Os Engenhos Alagoanos e as Telas de Frans Post

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OS ENGENHOS ALAGOANOS E AS TELAS DE FRANS POST: INVESTIGAES ICONOGRFICAS

Catarina Agudo [email protected]

Maria Anglica da [email protected]

FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS

Os engenhos alagoanos e as telas de Frans Post: investigaes iconogrficas.

ResumoA histria econmica, social e poltica de Alagoas no pode ser escrita sem considerarmos a presena da atividade aucareira. Esta produo foi, sem dvida, a que inicialmente alavancou o crescimento dessa regio, com influncia to marcante que se prolonga at os dias atuais. Alm disso, sua herana pode ser traduzida em um rico patrimnio, de vis material e imaterial, constituindo-se em importante referncia histrica e cultural. Apesar disto, o tema dos engenhos em Alagoas continua pouco estudado no que tange, por exemplo, s suas matizes arquitetnicas. Desde os primrdios da sua ocupao territorial, considerando como marco desta ocupao o recorte temporal que se inicia com a presena dos colonizadores europeus, a situao de Alagoas ainda como parte da capitania de Pernambuco, pautou-se pela indstria aucareira. Com relao as fontes de pesquisa, a sua dinmica impulsionou uma intensa descrio, textual e iconogrfica por parte dos vrios agentes colonizadores. Nesse contexto, destaca-se como importante fonte de informaes as vistas produzidas pelo pintor holands Frans Post, durante a sua estada no Brasil. Estas imagens oferecem um grande universo de possibilidades para o entendimento desta temtica. O que se pretende apresentar so os resultados de um estudo que verifica as informaes que puderam ser extradas destas imagens e que foram confrontadas com a literatura e com os remanescentes materiais dos engenhos que chegaram aos dias de hoje.

Palavras-chave: Engenhos de Alagoas, Iconografia holandesa, Arquitetura e Patrimnio.

Este trabalho fruto das primeiras investigaes que buscam inventariar a localizao e a situao atual da arquitetura remanescente em Alagoas nas ltimas dcadas1, tendo como ferramentas as fontes primrias do sculo XVII, visitas tcnicas e como principal interlocutor historiogrfico a obra fundamental de Manuel Diegues Jnior, denominada O Bang das Alagoas, escrita nos anos de 1948. Difere o trabalho aqui apresentado dos estudos realizados sobre outros estados como Pernambuco e Bahia, por no contar com uma base prvia de trabalhos de investigao, pois afora o livro de Manuel Digues, a pesquisa sobre a arquitetura dos engenhos foi realizada basicamente a partir das tentativas de contrapor as informaes encontradas nas fontes primrias com a investigao no campo.

1. A regio e o acarA cana-de-acar foi trazida para o Brasil pelos portugueses ainda no sculo XVI. Os primeiros engenhos foram instalados em Itamarac, quando esta era ainda uma feitoria, na segunda dcada de colonizao (ANDRADE, 2007: 15). Devido grande extenso territorial da colnia e suas caractersticas naturais propcias para o desenvolvimento desta lavoura, os colonizadores logo se empenharam no estabelecimento de fbricas para o seu processamento. Varnhagen (1975: 92) menciona a existncia de um alvar j em 1516 referente construo de um engenho. Entretanto, a produo aucareira do Brasil nesse perodo iniciou-se ainda tmida, chegando ao seu apogeu entre o perodo de 1600 a 1700, quando o Brasil se tornou o maior produtor de acar do mundo. Durante o sculo XVII a Capitania de Pernambuco alcanou uma produo de grande vulto, a maior de toda a colnia. Em meados daquele sculo, chegou a possuir mais de uma centena de engenhos que fabricavam acar suficiente para encher entre oitenta e noventa embarcaes de grande porte por ano, as quais aportavam constantemente no porto de Recife.

Pernambuco tem cento e cinqenta engenhos de acar e cada um deles j mister ao menos vinte e cinco pessoas, entre brancos e negros, para moer, assim dos oficiais que fazem o acar, como escravos que servem nas fornalhas, metem cana nos engenhos e cortam e a carretam; e cortam e combiam a lenha necessria e muitos carros e bois que servem neste ministrio. E quem deitar bem a conta conhecer a multido de gente que se ocupa nos engenhos e lavradores de cana e quantos se podem ocupar na guerra e plantar mantimentos no moendo os engenhos (CALADO, 1648: 648).

1

. Este trabalho decorre de investigao realizada como sequncia ao projeto Identificao e mapeamento dos antigos engenhos de acar de Alagoas realizado entre 2007 e 2010, com o apoio do IPHAN.

J segundo o Relatrio sobre o Estado das Capitanias conquistadas no Brasil, elaborado pelo conselheiro Adriaen van der Dussen, em 1640, Pernambuco possua 121 engenhos, distribudos entre as seis jurisdies desta capitania, sendo a de Olinda dividida em oito freguesias. O quadro que o conselheiro produz fornece informaes referentes localizao, aos proprietrios, lavradores e quantidade de terra trabalhada. Uma investigao que se debrua sobre a regio sul de Pernambuco precisa traar um delineamento dentro do quadro da capitania, visto que no existia ainda o recorte geogrfico Alagoas que tomaria este nome em 1711, quando torna-se provncia. No contexto das Invases Holandesas, o nome Alagoas denomina a regio da futura sede da provncia, que exerceu esta funo at o ano de 1839, quando a capital do estado migra para Macei.

Quadro 1. Engenhos da Capitania de Pernambuco 1640Fonte: VAN DER DUSSEN, in.: MELLO, 1981: 142-163.

Jurisdio de Olinda Freguesia de Ipojuca Freguesia de Santo Antnio do Cabo Freguesia de Santo Amaro do Jaboato Freguesia de Muribeca Freguesia da Vrzea Freguesia de So Loureno Jurisdio de Igarassu Jurisdio de Sirinham Jurisdio de Porto Calvo Jurisdio das Alagoas

Quantidade de engenhos 14 16 9 10 21 8 10 17 10 6

Prontos para moer

60

8 10 5 4

Em Alagoas a produo de acar esteve relacionada ao surgimento dos trs primeiros focos de povoamento. Ao norte, em Porto Calvo, na regio central, a j referida vila de Santa Maria da Alagoa do Sul e ao sul, em So Francisco do Penedo. Posteriormente, com a fundao da vila de Atalaia, a ocupao foi sendo expandida para o interior. Segundo Digues Jnior (2002: 48), o primeiro engenho implantado em Alagoas foi o Buenos Aires, em Camaragibe, fundado por Cristvo Lins, portugus que recebeu a doao de uma sesmaria do donatrio da capitania. Por volta de 1600 este proprietrio realizou uma expedio nas proximidades de Alagoas e se fixou na atual regio norte do estado, instalando o engenho Escurial em Porto Calvo. Na regio prxima s lagoas coube a Diogo Soares a tarefa de povoar e desenvolv-la, onde posteriormente foi fundado o povoado da Madalena. Mas foi, entretanto, com seu filho, Gabriel Soares, que a atividade aucareira tomou vulto na regio a partir da fundao dos engenhos Velho e Novo que, segundo consta na literatura, foram os mais antigos da regio central litornea de Alagoas (DIGUES JR., 2002, p 49). Outros engenhos tambm foram fundados na regio,

mais ao sul, nas proximidades do rio So Miguel. Tais engenhos so frequentemente citados nas crnicas do sculo XVII.

Trataremos em primeiro lugar da lagoa do Sul, porque a que foi melhor povoada. No tempo da primeira povoao foi seu proprietrio Diogo Soares da Cunha, pai de Gabriel Soares da Cunha, senhor do Engenho Novo, o qual a obteve por doao de Duarte de Albuquerque, senhor de toda a capitania de Pernambuco (...) (WALBEECK & MOUCHERON, 1643, in. MELLO, 1981: 124).

No extremo sul da capitania, na povoao de Penedo, os engenhos so fundados a partir da metade do sculo XVII, porm, a atividade aucareira nesta regio no se deu com grande entusiasmo e desenvolvimento, mas com uma participao modesta, visto sua vocao maior para a criao bovina. De toda forma, o gado relaciona-se com a produo aucareira visto que fornece a fora motriz para as moendas e alimento para as populaes dos engenhos.

2. Trilhando as linhas das imagens A dinmica da explorao canavieira motivou a produo de inmeros documentos sobre o tema, mas foi a presena holandesa, com outro perfil de colonizao que gerou, especificamente para a regio Nordeste, um acervo que embasou em grande parte dos estudos realizados sobre este tema. So inmeros relatos, mas tambm um rico acervo de imagens mapas, vistas, plantas que oferecem outras janelas para acessar o distante mundo seiscentista. Embora estas imagens j tenham sido usadas por pesquisadores, s recentemente foram disponibilizadas com maior acuidade, abrindo assim novas perspectivas para os estudos contemporneos. Quando se d destaque s fontes iconogrficas esta opo requer no apenas que se adestre novas ferramentas, mas tambm que se tomem outros cuidados no que tange ao seu manejo. No caso desta pesquisa, este material foi usado em cruzamento com as fontes textuais, no apenas para referendar o que se apresentou recorrente nestas fontes, mas tambm buscando observar os pontos em que a literatura foi mais hesitante no mbito das informaes e onde se abria campo para elucidao dos mesmos no mundo das imagens. Por exemplo, no contexto dos aspectos arquitetnicos e paisagsticos dos engenhos, as imagens foram de grande auxlio uma vez que a busca at mesmo no campo dos vestgios materiais das edificaes se mostrou bastante frgil2. O fato de os registros iconogrficos carregarem impresses pessoais fez com que, por muito tempo, fossem depreciados no campo da pesquisa histrica, servindo como mero adendo aos

2 . Cabe colocar que, em paralelo aos trabalhos de gabinete, a pesquisa se valeu a um amplo trabalho de campo, como se tratar adiante.

contedos extrados das fontes arquivsticas escritas. Entretanto, hoje, justo ao inverso, assumem relevncia pela sua propriedade individual e subjetiva. Partindo do princpio de que mesmo a busca da preciso dos documentos escritos nunca est alheia interpretao pessoal e, inevitavelmente, carregam muito de quem os produz, esses registros desenhados, constituem documentos que revelam atualidade um mundo no experimentado, permitindo, inclusive, acessar, de maneira especial, o difcil contedo acerca das mentalidades de uma sociedade distanciada por sculos. Sendo assim, nota-se a necessidade de um olhar atento para a sua interpretao, considerando, inclusive, a influncia do imaginrio do autor sobre o processo de decodificao da realidade, como sua formao e conhecimento. Entre as imagens produzidas no contexto da presena holandesa no Nordeste no sculo XVII, merecem destaque os trabalhos do holands Frans Post. Entre mapas, vistas, gravuras, pinturas, reproduo de paisagens e seus habitantes, de detalhes de flora e fauna, produziu uma extensa obra retratando diversamente diferentes aspectos do territrio com uma qualidade esttica inequvoca. Outro aspecto a destacar o senso de familiaridade que seu trabalho evoca, para quem, ainda nos dias de hoje, atravessa as paisagens nordestinas e observa seus detalhes. Estes aspectos, alm da recorrncia do tema dos engenhos na sua obra, fizeram com que o artista fosse escolhido nos trabalhos de investigao sobre os engenhos de Alagoas. Atualmente a edio cuidadosa das obras textuais e imagticas holandesas atravs das colees editadas pela Petrobrs, entre 1999 e 2001, e a ainda recente publicao do catalogue raisonn de Frans Post, em 20093, abriu um enorme horizonte para estudos mais embasados sobre o artista bem como possibilitou um manejo mais fino das temticas representadas.

3. O engenho na telaO uso da iconografia nos estudos acerca dos engenhos no mbito de sua arquitetura no recente e possui dois trabalhos de referncia que trataram de duas regies que guardam vnculos com Alagoas: Engenho e arquitetura de Geraldo Gomes, que realiza um estudo sobre Pernambuco e Arquitetura do Acar de Esterzilda Berenstein de Azevedo, que rata dos engenhos do Recncavo Baiano no perodo colonial. A autora enfatiza a importncia das fontes iconogrficas:Outra fonte fundamental a iconografia. As informaes mais abundantes referem-se ao sculo XVII, com alguns registros sobre o XVI e XVIII. Embora no se refiram especificamente Bahia, mas ao Nordeste, em especial Pernambuco, os pintores de Nassau deixaram uma documentao pictrica notvel que retrata a paisagem rural, a implantao dos engenhos, o nmero e a disposio das edificaes que os compunham, as caractersticas dessas edificaes quanto forma, materiais e sistema construtivo (AZEVEDO, 1990: 18).3

. Ver bibliografia.

Embora no se tenha nenhuma comprovao de que os holandeses reportaram engenhos na Bahia, a autora justifica o uso das imagens holandesas, para o recorte trabalhado por ela, apoiando-se na bibliografia: O trabalho de Andreoni confirma a suposio de que a tipologia dos engenhos pernambucanos documentados por Franz [sic] Post e outros pintores holandeses, no difere da adotada na Bahia (AZEVEDO, 1990: 17). O livro de Geraldo Gomes nos interessa mais de perto visto que trata especialmente dos engenhos de Pernambuco, com nfase no perodo dos bangus, portanto, dos sculos XVI at incio do XIX, pois o primeiro engenho a vapor de Pernambuco instalado em 1817 (GOMES: 2006: 38). Ao modo como conduzimos o trabalho de pesquisa, o autor valeu-se enormemente das fontes textuais seiscentistas holandesas. Exclusivamente devido invaso de Pernambuco pelos holandeses existe uma documentao bibliogrfica que privilegia essa capitania em relao s demais do Brasil. (GOMES: 2006:69). Embora se detenha grandemente nos sculos XVII e XVIII, Geraldo Gomes no trata do territrio da atual Alagoas, que poca pertencia capitania de Pernambuco. As duas obras referendadas foram publicadas pela primeira vez em 1990. Nesta poca, Esterzilda menciona serem conhecidos 143 pinturas e 63 desenhos de Frans Post, poca, catalogados e em grande parte reproduzidos por Souza Leo. Destes, ainda segundo autora, 21 retratavam engenhos (AZEVEDO, 1990:19). Quanto a Geraldo Gomes, ele no menciona o nmero de trabalhos pictricos acessados no seu prprio livro, vale-se de cerca de 16 imagens de Frans Post sobre engenhos e/ou casas-grandes e 1 imagem de Zacharias Wagener. Atualmente, o conjunto da obra de Frans Post4, constitui-se de 155 telas a leo e 57 desenhos conhecidos que retratam o Brasil. Entre estas 212 imagens, 45 (cerca de 20 % do total) possuem o engenho como temtica ou ttulo da tela, sendo 43 representaes que mostram a ambincia do engenho de uma forma geral e 3 imagens mais aproximadas da edificao que abriga as moendas, uma delas uma vinheta do mapa Brasiliae Geographica et Hidrographica Tabula Nova [...] de Georg Marcgraf. Portanto, h um acrscimo razovel do material conhecido nos dias de hoje para o manipulado por Esterzilda e Geraldo Gomes, alm da qualidade de reproduo deste material. Desse universo, 35 vistas foram selecionadas e observadas com maior cuidado neste trabalho por apresentarem o complexo dos engenhos de forma mais detalhada, possibilitando melhor identificao e anlise de seus elementos, como est demonstrado no quadro a seguir.

4

. Ver Catlogo, 2009.

Quadro 2. Vistas de Frans Post selecionadas para estudoObs. As denominaes aqui apresentadas seguem as que foram adotadas no referido catlogo. Fonte: LAGO, 2009.

1. Vista de uma usina de acar no Brasil

2. Engenho

3. Paisagem de vrzea com engenho

4. Engenho

5. Engenho

6. Engenho

7. Casa-grande com torre

8. Engenho

9. Engenho

10. Engenho

11. Engenho

12. Engenho

13. Engenho

14. Casa-grande com torre

15. Engenho

16. Engenho

17. Paisagem de vrzea com

18. Engenho

engenho.

19. Engenho

20. Paisagem fluvial com engenho

21. Paisagem de vrzea com engenho

22. Paisagem de vrzea com engenho

23. Engenho

24. Engenho

25. Engenho com cachoeira.

26. Paisagem com casa-grande

27. Engenho

28. Engenho

29. Engenho

30. Engenho

31. Paisagem com engenho

32. Paisagem de vrzea com engenho

33. Engenho com torre

34. Engenho de duas rodas movidas por bois

35. Engenho com rodas movidas pela gua

Detalhe do mapa Brasiliae Geographica et Hidrographica Tabula Nova [...], Georg Marcgraf, 1643. Fonte: HERKENHOFF, 1999: 252

4. A obra de Frans Post e o contexto das Alagoas A investigao com as imagens em Alagoas foi contraposta no s com as informaes das fontes primrias, mas tambm ao estudo dos exemplares remanescentes. Contudo, pouco foi encontrado, a exemplo do que ocorreu na Bahia e em Pernambuco. Segundo o trabalho de Esterzilda Berenstein, dos sculos XVI e XVII restaram na regio por ela estudada apenas capelas e uma casa grande. Do sculo XVIII, 22 engenhos, a maioria apenas restando uma edificao: casa grande, capela ou fbrica. Algumas destas tiveram origem nos sculos anteriores. Contudo, segundo a autora, os maiores e mais nobres engenhos da regio foram construdos no sculo XVIII (AZEVEDO, 1990: 19). Geraldo Gomes menciona a visita a 150 ou 169 engenhos5. Na pesquisa que realizamos, foram visitados em Alagoas at agora 43 engenhos, existentes nas regies de implantao mais antiga da cana, ou seja, em Porto Calvo e na rea das lagoas prximas s atuais cidades de Marechal Deodoro, Pilar, Satuba e Santa Luzia do Norte, alm parte de So Miguel dos Campos. No se pode afirmar que os engenhos representados por Frans Post pertenciam exatamente ao universo alagoano, entretanto, certamente referem-se Capitania de Pernambuco, j oferecendo assim, excelente proximidade ou a cobertura propriamente dita da regio em estudo. Para a aproximao do universo das imagens com o contexto em estudo, foram selecionados alguns aspectos relativos implantao dos engenhos nos stios, sua arquitetura e demandas funcionais das edificaes.

4.1. Da implantaoSobre a geografia, sabe-se da exigncia da cana por bons solos:As terras dessa capitania [de Pernambuco] so na maior parte boas, havendo montanhas pouco elevadas e belas plancies, muito frteis e apropriadas plantao da cana-deacar, cultivada ali em grande escala. H contudo muitos lugares montanhosos como

5

. Gomes menciona nas pginas 19 e 79, 150, mas na pgina 182, 169 engenhos visitados.

Masurepe, Muribec, Jaboato, Ipojuca, onde a cana cresce nas encostas, e melhor do que em algumas plancies, pois encontra um terreno muito frtil que no perde facilmente a umidade (LAET, 1636: 535, in.: FREIRE, 2004).

Nos engenhos de Post, os terrenos so suavemente ondulados, lembrando a vrzea. Esta a geografia encontrada no litoral de Alagoas, na sua mais expressiva extenso, sempre permeados por cursos dgua: rios, riachos, lagoas, como bem lembra o nome do atual Estado. Das 35 imagens de Post analisadas, 30 reproduzem claramente um curso de rio, ora mais prximo ao complexo edificado, ora mais distante, comprovando o que a literatura sempre destaca, da imprescindvel presena de um curso dgua prximo ao engenho.

Fig. 01. Detalhe de vistas de Post: representao de cursos dgua.

Paisagem de vrzea com engenho

Paisagem com engenho

Paisagem de vrzea com engenho

Os prprios relatos holandeses localizam diversos engenhos em Alagoas utilizando como referncia este elemento ou destacando a sua importncia dentro da capitania: Os rios mais importantes [da jurisdio mais ao sul da capitania pernambucana] so: o das jangadas, Serinham, o Formoso, o de Porto Calvo, o Camaragibe, o de Santo Antnio, o de S. Miguel e o de So Francisco (BARLEU, 1974: 127, grifo nosso).

A 27 do mesmo, pela manh, transpuzemos o rio e o alto monte e, tendo marchado boas quatro milhas chegamos a um pequeno rio chamado Tamala, onde descansamos um pouco; prosseguindo depois a marcha, uma milha alem chegamos a um antigo engenho de nome S. Miguel onde ainda vimos jazer algum cobre e ferragens do velho engenho, dali caminhamos uma milha e chegamos ao rio S. Miguel, acampando pela noite na sua margem do norte. [... ] A 6 do dito prosseguimos na marcha e chegamos a um rio de nome Perirgavo, o qual subimos por espao de cinco milhas, ora numa ora noutra margem, at chegarmos ao rio Paraba, que despeja na Alaga junto do engenho de Gabriel Soares [...] (BLAER, 1645:87-89, in.: FREIRE, 2004. Grifo nosso).

A anlise das vistas permite referendar a afirmao corrente na literatura de que a escolha do stio bastante semelhante na maioria dos engenhos e que os elementos naturais desempenham papel fundamental para a instalao dos complexos de produo do acar. A topografia acidentada era aproveitada, como afirmam alguns autores, no arranjo dos elementos edificados,

de modo a favorecer o estabelecimento de uma hierarquia social. Nas iconografias recorrente uma setorizao vertical, na qual a casa-grande localiza-se a meia encosta, a capela colocada ao lado da casa-grande, em mesmo nvel ou em nvel mais elevado, e o espao de fabrico situado na parte mais baixa do terreno.

Fig. 02. Representao da topografia e hierarquia de implantao das edificaes.

1 2 3

2 3

1

2 3

1

Legenda: 1. Capela; 2. Casa-grande; 3. Fbrica Fig. 03. Engenhos de Alagoas

Eng. Pau-Brasil. Casa-grande ao fundo, em parte elevada e runas da fbrica em rea baixa.

Eng. Duas Bocas. Stio de implantao com casa-grande.

Eng. Lamaro. Stio de implantao. Terreno levemente acidentado, edificaes na parte elevada, massa de gua ao fundo.

4.2. Da arquiteturaQuanto aos elementos do complexo arquitetnico dos engenhos - a casa-grande, a capela, a fbrica e a casa de purgar - foi possvel identific-los at certo ponto nas vistas, devido semelhana com as descries encontradas na literatura. As edificaes do engenho, de uma maneira geral, aparecem prximas umas das outras, em alguns casos mais centralizadas na cena. A proximidade entre elas indica uma possvel funcionalidade, necessria nesses complexos, uma vez que cada etapa do processo de fabricao do acar est diretamente ligada s demais. O destaque arquitetnico da ampla maioria se encontra na fbrica. So 23 imagens onde o elemento do primeiro plano o galpo, apresentando o maquinrio e os trabalhadores executando as tarefas bsicas para a produo do acar, sendo 2, na verdade, detalhamentos especficos da fbrica.

Fig. 04. Vistas de Frans POat. Destaque para a edificao da fbrica.

Entre os engenhos visitados em Alagoas a estrutura edificada da fbrica desapareceu na grande maioria. Em 2 ainda possvel visualizar as runas desse elemento e em 11 exemplares h estruturas semelhantes aos galpes representados por Post, mas que certamente sofreram alteraes ao longo dos sculos, ou mesmo foram construdos em tempo recente mas mantendo o formato dos antigos espaos fabris. Muitos hoje so utilizados como estrebarias ou armazns de mquinas e veculos.

Fig. 05. Remanescentes de possveis fbricas de engenhos alagoanos

Runas do Eng. Pau-Brasil.

Eng. guas Frias.

Eng. Crasto.

Eng. Munda.

Eng. Salgado.

Eng. Estaleiro.

Em 5 imagens de Post o foco a casa-grande e em outras 18 possvel v-las com certa clareza, ainda que no estejam em primeiro plano. A edificao, geralmente de dois pavimentos, grandes propores, com varandas ou alpendre, guarda profunda semelhana com as que se encontraram nos engenhos alagoanos visitados, dentre os que a casa ainda permanece, como pode se ver na representaes abaixo.

Fig. 06. Casas-grandes nas imagens de Frans Post

Fig. 07. Casas-grandes de engenhos alagoanos

Eng. Graja de Cima

Eng. Duas Bocas

Eng. Guaribas

No trabalho de campo em Alagoas, verificou-se tambm a presena de casas grandes assentadas no terreno conforme as imagens de Post, ou seja, no ponto mais alto do terreno (20 vezes) e mais abaixo a fbrica e por vezes, a capela (17 telas) em terreno elevado ou no mesmo nvel da casa grande. Esta, smbolo da f crist implementada pelos colonizadores portugueses, estabelece presena marcante no cenrio aucareiro. Nas vistas de Frans Post possvel identificar diferentes tipologias de capelas, ora pequenas e simples, ora mais imponentes e ornamentadas, mas, em sua maioria, so representadas com simplicidade e certo padro de volumetria e elementos, como a existncia de uma nica nave, presena ou no de sacristia e de alpendre.

Fig. 08. Capelas nas vistas de Post

Fig. 09. Capelas de engenhos alagoanos

Eng. Escurial

Eng. Camarupim

Eng. Lamaro

Eng. Varrela

al de edifcios, tambm nota-se nas imagens de Post a presena de pessoas, sugerindo que, para o artista, a dinmica humana consistia em um importante dado a ser considerado no registro e, por extenso, no entendimento desses ambientes rurais. Embora os escravos sejam frequentemente representados nas telas analisadas (em 34 imagens), geralmente desempenhando alguma atividade relacionada produo do acar ou aos afazeres domsticos, o espao de moradia dos mesmos, a senzala, no aparece em nenhuma das vistas, ou pelo menos no so claramente identificveis. Somente na vinheta contida no mapa de Marcgrave que aparece uma estrutura edificada semelhante a uma tpica senzala6.

Fig. 10. Detalhe da vinheta de Frans Post no mapa de Georg Marcgraf. Senzala e Casa-grande.

A ausncia dessas edificaes tambm pode ser verificada em campo, pois, somente em 3 dos engenhos visitados foram encontradas edificaes semelhantes referida tipologia. Dois motivos para tal ausncia so, provavelmente, o arrasamento das mesmas aps a abolio da escravatura e a construo com materiais pouco durveis.

. A descrio mais comum, encontrada na literatura, de uma senzala a de uma edificao retangular, comprida, em sua maioria sem divises internas, com uma galeria sustentada por pilares ao longo da fachada frontal, com diversas aberturas (GOMES, 2006: 186-187).

6

Fig. 11. Edificaes semelhantes a senzalas

Eng. Lama

Eng. Cachoeira

Eng. Soledad

4.3. Da Produo Nas imagens de Post em que a fbrica representada em destaque possvel observar as etapas da produo, como o transporte da cana, a sua moagem, o cozimento do caldo, a purga e a secagem do acar. O transporte para as dependncias da fbrica realizado por carros de bois, os quais so frequentemente representados por Post.

Fig. 12. Detalhes das imagens de Frans Post. Destaque para o carro de bois.

Duas dessas etapas, o cozimento e a purga, no so propriamente mostradas, mas representadas por seus espaos construdos. A casa das caldeiras, onde feito o melao, posicionada geralmente contgua casa da moenda, com um alpendre em um dos lados. Em algumas imagens possvel ver pequenas aberturas na alvenaria por onde os escravos alimentam o fogo das fornalhas. Prxima a fbrica h, em 17 telas, uma edificao retangular, com um pequeno alpendre na fachada frontal e uma abertura sobre o mesmo. Trata-se possivelmente da casa de purgar. Este elemento no foi encontrado em nenhum dos exemplares alagoanos visitados, embora sabia-se que o mesmo existiu, por se tratar de um espao imprescindvel no procedimento de fabricao de acar.

Fig. 13. Casa das caldeiras (1) e casa de purgar (2).

2

2

1

1

Externamente v-se em 14 telas um balco utilizado para reduzir os pes de acar branco a pequenos torres e sec-lo ao sol7. Antonil (1982:75) denomina este elemento como balco de secar e nas imagens de Frans Post o mesmo visto sempre com escravos sobre o giral onde possvel tambm visualizar uma massa branca sobre este, com certeza o acar.

Fig. 14. Detalhes das vistas de Post balco de secar.

Outros aspectos relativos aos engenhos podem ainda ser analisados a partir das vistas de Frans Post, como a representao das matas que se resumem a rvores e palmceas usualmente formando um enquadramento para a tela, mas sem se expressar em volumes mais consistentes. H um apreo na representao de uma palmeira mais isolada (27 vezes) que auxilia no carter idlico com que as pinturas de Post normalmente so caracterizadas. Um ponto menos coincidente7

. Aps passar pelo balco de mascavar, onde os pes de acar so quebrados e so separados o acar branco, de melhor qualidade e que ser comercializado, o mascavado, de tom amarronzado, utilizado pelos escravos e o cabucho, de pior qualidade (fica na parte inferior da forma do po, geralmente era dado para os animais) o acar era levado para o balco de secar, onde os pedaos grosseiros eram reduzidos a pequenos torres e expostos ao sol para que se esvasse toda a sua umidade (ANTONIL, 1982: 76).

com o esperado a reproduo do canavial. Embora se possa verificar a presena de plantio, a cana no apresentada como elemento distinto em nenhum dos quadros analisados, mas apenas na vinheta do mapa.

Fig. 15. Representao da cana.

Interessante verificar tambm o cuidado na representao do sistema construtivo. A taipa de pau a pique, possivelmente trazida da frica, pode ser examinada em detalhes dos quadros, inclusive com um sistema de travamento em diagonal. Quanto ao sistema construtivo da fbrica, ele se apresenta muito simples. Usualmente em planta retangular, com coberta em telhas, fechamento parcial em alvenaria. Um aspecto interessante o uso de arcos que aparecem em 13 das 23 fbricas representadas. Nas duas em detalhe, o sistema portante apenas realizado com pilares. Nestas imagens, o p direito possivelmente fica em torno de 3 metros, permitindo que o carro de boi adentre ao galpo. Adotar a imagem como ferramenta para o estudo dos complexos dos engenhos implicou no caso em tela, us-la como base para a identificao da arquitetura e de como esta se instala no stio geogrfico. Mas h outros aspectos a serem considerados nos estudos iconogrficos, como por exemplo, a propriedade desses produtos de carregarem uma srie de intenes artstica, cientfica e de marketing norteando a produo dos autores, que percorriam a colnia, pautados pelas exigncias de quem lhes fazia a encomenda. A imagem, portanto, externaliza processos de carter simblico e subjetivo que precisam ser considerados para entend-la enquanto documento auxiliar de qualquer investigao cientfica. A partir das vistas de Frans Post foi possvel recompor alguns aspectos da histria do Nordeste brasileiro. A sensibilidade e a flexibilidade impressas nessas obras permitiram uma srie de estudos e decifraes. Novaes (2005: 110) coloca a respeito das imagens uma afirmao que certamente pode ser relacionada s pinturas de Post:Essas imagens no falam por si ss, mas expressam e dialogam constantemente com modos de vida tpicos da sociedade que as produziu. Nesse dilogo elas se referem a questes culturais e polticas fundamentais, expressando a diversidade de grupo e ideologias presentes em determinados momentos histricos.

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