonografica, por estarem submersas ill6gica do standard, acabam por representar nilo rnais que urn rearranjo estrutural.

Asquestoes gerais ate aqui enunciadas sobre 0 espa~o ocupa­do pe1a produ~ao independente no conjunto da produ~ao fonografica

8 Ver, por exemplo, SEVCENKO, N. "Factory fecha e deixa 6rta gera~ao de Manchester". Folba deS.Paulo, 01-02-93, p. 4-6.

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o espa~o da produ~ao independente 131

tomam maior clareza se vistas a partir da analise de dois momentos: aquele que se verifica no Brasil dos anos 80, quando urn tipo muito peculiar de produ~ao independente tern lugar e, nos dias atuais, quando a indie parece configurar-se como prestadora de servi~os para a gran­de empresa ou como microempresa especializada em determinados segmentos. Passemos, entao, ao tratamento de tais questoes.

2. Brasil: os anos 80 e a atitude independente

As informa~oes sistematizadas sobre as iniciativas de produ~ao fonografica que acontecem fora do circuito das majors no Brasil da­tam do infcio dos'anos 60. No entanto, e possfvel encontrar, na litera­tura, informa~ao hist6rica esparsa, fragmentada, que deixa entrever a participa~ao das indies desde os prim6rdios da produ~ao fonografica local. Por exemplo, sabe-se que Carmen Miranda, antes de gravar seu primeiro grande sucesso Pra voce gostar de mim em 1930, pela RCA­Victor (35 mil c6pias), ja tinha estreado no mundo do disco em 1929, em urn pequeno selo, 0 Brunswick9. Posteriormente, 0 contrato de Carmen Miranda com a RCA-Victor fez parte de uma grande investida da empresa no mercado brasileiro, que inClufa a instala~ao de uma f:ibrica no pafs, acirrando a competi~ao com sua maior concorrente, a Odeon, em urn mercado dividido ainda com a Columbia (CBS)!o.

A dispersao ou a raridade das inforrna~oes leva alguns pesqui­sadores a enumerar as possfveiS iniciativas independentes, questio­nando, inclusive, qual teria sido a primeira. Tal tentativa pode levar a seguinte constata~ao:"(".) os primeiros produtores independentes [no

9 In: QUEIROZJUNIOR, CarmenMlrandao Vldaeglorla, amoremorte. RJ: Compa­nhia Brasileira de Artes Graficas, 1956, p. 26.

10 In: BARSANTE, C. E. Carmen Miranda. RJ: Europa, edi~ilo burngOe, 1985, p. 50-52. 0 autor cita urn trecho do discurso feito por Rogerio Guimaraes, da RCA­Victor, quando de seu primeiro encontro com Carmen Miranda: "A senhorita tern uma voz agracW.vel. de born timbre e de boas po~ibilidades. pois se entendem as palavras que canta. Quanto a pouca extensao, orquestra¢>es adequadas poderao dar urn jeito, e escolheremos tamb~m musicas apropriadas. Seu tipo e fotog~nico e pode facilitar a propaganda dos discos. Algumas recomenda~oes: a senhorita cantara somente musica brasileira. Sei que tern cantado alguns tangos, mas a RCA~Victor quer lan~ar musicas brasileiras tipicas. Nao revelarn tambem sua ori­gem portuguesa, para nao prejudicar a imagem brasileira dos discos", p. 5~.

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Brasil] foram 0 imigrante italiano Severio Leonetti e 0 brasileiro Joao Gonzaga, filho de Chiquinha; logo antes do primeiro conflito mundial, Severio fundou em Porto Alegre a gravadora Gaucho, associado a Gustavo Figner, irmao de Frederico (0 da Casa Edison, filial brasileira da Odeon), registrando musica regional gaucha e tangos argentinos interpretados por musicos portenhos em visita ao Brasil (. .. ); ainda mais independente seria loao, ex-diretor de grava~ao da Casa Edison, que fundou em 1919, no Rio a Disco Popular, que 0 faliu ap6s urn ano e doze discos (. .. )"".

Mas as dificuldades de identiflcar e arrolar as empresas e iniciati­vas independentes nao se encontram somente na organiza~ao das infor­ma~6es hist6ricas. Padeoem de criterios a avalia~ao de sua contribui~ao para a produ~ao fonografica, assim como a defini~ao do conceito de independente. De maneira geral, sao consideradas independentes todas as iniciativas de produ~o, grava~o e difusao que acontecem fora do circuito das grandes. Nesse sentido, diz Ina Camargo Costa: 'Ja se disse por af que 0 precursor dos independentes foi 0 Ze Ramalho, que em 1972 fez urn disco em Recife, 0 Peabirn (nos estudios Rosenblit, que tern uma hist6ria). Ha quem se pergunte se 0 Marcus Pereira, com seu ambi­cioso projeto, nao foi independente. 0 Pasquim, com sua experiencia do 'disco de bolso', tambem de 72, idealizada por Sergio Ricardo, reivindica o direito de ser incluldo pelo menos no rol dos que deram uma for~a 11 ideia. Parece haver uma unanimidade quanta a experiencia de Antonio Adolfo, considerada a primeira bem-sucedida, ja em 77. 0 Boca Livre chegou a provo car uma especie de 'boom', ja que parece ter sido 0 que mais vendeu discos independentes. Criou-se ate a Distribuidora Inde­pendente a partir de seu suoesso de vendas. Mas af vern alguem e lembra que na decada de 40 tambem se tentou a produ~o independente (ci­tam-se Carmen Costa e Emilinha Borba). Ha ainda quem relacione a pr6pria Bossa Nova e 0 Selo Elenco, fundado em 1963 por Aluysio de Oliveira como idealizador e diretor, com algum tipo de independencia. Com se ve, a quesmo se tornou urn imbrOglio(. .. )"12.

Podemos encontrar, por outro lado, urn modo diferente de analisar as pequenas empresas do disco. A pesquisa Disco em Silo

11 Citado em COSTA, I. C. "Quatro notas sebre a produ~ao independente de musi­ca". Arte em Revista. Independentes, Ano 6, nil 8. SP: CEAC, 1984a, p. 11.

12 Idem.

o espa~o da producao independente 133

Paulo apresenta pequenas e medias empresas existentes em Sao Paulo nos anos 70 sem, no entanto, caracteriza-las como independentes. As atividades das pequenas empresas encontradas pela pesquisa envol­viam uma ou urn pequeno grupo de pessoas que concentravam si­multaneamente fun~6es artfsticas e comerciais. Integravam as ativida­des: selecionar os artistas e 0 repert6rio e realizar a divulga~ao e a comercializa~ao. No entanto, essas duas ultimas etapas poderiam fiear a cargo do artista. Grava~o, fabrica~o e servi~os gn1ficos eram encomendados a teroeiros. As empresas de medio porte ofereciam uma estrutura mais sofis­ticada, envolvendo urn numero maior de pessoas mas, igualmente, terceirizava servi~os como grava~ao, fabrica~ao e capa-embalagem13

Para tais empresas, 0 neg6cio na area do disco nao obedece a ne­nhuma especificidade da produ~ao, mas pode ter surgido de outro, ja existente na area, como uma loja de discos ou atraves do exerd­cio da musica. Poder-se-ia encontrar tambem gravadoras cujos prin­cipais discos eram os de seus proprietarios l

•. E significativo notar que este tipo de organiza~ao empresarial nao seja citada no rol da produ~ao considerada independente, uma vez que 0 fato de explo­rarem urn mercado dominado por grandes empresas as aproxima­ria, de certa forma, da situa~ao atual das pequenas empresas do disco. No entanto, Disco em Silo Paulo nao e contemporaneo do momento em que a situa~ao dos independentes ganha importancia

13 "A Gravadora Clarim Ltda (Av. Sao loao, 439, 4° andar, 5/552) e uma firma bern pequena, que existe desde 1964. Suas instala~5es sao, precarias: uma sala peque­na no segundo lance C . .); pilhas de fltas gravadas que candidatos a artista enviam, na esperan~a de gravar urn disco e fazer sucesso. (. .. ) A Clarim nao tem funciona­rios, apenas seus dois proprietarios, 0 Sr. Cid Jose, tambem diretor artfstico e artista ele pr6prio e 0' Sr. Geraldo Gon~alves, que dividem entre si todas as funcoes. 0 Sr. Geraldo Goncalves e responsavel pelo ensaio do cantor que vai gravar. Com 0 violao na salinha apertada, ele treina 0 cantor, sozinho, porque naO pode pagar ensaio com 0 conjunto e nao se pode perder tempo de estiidio com ensaios no dia da gravacao. A grande maioria dos cantores que aparecem nao e profissional (. .. ). Grava qualquer g@nero de musica, com predomin§.ncia da sertaneja (. .. )." Disco em Sao Pauio, p. 23.

14 De Conceicao Torres responsavel pelo selo Holliday, da gravadora de mesmo nome, produtor.t do genero sertanejo: "(. .. ) e facil, qualquer coisinha vende dis­co; e outra coisa: facilita gravar porque e em dupla, nao precisa cantar tao direi­to~. Do Sr. Goncalves, da Gravadora Clarim: "0 mundo do disco e cheio de fantasia. As vezes parece que um artista esta faturando muito, e e merttira (. .. ) 0

povo gosta de ser engana.do. Se falar a verdade ninguem aceita". Idem, p. 2~.

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Onlcio dos anos SO), residindo talvez al a simples caracteriza~ao das empresas como pequenas, por mais emblematica que possa ser a situa~ao.

As dificuldades na avalia~ao do que era auti!ntica e efetivamen­te independente parecem residir na confusao que se estabelecia en­tre, de um lade, 0 artista que tem uma atitude independente, procu­rando esse tipo de meio para veicular um produto de proposta este­tica diferenciada e, muitas vezes, inovadora, sem lugar nos pianos da grande empresa e do grande mercado. Numa atitude de protesto, ele, sozinho ou ancorado numa pequena estrutura empresarial, produz e oferece seu produto no mercado. De outro lade, artistas e empresarios apostam na segmenta~ao do mercado e buscam oportunidades para produtos ainda nao interessantes para as majors. Nesse caso, a produ­~ao indie funcionava como um marketing para 0 produto, cujo fim era sensibilizar a major. Uma terceira hip6tese poderia conter as duas op~oes anteriores: uma atitude independente e critica levaria, eventu­almente, a conquista de um lugar no mundo da grande mldia.

. Tomemos como referencial 0 panorama tra~ado da produ~ao fonografica brasileira nos anos 70, pois e a partir dele que se configu­ra a movimenta~ao musical alternativa desenvolvida, em Sao Paulo no final desses anos 70 e inlcio dos anos SO, que se convencionou chamar Vanguarda Paulista. A industria fonografica nacional estava plenamente estruturada e atuando em varios segmentos, sendo um deles 0 de musica popular brasileira. Como apontei, era grande a efervesci!ncia musical no Brasil do final dos 70 e come~o dos SO, sobretudo aquela que acontecia fora do circuito institucional das gran­des gravadoras. A movimenta~ao cultural que se assistia envolvia varias areas: cinema, artes plasticas, video, teatro". Na esfera da mu­sica, contava com artistas do meio universitario paulista; estes, de alguma forma, constitulam um grupo relativamente articulado em tor­no da musica popular brasileira, que reunia ainda alguns nomes liga­dos 11 musica instrumental. Os principais veiculos de divulga~ao eram as apresenta~oes ao vivo, em espa~os como 0 Museu da Imagem e do Som (MIS), 0 Museu de Arte de Sao Paulo (MASP), parques e pra~as

15 Para minha argumenta~ao utilizo" basicamente, 0 exemplar citado de Arte em Revista, as entrevistas realizadas, bern como alguns artigos de jornais e revistas, que serno citados.

o espa~o da produ~ao independente 135

publicas. Da grande midia, somente a imprensa veiculava informa­~oes. Espa~os na televisao foram aos poucos conquistados, mas circusncritos a margem da grande audii!ncia, como e 0 caso do pro­grama Fdbrica do som, da TV Cultura (19S3-S4). As majors eram tam­bem contatadas, mas os contratos nao se realizavam.

Poderlamos pensar que a falta de espa~o para tal produ~ao nas grandes empresas, decorreria do fato de as companhias fonograficas ja terem 0 seu filao de MPB constituldo com grandes nomes, sem necessidade mercadol6glca de amplia-Io. Ou mesmo que elas nao tinham interesse em testar novos produtos, sobretudo aqueles que fugissem aos padroes convencionalmente aceitos. Mas, afmal, que tipo de musica faziam os independentes dos SO?

"0 tipo de musica que eu fa~o e jovem para todas as idades, popular, urbana, universal, experimental, ritrnada, instrumental, can­tada, berrada, sussurrada, silenciosa, sutil, tropical, tal e tal". Assim Itamar Assump~ao, cantor e compositor integrante do movimento, define sua musica, na contracapa de seu segundo disco, intitulado As Pr6prias Gustas SA., deixando entrever a diferen~a 16. Grupos tais como Rumo, Arrigo Barnabe e a Banda Sab~r de Veneno e 0 Premeditando o Breque (que, mais tarde, passa a se chamar Premi!), resgatavam valores tradicionais da can~ao popular brasileira, produto da pesqui­sa que empreenderam, como aquela que deu origem ao LP Rumo aos ant/gos, do Rumo. As recria~oes ressaltavam a sutileza das can~oes, e suas letras eram muitas vezes dec1amadas, ressaltando-se os "microtons, nuan~as da VQZ"17.

A base da musica do Premeditando 0 Breque estava, como 0

pr6prio nome indica, no samba de breque:

o Preme come~ou sem querer. l'lramos cinco alunos da ECA, do De­partamento de Musica.C. .. ) Numa escola onde predominava 0 ensino da composi~ao, a gente sentia falta da coisa pcitica, do som. Reuni­mos entao pessoas interessadas em tDear num grupo com a forma~ao de regional, bandolim, pandeiro, violilo de sete cordas, cavaquinho e lIauta e fomos estudar para tocar chora e samba de breque, querendo resgatar 0 born humor da musica brasHeira. Era uma epoca tambem

16 Cit_do em COSTA, 1984_, p. 20. 17 Idem, p. 21.

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ande as musicas eram muito tristes, uns boleroes. era 0 Gonzaguinha fazendo mllsica para a Bethania, aquela coisa triste. E a gente chegou com uma mllsica que flaO era novidade, 0 born humor esta na musica ha muito tempo. Eram versoes novas, eu tinha ouvido muito Moreira

da Silva, muito Jorge Veiga, na minha infancia. Tfnhamos urn born repert6rio de samba de breque".

Mas 0 grupo, ao lado de outro, 0 Lingua de Trapo, ganhou espa~o com a acida critica que fazia do cotidiano nacional, desenvol­vendo temas que iam da vida politica nacional as desilusoes amoro­sas. Qutros nomes importantes sao os dos grupos instrumentais Pau Brasil, Freelarmonica, Metalurgia e Divina Encrenca, para citar ape­nas alguns. Luis Tatit, um dos idealizadores do grupo Rumo e hoje professor da ECA-USP, sintetiza OS motivos dos independentes dos 80: "Marginalizados [pelol panorama fortemente cristalizado e rendo­so para os grupos financeiros e, ao mesmo tempo, comodo e farto para os artistas ja eleitos, alguns novos compositores e musicos, de­poisde muito tempo de trabalho (alguns com rnais de dez anos) sem a possibilidade de registro e divulga~ao, iniciaram um processo de contra-ataque 11 a~ao das gravadoras. ( ... ) Ao inves de permanecer a espreita de oportunidades oude se submeter a julgamentos, quase sempre humilhantes, por parte dos empresarios produtores, 0 artista percorre toda a trajet6ria da produ~ao e da divulga~ao, enfrentando toda sorte de obstaculos, pagando todos os custos, para no final con­cluir que 0 pre~o de seu LP nao saiu tao caro"!'.

Estudios como 0 Som da Gente e 0 Spalla ofereciam possibilida­des para a grava~o. Um espaco ffsico aglutinou boa parte das apre­senta~oes dos artistas, alem dos ja citados: 0 Centro de Artes Lira Paulistana. Ina Camargo Costa'" mostra como 0 Lira Paulistana surgiu da inten~ao de oferecer uma prograrnacao cultural alternativa a um publico insatisf'eito com 0 show business instituldo. Como ja tinham

18 Entrevista com Mario Manga, integrante dos grupos Premeditando 0 Breque e Musica Ligeira. SP, 26-01-96. Os excertos citados sao referentes a entrevista.

19 TATIT, L, "Antecedentes dos Independentes". Arte em Revista. Independentes, Ano 6, n' 8, SP, CEAC, 1984, p. 30-33, cita~ao da p. 33.

20 COSTA, I. C. "Como se tocam as cordas do Lira". Arte em Revista. Independentes. Ano 6, n' 8, sp, CEAC, 1984b, p. 34-36.

o espa~o da producao independente 137

percebido alguns empresarios da area de musica aqui citados, 0 merca­do jovem estava desarticulado e seu respectivo publico, desassistido. Assim como a produ~ao desencadeada pelas grandes gravadoras, 0

empreendimento Lira aparecia para supri-los. Q publico dos indepen­dentes era um publico jovem, porem diferenciado, por procurar e se identificar com produtos que, se nao eram novidades ao menos partiam de referenciais distintos do que era consagrado pelo mercado.

Segundo um dos proprietarios do teatro: "A unica coisa que tlnhamos clara no dia 25 de outubro de 79, quando 0 porao da Teodoro tava quase pronto e inaugurarfamos 0 teatro, era de que seria um espaco para coisas novas. Um centro de multimldia, onde novos tra­balhos e novas propostas teriam espaco. Nao fazlamos a menor ideia do que poderia acontecer a partir daquela hora. Mas sablamos muito bem 0 que pretendlamos ser: um ve1culo para toda aquela producao cultural emergente, marginalizada pelos espacos institucionais e que vinha sobrevivendo em poroes particulares, garagens e consumidas apenas pelos amigos mais pr6ximos" ".

A divulgacao dos espeticulos tambem era feita de maneira al­ternativa, atraves de cartazes e panfletos e de outras formas, muitas vezes bem originais, como aquela 'narrada por Mario Manga:

"J

Tocamos primeiro dentro da USP, na Hist6ria, Ciencias Sociais, na Poli, no onibus circular, para fazer a divulga,'o. Depois salmos da USP e a divulga~'o continuou a ser feita assim. A gente ia na porta do Objeti­VO, na porta do Equipe, para anunciar 0 show, era muito legal, pais a

moc;;:ada naD estava acostumada com ista. Era uma epoca de repres­s'o, em que a gente nao podia fazer isso. A gente foi parado muitas vezes,' chegava a polfcia e dizia, para com esse neg6cio. Mas conseguiamos sempre lotar 0 Lira Paulistana, por mais que naD fasse diffcil lotar 0 Lira, nao e? E vendiamos muitos discos ern shows. Do

primeiro disco, vendemos mais de 20 mil c6pias, basicamente ern

shows. Era urn pequeno fene,meno, para a epoca.

21 COSTA, 19Mb, citando depoimento de Fernando Alexandre ao CEAC, em mar~o de 1984. 0 idealizador do projeto Lira PauHstana e Wilson Souto Junior (Gordo) que mais tarde veio a ser produtor musical da gravadora Continental e hoje ~ urn de seus executivos.

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138 Os donos da voz

As atividades do Teatro Lira Paulistana possibilitaram 0 funcio­namento da Lira Paulistana Gravadora e Editora, responsavel pelo selo fonografico e pelo jornal de mesmo nome ("tabI6ide semanal de roteiros e servi~os"). Depois de realizar varios lan~amentos indepen­dentes, financiados pelos musicos" e com algum investimento da empresa, 0 selo associou-se, em 1983, a gravadora Continental. Na juslificativa apresentada, exaltava-se 0 fato de ser a Continental "a maior gravadora de capital totalmente nacional"23. Em outubro de 1983, 0 selo totalizava 23 lan~amentos24.

Ao grave problema da distribui~ao, os artistas respondiam com o trabalho artesanal: alem da venda de discos nos shows, tentavam distribui-los, pessoalmente, as lojas ou vende-los por reembolso pos­tal. Com 0 aumento dos titulos produzidos de rnaneira independente e 0 relativo sucesso de vendas de alguns (como foi 0 caso do gru po Boca Livre, com 80 mil c6pias vendidas de seu primeiro disco, inde­pendente), foi fundada a Independente Distribuidora de Discos e Fi­tas, numa tentativa "de distribuir de forma pratica e comercial os discos independentes"".

Considerando-se a capacidade de mobiliza~ao artistica, de pu­blico e, ate mesmo, de retorno financeiro, resta retornar a questao

22 Al~m das produ~Oes lan~adas por seu pr6prio sela, 0 Lira aglutinava produ~ao ainda mais independente, do tipo daquela apresentada por Manga: "0 primeiro disco do Prem@ naD (oi do Lira, foi do Spalla, que era 0 nome do estUdio code a gente gravoll. Entao as donos, Dionisio Moreno e Marcus Vinfcius, entraram com a parte do estudio, tecnicos etc" e a gente ficou com a parte 'de gravadora', a gente fez capa e prensagem do disco. Ai n6s ficamos s6cios, Preme de urn lade e Spalla de outro. Eu acho que para todo mundo naD era uma questao filos6fica. Talvez, para muita gente, a coisa teona virado urn modismo de epoca. De qual. quer forma, foi a primeira v~z que apareceram independentes mesmo, onde cada um fazia 0 seu",

23 "Lira Paulistana, Programa~o de Aniversario, outubro de 1983", Arte em Revista, op. cit., p. 37.

24 Sobre os empresarios do Lira Paulista, diz COSTA, 1984b, p. 36: "C .. ,) nao cabe alimentar ilusoes a respeito do papel dos empres~trios em qualquer empreendi­mento. Grandes ou pequenos, simpaticos ou nao, empresarios sao sempre em­presarios. E 0 Lira sempre foi uma empresa".

25 Cf. "A aventura desses corajosos independentes. Ate onde eJes irao?". 0 Estado de SPaulo, 16-08-80, Caderno de Programas e Leituras, p. 6. a texto ressalta que: "Vendendo 0 disco a preco fixo, com catalogo, s6 por meio de nota fiscal e com toda a papelada documentada, a firma C ... ) funciona exatamente como qualquer outra empresa de distribuicao".

o espa~o da produ~ilo independente 139

do des interesse das grandes empresas por este tipo de produ~ao musical. ]a apontei a possibilidade de tal desinteresse justificar-se no fato de as empresas ja possuirem um cast de MPB estavel e produtivo. Mas os produtos em questao nao correspondiam exata­mente ao fililo MPB e, no mais, destinavam-se tambem ao publico jovem, justamente aquele que era, na epoca, objeto das preocupa­~oes da industria. Como explicar a falta de interesse da industria por esta produ~ito? Pena Schmidt, que demostrou tao claramente a via­bilidade do rock como produto para 0 mesmo mercado na mesma epoca, apresenta 0 seu ponto de vista:

Quando eu era diretor artistico da Continental, participantes de urn

festival de musica da Vila Madalena foram me procurar. Fomos \;;, ninguem conhecia essas coisas, mas fomos la. Estavam Hamar

Assumpcao, dois tercos dos Titas em duas ou tres bandas diferentes,

o Arrigo Barnabe C .. ). Eu acho que algumas coisas nilo os ajudaram. Eles eram muito indigestos como produto. E difidl descrever 0 que e indigesto, mas a palavra expressa realmente 0 que e, eram nutritivos,

mas indigestos.C .. ) Nilo adianta voce pendurar urn pepino do lade da madeira, que s6 vai dar ma,as. C .. ) Eles tinham urn travo muito forte e nao era deles, a sodedade linha urn travo muito forte de anos de luz apagada. C .. ) Entiio, essa ultima gera,lio de antes da abertura propria­mente dita pagou urn pouco por iSso, tinha uma certa carga intelectual

para justificar 0 seu acesso ao publico. Nao era bonito ser simples­

mente palha,o.

No entanto, ha quem diga que os independentes ajudaram as majors, experimentando produtos diferenciados, testando novas falias de mercado. Mlirio Manga ve no bom humor de grupos como 0

Ultrage a Rigor e Magazine uma dose de inspira~ao nos trabalhos de grupos como 0 Preme e 0 Lingua de Trapo. Mas a sintonia das duas esferas da produ~ao fonografica e mais fina, e mesmo 0 universo da atitude independente vai tornando-se, a sua maneira, cada vez mais administrado. Alem de prospectar seu espa~o num mercado fecha­do a novas mercadorias, a produ~ao independente sempre ofereceu ao musico a possibilidade de, se nito extinguir, ao menos minimizar o controle tecnico sobre 0 trabalho musical, "um modo de fazer discos em que a instllncia que comanda 0 registro nao controla 0

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material registrado"". Muito da produ~ao dos anos 80 pode, efetiva­mente, desfrutar essa independencia de produ~ao. Contudo, nao conseguiu, da mesma forma, criar novos mecanismos de distribui­~ao que garantissem a chegada dos discos ao mercado e aos meios de difusao, considerando ainda a total desigualdade de for~as em jogo. Arrigo Barnabe conta por que desistiu de distribuir seus discos pela Independente Distribuidora: "C .. ) nao gostamos do servi~o de­les. Eles estavam usando nosso disco como carro-chefe. As pessoas pediam nosso disco e eles s6 vendiam se levassem urn outro"''. Veremos a seguir que esse procedimento e pr6prio dos departa­mentos de vendas das grandes empresas e evidencia a presen~a de conflitos cada vez maiores, quando 0 produto realizado de maneira independente precisa adequar-se as normas instituidas para atingir urn espa~o mais amplo que aquele que 0 gerou.

A opiniao de Barnabe expressa contradi~ao maior: com 0

produto registrado, trata-se de sobreviver a mais uma etapa do processo sem descaracterizar seu conteudo. Diz !tamar Assump~ao: "A minha preocupa~ao e tocar em radio AM, porque eu sei que a dificuldade e 'bem maior. E por isso que eu procuro urn jeito de penetrar nas estruturas, abrir caminhos dentro dela. C .. ) Mas a gente tern que entrar nas estruturas e sair ileso"'". Por outro lado, o boom da produ~ao indie dos 80 permitiu que artistas e obras "aceitaveis" pelos criterios das majors, filiados a segmentos desen­volvidos por estas, tambem fizessem uso do sistema independente. "Existem pessoas que estao partindo para 0 disco independente como uma op~ao exclusivamente comercial - e isto tambem e valido, pois e uma forma de esvaziar 0 sistema tradicional das gravadoras. Existem discos que voce vai avaliar e descobre que a pro posta que ele esta trazendo poderia estar sendo encaminhada por uma gravadora normal, pois nao esta trazendo nenhuma gran­de inova~ao"29.

26 ZISKIND. H. "Disco Independente". Folha de S.Patt/o, 21·03-82, p. 58. 27 "Arrigo em dois tempos". Arte em Revis/a. Independentes, op. cit., p. 26. 28 "Muitas visoes sabre a musica independente". FolhadeS.Pau/o, 31-01-82, p. 50. A

parte referente ao depoimento de Itamar Assumpcao tern 0 seguinte titulo: "Mi­nha preocupa~ao e toear no radio".

29 LEITE, G. "Marginal nao e criteria estetico", idem.

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o espa~o da produ~ao independente 141

Finalmente, e preciso lembrar que a atitude independente de alguns artistas continha a percep~ao e a crftica das condi~oes de pro­du~ao oferecidas pe1as majors e assim colocaram em pratica uma maneira alternativa e, as vezes, altamente criativa de produ~ao. Sua atividade acabou por esgotar-se na dificuldade de veicula~ao e distri­bui~ao dos produtos. Restaram como alternativas, por urn lado, a continua busca da sensibiliza~ao das majors e, por outro, a realiza~ao do trabalho musical e fonografico que permanece a margem do mer­cado. 0 desgaste proporcionado pela busca da sobrevivencia foi, gradativamente, diluindo a atitude independente.

Mesmo como parte da industria cultural, 0 empreendimento Lira Paulistana teve um grande merito: mostrou uma produ~ao cul­tural variada, que rompia com os padroes vigentes. Muitas vezes isso foi feito de maneira democratica: em pra~a publica, para quem quisesse ver. 0 mesmo deve ser dito das iniciativas pioneiras de Aluysio de Oliveira, Antonio Adolfo e Marcus Pereira. A sua atitude independente e 0 trabalho de revela~ao e/ou resgate de grandes nomes da MPB que eles promoveram, reduzem a importancia da questao de sua posterior liga~ao com as majors ou com qualquer outra institui~ao oficiaL

Mas as indies e seus produtores persistem, e sua performance vai adequando-se as. mais diferentes conjunturas. Na sequencia, a partir dos pressupostos ja enunciados, que apontam para as mudan­~as em sua atua~ao, gostaria de explorar 0 universe de uma empresa independente que se ap6ia em modernos mecanismos da articula~ao entre grandes e pequenos produtores fonograficos, nestes tempos de mundializa~ao da cultura.

3. Tinitus: uma indie em tempo de globaliza~ao

o selo independente Tinitus, especializado no segmento rock, foi criado em 1992 pelo produtor musical e fonografico Pena Schmidt. Com 0 objetivo de incentivar e promover artistas e repert6rio para atuarem, tanto de maneira independente como para posterior contrata~ao por grandes empresas, Schmidt parece sintonizar sua empresa com as atuais tendencias do panorama mundial da indus­tria fonografica.

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Suponho que a trajet6ria profissional de Pena Schmidt seja ex­pressiva de varios momentos da industria fonografica brasileira.30 En­volvido desde cedo com musica, como consumidor, ainda jovem co­me~ou a trabalhar com 0 setor fonografico, na area de eletronica. Das grandes empresas nas quais se engajou, constam a Giannini, fabrica de instrumentos musicais, onde atuou como tecnico em aparelhos eletronicos, e as gravadoras Continental 0979-80), trabalhando como gerente do estudio Gravodisc e gerente de Produ~ao Artlstica, e a Warner 0985-91), onde foi diretor artlstico num momento importante de consolida~ao da empresa no mercado nacional, como ja foi citado. Ao lade da produ~ao de discos e artistas, ele atua como tecnico de som, engenheiro de grava~oes e stage manager, sendo responsavel pela coordena~ao de palco de grandes eventos musicais, tais como festivais de jazz, blues (Free Jazz, Nescafe in Blues, Heineken Concerts etc.) e eventos musicais de grande porte, como 0 show da cantora norte-americana Madonna, em Sao Paulo.

A partir de sua experiencia de trabalho nas majors, Schmidt tornou-se adepto da estrategia de gesta~ao do produto na empresa, da prepara~ao deste para a conquista do mercado. Considera que 0

artista que ja chega pronto e rapidamente come~a a vender seus pro­dutos e uma exce~ao que. confirma a regra:

o artista precisa de urn tempo para dirigir-se ao mercado, ha necessi­dade de urn processo para sua forma~ao. onde ele vai conhecer 0 seu publico e vai poder fazer exatamente aquilo que 0 publico quer, saber alimentar 0 processo de feed-back, onde ele vai saber 0 que est. funcionando e 0 que nao esta, reorganizando 0 trabalho. Ele faz pri­meiro apresentacoes para pessoas rriais pr6ximas, para a primeira fila do teateo, e vai ampliando devagar, cinquenta pessoas, cern pessoas, ele vai ampliando tambem a forma de acertar. 0 publico dele vai crescendo, ate chegar ao tamanho que impressiona a midia. Quando voce esta fazendo sucesso para duzentas, trezentas pessoas, urn jorna­lista pode ir e falar: born artista! Quando voce faz sucesso para duas,

30 Vale aqui uma obselVa~ao: 0 perfil que apresento do selo Tinirus e da atua~o de Pena Schmidt, seu proprietario, baseiam-se nas tras entrevistas realizadas (SP, 09-12-92, 08-08-93 e 19-08-94). No entanto, tal como vem sendo feito, as infonna~s oferecidas sao consideradas como argumentos que justificam e subsidiam a atua~o.

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tr~s mil pessoas, 0 dono da radio pode falar: se todo esse pessoal gosta dele, vou toear a musica dele na minha raelio, pais as pessoas vaa querer ouvir. Existe, portanto, urn processo independente ao pro­cesso econ6mico, cnde voce divulga espertamente a hist6ria. Na rea­liza~ao das entrevistas, 0 artista vai falar A e eles vao dizer B, ate ele entender como e que ele tern que fazec para sair do jeito que ele quer. Eu penso que, em quatro OU cinco anos, temos urn tempo razmlvel para que a artista saia do amadorismo e se transforme num profissio­nat com empresario, agenda, publico, produtor fonografico, alguem que saiba transformar 0 material illusical em disco, uma companhia que 0 entenda, que 0 venda, 0 lojista que 0 conheca, enfim, e 0

minimo para voce dizer assim: ele existe!

Conta 0 produtor que tal estrategia foi utilizada por Andre Midani, quando da conquista do mercado brasileiro pela Warner, nos anos 80. A empresa era uma companhia nova no mercado mundial e nao contava, portanto, com urn cast consolidado de artistas consagrados que Ihe assegurassem as vendas. Assim, teve que se apoiar em alguns artistas e crescer junto com eles. Schmidt faz a seguinte avalia~ao da performance das grandes empresas:

Nas outms companhias existe ainda 0 conceito de urn artist.a por ano, uma revelacao por ano, nao mais do que isto. Assim, quem e 0 artista do ano? Daniela Mercury. Entao esquep os outros! Este ano pode ser do Skank, voce "descobre" qual vai ser a revelacao e concentra todas as suas energias. Voce pode ter dois, tres artistas recem-contrat.ados, mas porque nao fizeram sucesso estao literalmente esquecidos. No ano seguinte voce abre a porta. de novo e ve quem pode entrar e contrata dois ou tres novos. E cruel, mas pode dar certo. Se d. certo paga dez experiencias erradas, mas MO e uma polltica saudavel como biodiversidade. C .. ) A Odeon tinha uma politica mais liberal que nao se mostrou coerente ao longo' do tempo. A PolyGram fez isso, na epoca do Andre Midani, quando se constituiu 0 melhor cast em todas as areas da musica br.asi­leira. C .. ) A Continental tinha uma polltica s'bia de manter 0 maior numero de artistas possivel em seu cast, 150 artistas, sem dar tr.ata­mento especial, oferecendo somente a producao dos discos. Como a maior parte fazia musica serta.neja, a divulgacao se fazia com shows, e assim a companhia revelava. gr.andes artistas, como foi 0 caso de Lean-

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dro e Leonarda. Agara que a ernpresa fai carnprada pela Warner, eu aposta, e a futuro rnastrara que esta palitica cai, ( ... ) noa e justificavel em termos empresariais.

o exempla da campra da Cantinental pela Warner (1993) e a decorrente mudan~a na palitica de atua~ao e, para Schmidt, significa­tivo tanto da tendencia de concentra~ao do poder da industria fonografica mundial nas maos das transnacionais quanto da perda, por parte destas, da habilidade de prospeq:ao de mercado e de de­senvolvimento do produto. E neste contexte que ele decidiu inaugu­rar 0 selo Tinitus, em 1992, com a expectativa de criar quadros de profissionais e produtos para oferecer a esse mercado.

Schmidt procurou informa~6es sobre os independentes brasilei­ros nos anos 90 e encontrou entao varios selos, por exemplo, em Porto Alegre, Belo Horizonte, e na periferia de Sao Paulo, Kaskatas Records, Zimbabwe e )WS, entre outros, todos fazendo musica popular31. Ele percebeu que muitos dos pequenos selos existem ancorados em urn outro negocio. Os acima citados Kaskatas e)WS vern de outra area do entretenimento, 0 de casas noturnas. Importantes selos de rock, como o Baratos Afins e 0 Devil, de Sao Paulo e 0 Cogumelo, de Belo Hori­zonte, sao frutos de lojas de discos". Depois de procurar financiamen­to para seus projetos em empresas privadas e atemesmo nas leis fede­rais de incentivo a cultura, ele decidiu que 0 seu trabalho de stage manager e de produtor musical autonomo financiariam 0 negocio. 0 objetivo da empresa seria 0 de administrar conteudos fonograficos; urn departamentoindependente de Artistas e Repertorio:

31 Sabre tais selos, alguns dados apontam que, por exemplo; 0 Kaskalas Records vendeu 100 mil c6pias do disco Super Remtxdo gropo Sampa Crew (black music brasileira). que foi posteriormente contratado pela Sony Music (1994). 0 Zimbabwe, com 0 grupo Racionais Mes (rap), chegou a marca de 180 mil c6pias de Raia X Brasil, com distribui\=ao da Warner/Continental. BIZZ, Ana 10, OU 6, Edi~ao 107, jun. 94, p. 44. A ]We, que em 1990 vendeu 500 mil discos da sambista Eliana de Lima, tern 22 funciom1.rios, ecota com estrutura pr6pria de distribuit;ao (cinco vendedores) com abrangencia nadonal, tendo contatado uma media de seiscen­tas lojas. HrT, Ano I, nO 6, jul. 92, SP: Connect, p. 14. A ABPD estimava em 1995 que existiam cerca de trezentos pequenos produtores fonogrMicos no Brasil.

32 Cf. "Selos alternativos dinamizam mercado". FolhadeS.Paulo, 13-01-94, p. 4-1.

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o cantrato de trabalha que eu elabarei, aa rnesrna tempo que definia uma postura diferente na rela~ao com 0 artista, falava a lingua da grande gravadara. 0 rneu neg6cio e a rnesrna que 0 deles, enta~ eu tenho que ter pontas de cantata claros. Urna coisa que faz parte do rneu repert6ria de atua9aa e descobrir a artista que interesse a grande gravadora, que venha aqui e pergunte: quanta e?

A partir das fitas demo que recolheu durante suas viagens Schmidt contratou inicialmente cinco bandas, num procedimento tam­bern proximo ao das majors". Deu preferencia aquelas que ja tinham uma certa historia e tocassem rock, mesmo que com diferentes influen­cias (punk, jazz, soul, blues, letras poeticas e/ou intelectualizadas, sem grandes improvisos). Ele justifica assim a escolha do rock:

Isso e estilo, e onde eu falo a lingua, onde eu tenho influencias, onde eu sei 0 que se passa ... ( ... ) De 1957 a 67 fai lavrado 0 sulco no qual anda a rock no rnunda inteiro e nao mudou. Em dez anos, aquela forma de vida se propaga e sobrevive onde existe urna popula91io urbana de daze a 28 anas. Onde existe esse tipo.de popula~ao, Be nao pegou, ·mais dia, menos dia, vai pegar. De 57 a 67 a rock se irnpregnou pelas ondas de radio; com a televisao, se espalhou pelo mundo inteiro e se estabeleceu.· Existe uma musica como a de Elvis Presley, feita com caracteristicas iguais, na FinHindia, Indonesia, onde se quiser, parque as condi90es saa pa­recidas: radio, televisao, eletricidade, juventude, aSfalto. Voce pode ter uns ingredientes regionais, a lingua e outras influencias locais, mas a quimica basica e a mesma.

Schmidt gravou urn primeiro disco, Colettlnea 1, com duas mu­sicas de cada grupo, e intensificou 0 processo de divulga9ao em todo o Brasil atraves do correio, telefone, fax. Distribuiu mais de mil discos no processo de divulga~ao. No mesmo ana de 92, lan~ou discos indi­viduais de cada grupo. A boa aceita~ao dos produtos, 0 destaque dado pelos media e a veicula~ao de urn clipe do grupo Yo-Ho-Delic na MTV levaram a urna segunda prensagem dos discos individuais

33 As bandas sao: Virna Lisi, Off The Wall, Yo-~o-Delic, Beijp AA For~a e Bel.

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das bandas". A venda da fabrica da Continental provocou atrasos, interrompendo a continuidade do processo35• Contornada a crise, ele preparou a Coletdnea 2, com doze grupos, mesc1ando 0 cast com blues e MPB, mantendo os cinco iniciais. Nesse meio tempo, informa­do de que a PolyGram buscava ampliar sua atua~ao no segmento jovem, procurou a gravadora, apresentando a proposta de uma par­ceria, para incrementar a produ~ao de seu cast:

Eu .disse para eles: eu quero uma distribui~ao, s6 que eu quero uma parceria, eu quero sinergia nessa hist6ria. (. .. ) Se 0 meu produto val vender e voc~s vaoganhar muito com 0 meu produto, eu YOU ganhar um pouquinho, eu pago para nao ter prejulzo. Se euganhava 100% do que eu vendia, agora eu yOU ganhar um quarto disso. Mas eu sei que vale, porque nao adianta nada eu ganhar 100% de 7.500 discos que eu nlio vendo. Eu preciso, enta~, parar de correr all'as de dinheiro para poder trabalhar dentro da gravadora. Eu preciso que haja um interesse de voc~s em colher frutos 0 ano que vem"".

o processo de negocia~o foi longo, pois a PolyGram tinha receio de investir em um grupo e este, depois de ja conhecido, vir a ser contra­tado por outra grande gravadora, Schmidt assegurou, contratualmente, a exc1usividade para a companhia na contrata~o de seus artlstas37.

Eu queria que a PolyGram, alem de vender 0 meu disco, flzesse 0

marketing dele, porque faz 0 que eu nao fa~o; 0 meu marketing e diferenciado, eu trabalho nas beiradas. (. .. ) Eles chegam na produ~lio da Xuxa e eu nao chego, eles chegam nos homens das novelas e eu

34 Da primeira prensagern, faram vendidos 10 mil discos. 35 Quanto aos pedldos dos produtores Independentes ~s fabrlcas, Schmidt diz que

"C .. ) a fabrica esti multo fora (fo meu contrale; ela mo e urn fornecedqr confhivel. ela tern que ser urn fomecedor confHivel para as grandes. Quando_ chega urn pedido qe urn grande, 0 meu val para 0 fundo da pllh~».

36 "Eu queria despertar, ~quele emo,nolito', a rea~~o de alhar para d, de me auvir e de se mexer na minha dire~ao. Mostrar que aqui tinha lucra para eies, mas eles tinham que vir buscar, porque essa imobUidade ~ 0 grande problema. Bles nao precisam ~ mexer, eles nao precisam de mim."

37 Sobre contratos de distribuj~ao firmados entre indies e majors, ver "Independen­tes crescem ~ margem da midla". FoibadeS.Paulo, 15-07-94, p. 5-3.

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nao chego. Me interessa ter esse acesso. Do mesmo jeito que eles, como vendedores, chegam as Lojas Americanas e eu nao chego".

A"gravadora se dispos a fazer 0 marketing cobrando uma fatia do royalty do produto, 0 que foi acelto. Apesar de a polyGram ter distribuldo os doze discos do selo Tinitus nos seus dois anos de contrato de distribui~ao 0994-96)39, s6 um grupo conseguiu penetra~ao na grande midia: a banda Bel, com 0 hit Romdrlo, lan~ado em 1994, aproveitando a realiza~ao, naquele ano, do campeonato mundial de futebol. Foram vendidos 30 mil discos. Mas essa exce~ao tambem con­firmou a regra e tal f6rmula nao se repetiu. Na vigencia do contrato Tinitus/PolyGram, nenhuma outra banda mereceu 0 tratamento of ere­cido a Bel, e por mais que tivesse seus discos comercializados pelos grandes magazines, a Tinitus nao teve acrescimo de vendagem, alem dos disco da Bel. Ao contrario, a PolyGram nao conseguiu elevar 0

indice de vendas que a equipe da Tinitus alcaneava, vendendo peque­nas quantidades as lojas especializadas e a outros revendedores. Da mesma forma e contrariamente as expectativas, nenhum contrato com os grupos foi transferido para a PolyGram40•

A trajet6ria do· musico e compositor Mario Manga parece ser bastante expressiva da mudan~a que se assiste, no sentido da atua~ao de um artista independente. Dois dos grupos musicais de que faz parte, 0 Premeditando 0 Breque e 0 Musica Ligeira, lan~aram discos ou faixas em coletllneas pelo selo Tinitus. Sobre a parceria Tinitus e Musica Ligeira, Manga tem a seguinte opiniiio:

38 0 tipo de contrato buscado por Schmidt ~ conhecido no meio fonogrnfico como PMD (Prensagem, Marketing e Distribuicao). HIT, Ano I, nO 5, maio de 1992. SP: Connect Bditora. p. 10. 0 10jista e produtor f~noa:rafIco Luis Carlos Calanca con­sidera que foi a propria trajet6ria de Schmidt como produtor fonogn1fico de sucesso dentro das majors que subsidiou a decisao da PolyGram de distribuir seus produtos sem que estes tivessem sido testados pelo mercado. Bntrevista realiiada em 23-01-96. .

39 Silo ele" Coletllnea 1 e 2, Bel (Sam{1adrome), M~slca L1gelra (MUs/ca Ltgelra), Nasi e os Irmaos do Blues (Uma Noite Com ... e Os Brntoi Tambem Amam), Nomade (Nomade), Of The Wall (Free Stile), Karnak (Karnak), Virna L1si (0 que dtrlam os v/ztnhos) e Sons da Natureza (0 Mar e 0 fogo).

40 Mesmo sem estarem na grande mfdia, shows de grupos como Virna Lisi, Yo-Ho­Delic, Musica Ligeira e Karnak tSm' consegUido 'esp~Co consideravel na midia e sucesso de publico, sendo que alguns tiveram seus video-cllps veiculados na M;rv. ,

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Conhecia Pena Schmidt de longa data e, admirador de seu trabalho, convidei-o para assistir ao show. do Musica Ligeira. Ele gostou e sugeriu que gravassemos ao vivo. Foi uma experiencia muito boa e gostamos muito de trabalhar com 0 Pena. 0 problema apareceu depois, na hora de vender 0 CD. No show de lan~amento, nao tfnha­mos 0 CD para vender. 0 contrato com a PolyGram e uma faca de dais gumes, porque eles prensam e distribuem, 56 que na hora que eles querem e quanto eles querem. Realmente voc~ pode encontrar o disco emgrandes lojas, 0 que e novidade, mas na hora que acaba, voc~ nao sabe quando vai aparecer de novo, s6 quando eles quise­rem. Fizemos todos os shows de lan~amento do disco sem 0 disco. E todo mundo querendo, comprar; deixamos de vender uns bons quinhentos discos, 0 que para a gente, e bern legal. E 0 Pena estava de maos atadas, nao podia fazer nada, pois a responsabilidade era da PolyGram. Perdemos chances de divulga~ao do trabalho quando, por exemplo, fomos indicados como finalistas do Pr~mio Sharp. Isso nao foi aproveitado. Esse esquema, enta~, nao funciona para 0 artis­tao Pal':l agente, foi totalmente negativo. Se a gente estivesse total­mente independente, teria funcionado melher porque a gente teria 0

disco. A gente naotem 0 disco para trabalhar. Eu tenho urn disco e est. emprestado para a pessoa que esta trabalhando com a divulga­~ao dos shows que estamos fazendo.

De seu posto, mas padecendo dos mesmos problemas de Man­ga, Pena Schmidt decidiu colocar urn fim no seu contrato com a PolyGram. Credita a insuficiencia da parceria a urn desajuste com 0

departamento de vendas da major, que concentra suas a~oes somente nos tltulos extremamente vendaveis do catalogo, sem interesse de incentivar as novidades41. Apesar de considerar que os produtos da Tinitus receberam tratamento adequado em termos de marketing, ele pensa que os interesses da companhia estilo voltados para propostas musicais de retorno assegurado. Tern, agora·um contrato de distribui-

41 Lufs Carlos Calanca, na entrevista citada, conta que os representantes do departa­mento de vendas das grandes gravadoras nao costumam mostrar os catalogos dos pequenos selbs, sendo necessario que 0 lojista os peca, tendo, muitas vezes, que insistir. Os vendedores nao tem interesse em vender porque de tais selos 0

lojista certamente comprara poucos exemplares.

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~ao com a gravadora Velas, uma empresa nacional em franca expan­sao, que atua na area de MPB4~. Schmidt acredita que muitos selos indies tern deixado seus contratos de distribui~ao com as majors. Para o empresario, a alternativa parece estar na reuniiio de pequenos e medios para veneer 0 problema da distribui~iio.

Tabela VII. NUMEROS DO SELO TINITUS - 1994-1995

Tinitus 1994 1995

Cast 07 11

Discos Produzidos 17 23

Vendagem 7.000 10.000

Faturamento R$ 30.000 R$ 30.000

Fonte, Pena Schmidt Produ\Xjes, sp, 09-01-96

Realizando urn balan~o das mudan~as fundamentais pelas quais a atua~iio dos musicos independentes passou nesta ultima decada, Mario Manga faz as seguintes considera~oes:

Tudo ficou mais filcil em termas de produ~ao. Aqui na minha casa eu tenho urn estudio onde eu jll. gravei 0 disco do In'cio Zats, 0 disco do Paulo Freire, que e urn disco de viola caipira, gravei a trilha sonora do

filme "No Rio das Amazonas", do Ricardo Dias, ~nhamos 0 Kikito

[pr~mio do Festival de Cinema de Gramadol de 95 pela trilha, gravei varios audios promocionais da ultima Sienal, entao e 'assim, a gente

entra e faz. Com uma condi~ao tecnica legal, V?Ce faz 0 seu disco

assim, na sua casa, com calma, se 113.0 gostou voce corrige, faz tudo de

novo, se for 0 caso, sem se preocupar com 0 tempo de estudio que

esta correndo. 0 produto cheg. com uma qualidade legal e e mais

42 A Gravadora Velas, de.propriedade dos compositores Ivan Lins e Victor Martins, nasceu do selo Velas. A boa aceita~o dos produtos lan~ados, a maioria no segmen~ to MPB e no de musica instrumental, definiu a transformacao do selo em gravado­,.t: UChegamos a conclusao de que seria mais vantajoso assuminnos a condicao de gravadora, produzindo e distribuindo nossos produtos para 0 Brasil, Estados Uni~ dos, Europa e ]apao", diz Ivan Lins. Hn; ano 1, nO 3, fev. 92. SP: Azul, p. 17. Em 1995, a ABPO tinha a inten~ao de convidar a empresa para fazer parte de seus quadros, ate enta~ ocupados somente por grandes empresas.

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ISO Os edonos da voz

barata. Antigamente, voce! fazia 3 mil c6pias em vinil e ficava muito mais caro do que, hoje, voce fazer mil CDsj sern contar que eles faziam os discos independentes com urn tipo de sobra do vinil e isso alterava a qualidade, e a qualidade do seu CD independente e muito boa. Entao 0 produto final e mais vendavel, pois a qualidadeesta assegura­da, para urn publico que procura qualidade. 0 problema vern depois, pois voca nao tern como vender 0 produto. E claro que eu quero estar numa grande gravadori, mas 0 problema e que 0 meu produto e diferente do que 0 que eles vilo querer.

E importante notar, no depoimento de Manga, amaneira co.mo. ele co.nserva tra~os da atitude independente exercida no.S ano.s 80. Ao. mesmo. tempo. que sauda as facilidades tecnicas' atuais e vivencia as particularidades do. atual mo.mento. da pro.du~ao. fo.no.grafica indie, ele defende 0. USo. de procedimento.s facilitado.res da distribui~ao., tais co.mo. a venda de discos em sho.ws. Lembra, ainda, 0. prop6sito. das majo.rs de resistir e mesmo. nao. aceitar 0. tipo. de musica que faz, 0.

que impede que tal variedade musical co.nquiste seu lugar, mesmo. em urn mercado. altamente segmentado. co.mo 0. atual.

A atua~ao. de Schmidt se deu a partir de uma 16gica distinta da das indies do.S ano.s 80. Buscando. uma reta~ao. mais arro.jada co.m as majo.rs, ele naci So.fistico.U o.S mecanismo.s de difusao. alternativo.s que desenvo.lvia, ao.s quais se referiu co.mo. "co.mer pelas beiradas". o seu prop6sito. era o.utro., co.mo. expresso.u co.m clareza Singular. Ao. investir nesse tipo. de parceria, 0. fez de fo.rma so.fisticada. No. entanto., a experH!ncia do. co.ntrato. Tiriitus/Po.lyGram mo.stra 0.

desco.rnpasso. entre indies e majo.rs, rnesmo. que as primeiras apre­sentem produto.S co.nhecido.s na sua fo.rma, pro.duzarn mercado.rias que o.bedecem ao.s padroes aceitos pela segmenta~ao., limltando.-se ao. lan~amento. de no.mes ainda nao. co.nhecido.s do. grande publico.. Estar no.s grandes magazines nao. significa cativar urn no.vo. co.nsu­mido.r, ele mesmo. co.ndicio.nado. a busear, no. mercado., produto.S co.nhecido.s e co.nsagrado.s. Para Pena Schmidt, o.S independentes do.S ano.s 80 nao. eram independentes e sim autono.mo.s, no. sentido. de que promo.viam.iniciativas iso.ladas de pro.du~ao. fo.no.grafica. Os do.S ano.s 90 sao. o.S verdadeiros independentes. Ao. meu ver, as indies do.S dias atuais 'sao. a expressao das micro.empresas terceirizado.ras de servi~o.s, tao. peculiares deste tempo. de glo.baliza~ao., atuando. no.

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o espa~o. da pro.du~o independente lSI

seto.r fo.no.grafico.". Nesse sentido, elas Po.dem ser qualificadas co.mo. independentes, se co.nsideradas as co.ndi~oes de produ~ao, cada vez mais favoraveis. As nuan~as sao. fundamentais, mas 0. fato. e que, autono.mo.s, independentes o.U alternativo.s, to.do.S buscam co.ncorrer no. grande mercado..

4. Baratos afins: 0 alternativo como segmento

Foi em meado.s do.S ano.s 1970 que Luis Carlo.s Calanca co.me­~o.U seu comercio. de discos, a Barato.s Afins, na regiao. central da cidade de Sao Paulo., nas Grande. Galerias da Rua 24 de maio., ho.je tradicio.nal p61o. co.mercial do. seto.r". Calanca especializo.u sua atua­~ao. no. ro.ck'n roll, musica brasileira e jazz, e a qualidade do. seu esto.que desperto.u grande interesse, inclusive no.s media. No. final do.S ano.s 70, em pleno. auge da dance music, ele primava pela atitude co.ntestat6ria: fez urn "tapece" de disCo.S do. estilo. em sua lo.ja; as pes­so.as, ao. entrar, tinham que pisa-lo.s. "0 pesso.al chegava e ado.rava pisar na Do.nna Summer", co.nta, referindo.-se 11 famo.sa canto.ra do. ganero. Desde entao., tern caminhado., praticamente, no. co.ntrafluxo. da mo.vimenta~ao. do. grande mercado., Po.r mais que 0. principal filao., 0. rock, seja urn de seus grandes mo.to.res. 0 fato. e que Calanca, co.mo. lo.jista, tern uma Po.stura critica perante 0. mercado. e faz dessa Po.stura a sua estrategia de trabalho..

Desde que registro.u sua lo.ja no.s departamento.s de v"ndas das gravado.ras, Calanca estabelec:eu urn relacio.namento especial co.m eles. Co.nseguiu, em varias o.casioes, que gravado.ras co.mo. a Po.lyGram e a Co.ntinental fizessem 'prensagens de disCo.S de artistas brasileiro.s, cujas tiragens estavam esgo.tadas (Secos e Mo.lhado.s, Luis Melo.dia, To.m Ze, Walter Franco., Mutantes, Jo.rge Mautner, So.m No.SSo. De Cada Dia, Rita

43 Impressiona 0 gtau de padroniza~fto e estandardiza~~o apresentado por algumas empresas Independentes, como por exemplo a Paradoxx Music. Com uma atua~ ~ao agressiva no mercado de coletaneas, que Vao do samba it rnusica elecrOnica, tern se tornado conhecida por estabe1ecer disputas por direitos de comercializa~o de produtos estrangeiros com as grandes gravadoras. Ver, por exemplo, "Modelo americano inspira novos selos". Folha de S.Paulo, 13-01-94, p. 5-6.

44 Foram r~alizadas duas entrevistas com 0 empresario e produtor fonogrnfic::o Luis Carlos Calanca, em 17c07-93 e em 23-01-96. Os trechos citados foram extraidos das entrevistas .

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Lee), sendo que para alguns conseguiu direitos exclusivos de comercializa~ao. 0 logotipo de sua empresa vinha estampado na capa do disco, indicando a tiragem exclusiva. No entanto ele considera que se tivesse tentado negociar tais tiragens junto aos executivos, nao teria conseguido; com os vendedores, e tudo uma quesrao de garantir o pagamento dos servi~os:

A gravadora exigia uma prensagem minima de 3 mil e6pias para co­brir custos e obter lueras. Entao, eu fiz urn pacta CO~ eles onde, se ao fin~~ de tres meses eles nao tivessem vendido 0 total daqueles discos, eu compracia todo 0 ·saldo, por urn pre~o, obviamente, mais acesslvel. Eu nunca pude comprar esse saldo, porque nunca sobrou, senda que algu~as coisas flaO salram mais de catalogo.

o conhecimento que tem do mercado, a partir da perspectiva do lojista, subsidia seu trabalho como produtor fonogriifico indepen­dente. 0 selo Baratos Afins foi criado em 1982 a partir da inten~ao de lan~ar 0 disco de Arnaldo Baptista, ex-integrante do grupo Mutantes, no tempo em que 0 musico estava hospitalizado, depois de uma suposta tentativa de suiddio. Grande admirador do trabalho de Baptista, Calanca aceitou a proposta de lan~ar 0 disco Singin alone, que alias, ja estava gravado". Ate janeiro de 1996, 0 selo contava com 56 lan~amentos. 0 suporte e 0 vinil, mas' os quatro ultimos sairam tam­bem em CD. Ele continua conseguindo relan~amentos exclusivos, como e 0 caso de. tres discos de Itamar Assump~ao, lan~ados pela Continental. De suas produ~oes, vendeu aproximadamente 37.600 diSCOS, sendo que as maiores vendagens ficam na marca de 8 mil c6pias; como na coletanea S.P. metal - Vol. Ie Descansa em paz, do grupoRatos de Porno. .

Sua experiencia nessas duas esferas do mercado fonogriifico produz uma visao pouco otimista, sobretudo do relacionamento en­tre indies e majors:

E como celVeja: nao pade aparecer uma cerveja boa no mercado que a Brahma vai hi, compra e coloca.o seu r6tulo neia, nao importa onde e a

45 Sobre a trajet6ria dos Mutantes, ver 0 Hvco A dtvina comedta dos Mutantes, de Carlos Galado, ja citado.

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o espa~o da produ~ao independente 153

f:1bricaj isse sempre fei assirn, aparece alguem fazendo sucesso, eles caem em cima.feito 10UC05. E eu nao gosto do termo "independente", pois a gente e muito dependente, em tudo. Depende de fabrica, de grafica e de estddio das majors ou de terceiros. Os independentes no Brasil nao existem. Se houvesse uma maneira eficiente de distribui~ao, se 0 correio funcionasse bern, ainda poderia existir urn mercado de independentes. Vamos ver se com a Internet 0 Brasil acorda. Existe ainda um grande descaso por parte dos colegas lojistas. Para pegar um disco independente da gente, eles acham que estlio fazendo um grande favorj muitos nao pagam quando vence 0 prazo de trinta dias. Com uma grande gravadora eles nao fazem iSso, porque se ele faz isso com uma, perde 0 crectito com todas, pois e uma mafia rnesmo. Urn tipo de com­portamento pouco etieo: a antiga CBS, hoje Sony, era campea em em­purrar pradut05 em pacotes. Para comprar urn determinado disco de rock, voce tinha que comprar discos da Angelica, ou qualquer outro artista do genera, s6 para citar urn exemplo. Entao, eu deixei de com­pn!.r discos da Sony h:1 uns tres anos, eles mandavam discos errados, era a maior desorganiza~o. Eu ja estava me tornando urn cara chato para eles, de tanto reclamar, enta~ deixei de comprar discos deles e passei a . comprar no mercado. externo, importado, sem problemas e por urn pre~o bern mais acessfvel que no mercado brasileiro.

No momenta em que a industria fonogriifica ganha milhoes de d6lares com 0 compact-disc que, como apontamos, alem de ser um produto mais caro tem feito 0 consumidor renovar suas discotecas, substituindo os itens de vinil por aqueles em CD, Luis Calanca tem investido em seu estoque de discos de vinil, sempre atuando nos segmentos rock, jazz e musica brasileira. Mas nao e 0 fato de 0 Brasil ter um dos maiores mercados consumidores de LPs do mundo que motiva a escolha de Calanca. Seu cliente prefere 0 vinil, pelas mes­mas particularidades que fazem com que outra parcela do publico 0

exclua: as "imperfei~oes" da grava~ao sao como marcas deixadas pelo trabalho artistico, como um cadinho de artesanalidade persistente, que 0 CD nao tem.

Eu ganho dinheiro vendendo disco de vinil, mesmo depois do boom do CD. Agora ja nem estou ganhando tanto, mas ja ganhei bastante dinheiro, porque ninguem quer mais trabalhar com vinil e eu aposto

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no vini!. Este papo de que tem chiado, de que ficou velho, dizem que o vinil e obsoleto, mas eu acho que nao tern coisa mais linda do que

ver a agulha pousando no acetato. Foi s6 aparecer 0 disco digital, muita gente passou a recusar 0 vlni!. Aqui, eu ofere~o CD em troca de vinil. Para mim, foi muito born ·0 momento em que eu comecei a trocar disco de vinil por CD. Eu tive que comprar um outro im6vel para guardar as meus discos, minha cUscoteca enriqueceu demais, consegui muitos titulos que eu procurava'. Agora, e uma situa~iio que nao tern volta, daqui a pOllee e 0 CD que vai morrer, vai ser substitui~

do por Dutro formato e, a cada cinco, seis anos, vai aparecer uma nova tecnologia no mercado46.

o produtor alerta para estragos que estariam sendo feitos as obras originais no momento da transforma~ao do som anal6gico em digital, por meio da remasteriza~ao. Detalhes esteticos, complemen­tos, sutilezas, pequenos ruidos, pausas, ate mesmo pequenas gafes dos musicos, que integravam a grava~ao original registrada em vinil, teriam sido muitas vezes desconsiderados e ate mesmo apagados. Dos muitos exemplos que cita, Calanca diz que a remasteriza~ao do disco do guitarrista Jimi Hendrix, War heroes, contem uma falha irrepariivel: "limpou-se" do disco a performance do baixista e do ba­terista que acompanhavam Hendrix, transformando-o num disco solo.

Entretanto, Calanca considera que 0 avan~o da tecnologia pode fazer com que a musica desapare~a. Para que isso nao aconte~a, ele pensa que todos os equipamentos digitais deveriam ser substituidos por outros anal6gicos e, depois de muito estudo, seria possivel trazer de volta 0 soul, a alma para a musica. Diz ainda nao acreditar em crise de criatividade: "C .. ) as coisas boas estao no mundo, mas e dif1cil encontrii.-Ias" .

A analise dos exemplos de companhias e selos independentes apresentados, se nao nos permite elaborar conc1usoes sobre a real dimensao do trabalho das indies no contexto geral da industria fonogriifica na atualidade, pode, ao menos, indicar que tais empresas constituem celeiros de produ~ao fonogriifica que podem conter, em alguns casos, preciosidades capazes de levar a uma produ~ao real-

46 cr. tarnbern 0 texto de Calanea "Que voltern os bolachiles". VlUA, 12-02-92, p. 86.

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o espa~o da produ~ao independente 155

mente diferenciada. Se a indie dos anos 90 explora fatias de mercado consolidadas e repete f6rmulas instituidas e consagradas, resta apos­tar no esgotamento desse esquema e ter sempre em vista as experien­cias frutiferas de alguns independentes que, ao buscarem conquistar um lugar no mercado, 0 fizeram de uma maneira diferente, com pro­postas esteticas contestadoras do que ern instituido pelo grande mer­cado e, sobretudo, com criatividade, mesmo que nao tenham sid.o portadoras de inova~ao. Finalmente, lembrar uma ideia de Adorno, que ao questionar a efetiva existencia do progresso pondera: "Coo.) cada pequeno abalo no nexo universal de ofusca~ao e relevante para o seu possive! fim"".

47 ADORNO, T. W. "Progresso". Lua Nova, nil 27, SP: Marco Zero, p. 217~236, 1992, tradu~i!o de Gabriel Cohn. A cita~o E da p. 222.

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Aspectos da difusao

Grande e a complexidade das questoes relativas a difusao das mercadorias musicais, sobretudo no contexte da cultura mundializada. A esse espa~o e, muitas vezes, creditada a responsabilidade de orien­tar a produ~ao, a partir da cren~a de que 0 sucesso de vendas e resultado da natural elei~ao do publico. Ao contriirio, vende-se urn produto a partir da intensidade e alcance de suas· tecnicas de difusao e marketing. Assim, a difusao e, por excelencia, urn espa~o de mercado, 0 inicio da liga~ao direta entre 0 produtor e seu consumi­dor potencial. Por seu intermedio, ocorre uma especie de antecipa­~ao do ate de comprar, urn consumo aleat6rio ou, muitas vezes, com­puls6rio, efetuado no momenta em que se escuta uma can~ao, que nao e produto direto da escolha e/ou da participa~ao autonoma no processo. Considerando a amplitude e complexidade do tema - que, como adverti, poderia ser, ele mesmo, objeto de urn estudo especifi­co - neste capitulo final gostaria de apresentar algumas questoes so­bre a difusao, que considero essenciais a compreensao do objeto que procuro analisar. Elas sao relativas aos veiculos utilizados e as respecti- . vas tecnicas empregadas'.

Consideremos, entao, a difusao como espa~o de mercado que antecipa, complementa e direciona 0 consumo. A apontada sincronia entre os varios media, ao permitir que a musica esteja continuamente presente no radio, televisao, cinema, publicidade, teatro e outros, possibilita que se realize 0 citado consumo aleat6rio e, por vezes, compuls6rio, que pode ou nao materializar-se na compra da rnerca-

1 Alguns autores usam 0 (ermo "distribui~o~ para referirem-se a duas dimensOes distintas da etapa preliminar a venda dos produtos: sua distribuicao ffsica aos pontos de venda e sua veicula~o peJos varias meios de camunica~o institufdos, para fins de publicidade e marketing. 0 interesse espedfico nessa segunda di­mensao justifica 0 usc. dt;> tenno "difusao" para 0 tratamento da questao. Agrade­~o a :eduardo Vicente a oportunidade que tive de, com eie, discutir algumas das ideias sabre difusao.

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doria. 0 radio tem importancia fundamental na realiza~ao desse pro­cesso, por mais que 'seu alcance, como meio, tenha sofrido profundas mudan~as nos ultimos tempos.

No Brasil dos anos 50, uma estacao como a Radio Nacional do Rio de Janeiro ja atuava como um grande meio de comunica~ao de massa, reunindo'varias caracterlsticas, proprias as modernas empre­sas do setor: "APRE 8 possula uma organizacao empresarial altamen­te centralizada e administrada atraves de departamentos com fun~6es definidas, nao recebendo financiamento oficia!. Era sustentada por verbas publiCitarias, 0 que nas epocas aureas the permitia manter uma equipe enorme, com salarios excelentes e ainda reinvestir os lucros na propria organiza~ao"2 ..

A partir de urn projeto coeso de atua~o, a Radio Nacional possuia urn cast consolidado 3 e transmitia programa~ao diversificada, com radio­novelas, programas de auditorio, noticiario, programas especiais de renomados artistas, programas humoristicos, tendo instituldo ainda uma forma peculiar' de publicidade, os anuncios cantados·. A programa~o tornou-se a sua marca, 0 seu estilo, por mais que MO tenha, obrigatoria­mente, nascido dentro dela. Aiem de explorar v:irias areas do entreteni­mento, e posslvel perceber indicios de segmenta~ao'. Sao igualmente notaveis as estreitas rela~oes que 'ela estabelecia com a industria do disco, mas estas MO se 'restringiam ao ambito do marketing dos artistas e seus produtos. A musica era tambem urn meio eficaz para a conquista da fidelidade a progl'lirna~ao. Nesse sentido, os programas de audit6rio eram urn tipo especial de mercadoria, mas frequenteinente seu objeto central era 0 anunclante, a divulga~o de urn deterrninado produto; 0 artista

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5

GOLDFEDER, M. PorlrtlsdasondasdaRddfoNactonal. RJ: Paz e Terra, 1981, p. 42. Goldfeder apresenta os seguintes mlmeros, relativos a meados eta d~da de 50: "Oito diretores, 240 funcion<irios administrativos, dez maestros e arranjadores, trlota locutores, 124 musicos Cdivididos em tr@s orquestras), 55 radioatores, quarenta r.l.dioatrizes, cinqUenta cantores, 45 cantoras, dezoito produtores C",)", Idem, p. 43. Yer TINHORAO, }. R. MtlsIca popttlar: Do gramofone ao radio e TY. SP: Alica. Ensa{os, nil 69. 1981, p. 88~105. "(, .. )-a imagem Marlene construfda principalmente"pela"'Mdio Nacional e Revista do Radio acabou penetrando ilas camadas sociais fruidoras do mito Emilinha numa tentativa de criar opc6es para a mesma faixa de publico sem no entanto' atender a expectativas radicalmente diversas .... GOLDFEDER, 1981, ~. 75. '

Aspectos da difusao 159

podia ser um simples veiculo. De qualquer forma, 0 meio acabava por testar e revelar produtos e artistas diversos, atuando como produtor de mercadorias musicais.

Tal como vimos, 0 advento da televisao foi, gradualmente, de­terminando 0 decllnio do radio como meio privilegiado de comunica­~ao. 0 apelo trazido pela imagem e todos os seus desdobramentos e possibilidades tecnicas, esteticas e mercadol6gicas fez da televisao 0

meio preferencial dos anunciantes, mesmo durante sua expansao. Mas 0 radio tern se mantido, buscando alternativas de sobrevi­

vencia. Nos anos 70, seu perfil estava totalmente reformulado: tinha deixado de ser produtor e difusor de mercadorias culturais espedfi­cas, para tornar-se somente difusor, convertendo-se num espaco pri­vilegiado do mercado de bens culturais, sobretudo os musicais. A redu~ao de investimentos publicitarios l!!vou as emissoras a vender seu espa~o para a divulgacao de produtos fonograficos. Essa pratica, ja tradicional e largamente difundida, e conhecida no meio com 0

nome de jabacule(ou jaba')6 e tern se aperfei~oado a cada dia, adqui­rindo, inclusive, urn novo perfiL

Em meados da decada de 70 a programa~ao de radio se diver­sificou; com a consolida~ao do sistema de transmissao em frequencia modulada (PM), e varias emissoras passaram a atuar em fatias esped­ficas do mercado de musica. As experiencias iniciais da .Bandeirantes PM, assim como mais tarde, no final dos anos 70 e inlcio dos .80, a das radios Excelsior, do sistema Globo e Difusora, da rede Tupi, demons­traram as possibilidades de realiza~ao de programas com padrao dife­renciado. dirigido a um mercado predominantemente jovem. Outras, como a Pluminense PM, passaram a investir no segmento alternativo, veiculando, em meados da decada de 80, programa~ao ligada ao rock nacional emergente'. Atualmente, grande parte das emissoras ainda tern, como principal atra~ao, os programas musicais, por mais que a vigente segmenta~ao do mercado tenha trazido outras areas de inte­resse para 0 meio, .como, por exemplo, emissoras especializadas em notlcias e programas religiosos.

6 Para a palavra "jabacul~"', 0 Dfciondrlo Aure#o ~~nfere 0 significado de gorjeta e de dinheiro. cr. A","1I0. 2' edi~no, 1986. R}: Nova Frontelra. Nos EUA. 0 jabd e conhecido como payolla. cr. DANNEN, 1990. p. 3-11.

7 Como encontramos em GROPPO, 1996, p. 198.

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E a pr6pria segmenta0io que revitaliza 0 radio, nos anos 90, por mais que 0 investimento publicitario no meio nao apresente cres­cimento" e desde 1990 tenha caido significativamente: em 1990, do total investido foi dispensado ao radio uma porcentagem de 9%; em 1992, 5%, e em 1994, 4%9. No entanto, 0 volume dos investimentos em publicidade cresce espantosamente, como vemos na Tabela VII!. A concentra~ao e urn movimento crescente tambem nessa area. Mui­tas emissoras sao subsidiarias de grandes redes, como 0 Sistema Glo­bo, a Rede Jovem Pan, Rede Transamerica, Rede Bandeirantes muitas delas transmitindo via satelite, buscando maior alcance para a 'progra­ma~ao gerada nos gran des centr~s, que atraves de receptoras e l'etransmissoras locais, distribuidas por todo 0 pais, podem fazer retornar parte dos investimentoslO.

Tabela VIII. INVESTIMENTO PUBLICITARIO POR MEIO: BRASIL - 1990-1995 (em milhOes US$)

Ano Investimento Televisio Radio Revista Jorna! Outros·· 1990 2,549.5 52% 9"16 10% 26% 3% 1992 2,132.0 59% 5% 8% 24% 4% 1994 3,873.0 57% 4% 8% 26% 5% 1995' 5,518.0

Fonte: Mfdla Dados (1995). SP: Grupo de Midia, p. 44. • Dados por meio: naD disponfveis. .. Inclui outdoor, cinema etc.

Quando 0 assunto e 0 jabd, as informa~oes residem nOma zona nebulosa, ou numa especie de buraco negro. Mesmo a imprensa nao costuma tratar do assunto freqOentemente, talvez porque 0 jabd seja

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"0 r3di~ ~sta fraquinho porque vende mal, ou vende mal porque esta fraquinho? Empresanos, anU,nCiantes, profissionais, gravadoras, sindicatos, industria, gover­no (se eu esquecl de alguem pode passar no guiche la do subsolo e pegar a sua parte na culpa, de preferencia entre 19 e 20 horas, quando nao tern ninguem ~l'estando aten~ao), a pergunta esta no ar," In: ROMAGNOU, L. H. "Emissoro:ls tern pl'essa do satelite". HIT, Ano 1, nil 1, dez·91, SP: Azul, p, 23, In: Mldta dados .. SP: Grupo de Midia, 1995, p. 44.

10 cr, "Agora no ar, via satelite"," Hn; Ano 1, nO 4, marco de 1992, SP: Azul, p, 14-15,

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Aspectos da difusao 161

pratica pr6pria a toda a industria cultural. 0 assunto pode aparecer enviesado, em notfcias de conflitos entre artistas e gravadoras, em de­mlncias de falhas nas campanhas de marketing. Em rara materia sobre o tema, 0 jornal Folha de S.Paulo noticia que as gravadoras brasileiras haviam decidido patar de pagar as radios a execu~ao de suas musicas. A partir do que seria a primeira confirma~ao publica da existencia do jabd, 0 entiio presidente da ABPD e, Ii epoca, presidente da BMG­Ariola, Manuel Camero, afirma que: "As gravadoras estavam dando a varias radios importancias para que fossem feitos 'spots'. Em contrapartida, as gravadoras eram aquinhoadas com a execu<;ao de suas musicas. ( ... ) Algumas radios diziam que para executar tal musica era precise gastar determinada quantia. ( .. .) A culpa de tudo isso nao e da radio, e da gravadora. Ela comprava antigamente 0 disc-j6quei, di­gamos, por R$ 2 mil, que era barato. 0 dono do radio viu aquilo e passou a querer a sua parte, mudou a regra do jogo. Poi a oficializa~ao do que acontecia antes, s6 que de maneira bem-feita pelas radios. S6 que elas burramente extrapolaram"ll.

o executivo avalia que cada emissora recebia mensalmente em torno de R$ 10 mil de cada gravadora que requisitasse 0 espa~o para seus produtos, podendo a quantia ser maior, para as emissoras de grande audiencia. Nao raro, eram oferecidos carros ou viagens para a realiza~ao de concursos e promo~oes.

A quantia assinalada deve ser muito maior. Pude apurar infor­malmente que, numa negocia~ao feita entre urn musico independen­te e a radio Musical PM, cinco execu<;oes diarias de uma mesma mu­sica, durante um mes, estavam cotadas em R$ 10 mil. Ou mesmo uma outra cota~ao de R$ 2,5 mil para umaexecu~ao diaria durante urn mes, numa emissora especializada no genero pagode. Quando do lan~amento de discos de artistas consagrados, como Daniela Mercury, Paralamas do Sucesso ou Skank, as emissoras chegam a tocar uma media de dez vezes por dia a mesma can~ao, ou as mesclam com outros hits conhecidos dos mesmos artistas12• 0 musico e produtor musical Skowa confirma tal configura~ao do esquema:

11 "Gl"'.lvadoras decidem acabar com 0 jabacule", Folba de S.Paulo, 07-()8..95, p, 5-1. 12 "A estrutura do material musical requer uma tecnica peculiar, atraves da qual ela

e imposta. Esse processo pode ser aproximadamente definido como ''plugg~ng'' C .. ). 0 termo plugging tinha originalmente 0 estreito significado da repew;ao incessante de urn hit particular, de modo a tom~-lo 'urn sucesso'. N6s aqui 0

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162 Os donos da voz

Eles chamam de venda casada. A gravadora vai lan~ar urn disco de uma banda nova. Uma rddio aceita lancar 0 disco. Faz urn acerto, com a gravadora, de nove execu~oes por dia, durante urn tempo. Podem

ainda negociar a exdusividade da execu~ao naquela r'dio. Outra t.ti­ea e a seguinte: usaf os agrados, por exemplo, comprar uma Ninja e dar para a r.dio sortear, fazer a promo~ao. Voce s6 consegue furar isso da seguinte forma: ou vOCe e medalhao, enta~ eles sao obrigados a tocar, ou voce e adotado pela mldia impressa e eles sao obrigados a toear para oao ficarem-fora do circuito. Do contraria, voce paga"13.

Se considerannos a opiniao de urn proprietario de emissora de radio, talvez possamos conc1uir que a ABPD pode ter buscado, somen­te, rever as bases de sua negocia~ao com as emissoras. Se resolvessem acabar efetivamente com 0 jaba, as conseqilencias seriam desastrosas, para ambos os lados. E assim que Ant6nio Augusto Amaral de Carvalho Pinto, conhecido como Tutinha, urn dos proprietarios da Rede Jovem Pan, explica a questao da divulga~ao fonografica: "Nao e jaba. A gente faz urn projeto de implanta~ao de urn produto no mercado. C .. ) Jaba e pegar urn menino que trabalha na radio e dar urn video, dinheiro ou uma viagem para 0 cara tocar a musica, sem a dire~ao da radio saber. Em urn acordo para implanta~o de urn produto, a musica pode entrar ou nao na programa~ao. As vezes entrava, e 6bvio. A gravadora nao vai mandar urn ouvinte para Nova York para assistir 0 show do Duran Duran se voce nile tocar a musica. Eles e que impoem esta condi~ao. C .. ) Nao tenho a obriga~ao de toear 0 Gabriel, 0 Pensador. Se acham que a Jovem Pan, que tern 15 milhoes de ouvintes, deve toear 0 Gabriel, vamos fazer uma prom~o, ou enta~ eu nao toco. Chico Science e urn produto que nao ecomercial. E muito dincil tocar nas grandes radios. Quer tocar 0 Chico Science? Entao vern e faz 0 investimento. Vamos fazer uma promo~ao, mostrar que 0 disco e legal, igual na TV. C.') Relacionamento entre gravadoras e radio e uma via de duas maos. Eles

usamos no sentido amplo, de uma continua~o do processo inerente a composi­~ao e ao arranja do material musical. A promocao pelo plugging C .. ) almeja quebrar a resist~ncia ao musicalmente sempre-igual ou identica, fechando, por assim dizer, as vIas de fuga ao sempre-igual. Isso leva 0 ouvinte a extasiar-se com o ineviul.vel eleva, assim, a institucionaliza~a.o e a estandardiza~a.o dos pr6prios habitos de audi~ilo." In: ADORNO. SMP, p. 125.

13 Entrevista com Skowa, SP, 03-08-95.

Aspectos da difusao 163

fecharam uma e querem que a gente implante produto novo. C .. ) Quem e 0 corrupto? E quem dii 0 jaba ou nao?"I'.

Por outro lado, ainda e possivel observar a rela~ao inversa, e ha quem credite 0 boom atual do pagode a atua~ao de uma radio: a FM Transcontinental, de Mogi das Cruzes-SP, que conquistou altos indices de audi~ncia em Sao Paulo explorando esse estilo de sambals. A partir de entao, todas as gravadoras cuidaram para ter grupos de pagode em seu cast, definindo uma rela~ao inversa ao que foi visto ate aqui. 0 radio apareceria, tambem, como revelador de modas musicais. No entanto, 0 local do epicentro parece nao alterar as ca­racteristicas do fen6meno ese, de fato, modas musicais surgem de outros pontos produtores que nao a industria fonografica (como se pode ale gar, por exemplo, com respeito ao funk e ao charme cario­cas), a obediencia servil a 16gica do standard e 0 conseqilente alcan­ce imediato de mercado diluem a autonomia de tais iniciativas. De qualquer modo, e freqilentemente observado que grande parte das emissoras prefere aderir as modas subsidiadas pela industria fonografica, mudando regularmente toda a sua programa~ao em fun­~ao delas, permitindo assim, a expansao irregular da segmenta~ao. E raro identificar uma emissora pelo segmento musical no qual atua, uma vez que tal segmento muda constantemente, como acontece, por exemplo, em emissoras de grande audiencia como as FM Gazeta, Nova, Manchete, Band, Cidade, Transamerica, Jovem Pan 2, entre outras, tomando a cidade de Sao Paulo como referencia.

Alguns analistas veem 0 trabalho dos profissionais do radio como estando extremamente empobrecido. 0 jornalista Luiz Henrique Romagnoli afirma que "C.') os disc-j6queis ganham mal, em compensa­~ao sao muito mal preparados C .. ). A lingua portuguesa e apenas opcional e 0 Ingles padece diariamente de destroncamentos verbais. A culpa nao e s6, individualmente, desses jovens que querem brUhar no eter. As emissoras de FM, escaldadas pelos exemplos delirantes de participa~ao meio a meio de comunicadores de AM [tais como Eli Correa e Paulo Barbosa] na verba publicitaria de suas empresas, nao querem alimentar estrelas C .. )"16. Dessa forma, a figura quase rornantica do disc-j6quei, que

14 Folha de S.Paulo, 07-08-95, citado. 15 De acordo com informa~oes obtidas na entrevista com Carlos calado, jd citada. 16 HIT, Ano 1, n' 5, 05-92, SP: Connect, p. 14.

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conhecia as musicas, selecionava-as e as anunciava com informa~6es sabre sua hist6ria, seu compositor, cantor, disco etc., praticamente nao existe mais. Em geral, a sobrevivencia desse tipo de profissional esm restrita a algumas emissoras extremamente segmentadas, como,ate pou­co tempo atras, a Brasil 2000 PM, especializada em rock, e a Radio Culrura AM e PM. Uma emissora como a Musical PM, que tem sua pro­grama~ao inteiramente voltada para a musica popular brasileira, veicula programas especiais, enfocando a vida e a obra de deterrninados artistas. No entanto, tais programas adquirem um carater essencialmente mercadol6gico, por estarem explicitamente ligados a lan~mentos/divul­ga~ao de discos e/ ou espemculos dos artistas escolhidos.

Mesmo 0 processo de legitima~ao da can~ao, desencadeado pe10 disc-j6quei ao escolhe-la e ao referenda-la, segue hoje outros caminhos. Temos em seu lugar 0 apresentador de um roteiro e de um texto pre-estabelecidos, preparados pelo diretor de programa~ao e/ ou redatores. A repeti~ao planejada, sofisticada e constante, torna-se a regra da difusao. As exce¢es atendem a expectativas espedficas do processo de segmenta~ao. Vale lembrar a previslvel espontaneidade de alguns programas ou spots humorlsticos de emissoras PM de Sao Paulo, tais como Band PM, Jovem Pan 2 e Transamerica PM. A infor­ma~ao musical propriamente dita parece ter sido banida das emisso­ras de radio nos dias atuais, mesmo se considerada aquela previa­mente acertada com os patrocinadores.

Mas a divulga~ao por meio do radio simboliza apenas 0 caso classico de difusao do produto musical. Atualmente, 0 marketing do artista e feito em toda a industria culrural, muitas vezes com alcance internacional. A divulga~ao feita num velculo espedfico s6 se realiza no caso de 0 produto apresentar particularidades muito definidas. Assim, a televisao e um dos meios que mais recebe investimentos dos departamentos de marketing das gravadoras, e jii tive a oportunidade de salientar a importancia das trilhas sonoras como ve1culo de divul­ga~ao musical.

Considerando 0 conjunto da programa~ao, 0 alto pre~o da divul­ga~ao no meio nao e 0 unico limite para 0 acesso: 0 produto musical a ser anunciado (ou simplesmente apresentado) na TV deve trazer, ne­cessariamente, a legitima~ao que a grande empresa do disco the trans­fere. Programas de grande audiencia como 0 Domingao do Paustito (Globo), Xuxa hits (Globo), Sabadiio sertanejo (SBT) e Domingo legal

L_ -"J

Aspectos da difusao 165

(SBT) nao cosrumam aceitar produtos que nao venham com a grife de uma grande gravadora, como garantia do retorno que deve .resultar em audiencia. Dessa forma, de nada adiantaria se um musico de uma pe­quena gravadora, ou independente, decidisse pagar a quantia de R$ 50 mil por uma apresenta~ao no Domlngao do Paustao, R$ 30 mil para 0

Xuxa hits, de R$ 20 a 25 mil para 0 Sabadiio sertanejo. E como se a transa~ao se fizesse entre pessoas jurldicas, restringindo, uma vez mais, o circuito. Os numeros sao estimados e nllo oficiais, mesmo porque, fora do que envolve as partes em negocia~ao, oficialmente eles nao existeml7• Segundo as justif'icativas apresentadas, os artistas sao levados a tais programas pelo sucesso que fazem; no caso dos estreantes, a aten~ao justifica-se pela novidade. Se um artista ou um grupo atravessa fase de grande sucesso, ou jii e consagrado, a emissora de TV pode convida-lo pagando, frequentemente, um vultoso cache pela apresen­ta~ao. A opera~ao combina perfeitamente com as regras basicas de sua economia. Em outros programas, como uma participa~ao no J6 Soares onze e meia (ou em sua "Canja do J6", 0 artista e/ou entrevistado tanto pode pagar quanto pode receber, ou ainda a apresenta~ao pode acontecer sem envolver dinheiro.

Ainda no dominio da televisao, a indUstria mundial do disco con­quistou um fortissimo aliado, com 0 desenvolvimento de um canal de TV exclusivo de divulga~o musical: a MT\T (Music Television), que opera no Brasil desde 1990, atraves da concessllo adquirida pelo Grupo Abril. o canal transmite com sinal aberto para as maiores cidades do Brasill ".

Veicula videoc!ipes dos maiores sucessos musicais nacionais e internacio­nais, que muitas vezes sao financiados pelas proprias gravadoras, como parte do investimento em marketing. A programa~ao e diversificada e

17 Mesmo que os montantes globais dos investimentos em divulga~ao, feitas pelas gravadoras, nao sejam realmente significativos, vale apontar que, em urn levanta­mento realizado pela revista Mtdta dados, citada, entre as sessenta maiores anun­ciantes no Brasil, computados as valores Investidos, nao consta nenhuma indus-­tria fonogrMica. No entanto, e'conhecido que, a cada lan~amento, uma gravadora despende, em media, R$ 250 mil, como rnostra 0 artigo "Axe para frances ver". t-7iJA, 29-05-96, SP: Abril, p. 132.

18 Nos EUA, sua ptitria~mae. a MTV come~ou a operar em 1981. cr. GAROFALO, 1993. Diversificando sua atua~o. a MTV tern criado retransmissoras especializadas em determinados mercados. como por exemplo 0 MTV Latino, voltado nao somente para 0 mercado latino-americano como para a popula~o latina resi­dente nos EUA.

I.

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166 Os donos' d. voz

conta com programas de lancamentos de novos grupos e/ou artistas, de estilos musicais especfficos, como, rap, reggae, MPB, noticias, entrevis­tas, debates e programas especiais, comgrupos de pouco sucesso ou alternativos, como aquele que tem 0 significativo nome de Lade B.

No caso da midia impressa, nao sao freqtientes os anuncios pu­blicitarios. Mesmo assim,.os lancamentos de discos elou a realiza{:ao de shows, ou ainda noticias da trajet6ria de alguns artistas, sao sempre assuntos valorizados e explorados por jomais e revistas. A companhia responsavel pelo lan{:amentodo disco de um grande astro do pop intemacional nao costuma, imediatamente, pagar por sua divulga~ao, mas sim, tenta conquistar um tipo de "midia espontftnea", despertando o interesse em divulgar a noticia. Por exemplo, os meios de comunica­~ao tem grande interesse em noticiar a vinda de Michael Jackson ao Rio de Janeiro, ou a Salvador, para gravar 0 video-clip de uma musica de um de seus discos. Ao mesmo tempo, alimenta-se a expectativa em torno do resultado do trabalho realizado. Se esse nao e motivo suficiente para que 0 consumidor compre 0 disco, 0 e, certamente, para que veja as fotografias do astro estampadas nos jomais ou para que assista a premiere do video-clip no programa Fantastlco, da Rede Globo. Seja de que·forma for, 0 assunto sera conhecido, mesmo pelo cidadao me­nos interessadol9. Essa tecnica promove 0 conjunto da industria cultu­ral e os milhares de d61ares de faturamento sao partilhados (ou multi­plicados) pelos varios meios envolvidos.

No 'que conceme aos setores especializados da grande imprensa, como os cademos de. cultura dos grandes jomais revistas, a divulga~ao de discos pode ser feita diretamente nas reda~oes por divulgadores das gravadoras. 0 disco pode ou roo vir acompanhado de urn release que,. no caso de artistas estrangeiros, pode ser uma tradu{:iio de textos elaborados na origem. As companhias parecem nao ter preocupa{:iio em capacitar profissionalmente 0 divulgador, que em gera! nao demonstra conheci­mento especifico do produto que divulga. Podem ainda ser oferecidos brindes como b6tons e adesivos, na tentativa de demonstrar a impor­tancia do lan~amento. 0 interesse maior e 0 de conseguir uma entrevis­ta com 0 artista, considerando-se a hip6tese desta set' mais favoravel que uma critica20.

19 Cf. "Lee diz que produtora pagou a traficanteo". Folba de S.Pauio, p. 1-20. 20 De accrdo com a entrevista com Carlos Galado.

Aspectos da difusao 167

Uma outra forma tomada pela divulga~ao dos produtos musi­cais na grande imprensa brasileira sao as entrevistas, realizadas com musicos nacionais e estrangeiros, que esmo lan{:ando discos ou farao apresenta~oes musicais no pais. No caso dos artistas estrangeiros, uma das formas utilizadas consiste em destacar um jomalista para 0

exterior, a fim de acompanhar uma tume dos musicos, quando realiza entrevista perguntando, por exemplo, de suas expectativas ao se apre­sentarem no Brasil21 • Outra variante dessa modalidade esta na cober­tura de grandes eventos musicais intemacionais, quando os jomalis­tas sao convidados, pelas gravadoras, a cobrir 0 event022.

No transito mundial de informa~ao e mercadorias culturais, 0

marketing da musica tem estado cada vez menos limitado as frontei­ras nacionais. A mundializa~ao dos produtos musicais faz parte de uma estrategia muito bem definida pelas companhias fonograficas. A gravadora EMI-Odeon, por exemplo, lan~ou 0 primeiro disco solo do compositor Carlinhos Brown (A!fagamabetizado, 1996), cuja divul­ga~ao foi feita antes na Fran~a' e depois no Brasil. Na verdade, essa estrategia e resultado de uma nova modalidade de atua~aodas com­panhias fonograficas: uma parceria entre a EMI, que se incumbiu do lan~amento na America Latina, e a Virgin France, que 0 realizou no mundo todo. A Virgin France investiu 700 mil d6lares na promo~ao do disco somente na Fran{'a (em geral; nao sao gastos mais que 100 mil d6lares em lan~amentos de artistas brasileiros no exterior»'. A justificativa para a estrategia esta no fato de a Fran~a ser um grande

21 Ver, por exemplo. a serie de repor~gens feitas pelo jornalista Maurfcio Styeer para a Folha de S,Paulo, em novembro e dezembro de 1995 na Europa, com artistas que viriam ao HoUywood Rock-96. No final da reportagem vemos: "0 jornaJista Mauricio Styeer viajou '3 Londres a convite da prodm;ao do Hollywood Rock".

22 Em reportagens dessa natureza, urn credito final pode indicar que 0 jornalista viajou a convite das gravadoras. Do material analisado, tal observacao foi encon­(rada quase exclusivamente na Folha de S.Paulo. No entanto, 0 assunto nito foi objeto de pesquisa sistematica. Por outro lado, observa-se que as referidas cober­tur:'AS apresentam urn tipo de isencito, trazendo muitas vezes criticas negativas aos eventos, como se os promotores das viagens dos jornalista~ considera~em, lite­ralmente, 0 ditado popular: "Falem mal mas faIem de mim".

23 In: "Axe para frances ver", citado: "0 dinheiro que esta sendo investido no Janca­mento de Brown paga amlncios na TV francesd, no radio (que tera setecentas insercoes em 36 emissoras), em revistas e jornais. No jornal Liberation havera dez am1ncios. Alem disso, 5 mil cartazes foram afIxados em Paris, Marselha e MontpeUier ".

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168 Os donos da VOz

consumidor de "musica etnica". Mas a industria fonogrMica esta transnacionalizando institucionalmente suas estrategias de marketing:

No nosso ultimo congresso latio<ramericano, que acontece a cada dois anos no Chile, urn dos temas era exatamente 0 que a gente cha­ma de marketing global. 0 que e 0 marketing global: certos artistas, 0

ideal e que fossem todos, mas nem sempre e possivel, mas certos artistas -sao trabalhados nao com vistas a urn pars, senao ao univerSQ, Simples: JUlio Iglesias, falando de artistas latinos, Roberto Carlos, Lulz Miguel, Juan Luiz Guerra. Tenta-se hoje, ate agora nao funcionou muito, Com Milton Nascimento, artistas que as companhlas querem fazer de­les artistas- universais. Tanto que ha a tend!ncia na musica, que as empresas que a manejem sejam multinacionais. Nao e uma imposi~ao, mas como e urn mercado multinacional, e normal que as empresas mais importantes sejam multinacionais24,

Compartilhando esseespa~o dilatado, nem mesmo as indies se limitam a uma atua~ao domestica. Selos como 0 Caju Music (que prod\lziu discos de Luiz Bonfa, Baden Powell, Rafael Rabello) e Kuarup (cerca de cinquenta discos lan~ados e trlnta em catalogo), especializados em muslca popular brasileira e instrumental, estende­ram suas rela~oes. de mercado para a Europa, ]apao, Cingapura e Hongkong, ate mesmo como estrategia de sobrevivencia, consideran­do que 0 genero alcan~a somente uma pequena fatia do mercadb brasileiro. 0 Caju Music conta com as facilidades da distribui~ao feita pela PolyGram, mas 0 Kuarup, mesmo nao desfrutando a mesma benesse, prospectou publico no mercado frances para 0 seu Quane­tos de Villa-Lobos de maneira totalmente independente".

A produ~o de um sucesso de ambito global util!za-se, larga­mente, das paradas de sucesso organizadas por institui~oes ou revistas especializadas. A 16gica esta numa via de duas maos: se uma boa ven­dagem de discos garante um lugar no topo da dassjfica~ao, uma tal posi~ao pode permitir um bom sucesso de vendas. A f6rmula denuncia que, aprtorl, as paradas nao sao isentas. Enquanto autores como Peterson

24 MUller Chaves, entrevista citada.

25 Ver, por- exempJo, "Imperio dos independentes contra.atac~". 0 Estado de S.Pau/o, 18-02-92, Caderno 2, p. 1.

"J

Aspectosda difusao 169

e Berger, Paul Lopes e outrOS as consideraram importantes fontes de pesquisa, Christianen mostra como tais fontes nao sao conftilveis, na medida em que desconsideram 0 fato de que um disco deve ser .subme­tido a poderosos esquemas de promo~o, para alcan~ar um posto numa parada como a da revista Billboard, uma das mais famosas revistas especializadas em musica e produtos fonograficos. Hennion afirma que, pelas paradas, nao se pode conhecer os produtos e sua origem, uma vez que ao estamparem somente discos oriundos das majors, tais das­sifica~oes podem esconder a identidade de pequenos produtoresque repassam seus produtos as primeiras. .

No caso da Billboard, as duvidas que os pesquisadores apre­sentaram sobre a fidedignidade da sua parada foram, de certa forma, assumidas pela pr6pria revista quando ela implantou, em 1991, um sistema computadorizado de controle das vendas diretas ao consumi­dor 0 SoundScan. 0 novo sistema, alem de colocar em cheque toda , a classifica~ao realizada anteriormente pela revista, parece nao ter impedido a manipula~ao dos dados. A suspeita se baseia no fato de se ter, frequentemente, observado a presen~a de lan~amentos no topo da parada que rapidamente caiam de posi~ao, sem mesmo permane­cer por algumas semanas no Top ·10. Em geral, um lan~amento faz uma lenta escalada antes de figurar entre os· primeiros. A despeito do SoundScan, as paradas estavam considerando 0 que a industria vende aos lojistas, ou seja, a pre-vendagem, a encomenda efetuada pelas lojas, e nao os numeros reais26• Tal esquema nao mereceria tantos esfor~os se nao fosse altamente lucrativo, pois as paradas sao podero­sos agentes legitimadores do que deve ser notado. No entanto, se nao podem evidenciar a dinamica "natural" do mercado, tais classifica­'~6es contem preciosa sele~ao de mercadorias eleitas, pela industria; para 0 sucesso, apontando um caminho para 0 conhecimento do universo da produ~ao.

Nesse sentido, as informa~oes sobre 0 ranking brasileiro do disco sao fortemente esdarecedoras do atual contexto no qual se desenvolve a industria fonografica local enos fornece um referencial para a avalia~ao da real dimensao das mudan~as que se operam. Considerando os fatores conjunturais analisados no presente traba­Iho, vale notar que no ano de 1995 voltamos ao setimo lugar da

26 "Industria burla a parada da Billboard". Falha deS.Paul<>, 20-06-96, p.4-3.

I.

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classifica~ao mundial, com 71 milhoes de unidades vendidas. 0 mer­cado brasileiro cresceu 69%, somente nos ultimos cinco anos. Os dados apontam ainda que entre 94 e 95 0 numero de titulos lan~ados aumentou 42% (foram 3.816 lan~mentos, considerado um recorde na industria fonografica) 27.

No entanto, alem dos relan~amentos em CD de obras ja lan~adas em vinil, os responsaveis por esse boom sao as tr!lhas de novelas, discos de grupos de pagode (S6 Pra Contrariar, Ra~a Negra e outros); trabalhos como os Cldss/cos sertanejos, de Chitaozinho e Xoror6; Entre amigos, de Angela Maria ou ainda Amigos, coletanea de duplas sertanejas. S6 a trilha da novela 0 rei do gada (Rede Globo -1995-1996) vendeu, em sessenta dias de mercado, cerca de 1,58 milhao de c6pias, apresentando cantores consagrados do cena­rio brasileiro, por suas grandes vendagens: Daniela Mercury, Chitaozinho e Xoror6, Leandro e Leonardo, Djavan, Roberta Miranda etc. Dados do final de 1996 mostram que tal disco chegou 11 marca de 2,5 milhoes de c6pias vendidas. A unica estreia no mercado de sucessos, em termos de vendagem, foi 0 grupo E 0 tchan ("Mais um sucesso PolyGram!"), 11 epoca com 1,8 milhao de discos vendidos28. Em tempos de mundializa~ao, nunca se consumiu tanto produtos de musica brasileira. Mas esse alto consumo, com propriedade, nao expressa 0 dinamismo e a intensificacao das praticas culturais, nem tampouco aponta para a ocorrencia de um movimento cultural que dota 0 cenario de efervesd!ncia e criatividade musicais, ou ainda, para a flexibiUzacao das condicoes de competicao no mercado. Ao reiterar e repetir, insistentemente, as f6rmulas consagradas, 0 ritmo que embala os movimentos da sociedade global parece definir uma trilha sonora para esse final de seculo em que os multiplos sons, estilos, generos, agentes, lugares e autores parecem entoar, na rea­lidade, uma unica cancao.

27 "A Explosao do Show Biz", op. cit.; p. 36. 28 "Brasil vive 'boom' do disco". Fo/badeS.Paulo, 23-12-96, p. 4-1 e 4-3.

I ~

")

Considera~oes finais

Em meio as contradicoes da modemizac1\o brasUeira dos anos 1970, uma canc1\O saudava as transforma¢es em curso, daseguinte fonna:

(. . .) Bu quaro meu rMto d6 ptlha /lgado No mesmo segundo, em quatro esta~iJe., Senttr 0 hocejo da boca 40 mundo Ouvir num segundo, duz9!'ltas ca~iJes. (Aieeu V.len~a, "Pontos Cardeais", In: Vivo, Sam Livre: 1976)

Na epoca, setores ligados as artes e a cultura viam na veloci­dade e na intensidade pr6prlas aos melas de comunlcacao promes­sas de multiplicacao das possibilidades de percepcao de uma socle­dade cada vez mals mundializada, 0 desenvolvlmento do processo, no entanto, fez agudizar as contradicoesprimordiais existentes en­tre 0 exerclcio da crtaclio artlstica e SeU eternoconfllta com os limites impostos pela forma mercadoria. 0 bocejo do mundo cltada no verso, que expressava a rela~lio de intimldade que 0 ouvinte poderia estabelecer com 0 planeta, parece agora transformado em bocejo de fadiga e de tedlo, no momenta em que p(ollferam as possibilidades de ouvi-Io, . _ .

A atual reestrutura~ao dos meios de produ~ao da mdustrla fonografica, como partlcularidade de um movlmento' global, ao flexibillzar (of us car?) determlnadas rela~oes soclais e de producao, fragmentar (dlspersar?) espacos, antes vertlcalizados e Indivl~!veIS, mulliplicar (dividir?) as opcoes de escolha, leva alguns anahstas a festejar a quebra dos monop6lios, 0 advento da democracia e 0 fi~ da opressao, A adesao dos espa~os resistentes ao processo serla uma simples questao de tempo, Assim, nao precisamos mais nos preocupar (refletir?) e sim, desfrutar (consumir?).

Esse trompe-l'oeil denuncia, antes de mais nada, a rel<lCao de grande intimidade que os indivlduos estabelecem hoje com a indus-

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tria cultural e seus produtos. Alem de tornarem-se "naturais" a vida social, os media participam, ou mesmo orientam, 0 exerdcio da sub­jetividade humana, neste final de seculo. Ao meu ver, 0 problema maior nao esta somente nas relacoes mediadas pelo consumo objeti­YO, ou seja, nas trocas que envolvem efetivamente 0 ato de consumir, mas· sim naquelas' onde, aparentemente, nao se quer vender nada. Assim, por meie de um 'consumo aleat6rio e/ou compuls6rio disfar­ca-se, e. mesmo fragmenta-se, 0 exerdcio de um autoritarismo impar porparte dos meios instituidos.

Essa visao e recusada pelos entusiastas das mudanps vigen­tes, quando evocam 0 fato de 0 consumidor. contemporaneo relacio­nar-se interativamente com os meios e seus. produtos .. Pelas maos das altas tecnologias sao oferecidos, por exemplo,canais de televi­sao e emissoras de radio, para os quais 0 consumidor escolhe 0 que deseja ver e ouvir, num rol cada vez mais variado de opcoes. Mas 0

que esta em jogo sao quantidades, e nao qualidades. 0 telespectador decide 0 final da trama conhecida e escolhe 0 filme a ser veiculado. No 'entanto, discute-se pouco a natureza do rol de op~oes ofereci­das, em torno das quais vai transitar a escolha: f6rmulas 'conhecidas e repetitivas, situa~oes dramaticas que envolvem 0 telespectador e/ ou ouvinte em esquemas fechados de valores, comportamentos e pre-conceitos, estimulando que se estabele~a uma rela~ao de iden­tidade entre a trama e a sua subjetividade. A musica-mercadoria e especialmente exemplar desse sistema. As excecoes estao sempre presentes, em todos os setores, mas nem por isso tem colocado em risco 0 desenrolar do processo.

No que diz respeito a esfera da producao e difusao, para aque­les que nao. estao satisfeitos com as formas oferecidas pelos grandes conglomerados transnacionais sao apresentadas possibilidades de rea­liza~ao de produtos com qualidade tecnica similar aqueles realizados pelos primeiros, a partir das conquistas efetuadas na area das novas tecnologias. Em varios setores da industria cultural (musica, televisao, cinema, livros, publicidade etc.), tais facilidades de acesso sao identificadas como provas da flexibilizacao das condicoes de produ­~ao. Se Sao provas ou nao, trata-se de um avanco real, por mais que nao seja integral, uma vez que os agentes da criaCao artistica sao aproximados dos meios de producao, deixando de contar, nessa esfe­ra, com a interferencia das empresas.

Considera~oes finais 173

o fato e que tal aproxima~ao nao garanteo pleno exercicio de uma cria~ao artistica livre de qualquer limite e/ouimposi~ao estetica ou de mercado. Ademais, as facilidades de produ~ao nao tem garan­tido um lugar para 0 produto no grande rnercado, salvo em situa~oes em que estes apresentam grande identidade com aqueles ja consagra­dos, tal como e, freqiientemente, observado. Nesses casos; podem acontecer as tao buscadas parcerias entre grandes e pequenos, se se obedece a regra basica: jamais inovar realmente. 0 mesmo deve ser sempre invocado, mas em embalagens diferenciadas. Da mesma for­ma que l1a esfera do consumo, as exce~oes subsistem.

Finalmente, resta considerar que, embora sem alterar as con­di~oes atuais de produ~o, difusao e comercializa~ao, a industria fonografica poderia se tornar 0 agente produtor de mercadorias real­mente diferenciadas, incentivando a producao musical substanciosa, preocupada tambem com a qualidade. 0 fato de ter vinculado gran­de parte de sua lucrativa atua~ao a patamares tao subservientes ao minima esfor~o inte!ectual e emblematico de uma performance que quer oferecer as pessoas 0 que elas querem, mas sem lhes dar a possibilidade de escolher 0 que querem e nem mesmo de conhecer o que nao querem.

Perdida a dimensao estetica e artistica, 0 campo torna-se alta­mente fertil para a manuten~ao do poder polftico-economico, igual e freqiientemente travestido de novidade e esperan~a. No entanto, e preciso considerar que a agudiza~ao das rela~oes de domina~ao, mesmo que nuan~ada, enevoada, pode fazer ressaltar diversidades potencialmente emancipadoras. Essa mudan~a de tom, contudo, nao aparece do fato de termos sempre que considerar, em algum momen­to da reflexao, as condi~oes de supera~ao de uma realidade opresso­ra, contribuindo assim para que 0 papel redentor das ciencias sociais, que alguns reivindicam, nao esmoreca.

Diferentemente, trata-se de pensar que se a partir do quadro' tra~ado nao e possive! falar em progresso, nao devemos deixar de vislumbrar a sua existencia. Para Adorno, as dimensoes tomadas pelo desenvolvimento social, em suas varias manifesta~oes, nao tem senti­do de progresso se nao eliminam todas as formas de carencia e opres­sao que, para ele, formam uma unidade. 0 progresso viria a existir, na medida em que nos libertasse do 6fuscamento e, dessa forma, nao peimitisse asubstitui~ao de uma forma de domina~ao por outra: "B~m

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174 Os don08 da voz

e 0 que se desenreda, aquilo que encontra a fala, abre 0 olho." A situa~ao de agn1vamento deCbnlradi~oes torna-se, para 0 autor, urn pressuposto para a sua l1e8a~llo, e "a pressao da negatividade gera a possibilidade de desenredar.se" '.

o olhar sobre a vida cultun1l das sociedades neste final de sC!culo, ao desafiar uma realidade fugidia, fragmentada, danificada, deve considerar que, para ver 0 progresso sera preCiso ir alC!m das mt!tamorfoses produzldas pelos meios tC!cnicos. 0 grande trabalho e o de reconquistar a liberdade criadora ou a cria~ao libertadora. So­mente entilo a hlst6ria vai realmente mudar.

ADORNO, T. W."Progresso". Lua Nova, n" 27, sp, MarCo Zero, p. 217-236 1992 ti"'ddu~o de Gabriel Cohn. As dta~ estao, respeCUvttmente, nas p. 222 e 226. '

Post-scriptum

o movimento que David Harvey denominou "compressao es­pa~o-tempo", caracteristico do p6s-modernismo e dos tempos de globaliza~ao, talvez tenha uma de suas expressoes mais claras, se considerarmos os ultimos dois anos de performance da industria fonografica, contados a partir da finaliza~ao desta pesquisa, tal a velo­cidade e profundidade alcan~adas pelas transforma~oes tecnol6gicas. De um panorama em total ebuli~ao, gostaria de citar apenas alguns fatores que considero os mais inquietantes.

o quadro tra~ado das fusoes na industria fonografica, apontadas como sendo uma marca de sua hist6ria, ganhou componente de peso em 1998, com a venda da PolyGram para 0 grupo Seagram! Universal. Mas 0 evento - um dos mais espetaculares neg6cios jii efetuados pelo setor, numa transa~o de 10,4 bilhoes de d6lares - nao se resume apenas em mais uma fusao, na medida que envolve oulros fatores, dos quais, certamente, conhecemos ainda muito pouco.

Do que e possivel apreender, ao lado do crescimento acelerado dos conglomerados transnacionais, e importante notar a radicaliza~ao do movimento de fragmenta~ao, que tem autonomizado mesmo a esfera da gera~ao de tecnologia, colocando em cheque a intera~ao entre hardware e software, fundadora da industria fonografica. A Philips, empresa da qual a PolyGram era 0 bra~o produtor de musica, foi responsiivel por grandes inova~oes tecnol6gicas mundializadas pela industria fonografica, (disco de vinil estereo, 0 disco inquebravel, o compacto simples de 33,1/2 rpm eo compact-disc), bem como pela necessaria transforma~ao dos respectivos aparelhos leitores. A que­bra da liga~ao entre os dois ambitos da a~o da industria e realmente um fato novo presente na fusao Universal-PolyGram.

No entanto, essa quebra encerra urn dilema vivido pela Philips, ao mesmo tempo que apresenta urn dado fundamental para a compreen­sao do cenarh sua atividade de produ~o de hardware caminhava num sentido que a levaria a trabalhar contra a pr6pria industria

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fonogcifica. Para continuar competindo no mercado de hardware, a empresa deveria incumbir-se do desenvolvimento e fabrica~o de equi­pamentos de grava~o, de decodifica~o de mensagens musicais digi­tais e de outros. Por mais que se destinem as empresas e ao consumi­dor comum, nao se pode esquecer que tais equipamentos estao na base da atua~ao de toda a pirataria. A Philips teve que fazer sua op,ao pela produ~ao de hardware e, dessa forma, anunciar uma tendencia que pode ser seguida tambem pela Sony, igualmente produtora de hardwares e softwares fonogcificos.

Assim, urn conglomerado que tern como atividade principal a produ,ao e 0 comercio de bebidas (tudo a ver com musica!), a Seagram, decide estender seus domlniosao lucrativo setor do entretenimento e adquire - alem da Universal, que ja atuava na area de cinema e musi­ca - a segunda maior companhia fonografica do mundo (17% do mercado mundial), tornando-se a maior (23,1%)' ..

Outro fator importante diz respeito ao crescimento surpreen­dente da pirataria. Num mercado de 105,3 milhoes de unidades ven­didas em 1998, como 0 brasileiro, 0 sexto lugar no mundo, estima-se que 45% dessa quantia e 90% do mercado de fitas cassete circulem ilegalmente (0 segundo posto no ranking mundial da pirataria)'. Universalizadas as tecnicas de produ,ao dos formatos, a sofistica,ao da falsifica,ao parece atingir de frente as grandes companhias.

o fato e que a indUstria fonogcifica oferece urn produto extrema­mente caro ao mercado, e neste, questaes eticas a parte, 0 que importa e o pre,o. Para 0 consumidor de sucessos, que e quem compra 0 CD pirata, a l6gica e pagar R$ .5,00 em vez de R$ 20,00. Por seu tumo, a industria levanta a bandeira dos direitos autorais, Mas vale lembrar que, com a pirataria, os seus pr6prios direitos sao ainda mais lesados que os do artista, significativamente minoritarios (em torno de 13,3 % do valor total do disco, considerados 0 direito de autor e 0 direito de intetprete)',

1 cr. "As cinco maiores gravadoras do mundo" (quadro)." Folha de S.Paulo, 19-12-1998, p. 4-5. .

2 cr.: "Feira:da industria. fonogrMica espera movimentar R$ 30 milhoes~. 0 Estado de SPall/o, 22_07-99, p. L6.

3 Na au~ncia de dados oficiais, apresento _ essa cifca media calculada a partir de fontes Variadas. No entanto, ha quem estime essa porcentagem em menos de 10%. cr.: "0 impacto da Internet na rnusica", FortuneAmertcas, 08-05-99. p. 8-9.

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Post-scriptum 177

Urn outro abalo no cerco fechado das gran des gravlldoras, que tambem envolve a pirataria, tern surgido com a espantosa intensifica­,ao da circula,ao de musicas pela Internet. Urn hardware universalizado, o computador, passa a realizar a ponte entre 0 consumidor e a musica, sendo ainda 0 responsavel por sua reprodu~o sonora 0 que faz surgir a tendencia de extin,ao dos formatos.

As vendas legais de discos pela Internet ja sao largamente utili­zadas. Mas 0 que tern perturbando 0 cenirio e 0 comercio de discos virtuais ou de musicas isoladas, resgatados integralmente da rede e reproduzidos digitalmente pelos computadores ou armazenados em sua mem6ria para posterior grava,ao em CDs virgens. Programas de rede, como 0 MP3, permitem a divulga,ao de musicas por e-mails a pre,os baixos, quando nao gratuitamente, sem rastreamento. Tern sido concebidos equipamentos leitores, como 0 Rio, que permitem reproduzir musicas descarregadas da Internet'.

No caso de artistas novos, ou sem liga,ao com as majors, 0

MP3.com, site visitado diariamente por cerca de 250 internautas, ofe­rece 0 seguinte neg6cio de marketing ao artista: "Ao firmar 0 acordo com 0 MP3.com, q musico concorda em dar de gra,a uma faixa de seu album para qualquer frequentador do site. Se 0 visitante decidir comprar 0 CD do artista, Robertson [0 empresario dono do site) pren­sa 0 disco e 0 envia ao comprador. 0 artista estabelece 0 pre,o do CD, recebe 50% da venda em cada transa,ao e mantem 0 controle total sobre a matriz da grava,ao"',

Resta questionar a real extensao dessas mudan""s e avaHar as pos­sibilidades de acesso ao grande mercado sem 0 crivo conceitual e estrate­gico das grandes companhias, De qualquer forma, grandes companhias estao sem controle dessa situa,ao e procuram se armar contra iniciativas como a do MP3, tentando desenvolver urn sistema similar concebido de forma a proteger as obras, garantindo os seus direitos e os do autor.

4 Segundo 0 Eslado de S.Paulo, sites da Internet "ofereciam [penso que ainda ofe­receml CDs com ate 170 musicas a serem escolhidas num card~pio de cerca de 2 mil can~Oes por R$ 20. A partir de cinco CDs, 0 pre~o'cai para 12". Isso, claro, tratando-se de artistas consagrados e discos oficialmente gravados, resultando na mais sofisticada pirataria. In: "Pirataria pela Internet vira caso de policia", 01-06-99. p. Dl.

S "0 impacto da Internet na musica", op. cit., p. 9. Segundo a reportagem, 0 site recebe mais de duzentos pedidos por dia, com 'um pre~o medio de US$ 7,00 9 CD.

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6

178 Os donos da voz

Num futuro pr6ximo, a populariza~ao das novas tecnologias se na~ reproduzir novamente 0 esquema de usc restrito, pode leva; as m~Jors a mudar realmente suas estrategias de atua~ao. Pois, como p:evlu urn produtor musical ha quase dez anos, referindo-se a difu­s.ao por meio digital6, "Afinal, 0 neg6cio e vender mlisica e nilo phis­tIco. 0 tema vai ebulir".

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Entrevistas realizadas:

Carlos Calado, SP: 21-04-95.

Celso Massom, SP: 03-93 Joao Carlos MOiler Chaves, RJ: 12-03-95

Luis Oscar Niemeyer, RJ: 26-09-94

Luis Carlos Calanca, SP: 17-07-93 e 23-01-96

Marcos B. da Rocha, SP: 08-07-95

Marcos Maynard, RJ: 06-09-94

Mario Manga, SP, 26-01-96

Pena Schmid., SP: 09-12-92, 08-08-93 e 19-08-94

Sergio Carvalho, RJ: 26-09-94

Skowa, SP: 03-08-95

Page 93: Os donos da voz - Márcia Tosta Dias

, Apresenta uma descric;:ao do progresso obtido

pela moderna industria musical das ultimas de­cadas,dc:sde que se instalou, na esfera internacio­nal, urna nova relac;:ao de mercado, alavancada pela glo~alizac;:ao. No ambito da cultura, esse mo­vimento agiliza a circulac;:ao mundial de merca­dorias, aproxima os artistas e musicos dos meios de produc;:ao e permite a participac;:ao de um nu­mero maior de agentes na produc;:ao cultural.

Alem de abordar os recursos contemporineos, como a terceirizac;:ao, ja tao incorporada nas' atuais formas de produc;:ao, Marcia Tosra Dias examina importantes experiencias realizadas no decorrer do processo de modernizac;:ao da estrutura fonografica. Trac;:a urn amplo diagn6stico da produc;:ao indepen­dente e lanc;:a quest6es instigantes sobre a difusao musical via Internet, procurando estimar 0 impacto do desenvolvimento acelerado das novas tecnologias na manutenc;:ao do poder das grandes companhias.

Os donos ria voz se ap6ia nao apenas na bibliogra­fia existente sobre 0 terna, mas rambem ern entrevis­tas elaboradas pela pr6pria autora com empresarios, mtisicos e produtores musicais, ern documentos Ii-

. berados pelas empresas consultadas e em material de imprensa. Trara-se, portanto, de urn instrurnento de trabalho precioso para todos os interessados na mu­sica brasileira enos seus camiilhos.

Marcia Tosta Dias e graduada em Ciencias Sociais pela. Universidade Estadual Paulista - Unesp (Araraquara) e mestre em Sociologia pela Universidade Est,tdual de Cam­pinas - Unicamp. E pesquisadora do Centro de Documen­ta~o e Mem6ria da Unesp - Cedem e professora da Uni­versidade Paulista - Unip.

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