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| 24 GVEXECUTIVO • V 18 • N 6 • NOV/DEZ 2019 • FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS CE | INOVAÇÃO NO ENSINO • OS ESTUDANTES NÃO PEDEM PASSAGEM

OS ESTUDANTES PROTAGONISTAS · sido protagonistas não apenas de suas trajetórias, mas de grandes transformações locais e globais. Sem pedir licen-ça, jovens como Ana Beatriz,

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Page 1: OS ESTUDANTES PROTAGONISTAS · sido protagonistas não apenas de suas trajetórias, mas de grandes transformações locais e globais. Sem pedir licen-ça, jovens como Ana Beatriz,

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CE | INOVAÇÃO NO ENSINO • OS ESTUDANTES NÃO PEDEM PASSAGEM

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OS ESTUDANTES NÃO PEDEM PASSAGEM

GVEXECUTIVO • V 18 • N 6 • NOV/DEZ 2019 25 |

| POR ANGÉLICA GONÇALVES, CAROLINA PASQUALI E GABRIEL MAIA SALGADO

L iliane, Maria Alicy e Joana são três adoles-centes da cidade de Santana do Cariri (CE) que se incomodavam com o fato de cole-gas, dia a dia, abandonarem os estudos na Escola Estadual Adrião do Vale Nuvens. Somente em 2017, 79 estudantes deixaram de frequentar as aulas no colégio, passando

a fazer parte do grupo amplo – e, na maior parte das vezes, invisibilizado – de dois milhões de crianças e adolescentes em situação de exclusão escolar no Brasil, segundo dados do Censo Escolar 2018 realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).

Solidariedade, indignação e preocupação moveram as jovens do 2º ano do ensino médio a dar início, em 2017, ao Projeto Células Motivadoras. Mobilizando colegas e contando com o apoio de seus educadores, Liliane, Maria Alicy e Joana acreditaram no poder da escuta, realizaram rodas de conversa, visitaram os colegas e desenvolveram

uma série de ações com os objetivos de acolher, apoiar e incentivar a formação daqueles que tinham saído da esco-la e dos demais alunos que apresentavam dificuldades para frequentar as aulas.

Deu certo. O número de estudantes evadidos caiu para 59 em 2018 e despencou para menos de 10 casos no primeiro semestre de 2019. O protagonismo, a empatia, a criatividade e o trabalho em equipe foram fundamentais para contribuir com uma realidade que antes não dava conta de dialogar, estimular nem garantir o direito à educação a esses alunos que abandonavam os estudos.

As adolescentes de Santana do Cariri – que possui cer-ca de 20 mil habitantes – não estão sozinhas. Por todos os cantos do país, crianças e jovens sentem, imaginam, fazem e compartilham ações de mudança, simples ou complexas, cotidianas ou ousadas, em uma nação que não os recebeu de braços tão abertos assim – e que falha ao não cumprir a premissa do artigo 227 da Constituição Federal de dar

Escolas, universidades e a sociedade são provocados a responder à pergunta: estão preparados para conhecer, dialogar e ser transformados

pelas crianças e pelos jovens protagonistas?

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prioridade absoluta, na formulação e na execução de polí-tica públicas, a esses cidadãos.

Um exemplo disso são os mais de seis mil projetos ins-critos anualmente no Programa Criativos da Escola, do Ins-tituto Alana, que premia estudantes protagonistas do Brasil inteiro. São iniciativas que vão desde a valorização da cul-tura local por meio de um jogo de tabuleiro até campanhas de conscientização contra a violência às mulheres; da uti-lização da floresta amazônica como alternativa à falta de laboratório de ciências na escola até a produção audiovi-sual para reivindicar um mundo que escute e considere as perspectivas das crianças.

Esses projetos evidenciam não só a inventividade e a potência dos estudantes protagonistas, como também provocam a reflexão sobre quem são e sobre como a so-ciedade e suas instituições (como as universidades) estão (ou não) preparadas para lidar com eles após concluírem o ensino médio.

OS ESTUDANTES PROTAGONISTASMas quem são esses estudantes protagonistas? Direto dos

centros das metrópoles brasileiras ou de suas áreas mais periféricas, dentro de escolas do campo ou participando de projetos de organizações ou movimentos sociais, essas crian-ças e jovens não constituem um grupo homogêneo – nem por seu território, nem por suas características identitárias, físicas, sociais ou culturais. Nesse sentido, é central con-siderar sua diversidade étnico-racial, social, de gênero, de repertórios e de saberes, além das diferenças de oportunida-des para se estabelecerem dentro ou fora das salas de aula.

Olhar para essa diversidade foi uma das provocações dos alunos do 7º e do 8º ano do ensino fundamental do Colé-gio Municipal Professora Didi Andrade, em Itabira (MG). Como resposta às bolhas que os excluíam, meninos e me-ninas passaram a realizar uma escuta atenta para saber de fato quais eram os problemas que mais incomodavam seus colegas. Como resultado, produziram uma série de vídeos

A autoria dos estudantes é uma oportunidade para as inovações no enfrentamento de problemáticas sociais. Mas será que estamos atentos

à aprendizagem potente e viva desses alunos e alunas?

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ANGÉLICA GONÇALVES > Coordenadora do Programa Criativos da Escola, do Instituto Alana > [email protected] CAROLINA PASQUALI > Diretora executiva do Instituto Alana > [email protected] GABRIEL MAIA SALGADO > Coordenador do Programa Criativos da Escola, do Instituto Alana > [email protected]

PARA SABER MAIS:− Instituto Alana. Projeto Criativos da Escola. Disponível em: criativosdaescola.com.br

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interpretando situações que viviam, relacionadas a assun-tos como racismo, abuso, violência doméstica e machismo.

O olhar com base na diversidade contribui não só para compreender o caso desse projeto especificamente, mas também para explicitar que há múltiplos contextos e pers-pectivas ligados às crianças e aos adolescentes, além de provocar perguntas como: quanto a escola, a universidade e a sociedade em geral perdem todos os dias por construir bolhas de isolamento e exclusão dos jovens? As universi-dades têm sido espaços que estimulam de fato os jovens a intervirem em suas comunidades e a desenvolverem proje-tos pessoais e coletivos de vida?

Entre outros aspectos, a falta de escuta aos estudantes faz parte da lógica de uma sociedade com problemas como a evasão escolar e, em casos mais drásticos, expressa na de-pressão e no suicídio entre adolescentes. Com índices cada vez mais preocupantes, o suicídio de adolescentes brasileiros cresceu 24% entre os anos de 2006 e 2015, de acordo com estudos feitos pelos pesquisadores Jair Mari, Elson Aseve-do e Denisse Jaen-Varas, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Segundo o estudo, o aumento da taxa de suicídio está relacionado à falta de condições e perspectivas de vida, provocando sentimentos de desesperança e inutili-dade. Isso acontece não apenas no Brasil. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), 800 mil suicídios ocorrem todos os anos no mundo, sendo a segunda princi-pal causa de morte entre jovens de 15 a 29 anos.

A terceira edição da pesquisa Juventudes e Conexões, re-alizada pela IBOPE Inteligência, em parceria com a Rede Conhecimento Social e a Fundação Telefônica Vivo, divul-gada em setembro de 2019, constata, por exemplo, que 59% dos jovens não se sentem ouvidos quando o tema é políti-ca e causas sociais. Se não é possível associar diretamente a falta de escuta dos jovens a problemas extremos como o aumento da taxa de depressão e suicídio, essas pesquisas fazem um chamado urgente para a sociedade olhar com mais atenção às oportunidades presentes na valorização e no incentivo ao protagonismo dos estudantes.

ENTRANDO SEM PEDIR LICENÇADiversos, múltiplos e complexos, crianças e jovens têm

sido protagonistas não apenas de suas trajetórias, mas de grandes transformações locais e globais. Sem pedir licen-ça, jovens como Ana Beatriz, Mércia e Isabella efetivam na prática a educação antirracista que querem ver em sua esco-la na cidade de Sumaré (SP); adolescentes como Silmara, João Victor e Isaías utilizam a cultura para o resgate e a va-lorização de sua comunidade quilombola em Triunfo (PE);

alunas como Roberta, Betina e Ketlin realizam atividades com crianças pequenas em Sapiranga (RS), com o objeti-vo de reduzir a violência contra as mulheres no município.

A ação dos estudantes vai desde transformações pedagógi-cas no cotidiano de uma sala de aula até movimentos como o que resultou nas ocupações das escolas paulistas pelos es-tudantes secundaristas em 2015 e a mobilização em prol do clima impulsionada pela jovem sueca Greta Thunberg, que se espalhou pelo mundo no ano de 2019.

Com maior ou menor repercussão, iniciativas estão ocor-rendo e trata-se de um processo sem volta. A autoria dos estudantes é uma oportunidade para as inovações no en-frentamento de problemáticas sociais, mas será que esco-las, universidades e a sociedade em geral estão atentas para a aprendizagem potente e viva desses alunos e alunas em suas intervenções sociais? Estamos abertos e preparados para conhecer, dialogar e nos permitir ser transformados pelos meninos e meninas protagonistas?

As respostas não estão dadas, mas é importante dizer que as cartas estão na mesa e existem muitas possibilidades a serem construídas. Provocados pelo que crianças e jovens já estão realizando, vemos que essas alternativas só serão alcançadas por meio do reconhecimento do protagonismo dos mais jovens no enfrentamento das problemáticas que afetam suas vidas e a de todos, principalmente daqueles historicamente excluídos dos processos de decisão não só da educação, mas de toda a sociedade, tais como pessoas negras, periféricas, mulheres e pessoas com deficiência, por exemplo.

É necessário estar, lado a lado, com eles, buscando res-ponder a algumas perguntas como ponto de partida: como tornar os espaços de participação mais efetivos em nossas escolas e universidades? Como favorecer o protagonismo dos estudantes para que se concretizem suas ideias de ma-neira colaborativa, com suas respectivas comunidades es-colares e acadêmicas?

Esse é um convite para a construção coletiva de respos-tas. Que as crianças e os jovens nos ajudem a lembrar que somos capazes de reinventar a sociedade – e isso inclui as próprias escolas e universidades. E que eles estejam conos-co nesse processo.