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LUCAS COELHO SIQUEIRA
OS FILHOS DOS IMIGRANTES:
Jovens em trânsito no início do século XXI
(1990-2009)
FLORIANÓPOLIS
2010
UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTTÓRIA
LUCAS COELHO SIQUEIRA
OS FILHOS DOS IMIGRANTES:
Jovens em trânsito no início do século XXI
(1990-2009)
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade do
Estado de Santa Catarina, como requisito
parcial e último para obtenção do grau de
Mestre em História.
Orientadora: Professora Doutora Gláucia de
Oliveira Assis
FLORIANÓPOLIS
2010
Aos meus pais, Suélio e Glória, que sempre me
incentivaram a buscar meus sonhos.
À minha esposa Tatiane. Sua paciência, apoio e
compreensão possibilitaram este trabalho.
AGRADECIMENTOS
Para a realização deste estudo, contei com ajuda e contribuição indispensáveis
de pessoas e instituições às quais gostaria de agradecer. Registro, pois, aqui, minha
gratidão à Universidade do Estado de Santa Catarina que, por meio do Departamento de
História, do Programa de Pós-Graduação em História do Tempo Presente, forneceu-me
suporte institucional e auxílio financeiro essenciais às minhas atividades de aluno e
pesquisador.
O meu muito obrigado a professora Gláucia de Oliveira Assis que conduziu
minha orientação com dedicação e paciência, e transformou nossas reuniões de trabalho
em grandes aulas de História e Antropologia.
Agradeço à generosidade e ao apoio dos professores Emerson César de Campos
e Sílvia Maria Fávero Arend, que tanto me auxiliaram nesta caminhada. O meu muito
obrigado àqueles que me receberam em Governador Valadares, especialmente a
professora, tia e grande amiga Sueli Siqueira.
Minha gratidão aos conterrâneos mineiros e aos seus filhos que com boa vontade
e curiosidade me receberam em Governador Valadares.
Agradeço aos meus pais Suélio Siqueira e Maria da Glória Carvalho Coelho
Siqueira, por todo apoio que sempre me deram, e à minha esposa Tatiane Dallagnol
Siqueira, a quem, com amor, dedico este trabalho.
Ora, colocar a questão da identidade não
equivale, não deve equivaler, a recuar de
forma indiscriminada ao sujeito, mas antes a
redefini-lo, como elemento constitutivo a
nível cultural, psíquico e social, de
identidades construídas.
Stuart Hall, Da Diáspora
Nas asas do sonho partem os migrantes,
Aos milhares e milhões põem-se em marcha;
Das terras do desemprego e da fome
Rumam em direção às terras do trabalho e do pão;
Rompem leis, fronteiras e obstáculos,
Fortes e frágeis na luta pela vida.
Teimosos, voltam a erguer-se o sonho e o migrante;
Nas asas do vento, vencem ambos o caminho;
O sonho se faz raiz, se faz broto e se faz tronco,
Se faz árvore, se faz flor e se faz fruto;
No chão de uma nova pátria planta raízes,
Que hão de forjar uma cidadania sem fronteiras,
Onde acima da raça, língua ou cultura, está a vida.
Pe. Alfredo J. Gonçalves
RESUMO
A migração de indivíduos provenientes da cidade de Governador Valadares, Minas
Gerais, para os Estados Unidos é um fenômeno social que têm despertado o interesse da
comunidade acadêmica, principalmente a partir da década de 1980. Este trabalho busca
lançar um olhar diferente sobre esse fenômeno tão expressivo, direcionando a análise
para aos filhos dos imigrantes valadarenses. Estes são jovens que nasceram nos Estados
Unidos ou migraram ainda muito novos, no final da década de 1990 ou nos primeiros
anos do século XXI, e fizeram boa parte da sua educação básica no exterior. Para a
realização da pesquisa, foram coletadas cinco entrevistas entre os meses de janeiro e
março de 2009. Foram entrevistados três rapazes e duas moças entre 16 e 25 anos, que
emigraram com no máximo quinze anos ou nasceram nos Estados Unidos. O primeiro
capítulo trata da definição do que é um imigrante e dos tipos de migração, introduz a
trajetória dos entrevistados, as semelhanças e diferenças entre os antigos e os novos
fluxos migratórios e uma reflexão sobre a cidade de Governador Valadares e de sua
relação histórica com a migração internacional. O segundo capítulo procura debater os
conceitos de geração e juventude, focando os jovens migrantes agindo e expressando-se
de diversas formas: mediando a língua falada em casa junto aos pais, com os amigos, as
atividades de lazer, festas e namoros; construindo e reconstruindo impressões sobre o
Brasil e sobre o passado da família; incentivando e/ou reprovando os valores adquiridos
na escola; enfrentando os desafios de conciliar os estudos com o mundo do trabalho, tão
presente na vida dos imigrantes brasileiros. Por fim, aborda os sonhos, planos e as
expectativas destes jovens para um futuro muitas vezes incerto. Assim, este trabalho
procura compreender o processo histórico e os fatores socioeconômicos e culturais do
fenômeno da migração moderna, procurando desvendar as dinâmicas da formação
identitária, da linguagem específica e das peculiaridades da vida entre dois mundos,
fornecendo assim, novos olhares que servirão como diálogo para outros estudos dos
campos da História do Tempo Presente e História das Migrações que tenham como
alvo a segunda geração de imigrantes brasileiros.
PALAVRAS-CHAVE: Migrações Internacionais; Segunda Geração; História das
Migrações; Governador Valadares.
ABSTRACT
The migration of people from the city of Governador Valadares, Minas Gerais, for the
United States is a social phenomenon that has attracted the interest of scholars, mostly
since the 1980s. This paper seeks to provide a differently look on such expressive
phenomenon, directing the analysis for the children of immigrants, who emigrated
during the eighties and nineties. Those young immigrants were born in the United States
or migrated still very young and did much of their basic education abroad. To conduct
the study, five interviews were collected between January and March 2009. We
interviewed three boys and two girls between 16 and 25, who emigrated with a
maximum of 15 years or were born in the United States. The first chapter deals with the
city and its historical relationship with international migration, the similarities and
differences between the old and new migratory flows and an introduction to the
trajectory of the young immigrants. The second chapter begins with an analysis on the
concepts of youth and generation; attempts to focus on young migrant acting and
expressing itself in various ways - mediating the language spoken at home with parents,
and the language spoken with friends, building and rebuilding what are their feelings
and memories of Brazil and about the family's past, encouraging and or disapproving
the values obtained at school, with friends and with the society that surrounds them. The
conclusion deals with dreams, plans and expectations of these young people for an often
uncertain future. This paper seeks to understand the historical process and the
socioeconomic and cultural phenomenon of modern immigration, trying to discover the
dynamics of identity formation, language and specific peculiarities of living between
two worlds and thus provide new insights that will serve as a dialogue for other studies
from the fields of History of Time Present and History of Migration, which target the
second generation of Brazilian immigrants.
KEYWORDS: International Migration, Second Generation, Migration History,
Governador Valadares.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 10
Primeiro Capítulo:
A PARTIDA ....................................................................................................................... 19
“Velhos” e “Novos” Emigrantes ......................................................................................... 28
Governador Valadares, Minas Gerais – O Ponto de Partida .............................................. 38
Segundo Capítulo:
GERAÇÃO E JUVENTUDE .......................................................................................... 43
Juventude em Movimento: Os Filhos Acompanhando os Pais ........................................... 45
O Mundo da Escola ........................................................................................................ 55
O Mundo do Trabalho ........................................................................................................ 74 Considerações Finais: Os Planos para o Futuro ................................................................. 84
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................. 89
ANEXO ............................................................................................................................... 94
LISTA DE IMAGENS
Imagem 1 - Vista do Bairro Imigrante de Ironbound, Newark ..................................... 24
Imagem 2 – Bairro Vila Isa, Governador Valadares, às margens do Rio Doce ............ 27
Imagem 3 – Lawrence, Massachusetts .......................................................................... 31
Imagem 4 – Prédios do Conjunto Habitacional do Bairro São Pedro – Governador
Valadares, MG ............................................................................................................... 33
Imagem 5 – Recorte do Mapa do Estado de Massachusetts, EUA ................................ 35
Imagem 6 – Rua Principal de Malden, Massachusetts .................................................. 36
Imagem 7 – Bairro Santa Rita, Governador Valadares, MG ......................................... 36
Imagem 8 – Microrregião de Governador Valadares, MG ............................................ 38
Imagem 9 – Vista aérea de Governador Valadares e Pico do Ibituruna ........................ 42
Imagem 10 – Brazilian Day, Nova York ....................................................................... 52
Imagem 11 – Arlington Elementary School, Lawrence, Massachusetts – Pátio
Central ........................................................................................................................... 58
Imagem 12 – Time de Futebol Americano da Newark High School ............................ 71
Imagem 13 – Mascote do Time de Futebol Americano da Newark High School ......... 71
Imagem 14 – Trabalhadores Imigrantes na Construção Civil nos EUA ....................... 81
10
INTRODUÇÃO
É impossível andar no centro de Manhattan e
alguns setores do Queens sem topar com
brasileiros.
M. Margolis, Little Brazil
O ato de migrar é um importante fenômeno sócio-histórico que acompanha e
atravessa a história do Brasil. O deslocamento populacional no espaço está,
normalmente, relacionado a uma busca constante por melhores condições de vida,
descoberta de novas fontes de riqueza e oportunidades de trabalho. Na dinâmica
capitalista, a mobilidade populacional tanto interna quanto internacional, exerceu e
exerce influências marcantes no processo de urbanização e aceleração da acumulação de
capital.
No Brasil, na segunda metade do século XIX, com o fim do sistema econômico
baseado na força de trabalho escrava e a expansão da cultura do café, deu-se início a
imigração européia em grande escala, principalmente italiana e alemã. Os estados onde
se situavam as grandes lavouras passaram a financiar a imigração da força de trabalho.
A chegada da primeira leva desses imigrantes ocorreu no período de 1880 a 1903 com a
entrada de quase dois milhões de imigrantes europeus. No início do século XX, com a
crise cafeeira e a proibição da emigração por parte do Estado Italiano,1 devido às
péssimas condições de trabalho, ocorreu uma drástica diminuição da entrada dos
imigrantes europeus no Brasil.2
Entre 1904 e 1930, outra grande leva de imigrantes chegou: foram mais de dois
milhões de imigrantes japoneses, russos, poloneses, romenos entre outros. Em 1927, o
Governo do Estado de São Paulo acabou com o subsídio para a imigração estrangeira.
Este fato tem como conseqüência uma súbita redução da entrada de novos imigrantes.
1 O Decreto Prenetti proibia a emigração gratuita para o Brasil. São Paulo e os Estados do Sul financiavam o processo
de imigração dos trabalhadores europeus, principalmente italianos. 2 CAMARGO, J. F. Crescimento da população no Estado de São Paulo e seus aspectos econômicos. Ensaios
Econômicos. IPE-USP, São Paulo, n. 14, 1981.
11
De modo menos expressivo que os anos anteriores, de 1932 a 1935, registram-se a
chegada de imigrantes japoneses. O fluxo torna a ascender, após a Segunda Guerra
Mundial, como apontam Neide Patarra e Rosana Baeninger:
Nessa etapa predominavam as migrações espanholas, gregas, etc.
Considerando-se o período entre 1872-1972, mais de cinco milhões de
estrangeiros entraram no país. 3
Até os anos 1950 o Brasil era reconhecido como um país recebedor de
imigrantes internacionais. Nos anos 1960, percebe-se uma mudança desse caráter de
recebedor de imigrantes para emissor de mão-de-obra aos países mais industrializados.
Para a compreensão dessa nova dinâmica dos fluxos migratórios no Brasil, é necessário
analisar o panorama mundial que configura os novos rumos dos movimentos
populacionais.
Os fluxos migratórios contemporâneos são diversificados, muitas vezes
direcionados dos países periféricos para os países economicamente desenvolvidos. Essa
nova configuração da mobilidade populacional está ligada a uma importante
característica do capitalismo contemporâneo: a globalização da produção.
A flexibilidade dos processos de produção, do mercado, dos produtos e do
consumo, característica das últimas décadas do século XX, promoveu o surgimento de
cidades globais4, como também proporcionou profundas modificações nas relações de
trabalho, que também se tornaram flexíveis. De um lado o mercado demanda um
trabalhador com um alto nível de qualificação e, por outro, apresenta-se uma certa
expansão de um mercado para trabalhadores não qualificados.5
Esse segmento do mercado de trabalho não qualificado é preenchido, nas
cidades globais das economias desenvolvidas, pelo imigrante internacional. Este é um
dos aspectos que tem configurado as novas correntes migratórias.
O encolhimento do espaço que faz diversas comunidades do globo
competirem entre si implica estratégias competitivas localizadas e um
sentido ampliado de consciência daquilo que torna um lugar especial e lhe
dá vantagens competitivas. Essa espécie de reação ligada muito mais na
3 PATARRA, Neide & BAENINGER, Rosana. Migrações internacionais recentes: o caso do Brasil. In: PATARRA,
Neide (org.). Emigração e Imigração Internacionais no Brasil Contemporâneo. São Paulo: FNUAP, 1995. p.79-
87 4 SASSEN, Saskia. The Global City: New York, London, Tokyo. Princeton University Press, 1991.
5 CARNOY, Martin et al. The New Global Economy in the Informacional Age. University Park. PA: Pennsylvania
State University, 1993.
12
identificação do lugar, na construção e indicação de suas qualidades ímpares
num mundo cada vez mais homogêneo, mas fragmentado. 6
A partir desta perspectiva, o fenômeno da migração internacional deve ser
observado dentro da “complexidade da economia global atual que corresponde a certas
desconjunturas fundamentais entre economia, cultura e política.” 7
Segundo Arjun Appadurai, para abordar imigração é necessário observar cinco
dimensões. A primeira diz respeito aos grupos étnicos, os imigrantes, exilados e
trabalhadores temporários. A segunda reflete-se na capacidade de produção e
disseminação das informações; a terceira responde pela capacidade de inserção na
economia global; a quarta dimensão refere-se à velocidade de movimentação de altas
quantias de dinheiro e a última refere-se ao conceito de liberdade, bem estar social e
democracia.8
Nesta nova dinâmica global, o Brasil, que já se inseria no contexto do
capitalismo mundial como um dos países periféricos, tornou-se também um fornecedor
de mão-de-obra para os centros industrializados. A emigração brasileira é conseqüência
do mesmo processo de globalização econômica e flexibilização das relações de trabalho,
resultante do novo paradigma da economia mundial. Dentro desse novo contexto, a
emigração de brasileiros para o exterior é pouco significativa, em termos de volume, se
comparada a de outros países com mais tradição de emigração. Porém, tem grande
impacto nas cidades de onde partem os imigrantes, como no caso da cidade de
Governador Valadares, Minas Gerais.
O destino da maioria dos brasileiros são os Estados Unidos. Durante as décadas
de 1980 e 1990, um grande fluxo de brasileiros ajudou a engrossar os números da
imigração nos Estados Unidos, partindo para o exterior com a expectativa de acumular,
ao longo de alguns anos de trabalho, uma soma de dinheiro suficiente para lhes garantir
uma vida mais estável e confortável quando de sua volta ao Brasil. Apesar dessa
intenção manifesta de retorno à terra natal, muitos brasileiros acabaram por adiar seus
planos iniciais, tendo, em última instância, criado raízes nas terras estrangeiras. Isto se
deve, principalmente, pelas possibilidades de trabalho e configuração das redes de
relações que disseminam informações sobre o mercado de trabalho e criam mecanismos
facilitadores para o processo de emigração.
6 HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. São Paulo: Loyola, 1993. p.247. 7 PATARRA e BAENINGER, 1995. p.82. 8 APPADURAI, A. Disjuncture and Difference in the Global Culture Economy. In: FEATHERSTONE, Mike (org.),
Global Culture. Londres: Sage Publications, 1991. p. 295-310.
13
Entre 1985 e 1988, estima-se que cerca de 1.250.000 brasileiros emigraram. 9
Passado cerca de vinte cinco anos deste período emblemático é de grande importância
ampliar o olhar da História da Emigração nacional para incluir a geração subseqüente de
emigrantes brasileiros, a qual é crescente e cada vez mais representativa da vida dos
brasileiros no exterior. As narrativas destes jovens estão carregadas dos dilemas
próprios da juventude contemporânea, acrescidas das singularidades de uma vida que se
desenvolve entre duas sociedades, refletindo uma construção, muitas vezes conflituosa,
entre a relação com o passado e com a “memória” da terra natal frente aos
enquadramentos estabelecidos pela sociedade norte-americana.
É necessário ressaltar que o termo Segunda Geração não engloba um bloco
homogêneo de indivíduos. Podemos encontrar, dentro da segunda geração, três grupos
distintos de imigrantes:10
O primeiro grupo inclui jovens que nasceram e passaram os primeiros anos da
infância no Brasil. Emigraram ainda crianças, mas conservam uma forte carga
referencial de suas origens.
O segundo grupo é constituído pelos que nasceram no Brasil, mas emigraram na
primeira infância, efetivando o processo de socialização na sociedade norte-americana.
Estes possuem um conjunto de referências da terra natal formada, principalmente, a
partir de relatos dos pais e de pessoas mais velhas da comunidade brasileira, além das
informações recebidas através dos canais de televisão e outros meios de comunicação.
Estes dois primeiros grupos são denominados de Geração 1.5, para melhor
distinguir suas características do terceiro grupo, formado pelos jovens nascidos nos
Estados Unidos: a segunda geração propriamente dita. Esta distinção é importante,
sobretudo porque os jovens nascidos nos Estados Unidos possuem status legal de
cidadãos norte-americanos, enquanto a Geração 1.5, na sua maioria, não possui a
documentação que regulariza sua situação. Sem dúvida, a situação legal influi
profundamente no dia-a-dia e na própria construção da identidade destes jovens.
Neste trabalho, procuro refletir sobre os jovens e adolescentes brasileiros, no
contexto migratório. O objetivo deste trabalho é reconstruir a trajetória deste jovem
emigrante no início do século XXI a partir de suas narrativas. Eles emigraram muito
9 Martes, Ana Cristina Braga. Brasileiros nos Estados Unidos: Um estudo sobre imigrantes em Massachusetts.
Paz e Terra. São Paulo, 1999.
10 MENEZES, Gustavo Hamilton. Filhos da Imigração: Sobre a Segunda Geração de Imigrantes Brasileiros nos
EUA. Programa de Pós-graduação em Antropologia Social – UNB, Brasília, 2002. (Dissertação, Mestrado).
14
jovens, geralmente acompanhando seus pais na busca pelo sonho de sucesso econômico.
Suas narrativas ajudam a compreender quem são estes jovens que constituem a segunda
geração, como vivem, como se relacionam com o Brasil, sobretudo diante das pressões
surgidas pela atual crise econômica mundial e do endurecimento das políticas para os
imigrantes no contexto pós 11 de setembro de 2001.
Com o olhar focado na segunda geração, enxerga-se com mais precisão essas
pessoas que não raramente vivem suas vidas entre dois mundos, muitas vezes, nascidas
em um país que já não está em sua memória, conhecedoras de outra cultura por
intermédio das figuras paternas, dos parentes e da comunidade imigrante. Hábeis
“negociantes” culturais com a capacidade de se adaptar a contextos diferentes:
Pessoas muitas vezes com passes livres para esses dois mundos, muitas vezes
com restrições de acesso a ambos, mas, de uma forma ou de outra, pessoas
com noções de pertencimento ambíguas, como que eternamente embasadas
pelos seus abundantes dilemas identitários. 11
Estudando a segunda geração de imigrantes compreendemos melhor a primeira,
pois enxergamos seus membros atuando de forma singular – decidindo a língua a ser
falada em casa junto aos filhos, transmitindo aos mais novos conhecimentos e
impressões sobre o Brasil e sobre o passado da família, incentivando e/ou reprovando os
valores adquiridos pelos filhos com a escola, com os amigos, enfim, com a sociedade
que os envolve.
Em uma pesquisa histórica, especialmente em uma pesquisa com enfoque na
História do Tempo Presente, os maiores desafios apresentados ao historiador são a
delimitação dos procedimentos metodológicos e a seleção das formas mais adequadas à
interpretação do transcurso do tempo. Diante dos problemas relativos à subjetividade
imanente à escrita da história, torna-se necessário a construção de procedimentos
metodológicos claros e suscetíveis a crítica historiográfica, explicitando as fontes e o
contexto da informação.
A pesquisa de campo na qual se baseia este estudo foi realizada em Governador
Valadares, Minas Gerais, entre os meses de janeiro e março 2009. Governador
Valadares é uma cidade que desenvolveu uma relação histórica com a emigração para
os Estados Unidos, por isso foi escolhida como alvo principal da pesquisa. Em
11 MENEZES, Gustavo Hamilton. Filhos da Imigração: Sobre a Segunda Geração de Imigrantes Brasileiros nos
EUA. Programa de Pós-graduação em Antropologia Social – UNB, Brasília, 2002. (Dissertação, Mestrado). p. 9
15
Governador Valadares, o primeiro passo foi buscar famílias que possuíam algum
parente nos Estados Unidos, visitando-os em suas casas, trabalhos, nas escolas e assim
realizando entrevistas. Jornais e periódicos da comunidade brasileira nos EUA,
impressos e on-line, também foram fontes preciosas de informações para essa
pesquisa12
.
Porque a escolha da cidade de Governador Valadares como ponto de partida?
Existem hoje muitos estudos sobre a relação da cidade com a dinâmica da migração,
mas poucos destes estudos referem-se especificamente à segunda geração13
. Há também
uma motivação pessoal em relação à cidade. Natural de Governador Valadares, pude
observar vários amigos e colegas deixando o convívio diário na escola e na vizinhança
para acompanhar seus pais na aventura migratória.
Realizar um trabalho de pesquisa a partir da experiência subjetiva do
pesquisador não significa transformar a análise histórica em análise psicológica ou do
sujeito. Significa explicitar a inequívoca relação entre investigador e o objeto. O
mergulho na subjetividade, que até pouco tempo significava enfraquecimento do
trabalho acadêmico, torna-se um procedimento válido na medida em que o próprio
princípio da objetividade como fonte única do conhecimento científico passa a ser
questionada.14
Isto não implica em abdicar o método histórico como processo de
abordagem do objeto. Implica na compreensão de que o conhecimento é construído a
partir dos anseios, das dúvidas e aspirações de ordem subjetiva. O que move o
pesquisador é a subjetividade.
O fato de ser valadarense proporcionou-me o estabelecimento de uma relação
mais próxima e de confiança com os entrevistados. Foi possível compreender os signos,
gírias e expressões utilizados por eles, muitas vezes relacionados a eventos e práticas
locais. Porém, o cuidado metodológico mostrou-se fundamental para que este mergulho
12 Edições online de jornais voltados para os brasileiros nos Estados Unidos como o Brazilian Times, Brazilian Press
e Comunidade News. Foram pesquisados artigos que abordavam os jovens brasileiros a partir de 2001. Também foi
consultada a edição impressa do Diário do Rio Doce, periódico da cidade de Governador Valadares, na busca por
informações sobre a segunda geração. 13 Destacam-se trabalhos como: ASSIS, Gláucia. Estar aqui, estar lá... uma cartografia da vida entre dois lugares.
Programa de pós-graduação em Antropologia Social UFSC. Florianópolis, 1995. (Dissertação, Mestrado);
SIQUEIRA, Sueli. Migrantes e empreendedorismo na Microrregião de Governador Valadares: Sonhos e
frustrações no retorno. Programa de Pós-graduação em Sociologia Política – UFMG, Belo Horizonte, 2006. (Tese,
Doutorado); SOARES, Weber. Emigrantes e Investidores: redefinindo a dinâmica imobiliária na economia
valadarense. Programa de Pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional – UFRJ, Rio de Janeiro, 1995.
(Dissertação, Mestrado); FUSCO, Wilson. Redes Sociais na Imigração Internacional: O Caso de Governador
Valadares. Programa de Pós-graduação em Sociologia – UNICAMP, Campinas, 2000. (Dissertação, Mestrado).
Dentre outros. 14 GROSSI, Míriam P. Em busca de outros e outras: gênero, identidade e representações em antropologia.
ABRALIC. Florianópolis, 1991.
16
na subjetividade, e nas narrativas, formasse um conjunto de informações substantivas
para a compreensão da trajetória dos jovens migrantes.
Para a realização da pesquisa foram realizadas cinco entrevistas, nas quais os
jovens imigrantes contavam suas trajetórias de emigração, relatando suas experiências.
Foram entrevistados três rapazes e duas moças, que emigraram com no máximo
dezesseis anos.15
A maioria dos entrevistados haviam retornado recentemente para o
Brasil, de forma definitiva.
Lidar com fontes orais exige uma série de recomendações metodológicas que
não podem ser menosprezadas. As entrevistas não podem se dar de maneira aleatória,
mas devem ser pautadas por objetivos e problematizações previamente definidos.16
Neste sentido, foi elaborado um roteiro que direcionou as principais perguntas
norteadoras das entrevistas que foram realizadas.17
Entretanto, a necessidade da pré-
elaboração de um roteiro não deve ser percebida como um enquadramento definitivo do
teor das entrevistas.18
Por isso procurou-se, ao longo das entrevistas, buscar narrativas
que extrapolavam os questionamentos previamente delineados, o que levou às falas dos
entrevistados, algumas vezes, a percorreram caminhos inusitados, porém igualmente
ricos.
A análise desses relatos conduziu a uma outra reflexão, a dos “usos e abusos”
dos relatos orais na pesquisa histórica. O relato subjetivo, como discutido por Beatriz
Sarlo na obra Tempo Passado, deve ser perpassados por questionamentos importantes,
tais como:
Que relato da experiência tem condições de esquivar a contradição entre a
firmeza do discurso e a mobilidade do vivido? A narração da experiência
guarda algo da intensidade do vivido? A experiência se dissolve ou se
conserva no relato? É possível relembrar uma experiência ou o que se
relembra é apenas a lembrança previamente posta em discurso? Há algum
sentido em reviver a experiência ou o único sentido está em compreendê-la,
longe de uma revivência, e até mesmo contra ela? 19
15 Esta é a faixa etária de inserção na High School o equivalente ao segundo grau no sistema educacional norte-
americano. 16LOZANO, Jorge Eduardo Aceves. Prática e estilos de pesquisa na história oral contemporânea. In: AMADO,
Janaína & FERREIRA, Marieta de Moraes (orgs.). Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro: FGV, 2006. 19. 17 Este roteiro segue anexo no final do texto. 18 LOZANO, Jorge Eduardo Aceves. Prática e estilos de pesquisa na história oral contemporânea. In: AMADO,
Janaína & FERREIRA, Marieta de Moraes (orgs.). Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p.
23. 19 SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras,
2007. p.23
17
O passado não faz parte de um tempo definitivamente acabado. Pelo contrário,
ele se reaviva ao ser lembrado, tornando a memória, imbuída no relato oral, elemento
chave nos estudos das migrações. Assim, a memória, na medida em que reinterpreta o
passado, contém a potencialidade de transformar o presente, reconstruindo os
significados das ações dos indivíduos e dos grupos, e possibilitando a reelaboração de
projetos, que avancem no tempo, estruturando elementos importantes para a construção
de um caminho seguro em direção ao futuro.20
Neste sentido, o presente estudo propõe desenvolver, com o auxílio da história
oral e da memória, a análise de um recorte específico dentro do contexto da imigração
de brasileiros para os Estados Unidos, enfocando os relatos dos jovens emigrantes
acerca dos difíceis momentos da chegada das famílias na sociedade de destino e do
processo de conhecimento e inter-relação com a sociedade norte-americana.
Por meio da história oral e da memória, do mesmo modo como numa escavação
arqueológica, a reorganização dos fragmentos de lembranças individuais permitiu
visualizar, ainda que de modo parcial, os vestígios narrativos destes jovens nos Estados
Unidos.
O trabalho de análise destes relatos individuais assemelha-se a atividade da
tecelagem com fios partidos de experiências fragmentadas, 21
através da qual alguns fios
da memória podem ser reconstruídos a partir de lembranças individuais. Neste sentido,
a tecelagem dos fios partidos da memória, através das narrativas destes jovens, busca re-
construir a memória das gerações mais recentes e assim compreender melhor o
momento histórico atual em que milhares de trabalhadores brasileiros embarcam nos
aeroportos internacionais com destino aos postos de trabalho desqualificado das grandes
cidades norte-americanas.
Trazendo à luz da análise histórica as experiências destes sujeitos, situados
muitas vezes à margem da história oficial, buscou-se tirar da invisibilidade alguns
determinantes históricos da atual condição de milhares de jovens imigrantes filhos de
brasileiros no exterior. Nesse sentido, as memórias destes emigrantes foram ferramentas
com as quais se buscou realizar um trabalho de escavação e de reconstrução da
experiência migratória.
20
SILVA, M. A. de M. A luta pela terra: experiência e memória. São Paulo: Unesp, 2004. 21
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo:
Brasiliense, 1994.
18
Esta metodologia deve servir como forma a elucidar questões silenciadas em
documentos escritos e visuais, oportunizando, inclusive, o confronto de informações
divergentes.
Outro ponto relevante na pesquisa baseada em relatos orais é a postura ética que
deve ser mantida em todas as etapas da pesquisa, desde o processo de realização das
entrevistas até as interpretações que fazemos sobre os relatos produzidos. Ao lidarmos
com pessoas, procuramos tomar todos os cuidados com a divulgação da fala dos
entrevistados, evitando constrangimentos àqueles que se propuseram a colaborar com o
nosso trabalho. Desta forma, todos os entrevistados apresentam-se com nomes alterados
e fictícios.
Assim, a questão principal que norteia este trabalho é compreender o processo
histórico e os fatores socioeconômicos e culturais do fenômeno da migração moderna,
focando a segunda geração de imigrantes. O trabalho procura desvendar as dinâmicas da
formação identitária, da linguagem específica e das peculiaridades da vida entre dois
mundos, fornecendo assim, novos olhares que servirão como diálogo para outros
estudos dos campos da História do Tempo Presente e História das Migrações que
tenham como alvo a segunda geração de imigrantes brasileiros.
Procurando responder estas questões, o presente trabalho estrutura-se em dois
capítulos, onde o primeiro capítulo apresenta os jovens entrevistados e trata das
semelhanças e diferenças entre os antigos e os novos fluxos migratórios, passando por
uma análise da cidade de Governador Valadares e de sua relação histórica com a
migração internacional e finalizando com uma reflexão sobre os conceitos de geração e
juventude.
O segundo capítulo procura focar o jovem migrante agindo e expressando-se de
diversas formas – mediando a língua falada em casa junto aos pais, e a língua falada
com os amigos; construindo e reconstruindo impressões sobre o Brasil e sobre o
passado da família; incentivando e/ou reprovando os valores adquiridos na escola, com
os amigos, enfim, com a sociedade que os envolve. Por fim, nas considerações finais
procura-se compreender o sentido das narrativas, enfatizando, sobretudo, os sonhos,
planos e as expectativas que estes jovens reservam para um futuro que se apresenta,
muitas vezes, incerto.
19
Primeiro Capítulo
A Partida
“Aí minha irmã começou a dar piripaque querendo ir para lá” 22
Podemos também admitir que, nos últimos
anos, houve considerável diversificação, e
um sensível ressurgimento do interesse por
temas que eram bem mais marginais às
principais preocupações dos historiadores
tradicionais, embora tais temas jamais
fossem totalmente negligenciados.
Eric Hobsbawn
As práticas e teorias da História como disciplina acadêmica sofreram profundas
reformulações nas últimas décadas. O que foi rotulado como a “crise da ciência
histórica”, até bem pouco tempo atrás, pode ser interpretado justamente como o aspecto
mais interessante e positivo no desenvolvimento recente da disciplina. Podemos citar,
como conseqüência deste processo de reformulações teórico-metodológicas, a
multiplicação de objetos, problemas e abordagens. Segundo Jacques Le Goff e Pierre
Nora, “a História se afirma como nova ao anexar novos objetos que até agora lhe
escapavam e se situavam fora do seu território” 23
.
O avanço notável representado pela valorização dos temas e objetos da História
do Tempo Presente, desprezados pelas matrizes do historicismo rankeano e da Escola
Metódica Francesa 24
, partiu da constatação de que o historiador não pode relegar para o
futuro a tentativa de compreender o tempo em que vive.
Desta forma, devemos também procurar compreender as singularidades do nosso
tempo, com os acontecimentos forjados no dia-a-dia e disseminados pelos modernos
meios de comunicação de massa que perpassam nossas vidas cotidianas.
22
Carla, nome fictício, entrevistada em 17/01/2009. 23 LE GOFF, Jacques & NORA Pierre. História: Novos Problemas. Rio de Janeiro: Contraponto, 1976. p. 13 24 Sobre as concepções teórico-metodológicas do historicismo rankeano e da Escola Metódica francesa ver:
CARBONELL, Charles-Oliver. O século da História. In: ___. Historiografia. Lisboa: Teorema, 1992. p. 91-110.
20
François Bédarida 25
propõe que o caráter inacabado e em constante movimento
é, mais do que qualquer outro, constitutivo da História do Tempo Presente e é esse o
desafio a se enfrentar perante a questão da responsabilidade social do historiador na
abordagem de temas controversos que ainda tocam de forma marcante a vida das
pessoas. Entre os temas que ganharam espaço junto ao conjunto de trabalhos
historiográficos acerca do presente, destacam-se os estudos sobre migração
contemporânea.
Os deslocamentos contemporâneos por suas múltiplas implicações sociais,
econômicas e culturais na vida cotidiana de homens e mulheres que vivem essa
experiência, tem colocado questões significativas para a História do Tempo Presente.
Segundo Alistair Thomson, professor do Centro de Educação Continuada da
Universidade de Sussex e pesquisador da História das Migrações:
A História da migração está interessada, sobretudo, nos processos pelos quais
os migrantes, individual e coletivamente, se estabelecem em nova região ou
país, e pelas maneiras em que as redes de trabalho e os estilos de vida do
local de origem são recriados e modificados no novo mundo. 26
Assim, os processos migratórios internos e internacionais tornam-se parte do
corpo da análise histórica, na medida em que estabelecem uma relação com o passado
que abarca a construção de velhos e novos mundos, onde a memória e os símbolos da
terra natal são recriados, renomeados, negociados e adaptados ao novo contexto. Muito
além da simples passagem física do deslocamento de um lugar para outro, a experiência
migratória configura-se como processo histórico complexo que deixa marcas por toda a
vida do migrante e nas gerações subseqüentes.
As discussões e definições sobre quem são os migrantes, como se caracterizam
e, principalmente, quais são suas motivações, constituem um aspecto fundamental dos
Estudos das Migrações.
Edward W. Said, no ensaio Reflexões sobre o Exílio, aponta as principais
diferenças entre os conceitos de exilado, refugiado, expatriado e emigrante:
O exilado tem origem na velha prática do banimento. Uma vez banido, o
exilado leva uma vida anômala e infeliz, com o estigma de ser um
forasteiro. (...) Os refugiados são uma criação do Estado no século XX. A
25
BÉDARIDA, François. Tempo Presente e Presença na História. In: FERREIRA, Marieta de M. & AMADO,
Janaína (orgs.). Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro, Editora da FGV, 1996. 26 THOMSON, Alistair. Histórias (co) movedoras: História Oral e Estudos de Migração. Revista Brasileira de
História, São Paulo, vol. 22, n.44, p.3-15, 2002.
21
palavra “refugiado” tornou-se política: ela sugere grandes rebanhos de
gente inocente e desnorteada que precisa de ajuda internacional urgente.
(...) Os expatriados moram voluntariamente em outro país, geralmente por
motivos pessoais ou sociais. (...) Os emigrantes gozam de uma situação
ambígua. Do ponto de vista técnico, trata-se de alguém que emigra para
outro país. Claro, há sempre uma possibilidade de escolha, quando se trata
de emigrar. 27
Stephen Castles procura definir os tipos de deslocamento humano de uma forma
ainda mais criteriosa. Para o autor, as migrações internacionais despontaram como um
dos principais fatores de transformação e de desenvolvimento social nas mais diferentes
regiões do mundo, no século XX.
Com o aumento da mobilidade populacional, que vai assumindo novas
formas, a questão parece ganhar ainda maior relevância no século XXI. As
migrações resultam da integração de comunidades locais e de economias
nacionais em relações globais; e são, simultaneamente, fatores de novas
transformações sociais, tanto nos países emissores como nos receptores. Nas
sociedades tradicionais, muitas pessoas passavam a vida inteira na aldeia ou
no bairro onde nasciam. Atualmente, as migrações estão a tornar-se cada vez
mais comuns, à medida que as pessoas se movem em busca de segurança e de
melhores condições de vida: das aldeias para as cidades, de uma região para
outra dentro do seu próprio país, ou entre países e continentes. Aqueles que
não chegam a migrar são também tocados, enquanto familiares, amigos ou
descendentes de imigrantes; ou através de mudanças ocorridas nas suas
comunidades, resultantes da partida de vizinhos ou da chegada de
forasteiros.28
Assim, para Castles, o termo migração designa o cruzamento da fronteira de uma
unidade política por certo período mínimo de tempo. As migrações internas referem-se
a deslocamentos dentro de um mesmo país enquanto as migrações internacionais
implicam o cruzamento de fronteiras que separam os Estados soberanos.
Com o foco nas migrações internacionais, o autor aponta que a maioria das
ocasiões em que se cruzam fronteiras não há migração, trata-se de turistas, indivíduos a
trabalho ou negócios e outros viajantes que não possuem intenção de permanecer de
forma mais prolongada em seus destinos. Por isso que a definição de migrar associa-se
a um período de permanência no país de destino de no mínimo seis meses, residência
fixa e trabalho, mesmo sem documentos.
Apesar desta característica comum, as definições dos tipos de migração estão
longe de serem objetivas. Apesar do fluxo internacional de pessoas ser cada vez mais
intenso, a norma ainda é permanecer no país de origem. A mudança para outro país
27 SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das
Letras, 2003. p. 54 28 CASTLES, Stephen. As migrações internacionais no limiar do século XXI: Questões e tendência globais. In:
Globalização, Transnacionalismo e Novos Fluxos Migratórios. Lisboa: Fim do Século. 2005. p. 17
22
ainda é vista como um desvio da norma. Daí a razão para que muitas vezes as migrações
serem consideradas um problema. Elas potencialmente podem produzir mudanças
imprevisíveis. Para melhor compreender este “problema”, Castles define oito tipos de
migração:
Imigrantes Laborais Temporários: Trabalhadores convidados ou imigrantes
contratados: homens e mulheres que emigram, teoricamente, por um período
limitado que vai de poucos meses a alguns anos. Trabalham em atividades
pouco prestigiadas e de baixa remuneração. Muitas vezes enviam remessas de
dinheiro a seus parentes nas sociedades de origem.
A expansão ou retração da economia, como também mudanças de cunho social e
político, muitas vezes modificam os discursos e a visão da sociedade de destino sobre os
imigrantes laborais. São considerados necessários, e até essenciais, num contexto de
expansão econômica e convidados a ocuparem um lugar durável, mesmo que na parte
inferior da hierarquia social.
A utilidade econômica e social do imigrante laboral é, por sua vez, questionada
em contextos de retração da economia, conseqüência direta dos ciclos do capitalismo
contemporâneo. Surgem, nestes cenários, discursos sobre o “custo social” 29
dos
imigrantes, seu peso excessivo sobre os recursos da sociedade, o que retoma e enfatiza,
de forma clara, o caráter provisório da migração, convenientemente esquecido tanto
pelos imigrantes, quanto pela sociedade de imigração em períodos anteriores.
Imigrantes Altamente Qualificados e Empresários: Pessoas com alto grau de
instrução que se movem dentro de um mercado de trabalho internacional que
liga, sobretudo, aos espaços internacionais com forte presença de corporações
multinacionais e organizações internacionais ou que procuram cargos que
exigem qualificações raras. Muitos países aceitam de bom grado estes
imigrantes.
Imigrantes Irregulares: São os imigrantes indocumentados ou ilegais. São
pessoas que entram em um outro país sem os documentos legais ou a devida
autorização, geralmente em busca de emprego ou de melhores condições de
29
CASTLES, Stephen. As migrações internacionais no limiar do século XXI: Questões e tendência globais. In:
Globalização, Transnacionalismo e Novos Fluxos Migratórios. Lisboa: Fim do Século. 2005. p. 47
23
vida. A maioria dos grandes fluxos de imigração laboral do final do século
XX e início do século XXI são compostos por estes tipos de imigrantes.
Alguns países não combatem de forma veemente a entrada destes imigrantes
na medida em que estes respondem à demanda por mão-de-obra barata, sem
implicar, a princípio, em custos sociais diretos ou medidas de proteção social.
Refugiado: Segundo as Nações Unidas, refugiado é uma pessoa que reside fora
do seu país em uma situação onde não se pode ou não se quer regressar em
razão, principalmente, de perseguição de cunho racial, religioso,
pertencimento a grupo social ou político. Os países-membros da ONU
comprometeram-se em receber estes refugiados, valendo-se, para este fim, de
critérios claramente estabelecidos para distinguir indivíduos nesta situação.
Requerentes de Asilo: Pessoas que cruzam fronteiras em busca de proteção, mas
que não cumprem rigorosamente com os critérios estabelecidos pelas Nações
Unidas. “Em muitas situações atuais de conflito em países menos
desenvolvidos torna-se difícil distinguir entre a fuga motivada por
perseguições e a partida causada pela destruição da infra-estrutura econômica
e social necessárias à sobrevivência.” 30
Migração Forçada: Além dos refugiados e requerentes de asilo encontram-se
nesta categoria todos os indivíduos forçados a deslocarem-se devido a
catástrofes naturais ou projetos de desenvolvimento como barragens e
estradas.
Imigrantes Retornados: Pessoas que regressam aos seus países de origem depois
de um período de moradia prolongada em outro país. Os retornados muitas
vezes trazem consigo recursos financeiros e um conjunto de experiências úteis
ao desenvolvimento econômico de sua terra natal. Porém, podem também
serem vistos com desconfiança por serem potenciais agentes de mudança
política e social.
Membros da Família: Reunião familiar ou reunificação familiar. Indivíduos que
migram para poderem se juntar a outras pessoas que já entraram num país de
migração. O direito à reunificação familiar dos imigrantes legais é
reconhecido em muitos países recebedores de imigrantes. Já em outros países,
principalmente os que se valem do sistema de contrato de trabalho temporário,
30
CASTLES, Stephen. As migrações internacionais no limiar do século XXI: Questões e tendência globais. In:
Globalização, Transnacionalismo e Novos Fluxos Migratórios. Lisboa: Fim do Século. 2005. p. 19
24
rejeitam o direito à reunião familiar o gera, em muitos casos, um estímulo à
imigração. 31
Da tipologia das migrações estabelecidas por Castles, a Reunificação Familiar é o
tipo de migração que mais se aproxima da forma e dos motivos que impulsionaram os
jovens emigrantes brasileiros entrevistaram que viveram a experiência de emigrar para
os Estados Unidos. O início do relato de André,32
jovem de dezesseis anos que retornou
a Governador Valadares a menos de dois meses, vindo de Newark, ilustra este tipo de
migração.
Newark é a maior cidade do estado americano de New Jersey e uma das principais
cidades da região metropolitana de New Yorque. Possui uma população de
aproximadamente 273 mil habitantes33
. Newark é conhecida por uma enorme
concentração de imigrantes portugueses, brasileiros e mais recentemente um grande
fluxo de sul-americanos oriundos em sua maioria do Equador, mas também encontra-se
um número expressivo de mexicanos. É uma cidade onde facilmente se encontra
pessoas falando português ou espanhol pelas ruas.34
Imagem 1 - Vista do Bairro imigrante de Ironbound, Newark. 35
31
CASTLES, Stephen. As migrações internacionais no limiar do século XXI: Questões e tendência globais. In:
Globalização, Transnacionalismo e Novos Fluxos Migratórios. Lisboa: Fim do Século. 2005. p. 20 32
Nome fictício, entrevistado em 10/01/2009. Dezesseis anos. 33 United States Census Bureau. Dados para a cidade de Newark – Revisão de Agosto de 2009. 34 Idem, p. 32 35
Fonte: www.brazilianpress.com (acesso dia 01/05/2010).
25
Entrevistei André e seu irmão Antônio36
na sua casa, no bairro Vila Isa,
Governador Valadares. A casa, (construída recentemente por sua mãe que também
retornou dos Estados Unidos) facilmente destoa das demais. O bairro é de periferia, mas
André contou, logo no início, quanta saudade ele sentia dos vizinhos e da casa da avó.
André foi para os Estados Unidos pela primeira vez em 2001, acompanhando sua mãe e
seu irmão mais velho quando tinha apenas sete anos. Ele disse:
Não entendi bem o porquê. O pai estava separado da mãe, acho por isso
que agente foi. Eu jogava bola todo dia aqui na rua. Lá não tem bola
assim do jeito que tem aqui. Lá para jogar uma bola, só no parque.
(André, 10/01/2009, dezesseis anos)
Durante a sua infância e adolescência, André foi e voltou aos Estados Unidos
pelo menos quatro vezes:
Na primeira vez eu fiquei dois anos. Eu fui pra lá, a primeira vez que eu
fui pra lá eu estudei no “prezinho”, aí eu fiquei um pouco tempo, voltei
prá cá, fui para lá e estudei de novo. Lá, na segunda vez eu acho que
fiquei foi uns três anos. Aí foi a última vez né, não, foi a terceira vez. Aí eu
fui para lá e fiquei mais uns dois anos. E voltei prá cá. Acho que fiquei
aqui um ano ou dois anos, voltei para lá e fiquei até o ano passado lá
estudando e voltei agora. (André, 10/01/2009, dezesseis anos)
André também afirma que foi consultado sobre a decisão de imigrar, mesmo que
de forma superficial:
Foi perguntado. A mãe perguntava se agente queria mesmo e nós
falávamos que queria. Nós imaginávamos mais... nós sabíamos que nós
estávamos indo para estudar só que nós pensávamos mais em passear.. e
conversar com os amigos. Mas aí depois quando você entrava na escola
você já via que queria ficar aqui mesmo. (André, 10/01/2009, dezesseis
anos)
A trajetória da família de André e seu contato com os Estados Unidos tornam-se
um pouco mais claros a partir dos relatos do seu irmão Antônio. Antônio é um ano mais
velho que André, em janeiro de 2009, quando realizei a entrevista, Antônio estava com
dezessete anos e tinha emigrado pela primeira vez para a cidade de Newark com oito
anos:
36
Nome fictício, entrevistado em 10/01/2009. Dezessete anos na época da entrevista. Todos os nomes dos
entrevistados são fictícios, no intuito de preservar a identidade dos jovens imigrantes.
26
Olha, meu pai foi para lá primeiro quando eu tinha cinco anos. Quando
eu tinha cinco anos ele foi para os Estados Unidos. Aí quando eu estava
com mais ou menos oito ou nove anos, agente foi para lá pela primeira
vez. Foi mais ou menos nesta época. Aí meu pai e minha mãe não deram
muito certo e agente veio embora. Aí ficou nessa, agente foi para lá e
voltou para cá de novo, foi para lá e voltou para cá de novo. Mas aí
chegou uma hora que agente já não estava morando com meu pai mais, aí
meu pai ficou morando em Elizabeth37
, aí depois da última vez que eu fui
agora, quando eu tinha quatorze, eu fiquei morando em Newark e ele ficou
em Elizabeth, mas ele sempre vinha me visitar, normal. (Antônio,
10/01/2009, dezessete anos)
Apesar das muitas idas e vindas, como seu irmão, Antônio esclarece que sua
permanência nas primeiras viagens foram muito curtas:
Eu fui lá uma vez, não deu certo aí eu vim embora. Eu fiquei aqui um ano
e depois eu fui embora para os Estados Unidos de novo. Eu fui e voltei
para os Estados Unidos quatro vezes, mas isso foi quando eu era mais
novo. Mas a vez que eu fiquei mesmo foi agora que eu fiquei os três anos.
Das outras vezes que eu fui para lá a mãe sempre falava, “nós não vamos
ficar aqui não, nós não vamos ficar aqui não, nós vamos embora”. Tipo
ficar um mês, dois meses e ir embora. Nunca ficar muito, então eu não
aprendi inglês nessa época. Só essa vez que eu fui agora que eu fiquei
mais firme lá. Desta vez fiquei mais três anos. Nas outras vezes eu sempre
ficava um mês, dois meses. (Antônio, 10/01/2009, dezessete anos)
Antônio também relata (da mesma forma que seu irmão André) que foi
consultado sobre a decisão de imigrar, e fala sobre as constantes idas e vindas entre o
Brasil e os Estados Unidos:
A minha mãe perguntou se eu queria ir para os Estados Unidos e eu
respondi “é claro”. Quanto esta ida e volta, teve uma hora que
atrapalhava, mas hoje não porquê só falta fazer o terceiro ano para mim,
só falta o terceiro . Porque depois que eu voltei para lá eles me
adiantaram. Quando eu voltei para cá uma vez eu fiquei bem atrasado. Eu
estava com quatorze e estava na sexta. Eu estava errado. Depois que fui
para os Estados Unidos eles me colocaram na série certa, que era o
primeiro ano do segundo grau. Fiz uns testes né.
37 Elizabeth é uma cidade norte-americana situada no estado de Nova Jersey. Sua população é de 120.568 habitantes,
configurando-se como a quarta maior cidade do estado. Elizabeth está aproximadamente dez quilômetros de Newark.
A cidade de Elizabeth, como praticamente toda região no entorno de Newark, possui uma comunidade de imigrantes
brasileiros relevante. Fonte: http://www.elizabethnj.org/ (acesso dia 01/05/2010)
27
Imagem 2 - Bairro Vila Isa, Governador Valadares, às margens do Rio Doce. 38
Seja exercendo uma opção de escolha voluntária, como afirmam os entrevistados
– mesmo levando em conta que dificilmente eles ficariam no Brasil sem o apoio da
família - seja quando a opção de emigrar é imposta ao jovem pela necessidade de
acompanhar a família no projeto migratório, a condição de emigrante carrega em si uma
contradição latente.
A análise feita por Abdelmalek Sayad sobre o que é um emigrante ajuda a
compreender como o ato de migrar, e a permanência na sociedade de destino, carrega a
ambigüidade que marca profundamente este grupo de indivíduos:
A imigração condena-se a engendrar uma situação que parece destiná-la a
uma dupla contradição: não se sabe mais se se trata de um estado provisório
que se gosta de prolongar indefinidamente ou, ao contrário, se se trata de
um estado mais duradouro, mas que gosta de viver com um intenso
sentimento de provisoriedade. 39
Assim, as muitas idas e vindas entre o Brasil e os Estados Unidos relatadas pelos
dois jovens parecem refletir a provisoriedade da condição de emigrante definida por
Sayad. Uma situação que reflete um estado nem provisório, nem permanente, tanto sob
a perspectiva do próprio jovem migrante quanto da sociedade que o recebe.
O fato de que as sociedades que recebem os emigrantes contemporâneos
geralmente o fazem de forma hostil, ou pouco valorizada, ajuda a alimentar esta
condição (e contradição) de permanente provisoriedade.
38 http://www.panoramio.com/photo/19596586 (acesso dia 01/05/2010) 39 SAYAD, Abdelmalek. Imigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo: Edusp,1998. p 45
28
“Velhos” e “Novos” Emigrantes
A análise do conceito do que é um migrante implica, também, em fazer a
distinção entre os conceitos de “velhos” e “novos” migrantes. A expressão “velhos
migrantes” se refere aos imigrantes que partiram da Europa para a América,
principalmente para países como EUA, Canadá, Argentina e Brasil, no final do século
XIX. 40
Este movimento de migração de massa gerou um enorme impacto social,
cultural e demográfico nos países que receberam estes imigrantes no início do século
XX. Estes imigrantes, em sua grande maioria, vinham de áreas rurais, eram
camponeses e migraram para centros urbanos nos Estados Unidos.
Os relatos dos “velhos migrantes” carregam em si o desejo do retorno, do
reencontro, as dificuldades da nova vida e a saudade dos que ficaram. Autores como
Baily e Ramella41
e Monteiro42
analisaram os relatos destes imigrantes, mas é sobretudo
na obra de Thomas e Znaniecki 43
, que podemos encontrar o monumental esforço de
traçar a experiência subjetiva dos migrantes. Os autores analisaram centenas de cartas e
relatos de imigrantes poloneses nos Estados Unidos priorizando as histórias de vida
como fonte de conhecimento.
As cartas foram escritas por camponeses poloneses que emigraram para os
Estados Unidos e Alemanha. Segundo estes autores, as cartas tem a função de
manter a solidariedade familiar (Thomas e Znaniecki:1984:98). Além desta
atitude, as cartas relatavam os problemas e dificuldades dos camponeses
diante das novas tendências e influências externas, às quais as famílias não
estavam adaptadas, uma vez que saíram do campo para as cidades que
cresciam naquele momento, nos Estados Unidos e na Alemanha. A análise da
mudança provocada pelo processo é centrada na dicotomia modernização
versus tradicionalismo. Partindo desta perspectiva de análise, os autores
contribuíram para uma percepção do processo migratório como rompendo os
laços de solidariedade social e gerando a desorganização social. As cartas
foram os instrumentos que evidenciaram as dificuldades enfrentadas pelos
imigrantes em viver numa outra sociedade sem o suporte do grupo de
origem.44
40
ASSIS, Gláucia. Estar aqui, estar lá... uma cartografia da vida entre dois lugares. Programa de pós-graduação
em Antropologia Social UFSC. Florianópolis, 1995. (dissertação, Mestrado). p. 65. 41 BAILY, Samuel L. & RAMELLA, Franco. One family two worlds: An Italian family correspondence across
atlantic. 1901-1922. Rutgers University Press, New Brunswick and London, 1988. 42 MONTEIRO, Paulo. Terra que já foi Terra. Lisboa, Salamandra, 1985 43 THOMAS, William. & ZANANIECKI, Florian. The polish peasant in Europe and America. Chicago,
University of Illinois Press, 1984. 44 ASSIS, Gláucia. Estar aqui, estar lá... uma cartografia da vida entre dois lugares. Programa de pós-graduação
em Antropologia Social UFSC. Florianópolis, 1995. (dissertação, Mestrado). p. 68.
29
A análise da narrativa dos “velhos migrantes” contribui para ressaltar como os
indivíduos são movidos não apenas pelo cálculo racional para emigrar, mas ressaltam os
desejos de mudança, os laços que perduram com a terra natal, a migração como
experiência constitutiva e definitiva da vida de muitos emigrantes e a importância do
grupo, da comunidade étnica e da rede de relações. Estes estudos captaram os
sentimentos, desejos, frustrações, as histórias contidas nos relatos, e que também fazem
a parte da história dos fluxos migratórios.
Já o termo “novos migrantes” se refere ao fluxo de imigrantes que, após a
Segunda Guerra Mundial, parte dos países periféricos em direção às economias centrais
em busca de trabalho, ascensão econômica e melhorias nas condições de vida. São
imigrantes em sua maioria provenientes de centros urbanos com backgrounds distintos,
e maior variedade de gênero e raça. Migraram rumo ao Norte tendo como principais
destinos os Estados Unidos e os países da Europa.
A emigração de brasileiros para o exterior, sobretudo para os Estados Unidos,
faz parte deste processo. Ela toma vulto a partir da década de 1980, quando o número de
brasileiros dirigindo-se para países como Estados Unidos e Portugal caracterizava mais
um fluxo migratório em expansão do que um movimento esporádico para o exterior.
A crise econômica que se abateu sobre o Brasil durante a década de 1980 levou
alguns estudiosos da migração internacional como Tereza Sales 45
, Maxine Margolis 46
e
Gláucia Assis 47
, dentre outros, a utilizarem o termo “exilados da crise” para descrever
o emigrante que procurava novas oportunidades de trabalho e renda fora do país.
As narrativas dos “novos migrantes” são surpreendentemente parecidas com as
cartas analisadas por Thomas e Znaniecki, na medida em que nos trazem o relato
individual da experiência migratória, trazendo a intimidade e a vida privada. Apesar das
semelhanças, os relatos dos jovens valadarenses estão inseridos num mundo cada vez
mais globalizado, conectado, o que ressalta o caráter transnacional 48
dos movimentos
migratórios modernos, sendo este um aspecto que claramente o diferencia dos
emigrantes do final do século XIX. No caso dos “velhos migrantes”, os relatos foram
escritos por imigrantes que, em sua terra natal, eram camponeses, que não possuíam
45
SALES, Teresa. Segunda Geração de Emigrantes Brasileiros nos EUA. In: CASTRO, Mary Garcia (org.).
Migrações Internacionais: Contribuições para política. Brasília: CNPD, 2001. 46
MARGOLIS, Maxine L. Little Brazil. Imigrantes Brasileiros em Nova York. Campinas: Papirus, 1994. 47
ASSIS, Gláucia de Oliveira. De Criciúma para o mundo: rearranjos familiares e de gênero nas vivências dos
novos migrantes brasileiros. Tese de Doutorado em Ciências Sociais, Universidade Estadual de Campinas, 2004. 48 CASTLES, Stephen, Globalização, Transnacionalismo e Novos Fluxos Migratórios dos trabalhadores
convidados às migrações globais, Lisboa, Fim de Século, 2005.
30
meios de ir e voltar com relativa freqüência para sua terra natal, nem comunicar-se
constantemente.
No caso dos “novos migrantes”, nos quais podemos inserir os recentes
movimentos da população brasileira, e mais especificamente dos jovens valadarenses,
estamos nos referindo a relatos que carregam consigo toda a carga simbólica do
contemporâneo, além das expectativas e angústias de fazerem parte de um movimento
migratório que ainda está ocorrendo, desenrolando-se no cotidiano. Estes jovens são
urbanos, pertencentes à classe média baixa da população brasileira, que em sua maioria
viajou acompanhando os pais num projeto cujo objetivo era trabalhar por um período
determinado e depois retornar. Porém, mesmo com estas diferenças marcantes, espaciais
e temporais, tanto para os “velhos migrantes” como para os “novos migrantes” os
relatos tornam-se instrumentos da memória viva da experiência migratória.
As irmãs Carla49
e Érica50
possuem uma trajetória que reflete, em certa medida,
as características inerentes aos novos migrantes. Elas moram atualmente em
Governador Valadares em um conjunto habitacional de classe média baixa, no bairro
São Pedro. As entrevistas foram acompanhadas de perto pela mãe das jovens que, de
vez em quando, fazia observações e intervenções. Carla tem vinte e cinco anos, é bem
falante e extrovertida, diferente da sua irmã Érica que se mostrou bem mais tímida.
Carla emigrou pela primeira vez para os Estados Unidos com quinze anos, no
ano 2000, morando na cidade de Lawrence. Lawrence é uma cidade do condado de
Essex, Massachusetts. Segundo o censo do ano 2000, a cidade possui uma população de
72.043 habitantes. Lawrence possui uma longa história de acolhimento de grupos
imigrantes, começando pelos irlandeses em 1845. Entre os principais grupos de
imigrantes que foram para Lawrence no começo do século encontram-se alemães,
judeus da Europa Oriental, italianos e poloneses. A partir da década de 1970 a cidade
tornou-se também o destino de grupo de “novos imigrantes”, sobretudo de origem
hispânica, destacando os imigrantes da República Dominicana e Porto Rico. Apesar da
forte presença de imigrantes, os brasileiros não configuram um grupo numeroso em
Lawrence.51
49
Nome fictício, entrevistada em 17/01/2009. Vinte e cinco anos na época da entrevista. 50
Nome fictício, entrevistada em 17/01/2009. Estava com dezoito anos na época da entrevista. 51 http://www.cityoflawrence.com/ (acesso dia 01/05/2010)
31
Imagem 3 - Lawrence, Massachusetts 52
Carla descreve o início da sua trajetória da seguinte forma:
Meu irmão foi primeiro. Meu irmão teve alguns problemas aqui no Brasil
e foi para lá. E ficou lá. Na primeira vez. Nossa, a primeira vez que meu
irmão foi para os Estados Unidos tem tempo. Ele tinha dezoito, dezenove
anos e hoje ele tem trinta. Tem tempo que ele foi, mais ou menos dez anos.
Aí ele foi, ficou lá um tempo, morou em Miami e quis voltar. O pai trouxe
ele de novo. Vivia “vida de América” também. Não juntava dinheiro não.
Aí depois ele veio e aprontou mais um pouquinho... Aí meu pai falou assim
“vai embora”. Aí ele foi embora para Massachusetts. Ele foi sozinho de
novo. Ele tinha amigos, mas amigos de Miami, Boston não. Não sei como
é que ele fez não. Aí ele chamou minha mãe para ir lá, minha mãe foi.
Quis ficar lá, e ficou. Aí minha mãe disse para o meu pai que ia ficar lá.
Que lá estava bom, que lá era maravilhoso, que queria ficar lá e ficou. O
pai ficou um tempo lá, uns dois meses só. Aí meu pai voltou e ficou eu,
minha irmã e meu pai aqui. Agente morou um ano aqui, uns oito meses
mais ou menos. Aí minha irmã começou a dar piripaque querendo ir para
lá. Minha mãe foi, comprou a passagem e foram para lá. Foram os dois.
Aí eu fiquei. Foi o tempo que eu fiquei sozinha aqui, uns dois meses.
Depois quis ir para lá também. Então ir para lá foi vontade própria
minha. (Carla, 17/01/2009, vinte cinco anos)
E acrescenta, compondo a sua trajetória, os motivos do retorno da família para o Brasil:
Meu irmão agora está Itália. Agente voltou por causo do meu avô. Meu
avô e tetraplégico, ele teve um AVC 53
, AVE 54
agora é o que agente fala.
52
http://www.cityoflawrence.com/ (acesso dia 01/05/2010) 53
Acidente Vascular Cerebral 54 O Acidente Vascular Cerebral (AVC), ou Acidente Vascular Encefálico (acrônimo: AVE), vulgarmente
chamado de Derrame Cerebral, é caracterizado pela perda rápida de função neurológica, decorrente do entupimento
ou rompimento de vasos sanguíneos cerebrais. É uma doença de início súbito, que pode ocorrer por dois motivos:
32
Então ele ficou na cadeira de rodas. Não é nem cadeira de rodas, ficou
deitado mesmo, coitado. Então agente voltou porquê o quadro do meu avô
estava piorando, piorando ele ia falecer, então meu pai optou “vou
voltar”. Acabou que voltamos, tem quatro anos que agente está aqui e
meu avô está do mesmo jeito até hoje. (Carla, 17/01/2009, vinte cinco
anos)
A liberdade quanto a decisão de ir para o Estados Unidos não foi a mesma
quando a família decidiu voltar. O que reforça a idéia de que a decisão de imigrar ou
retornar, presente no discurso dos entrevistados, nem sempre se efetiva na prática. Carla
acrescenta:
É, eles deixaram eu ficar. Eles não falaram “você tem que ir”. Quer ir,
vamos, se não quer, fica. Mas na volta não... Na volta eu não tive nem
argumento, nenhum. (Carla, 17/01/2009, vinte cinco anos)
Érica emigrou com onze anos, no ano 2000, morando por quatro anos também
na cidade de Lawrence. Ao descrever os motivos que a levaram a migrar podemos
perceber o papel fundamental que a Reunificação Familiar exerce como causa da sua
experiência migratória:
Minha mãe foi primeiro, foi para trabalhar. A situação aqui não estava
muito boa e tal, e ela foi para trabalhar. Aí meu pai ajudou a ela ir. Não,
não. Foi meu irmão primeiro. Meu irmão é o mais velho, ele foi primeiro.
Aí depois que ele foi, a minha mãe foi, um bom tempo depois que ele foi a
minha mãe foi. Depois que a minha mãe foi, eu fui. Meu pai me levou, e
voltou. Depois meu pai buscou a minha irmã, levou a minha irmã, aí ele
ficou. Só que meu pai vinha, de seis em seis meses ele vinha para o Brasil.
Para não perder o visto né. Porque o “permanente” lá era de seis meses.
Tinha o visto de dez anos, mas o permanente era de seis meses. Aí, ele
esperto né, vinha a cada seis meses. Agente não. Só ele. Agente ficava lá.
Porque eu tinha que estudar né, minha mãe trabalhar... (Érica,
17/01/2009, dezoito anos)
Como os irmãos Antônio e André, Érica procura ressaltar, pelo menos no
discurso, a sua vontade de ir para os Estados Unidos reencontrar sua mãe:
Eu queria ir por causa da minha mãe. Eu não queria ficar longe da minha
mãe. Foi uma coisa que eu quis. Eu não importava em deixar os amigos,
na época também eram coleguinhas né, coleguinhas de sala. Não tinha
isquemia(falta de suprimento sangüíneo para um tecido orgânico) ou hemorragia. Fonte: CAMARGO, Luís Fernando
Aranha (2010). Página Einstein. Revista Veja, editora Abril, edição 2162, ano 43, nº 17, pág. 59
33
amigo, amigo não. Aí eu fui. Minha mãe estava lá já. Eu estava quase
morrendo, eu estava com crise, crise de choro com saudade da minha
mãe, aí eu fui.
Imagem 4 - Prédios do Conjunto Habitacional do Bairro São Pedro (Abaixo, à esquerda) – Governador
Valadares, Minas Gerais. 55
Uma diferença importante entre a análise dos “velhos” e “novos migrantes”
refere-se a um conjunto de olhares mais amplo dos movimentos mais recentes. Não
mais apenas os filhos, os maridos e os irmãos, partem para a aventura migratória. Esta
também é vivenciada e contada por esposas, mães, filhas. A experiência migratória é
perpassada pelos aspectos e conflitos relacionados a gênero, classe e à etnia do
imigrante, fazendo com que as narrativas nos mostrem diferentes aspectos do processo
migratório.
As narrativas trazem para uma realidade brasileira, para a cidade de Governador
Valadares – local das entrevistas - relatos da experiência da vida nos Estados Unidos,
havendo assim, um componente de deslocamento entre tempo e espaço. Estes relatos
permitem reconstruir a memória dos jovens através das diversas trajetórias de vida que
se cruzam, se assemelham ou se distanciam.
55
Fonte: www.avvl.com.br (acesso dia 01/05/2010)
34
Desta forma, constituem-se em relatos importantes, pois, ao mostrarem o
cotidiano destes jovens, ultrapassam a própria história da família, construindo um
fragmento da memória da imigração. Ao perceber signos comuns nestes relatos
individuais, tornou-se possível uma pequena reconstrução das diversas trajetórias dos
jovens migrantes. As falas destes jovens emergem como uma evidência dos aspectos
subjetivos da migração.56
O processo da formação identitária passa pela apreensão do mundo que nos
cerca, passa pelo recebimento de informações do ambiente, dos pais, dos parentes mais
próximos e dos amigos, da igreja, da TV e, finalmente, da escola e dos professores, dos
colegas, das pessoas da comunidade. É o período em que o indivíduo se procura no
mundo, se auto-define e se classifica, é quando percebe que também é observado e
classificado pelo seu meio.
A narrativa de Gerson nos serve de exemplo. Gerson foi entrevistado na sua
casa, no bairro Santa Rita, em Governador Valadares. Completou dezoito anos em
janeiro de 2009 e trabalha atualmente como professor de inglês em uma escola de
línguas, perto da sua casa. Trabalho este, inclusive, como ressaltou o próprio
entrevistado, conseguido por causa da sua experiência migratória. Gerson emigrou com
dez anos, morou seis anos na cidade de Malden57
- Massachusetts, e descreve os
motivos da sua partida da seguinte forma:
Meus pais já tinham ido para os Estados Unidos duas vezes antes. Eles
foram em 1980. Foram lá para trabalhar e ficaram um ano, nessa
primeira vez que eles foram. Voltaram para o Brasil e, se não me engano,
eles voltaram para lá em 1984 e ficaram um ano e meio, dois anos. Eu
nasci aqui no Brasil. Mas então eles já conheciam bastante coisa lá e tal,
algumas pessoas lá, né. E aí agente voltou em 1998. Mas não foi sempre
na mesma cidade não. Na primeira vez eles foram para outro lugar, não
se te dizer. Mas na segunda vez eles foram para Malden. (Gerson,
20/01/2009, dezoito anos)
56
ASSIS, Gláucia. Estar aqui, estar lá... uma cartografia da vida entre dois lugares. Programa de pós-graduação
em Antropologia Social UFSC. Florianópolis, 1995. (dissertação, Mestrado). p. 70
57
Malden é uma cidade norte-americana situada no estado de Massachusetts. Sua população é de 60.000 habitantes,
localizada a sessenta quilômetros de Boston. A cidade faz parte dos muitos condados do estado de Massachusetts
com a presença de uma comunidade emigrantes brasileiros. Fonte: www.ci.malden.ma.us (acesso dia 01/05/2010)
35
Imagem 5 – Recorte do mapa do estado de Massachussets, EUA – Em destaque a localização das cidades
de Malden, Somerville e Lawrence.58
Gerson afirma que era muito “novinho” e por isso não foi discutido com ele a
decisão de imigrar, mas ressalta que foi preparado pelos pais: “Eu não tive um choque,
nada assim muito grande não”.
Em comum, as narrativas destes jovens começam com o impacto da chegada. É
uma constante na narrativa tanto dos velhos quanto dos novos migrantes, os relatos
sobre a emoção, a alegria da efetivação do projeto, a chegada e a decepção ou o
58
Fonte: http://www.rentboardwalk.com/nalu/ (acesso dia 01/05/2010)
36
encantamento com cidades e com pessoas tão distintas, toda a carga e todo o impacto da
diferença entre sociedade de origem e de destino.
Porém, é quando os jovens falam da partida (e não propriamente da chegada),
que podemos encontrar um elemento fundamental para a compreensão de toda trajetória
histórica destes emigrantes: A reunião familiar ou reunificação familiar. O reencontro
com pais, mães e irmãos na sociedade de emigração.
Imagem 6 - Rua Principal de Malden, Massachusetts 59
Imagem 7 - Bairro Santa Rita, Governador Valadares, Minas Gerais 60
Podemos perceber que os jovens contam histórias da vida nos Estados Unidos,
relatadas em cenas e situações cotidianas. Estas histórias podem ser tomadas como
59 http://www.city-data.com/city/Malden-Massachusetts.html (acesso dia 01/05/2010) 60 http://www.goval.mg.gov.br/ (acesso dia 01/05/2010)
37
narrativas, pois possuem um conteúdo expositivo e explicativo característicos do
discurso. O seu conteúdo, muitas vezes dramático, nos mostra o estranhamento diante
de outra cultura, o desejo, a saudade, as dificuldades, as alegrias envolvendo aqueles
que permaneceram, os que foram e os que retornaram.
Carla relata um episódio que marcou profundamente sua experiência de vida,
inclusive influindo sua visão sobre a sociedade norte americana:
Eu nunca briguei, mas eu presenciei uma briga na High School.61
Na
verdade, o menino morreu dentro da escola(...) Foi uma briga de aluno,
acho que briga de gangue entre os “espanhóis”. Porque lá nos Estados
Unidos é assim, na High School por exemplo é formado por grupos, tipo
gangues, com os nomes, a gangue do “tal”, a gangue da outra pessoa, etc.
Aí teve uma vez que estava descendo para ir na educação física para
mudar de roupa, porque lá é assim, quem muda de sala é o aluno, a sala é
do professor. Então quando chegamos no pátio começamos a escutar uma
gritaria dentro do banheiro, quando eu olhei saiu um menino segurando a
barriga, com a roupa cheia de sangue, uma coisa absurda. Eu disse para
minha mãe que eu não iria estudar mais. Saíram outros do banheiro
arrastando o menino, tipo assim, para mostrar que eles bateram nele. Só
que quando chegaram os policiais, eles deram conta de que o cara estava
morto. (...) Todos eles assim, com a minha idade. Não eram da minha sala,
mas eram do meu Grade, da minha série. (...) Eu morava lá há três anos e
meio e quis ir embora na hora. Sempre me disseram que o Brasil é que era
violento, mas não foi o que eu vi lá não.
Este relato extremo mostra que muitas vezes existe um hiato entre a percepção
criada, no jovem imigrante, sobre a sociedade que o cerca, através do discurso dos seus
pais e de outros membros da comunidade brasileira, com o que ele vivencia no seu
cotidiano
Acerca dos jovens entrevistados, algumas observações devem ser feitas para
auxiliar a compreensão de suas falas. Os jovens mostraram-se muito espontâneos
durante as entrevistas e notam-se muitos erros de português que, às vezes, dificultam a
compreensão das narrativas. Por isso, realizei algumas correções com objetivo de
melhorar a compreensão das falas selecionadas, mas, na medida do possível, procurei
preservar a fala original.
61 High School é o nome designado, no sistema educacional norte-americano, aos quatro últimos anos de estudo
regular. Equivale, no Brasil, ao segundo grau ou científico.
38
Os relatos dos jovens nos mostram um olhar mais próximo do cotidiano nos
Estados Unidos, informam sobre o trabalho, sobre namoros e amigos, sobre o que fazer
com o dinheiro, sobre a língua que se fala dentro e fora de casa. Mas estes relatos não
são uma descrição acabada, encadeada como uma história com começo, meio e fim. São
relatos de vidas que ainda estão em aberto, em construção. O inacabado é o discurso do
jovem por excelência.
Governador Valadares, Minas Gerais – O Ponto de Partida
A cidade de Governador Valadares ganhou destaque na mídia nacional nos
meados dos anos de 1980 em função de um movimento populacional peculiar: a
emigração em grande escala para os Estados Unidos. Em 1997, 18% dos domicílios de
Governador Valadares possuíam pelo menos um membro da família na condição de
migrante internacional. Isso corresponde a 6,7% da população de 210 mil habitantes na
sede do município 62
.
Também em pesquisa realizada em Massachusetts, Ana Cristina Braga Martes
destaca os emigrantes brasileiros oriundos de Governador Valadares, colocando a
cidade em primeiro lugar entre as 10 cidades brasileiras que mais contribuem como o
fluxo migratório para aquela região. 63
Imagem 8 - Microrregião de Governador Valadares – Minas Gerais 64
62 SALLES, Teresa. Brasileiros longe de casa. São Paulo: Cortez, 1998.
63 MARTES, Ana Cristina Braga. Brasileiros nos Estados Unidos. Um estudo sobre imigrantes em Massachusetts.
São Paulo: Paz e Terra, 1999. 64 http://commons.wikimedia.org/wiki/File:MinasGerais_Micro_GovernadorValadares.svg (acesso dia 01/05/2010)
39
Por que emigrar? Por que ir aos EUA? Para responder a essas questões, é
necessário compreender, historicamente, as ligações da cidade com este país. Segundo
Gláucia de Oliveira Assis, o fenômeno da emigração valadarense pode ser
compreendido, desvendando as conexões existentes entre esses dois espaços. 65
O
movimento migratório na cidade iniciou-se na década de 1960, de modo pouco
expressivo, e acentuou-se a partir do ano de 1985. Este fluxo atingiu tal proporção que
hoje, a maioria das famílias da cidade tem um parente ou amigo que é, já foi ou deseja
ser um emigrante nos EUA. Esse movimento expandiu-se, também, para toda a
microrregião de Governador Valadares. Na última década do século XX, várias outras
regiões do país (Criciúma, Goiânia, Belo Horizonte, Rio de Janeiro) contribuem para a
formação do fluxo migratório de brasileiros para os EUA.66
Podemos distinguir três momentos dessa conexão de Governador Valadares com
os EUA67
. O primeiro momento foi na década de 1940, durante a Segunda Guerra
Mundial, com o ciclo econômico da extração da mica. Nesse período, a cidade recebeu
muitos americanos que coordenavam os trabalhos, tanto de extração, como de
beneficiamento da mica. Essas atividades geravam muitos empregos, o que conferiu um
dinamismo à vida econômica local. Além disso, nesse período, financiado pelo governo
americano, foi construído na Cidade o SESP – Serviço Especial de Saúde Pública, com
a finalidade de tratamento da malária, que atormentava os moradores da região. Esse
período de desenvolvimento foi associado à presença dos norte-americanos. O contato
com o dólar recebido como pagamento ou gorjeta aos favores ou trabalhos prestados,
cujo valor era muito acima da moeda brasileira, passava a idéia de opulência e fartura
do local de onde vinham os norte-americanos. Findo o ciclo econômico da mica, fica no
imaginário popular a visão dos EUA como um local de grande riqueza.
Grande parte da população da cidade já tinha vivido uma experiência de
migração interna, pois eram pessoas vindas de diferentes partes do país, em busca de
melhores condições de vida. Essa experiência, aliada à aproximação marcante na década
de 1940 com os EUA, possibilitou o surgimento de uma cultura de migração
internacional.
Valadares constituiu um pólo que atraiu imigrantes de várias regiões do
País em busca de melhores condições de vida, nos anos 1940 e 1950 a
65 ASSIS, Gláucia. Estar aqui, estar lá... uma cartografia da vida entre dois lugares. Programa de pós-graduação
em Antropologia Social UFSC. Florianópolis, 1995. (dissertação, Mestrado). p. 127 66
Idem, p. 127 67
Ibdem, p. 128
40
migração fazia parte da experiência dos habitantes da cidade. Essas
vivências combinadas com as representações que faziam da América são
elementos que sugerem que em Governador Valadares se criou uma cultura
de migrar para o exterior.68
Essa visão de que a migração internacional era um projeto possível e
relativamente fácil de concretizar, permite compreender a saída dos primeiros
valadarenses para os EUA, na década de 1960. Eram jovens, muitas vezes impelidos
pelo sonho de viajar e aventurar-se 69
. O desejo de “fazer a América” 70
, ou seja, ganhar
dinheiro para retornar com sua independência econômica, não era definido por
premências financeiras, tendo em vista que pertenciam a famílias de classe média.
Esses primeiros emigrantes, em suas cartas ou ao retornarem, relatavam suas
experiências, e a maioria demonstrava o sucesso da aventura por meio dos
investimentos que faziam na cidade. Isso instigava os desejos dos que aqui ficavam, de
experimentar da mesma aventura. Parentes e amigos eram convidados a emigrar. Com
certo tempo, um grupo significativo de brasileiros estava nos EUA “fazendo a
América”. Foram esses primeiros migrantes que estabeleceram uma rede de relações,
permitindo a emigração em grande escala, na década de 1980.
[...] pessoas emigram para onde elas encontram conexões e uma certeza de
familiaridade. Fatores econômicos são importantes na decisão de migrar,
mas informações acerca das oportunidades são igualmente cruciais na
decisão para migrar.71
Nos anos 1980, a emigração bem sucedida dos que partiram no final da década
de 1960, a representação dos EUA como um lugar de progresso e desenvolvimento,
onde era possível ganhar muito dinheiro, a configuração de uma rede de informações
sobre todos os aspectos da emigração, associados à crise econômica brasileira e à
estagnação econômica da cidade, gerou um boom no fluxo de valadarenses para os
EUA.
Ao definir o projeto, o futuro emigrante tem à sua disposição uma série de
serviços e informações que facilitam a sua concretização. Através das redes sociais, o
morador da região, com certa facilidade, percorre todas as etapas do processo. Se a
68 ASSIS, Gláucia. Estar aqui, estar lá... uma cartografia da vida entre dois lugares. Programa de pós-graduação
em Antropologia Social UFSC. Florianópolis, 1995. (dissertação, Mestrado). p. 129 69 SIMMEL, Georg. O Estrangeiro. In: MORAES FILHO, Evaristo de (org.). Georg Simmel. São Paulo: Ática, 1983. 70 Terminologia usada pelos imigrantes, que significa trabalhar muito, economizar o máximo, para depois voltar.
71 MARGOLIS, Maxine L. Little Brazil. Imigrantes Brasileiros em Nova York. Campinas: Papirus, 1994. p. 65
41
entrada nos EUA é por vias legais, através de visto de turista, existem as agências de
turismo, que organizam caravanas para ir ao consulado, em São Paulo, informam os
documentos que devem levar e o que dizer. O projeto geralmente é financiado pelos
parentes ou amigos, que também emprestam dólares para a entrada no país. Se por vias
legais não se consegue o visto, existem duas outras possibilidades: o passaporte falso ou
a passagem pelo México. Para esses mecanismos, também existe toda uma rede de
informações acessíveis àqueles que desejam migrar
A partir da década de 1990 72
a dificuldade para conseguir o visto de turista para
os indivíduos oriundos da região de Governador Valadares tem aumentado a utilização
da via ilegal. Serviços de falsificação de documentos e meios de entrar nos EUA,
através do México, têm sido estratégias utilizadas pelos imigrantes para conseguir
cruzar as fronteiras, essa estratégia além de mais arriscada, pois envolve travessia no
deserto, cruzar o rio a nado e enfrentar a vigilância na fronteira, aciona uma rede de
tráfico de pessoas que muitas vezes transforma o sonho de emigrar em uma arriscada
jornada como demonstram os relatos de Campos, Assis e Siqueira sobre emigrantes
deportados.73
Apesar de todas as dificuldades, o fluxo dos habitantes da região para os Estados
Unidos não acaba, persiste no tempo e consolida um fluxo entre Governador Valadares
e as várias cidades norte-americanas que concentram emigrantes brasileiros. Assim com
o passar dos anos as estratégias se modificam, ocorrem mudanças a partir das limitações
impostas pela política de migração do governo norte-americano, sobretudo com o
aumento da fiscalização, depois do atentado de 11 de setembro de 2001. Com o anúncio
da exigência de visto para o México houve uma corrida para tirar o passaporte e
antecipar a viagem antes que a lei entrasse em vigor.
Ao elaborar o projeto de migrar, primeiramente, tentam o visto de turista,
geralmente, utilizando as agências que fazem o agendamento para a entrevista no
consulado americano, dão as informações do que vestir e de como se comportar. A outra
forma é pela aquisição de passaporte montado74
e a entrada pela fronteira do México.
72
SIQUEIRA, Sueli. Migração internacional e seus efeitos na configuração do desenvolvimento da cidade de
Governador Valadares. Governador Valadares: Editora Univale, Caderno do NEDER, 2003. 73 CAMPOS, Emerson César de. Estrangeiros em Casa: (re) sentimentos, impressões e indetificações produzidas
pelos imigrantes brasileiros clandestinos nos Estados Unidos, quando de volta para Santa Catarina (1995-2005).
Simpósio Nacional de História. História e multiplicidade: Territórios e Deslocamentos: Anais do XXIV Simpósio
Nacional; Associação Nacional de História – ANPUH. São Leopoldo: Unisinos, 2007. 74 Esse mecanismo ficou mais difícil depois que a foto no passaporte e as impressões digitais passaram a ser
digitalizadas.
42
Independente da forma de entrada, a segunda etapa é fazer contato com alguém nos
Estados Unidos para recebê-lo, hospedar por algum tempo e indicar trabalho.
Geralmente dirigem-se para casa de parentes ou amigos. Tudo isso é possível graças às
redes de relações existentes na cidade de Governador Valadares que mantêm uma
conexão com os EUA.
Imagem 9 - Vista Aérea de Governador Valadares e Pico do Ibituruna. 75
75 http://governadorvaladares.files.wordpress.com/2008/08/ (acesso dia 01/05/2010)
43
Segundo Capítulo
GERAÇÃO E JUVENTUDE
“Ah eu estou busy hoje” 76
Sim, eu conheço, eu amo ainda esse rumor abrindo, luz molhada,
rosa branca. Não, não é solidão, nem frio, nem boca aprisionada.
Não é pedra nem espessura. É juventude. Juventude ou claridade.
É um azul puríssimo, propagado, isento de peso e crueldade.
Eugênio de Andrade, in "Até Amanhã"
O conceito de geração é fundamental para se entender o significado de
juventude. A geração aparece no debate através de duas interpretações. A primeira é
usada por Pierre Bourdieu, que trata geração a partir de uma perspectiva relacional, ou
seja, necessariamente dentro de uma relação em jovem está em oposição a adulto ou
velho. Bourdieu argumenta que a vivência geracional é construída como dados a priori,
a identificação é relacional, “somos sempre o jovem ou o velho de alguém.” 77
Outra perspectiva de análise é a do sociólogo Karl Mannheim, que define
geração a partir da convivência, em dado momento histórico, de populações que nascem
em períodos distintos. 78
Esta é uma abordagem que problematiza definição físico-
biológica de juventude:
O ponto de partida de Mannheim é definir geração como uma construção da
modernidade. É a idéia moderna de linearidade histórica que permite pensarmos na
noção de geração. Isto é, a noção de que a história é uma sucessão de fatos em uma
linha do tempo e, nesse sentido, de que os homens se sucedem em gerações. Assim,
76
Carla, nome fictício, entrevistada em 17/01/2009. Neste contexto, os jovens imigrantes utilizam o termo em inglês
“busy” para se referir a “estar ocupado” ou não estar disponível no momento. 77 BOURDIEU, P. A juventude é apenas uma palavra. In: BOURDIEU, P. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro:
Marco Zero, 1998. 78 MANNHEIM, K. O problema das gerações. Reis, Madrid: 1993, p.206
44
para este autor, geração seria um conceito moderno por definição. Porém, esta primeira
parte da interpretação permanece com um caráter biológico, pois o que define o corte
geracional é o nascimento. As pessoas que convivem numa época estão em momentos
distintos do ciclo de suas vidas; compartilham e disputam a compreensão de um dado
momento histórico.
Uma segunda parte da definição é o que o autor nomeia unidade geracional, que
surge a partir de processos de reconhecimento. Este reconhecimento se dá sempre em
um determinado contexto histórico. Quando se afirma que os estudantes foram
importantes nos movimentos sociais contra a ditadura militar brasileira, não se pode
afirmar que todos os estudantes atuaram da mesma forma. Mas existe uma percepção
social de que um determinado número de indivíduos fazem parte de uma categoria que
se opõe a outra, ou a um determinado modelo político, por uma identidade geracional, é
o caso da categoria juventude em oposição a velhos, adultos e crianças. Há um
reconhecimento social do grupo “os jovens”, mesmo que nem todos os jovens se
percebam como tal, como é o caso com alguns jovens migrantes da segunda geração.79
Isso pode ou não corresponder a grupos concretos e transcende os próprios
grupos. Os jovens podem se sentir muito diferentes entre si, e ainda assim serem
reconhecidos como jovens.
Quando os jovens se percebem e se relacionam como um coletivo, temos o caso
de um grupo concreto. O autor exemplifica os grupos concretos como a juventude
comunista ou a juventude nazista na Alemanha. Havia na época um entendimento de
que os jovens participavam politicamente dos acontecimentos. Nesse sentido,
constituíam uma unidade geracional. Os próprios jovens se reconheciam e eram
identificados como distintos dos adultos. Contudo, os jovens destes dois grupos não
tinham o mesmo entendimento sobre a sociedade e as leituras históricas do momento
que viviam. Por outro lado a categoria juventude passa a ser mais visível nesse contexto
histórico, ainda que nem todos os jovens estivessem envolvidos em algum grupo
concreto.
A análise do conceito de geração mostra como ele é utilizado com freqüência
para estudar a juventude e como pode nos fornecer pistas importantes para a
entendermos.
79
MANNHEIM, K. O problema das gerações. Reis, Madrid: 1993, p.207
45
JUVENTUDE EM MOVIMENTO: OS FILHOS ACOMPANHANDO OS
PAIS
A dimensão histórica do fluxo migratório, das estratégias e das conexões
estabelecidas pelos imigrantes é de grande importância para compreendermos a geração
subseqüente, os filhos dos imigrantes valadarenses, sobretudo dos que emigraram na
grande leva do final dos anos 1980, a qual é crescente e cada vez mais representativa da
vida dos valadarenses no exterior.
A inserção em uma comunidade emigrante já estabelecida impacta de forma
decisiva na experiência migratória dos jovens brasileiros. Á exceção de Carla e Érica,
todos os demais entrevistados afirmaram que, perto de onde moravam havia muitos
brasileiros. “Tinha muito, muito brasileiro, muita gente de Valadares, muito mineiro”
afirmou Antônio.
Carla destaca a presença de um único brasileiro na sua vizinhança em Lawrence,
da qual logo ficou amiga. Érica explica com mais detalhes:
Não, não. Só “espano”, “espanhol” mesmo. Dominicano, Porto-
Riquenho. Não tinha um brasileiro assim. Tinha... na mesma rua não
tinha, agora na mesma cidade tinha um pessoal que agente conheceu , que
chegou na mesma época que agente chegou, porque minha mãe foi um ano
antes de mim. E também uma menina que chegou depois de um ano que eu
já estava lá, que daí ela estudou na mesma escola que eu e aí eu fui
ajudando ela né, porquê não tinha ninguém para ajudar agente a
aprender o inglês. E foi isso, não tinha muito brasileiro não. E não tinha
muito americano também não. (risos) Ninguém merece. (Carla,
17/01/2009, vinte cinco anos)
Mais importante do que a presença de brasileiros por perto, é qual grupo os
jovens costumavam se relacionar no dia-a-dia. Neste ponto, as narrativas apresentaram-
se diferentes e o domínio ou não da língua inglesa torna-se um instrumento fundamental
para o estabelecimento dos círculos de amizade. André ressalta que só andava com
brasileiros, enquanto Antônio procurava andar com os americanos:
Todos meus amigos eram brasileiros. Não tinha amigos americanos não,
todos sabiam falar “brasileiro”. “Hispano” eu fala um pouquinho. Eu
falava hispano porque a minha professora era hispana então eu podia
entender... Mas de amigo hispano nada... a maioria era brasileiro. (André,
10/01/2009, dezesseis anos)
46
Antônio:
Tinha muitos amigos brasileiros, mas eu procurava mais ter amigos
americanos, para aprender mais o inglês; e também tem os “hispanos”
né, que tem muito, muito hispano, porto-riquenho... Então eu tinha muitos
amigos brasileiros, alguns hispanos e americanos também. Um pouco de
cada. Na maioria mais americanos. (Antônio, 10/01/2009, dezessete
anos)
Os “hispanos” aos quais os jovens se referem são os filhos de emigrantes de
diversos países da América Latina e do Caribe, sobretudo mexicanos e Porto-riquenhos.
Podemos perceber, através das narrativas, que a comunidade brasileira ocupa os
mesmos espaços físicos e simbólicos destinados aos demais imigrantes latino-
americanos, onde acabam convivendo, apesar das diferenças lingüísticas. Carla ressalta:
A maioria dos meus amigos eram os “espanhóis”. Tinha algumas
amizades hispanos e brasileiro só o Paulo mesmo. Quando eu cheguei lá,
porque eu não sabia falar inglês, então quando eu cheguei lá fiz amizade
com os espanhóis e com o Paulo. Mas no final de semana, quando ia para
Somerville, aí encontrava mais com os brasileiros. Todos eu conheci por
lá mesmo. (Carla, 17/01/2009, vinte cinco anos)
Gerson, que dominava melhor o inglês desde a sua chegada, procurava andar
com os americanos:
No início eu falava mais com os americanos, mas eu tinha alguns amigos
brasileiros também. Mas a maioria era americanos mesmo. Eu estou
falando isso porque, assim, você pode escolher lá. Porque tem muita gente
que vai lá e nunca tem amigo americano. Você pode não ter né. Você pode
viver normalmente o quanto tempo que for sem ter amigo americano. Você
não é preciso de ter né. Mas era porque a questão de estar lá na escola e
tal né, então ficava mais com os americanos. (Gerson, 20/01/2009, dezoito
anos)
As narrativas destes jovens estão carregadas dos dilemas próprios da
adolescência e juventude contemporâneas, acrescidas das singularidades de uma vida
que se desenvolve entre duas sociedades, refletindo uma construção, muitas vezes
conflituosa, entre a relação com o passado e com a “memória” da terra natal frente aos
enquadramentos estabelecidos pela sociedade norte-americana.
A sociedade hoje classifica como “jovem” uma determinada faixa da população.
Podemos encontrar uma definição mais técnica estabelecida pelo recorte de 15 a 24
anos adotado por organismos internacionais como a OMS (Organização Mundial da
47
Saúde) e a UNESCO80
. Esse critério passou a ser amplamente aceito a partir da
Conferência de Grenoble, Conferência Internacional sobre Juventude, realizada em
1964, e tornou-se referência para os estudos sobre juventude.
Com o passar dos anos, esta faixa etária tornou-se mais extensa sendo que, em
2005, a Secretaria Nacional de Juventude considerava jovem o indivíduo entre 15 e 29
anos de idade. A variação etária pode ser ainda maior dependendo de qual juventude
estamos falando. Assim, a própria definição de juventude a partir de uma faixa etária é
um dos elementos que mostram as diferentes percepções acerca do que é ser jovem.
Jovem é um termo usado em diferentes contextos históricos. Porém, diversos
estudos tratam a juventude como categoria auto-explicativa, cujos definidores principais
são a idade e as práticas comportamentais. Com eles buscam-se estabelecer uma
concepção que localize em qualquer tempo ou espaço a juventude, a partir de um corte
etário e de um comportamento associado a esse período de vida. Como se as palavras
juventude e jovem, utilizados em diferentes contextos históricos, tivessem o mesmo
significado.
Um ponto de partida para compreendermos o termo juventude é percebê-lo como
uma categoria social e, como tal, moldada num contexto histórico e social. Juventude
existe na medida em que se contrapõe a outros grupos sociais: crianças, adultos, ou na
oposição jovens/velhos. A juventude é uma categoria que se forma paralelamente à
consolidação da família tradicional burguesa, centrada na figura paterna e na qual os
filhos aparecem ocupando uma posição subordinada. Não só esta estrutura familiar as
mulheres e esposas, mas também estabelecia uma distinção de poder entre gerações.
O primeiro passo dos pesquisadores das ciências humanas para definir quem é
jovem e quem não é, fundamentou-se na idade biológica. Com isso foram estabelecidas
idades limite para pertencer a este grupo; pesquisadas as características fisiológicas que
poderia ser utilizadas como distintivas. Esta perspectiva de análise veio à luz no século
XIX e permeia boa parte da discussão até hoje.
No entanto, é preciso dizer que não há, do ponto de vista biológico ou hormonal,
uma justificativa forte para uma distinção etária definitiva. Não se trata de contestar a
diferença física e biológica existente entre jovens e idosos. Mas de observar como essas
diferenças oriundas da biologia acabam por moldar as concepções sobre juventude ou
80 WEISHEIMER, Nilson. Estudos sobre os Jovens Rurais do Brasil: mapeando o debate acadêmico.
Nead/MDA. São Paulo, 2004.
48
velhice. Isso significa que, ao menos desde o século XIX, tanto no âmbito científico
quanto no senso comum, existe a idéia predominante de que uma dada característica
física poderia determinar “naturalmente” um comportamento social ou psicológico.
Assim, determinadas características físicas e comportamentais são atribuídas,
como se fosse eternas e naturais aos jovens, tais como o vigor físico, a rebeldia e a
delinqüência. No entanto, estes são apenas comportamentos imaginados como típicos
desta fase da vida. Não é possível pensar que apenas o corpo e a base fisiológica
determinem o comportamento dos indivíduos. 81
Esta classificação que define jovens a partir de limites mínimos e máximos de
idade é amplamente discutida. Levi e Schimitt, na introdução à História da Juventude,
afirma que:
Juventude caracteriza-se por seu caráter limite (...) situa-se no interior das
margens móveis entre a dependência infantil e a autonomia da idade adulta,
entre a falta e a aquisição de poder... Nenhum limite fisiológico basta para
identificar analiticamente uma fase da vida que se pode explicar melhor
pela determinação cultural das sociedades humanas. 82
Neste sentido, é este conceito de juventude trazido por Levi e Schimitt que será
utilizado neste trabalho. Assim, uma vez definido o conceito do que é ser jovem, torna-
se importante investigar o que faz e como se comporta os jovens imigrantes brasileiros,
sobretudo no seu tempo livre? Um ponto em comum nas narrativas é o que os jovens
procuravam fazer em seus momentos de folga, junto com os amigos. Tanto Antônio,
como André e Carla citaram a ida aos parques municipais e a praia como uma das
atividades periferias entre os jovens imigrantes:
“Nóis” ia para o parque, na maioria nós ia para o parque. Ficava lá no
parque o dia todo, voltava... Nós chamávamos os amigos para lá, tinha
uns que jogavam futebol... Agente ficava conversando, jogando
basquete... Lá tem quadra, tem campo... Eu tinha duas primas lá que meu
tio pedia direto que as levasse no parquinho, ficar lá vigiando elas. Aí tem
uns quiosques aonde o pessoal todo se junta. (André, 10/01/2009,
dezesseis anos)
Oh, lá nos Estados Unidos tem mais lugares para ir igual os Parques, tem
muito mais lugares de lazer né, lá é fácil de você pegar o trem e ir para a
81 BRITTO, S. (org.). Sociologia da juventude, da Europa de Marx a América Latina de Hoje. Rio de Janeiro:
Zahar, 1968. 82 LEVI, Giovanni & SCHIMITT, Jean-Claude. História dos Jovens, Segundo volume. São Paulo: Cia das Letras,
1996.
49
praia; ir e pegar um trem para Nova York, para outras cidades. Lá é
melhor do que aqui no Brasil. “Que nem”, aqui para pegar um trem para
a praia demora muito, apesar que não tem né? Só pegando ônibus. Lá
não, lá é mais fácil. (Antônio, 10/01/2009, dezessete anos)
Carla:
Agente ia mais para o parque lá, porque agente não pode... Eu era
novinha, tinha quinze, dezesseis anos. Com dezesseis anos eu tirei minha
carteira lá né. Aí eu ia mais para Somerville, justamente porque lá tinha
os brasileiros, aí agente ia para parque, ia para o Lago, algumas praias
em Reviera 83
, ali pertinho. Só isso mesmo, porque agente não podia sair
né. Lá é só depois de dezoito que se pode ir nas boates. Era só para
encontrar os amigos mesmo, fazer um churrasco, conversar. (Carla,
17/01/2009, vinte cinco anos)
Com bom humor, Érica descreve a ida ao cinema como o seu hobbie favorito:
O único lugar que eu ia era o cinema. Ia lanchar né, porque lá agente
comia igual... (risos), agente comia horrores. Nossa, eu era uma
“baleinha”. Eu comi lanche, só lanche, todo o dia. Era Dunking Donuts,
Wendies, Burger King, nossa, aí que delícia... Nossa senhora é só
porcaria. Lá agente vive de lanche. E eu entrei na onda também. Mas
agente só ia assim, lanchar e no cinema. Minha mãe trabalhava no cinema
né, fazia faxina no cinema depois das sessões, aí eu ia. Entrava de graça
praticamente toda a vez que eu ia, então... (Érica, 17/01/2009, dezoito
anos)
Gerson nos conta que andava de skate na época e jogava vôlei. Também foi o
primeiro a tocar em um ponto bastante revelador sobre a convivência dos jovens
imigrantes brasileiros nos Estados Unidos: os relacionamentos amorosos. Apesar de
alguns entrevistados apontarem que andavam com amigos na sua maioria americanos ou
hispânicos, todos afirmaram que namoraram apenas com brasileiros(as).
Ah que comédia, me lembrei. Tive uma paquera lá, me lembrei. Eu tive
dois namoradinhos, assim, namoradinhos só. Os dois eram brasileiros,
mesmo andando com poucos brasileiros lá. É, isso foi assim: no final, no
finalzinho que eu estava quase vindo embora, quase vindo embora, aí eu
conheci um brasileiro lá. Ai, que comédia, estou envergonhada (risos).
(Érica, 17/01/2009, dezoito anos)
83
Reviera (Revere, Massachusetts) é uma cidade litorânea norte-americana localizada a aproximadamente vinte e
cinco quilômetros do centro de Boston. A principal praia de Revere - Revere Beach, é conhecida como a mais antiga
praia pública dos Estados Unidos, sendo ainda hoje uma praia bastante freqüentada, sobretudo no verão. Fonte:
http://www.revere.org/ (acesso dia 01/05/2010).
50
Carla também namorou um jovem filho de brasileiros, mas que nascera nos
Estados Unidos. Sobre o relacionamento em si, ela preferiu destacar as dificuldades de
comunicação com o namorado, que perdera muito do português:
Ah, era meio um portuinglês 84
né, tipo assim, porque a gírias não tem
como né, as gírias agente pega do inglês. Agente falava assim, “ah eu
estou busy hoje”. Agente ia misturando tudo. Às vezes o inglês faltava, às
vezes o português faltava, aí embolava, mas o negócio é que todo mundo
acabava se entendendo. Lá todo mundo é assim, um pouco de inglês, um
pouco de português e aí ficava, como agente dizia lá, ou um Portunhol ou
um Portuinglês. Mas sempre tinha um pouco de português no meio. Isso
no meio dos brasileiros né. (Carla, 17/01/2009, vinte cinco anos)
A maioria dos jovens ressalta esta mescla de línguas, mesmo quando o grupo
que conversava era composto apenas por brasileiros. Outro ponto interessante é que
uma língua se mistura com a outra no momento da falta, ou seja, quando se apresenta
uma perda de vocabulário onde uma palavra faltante é reposta por outra similar,
geralmente o termo em inglês substituindo a palavra faltante do português. A estratégia
da mistura de línguas para se fazer entender era também aplicada entre namorados. Os
jovens que afirmaram ter mantido um relacionamento enquanto viviam nos Estados
Unidos, afirmaram conversar uma mistura de português com termos em inglês com seus
parceiros, todos também brasileiros. Érica, por sua vez, mostra como era angustiante a
falta de domínio básico do idioma:
Quando eu cheguei lá, minha mãe me ensinou algumas palavras em
espanhol, porque eu não sabia nada, nem espanhol nem inglês, nem nada.
Aí minha mãe me ensinou algumas coisas em espanhol só para eu poder ir
para a escola mesmo, tipo assim “como pedir para beber água”, “pedir
para sair”. Isso em espanhol. Depois eu fui aprendendo o inglês e
misturando com o espanhol, e aí foi. Aí que eu comecei a conversar
mesmo, a ter amigos. Até então eu não sabia me comunicar. Era
complicado. (Érica, 17/01/2009, dezoito anos)
As festas promovidas pela comunidade brasileira também são citadas com uma
importante atividade de lazer entre os jovens imigrantes, sobretudo quando estes já
84
Expressão utilizada pelos imigrantes brasileiros para a designar a mistura do idioma português com o
inglês na fala cotidiana.
51
passaram da infância para a adolescência. Destas festas e encontros destacam-se,
principalmente, o Brazilian Day 85
, e a Fair Street 86
:
Eu fui na Fair Street lá. Eram muitos shows, um tanto de palcos. Era uma
rua grandona com um monte de palcos, gente dançando no meio da rua,
muitas barracas lá. Dava americano né, mas é muito brasileiro. Era bom
demais. Tinha outras festas também, mas eu não ia muito não, ficava mais
em casa. Eu tinha quatorze anos. (André, 10/01/2009, dezesseis anos)
O Brazilian Day, eu fui no Brazilian Day. Lá em Nova York. Foi só do
Brazilian Day mesmo que eu participei. Lá eles não faziam tanto evento
assim de brasileiro lá em Boston. Só algumas coisas em Boate, e boate até
eu não poderia ir. Aí eles faziam assim nas danceterias (boates): Ah hoje é
a Noite Brasileira, aí ia uma galera. Depois, uns dois três anos depois eu
fui algumas vezes em Boates brasileiras lá. Que tinha a “noite brasileira”
né, porque na verdade a boate era americana. (Carla, 17/01/2009, vinte
cinco anos)
Antônio destaca que em Newark havia também a festa de Portugal e que nesta
festa “da muito brasileiro, da mais brasileiro que português”. A exceção aqui fica por
conta de Gerson que admite comemorar as festividades propriamente americanas,
apesar de ressaltar que “festa é festa”:
Eu não acho que seja tão diferente daqui não. Quando tinha uma data
importante assim, sendo brasileiro ou não sendo, agente ia comemorar,
fazia festa. Então só dependia de quando que era. De vez em quando os
brasileiros faziam festa e agente comemorava. Mas quando os americanos
faziam uma festa para comemorar alguma coisa, tipo o “Quatro de Julho”
aí agente comemorava com os americanos. Festa é festa. (Gerson,
20/01/2009, dezoito anos)
85
Brazilian Day é um festival realizado anualmente na 6a Avenida, em Nova York, no dia 7 de setembro em
homenagem à independência do Brasil. O festival toma lugar em uma região da cidade marcada pela forte presença
de imigrantes brasileiros, conhecida como Little Brazil. Com um número crescente de participantes a cada ano, o
Brazilian Day tornou-se um dos maiores eventos de rua da cidade de Nova York e foi incluído no calendário oficial
da cidade. Fonte: http://www.brazilianday.com/ (acesso dia 01/05/2010) 86 New York City Summer Street Fairs and Festivals – Conjunto de eventos culturais realizados na cidade de Nova
York, principalmente no verão, onde algumas ruas de Manhattan são tomadas por barraquinhas de artesanato, comida
e diversão, culminando com a realização de shows ao ar livre. Fonte: http://newyork.timeout.com/articles/own-this-
city/73482/nyc-street-fairs-guide-street-fairs-in-new-york-city (acesso dia 01/05/2010)
52
Imagem 10 - Brazilian Day, Nova York 87
Se os relacionamentos amorosos foram citados pelos jovens como exclusividade
de brasileiros(as), as brigas, parte da configuração e reconfiguração de identidades
construídas na fronteira entre dois mundos e relatadas pelos entrevistados, foram todas
com indivíduos de fora da comunidade brasileira. A maioria dos entrevistados relatou
que procuravam evitar ao máximo entrar em brigas ou disputas. Apenas dois episódios
foram relatados. Érica narra um problema que enfrentou com uma colega de escola:
Ai meu Deus que horror. Eu vou contar. Teve uma menina lá, lá da escola.
Ela era porto-riquenha. Eles são tão encrenqueiros. Eu não sei bem como
começou, eu que ela xingou minha mãe, e não sei o quê, mas agente era
pequena. Aí ela xingou minha mãe e tal, então ela me disse aquela coisa,
“me encontra depois da escola”. E eu fui. Aí nós brigamos feio. Eu tenho
marca até hoje aqui no dedo, quer ver? Olha essa marquinha aberta
aqui... Isso aqui foi ela que deixou. Aí ela foi inventando que eu estava
grávida, que tinha perdido o neném. Tipo assim, para me encrencar, só
que no final não deu nada não. Foi só isso, só essa vez. (Érica,
17/01/2009, dezoito anos)
E continua narrando as conseqüências da briga:
Nós brigamos fora da escola, mas perto da escola. Aí o povo da escola foi
e pegou agente e eu fiquei de detention88
uns dois dias e ela também. Aí foi
que, na detention agente estava lá, eu e ela, porque agente fica isolado em
uma sala lá, aí ela mandou um papelzinho para mim pedindo desculpas e
tal. Aí morreu. Assim, eu não nunca conversei com ela de colega assim
não, mas ficou de boa. (Érica, 17/01/2009, dezoito anos)
87 http://fhenso.files.wordpress.com/2008/08/012023102 (acesso dia 01/05/2010) 88 Detetion – É um período de tempo, geralmente depois das aulas, onde os alunos que ocorreram em alguma
indisciplina leve são obrigados a permanecer em uma sala especial, refazendo atividades didáticas ou aguardando o
momento da liberação.
53
Ao ser perguntada se ela achava que esta briga aconteceu pelo fato de ser ela
uma brasileira, imigrante, Érica respondeu da seguinte forma:
Olha, eu acho assim, agente querendo ou não é um pouco descriminado
lá. Pode ter sido isso como pode não ter sido. Ela era filha de imigrante
também. E ela era, tipo assim, ela não muito bonita também, aí o povo
descriminava ela também. Mas aí é discriminação de beleza,89
entende,
existe em qualquer lugar (risos). (Érica, 17/01/2009, dezoito anos)
Por sua vez, Gerson descreve uma “quase-briga” e Antônio destaca que, apesar
de nunca ter se envolvido em uma briga, já presenciou muitas brigas entre gangues e
envolvendo jovens imigrantes:
Quase. Não cheguei a brigar assim não, mas eu quase briguei lá. Uma
vez eu estava na sala de aula e o cara, ele era americano, mas os pais dele
eram mexicanos. Ele falou uma besteira para mim em espanhol e aí quase
que agente briga em sala de aula. Só que ele ficou meio com medo, eu já
era grandinho (risos). Eu já ouvi muito falar disso, de que havia muita
briga entre brasileiros e americanos na escola, mas eu nunca vi, nunca
presenciei isso não. Só ouvia a conversa. Mas eu nunca gostei disso e
procurava me afastar desse tipo de coisa. Mas eu vi muita briga na escola.
Era briga de aluno mesmo sabe? (Gerson, 20/01/2009, dezoito anos)
Eu não, mas já vi muitos brasileiros brigando lá. Porque assim, igual nas
festas do Brasil, que eram muitos brasileiros juntos, aí sempre tinha uns
“playboyzinhos” né que tinha que arrumar briga. Sempre tinha gente
brigando, sempre dava briga. Aí misturava. As vezes tinha brasileiro
brigando com espano, as vezes... Era difícil ver brigando brasileiro com
brasileiro. Difícil, mas de vez em quando dava também. Era mais
brasileiro com espano ou brasileiro com americano, nas festas. (Antônio,
10/01/2009, dezessete anos)
Por fim, a Igreja também possui um papel importante para que os jovens da 2a
geração montem o quebra-cabeça de suas identidades. Segundo Gustavo Lins Ribeiro:
Na igreja, amigos são feitos, relações afetivas se estabelecem e empregos
podem surgir. Uma população de trabalhadores que enfrentam longas horas
de trabalhos duros (realizados muitas vezes em horários incomuns), distante
de suas redes de parentesco e de amigos, da sua língua e cultura, uma
população na maior parte das vezes formada por pessoas em situação
clandestina frente às autoridades norte-americanas, encontra na igreja e nos
89
No caso, a expressão discriminação pela beleza, aparece no sentido da exclusão de um indivíduo do grupo de
jovens devido a características físicas ou traços físicos que não se encaixam no perfil ou padrão de beleza vigente.
54
cultos a possibilidade de sentir-se parte de uma comunidade de semelhantes
que lhes traz segurança face a um contexto essencialmente instável e
estranho.90
Nas igrejas, mais do que em qualquer outra instituição doméstica, os jovens da
segunda geração têm a noção de pertencer a uma comunidade de semelhantes, a um
grupo. O simples fato de que as igrejas conseguem agrupar um grande número de
brasileiros – homens e mulheres, crianças, jovens, adultos e velhos – num mesmo
espaço, fornece detalhes preciosos para que crianças e jovens que não conhecem o
Brasil produzam um esquema mental que lhes diga o que é ser brasileiro.91
Os jovens entrevistados que afirmaram freqüentar a igreja iam a missas ou
cultos ministrados em português, principalmente aos cultos evangélicos. Antônio afirma
que a igreja católica em Newark era mais freqüentada por portugueses e que os jovens,
em geral, não iam à missa.
Apesar dessa pouca participação, a igreja funcionava como um ponto de
encontro ou como uma oportunidade de se fazer amigos, sobretudo, a oportunidade de
encontrar outros jovens brasileiros, como nos informa Gerson:
Eu ia na católica mesmo, juventude católica. Era uma igreja que tinha as
missas dos americanos lá, mas tinha partes que os brasileiros faziam,
assim na mesma igreja. Eu sei que as missas que agente ia eram no
domingo. Não me lembro bem. Na verdade eu não me importava não. Mas
era bom para fazer amigos, porquê lá, no início pelo menos, não era tanto
brasileiro assim, tanto volume assim num lugar só. Então você ia na
igreja, onde encontrava muita gente e você via praticamente todo mundo
da cidade que você conhecia e tal. (Gerson, 20/01/2009, dezoito anos)
90
RIBEIRO, Gustavo Lins (2000). A Condição da Transnacionalidade. Cultura e Política no Mundo
Contemporâneo. Brasília: Edunb, 2000. p. 237 91
MARTES, Ana Cristina Braga. A Atuação das Igrejas entre os Imigrantes Brasileiros nos Estados Unidos.
Multiciência Vol. 1, No. 1, 1996. p. 109-117.
55
O Mundo da Escola
“O que eu aprendi primeiro foi dizer „eu não entendo nada. ‟ 92
O sistema escolar norte-americano divide-se em duas etapas: Primário ou
Básico, conhecido como Elementery School e Secundário ou Ensino Médio, High
School. Noventa por cento dos alunos freqüentam escolas públicas que se caracterizam
sobretudo pela autonomia; 93
as autoridades dos estados, municípios e a comunidade
escolar local decidem conjuntamente quase tudo: currículo, carga horária, educação
vocacional, aplicação de provas, salário de professores etc. O único ponto em comum é
a duração do curso, quatro anos, e o ano letivo de cento e oitenta dias. As matérias
oferecidas diferem de escola para escola, mas na maioria dos casos são de cinco a sete
matérias por semestre.
O primeiro ano da escola é chamado de Kindergarten e os seis anos seguintes
são chamados de Grades (First Grade, Second Grade... 6th Grade), formando o
Elementary School. O 7th e o 8th Grade são chamados de Junior High. Os quatro anos
finais que compõe o High School são conhecidos como Freshman, Sophomore, Junior e
Sênior.
A escola ocupa um papel central na vida dos jovens imigrantes. Todos os
entrevistados estudaram em escolas públicas, onde as aulas eram ministradas
predominantemente em inglês. O regime de tempo integral 94
, muito comum nas escolas
norte-americanas, implicava na permanência da maior parte do dia dos entrevistados nas
dependências escolares.
O estranhamento dos jovens com o novo regime de estudos e as diferentes
práticas escolares era imediato. Érica relata em cores vivas as suas primeiras impressões
com a escola norte-americana:
O que me marcou na escola de cara foi o que aconteceu no meu primeiro
dia de aula. Porque assim, eles tem aqueles alarmes que detecta fumaça e
aquilo dispara fácil demais. Eu acho interessante porque é segurança da
escola né. Qualquer coisinha é tratada como um incêndio no prédio,
mesmo que não tenha incêndio nenhum. Vem bombeiro, todo mundo tem
92
Antônio, nome fictício, entrevistado em 10/01/2009. 93 Structure of U.S. Education. U.S. Network for Education Information: U.S. Department of Education. Retrieved
February 19, 2005. 94 A Escola de Tempo Integral, também conhecida como ETI, é um método de ensino onde os alunos passam mais
tempo na escola desenvolvendo atividades extracurriculares. Este método, adotado nas escolas públicas norte-
americanas e de outros países, está sendo adotado gradualmente nas escolas brasileiras ao longo da última década.
Fonte: http://portal.mec.gov.br/index.php (acesso dia 01/05/2010).
56
que sair, porque eles anunciam né. Da primeira vez que aconteceu eu
fiquei doida. “Meu Deus, o que está acontecendo?” Eu fiquei doida. Aí
eles falaram que foi alarme falso. As vezes é menino que puxa o
“negocinho” né, ou então fumaça de alguma coisa lá na cantina... Acho
que só isso. Todo mundo sai da escola. Agente desce a escada de incêndio
né? Era uma escada que ficava do lado de fora da escola, ao lado da
escola, aí sai correndo todo mundo das salas, todo mundo que estiver
dentro da escola tem que sair. Até os bombeiros irem lá dentro, olhar o
quê que é. O que tem e o que não tem, e aí agente volta. Aconteceu no
primeiro dia, eu fiquei doida. Eu fiquei morrendo de dor de cabeça.
(Érica, 17/01/2009, dezoito anos)
Carla relata que o que a marcou mais profundamente nos seus primeiros dias na
escola foi o funcionamento da cantina (Cafeteria) 95
e a alimentação:
Ah, e tem a merenda que eu também achei interessante. Eu ganhei, dois e
setenta cinco dólares de desconto na merenda. Tem gente que ganha cem
por cento. Sabe, a merenda é uma comida boa... É, porque lá são umas
bandejinhas, a comida já está pronta, você pega lá e come. Aí vinha leite,
pizza. Era uma delícia, eu comia horrores. Eu acho interessante isso na
escola também. Eles dão a comida do bom e do melhor, e não é tão caro
assim sabe, pelo que vem na comida. Essas são as coisas que eu achei
interessante na escola logo quando eu cheguei. (Carla, 17/01/2009, vinte
cinco anos)
Geralmente, o primeiro contato dos jovens imigrantes brasileiros com as
disciplinas escolares dava-se através da disciplina denominada ESL – English as a
Second Language (Inglês como Segunda Língua) 96
, destinada exatamente aos jovens
recém-chegados, de vários cantos do mundo, que não dominavam o inglês. Gerson
descreve sua experiência com o ESL da seguinte forma:
Na escola era tudo em inglês. Só que tem um programa lá que aceitava e
ensinava o “inglês como segunda língua”. E ensinava outras línguas
também, então tinha aula de espanhol, tinha aula de francês. Não
ensinava português, mas tinha professores de Portugal também, que dava
95
A Cafeteria ou lanchonete é um local de alimentação dentro de instituições como escolas, prédios públicos ou
prédios de escritórios, onde há pouco ou nenhum serviço de mesa. Também conhecidas como cantinas, elas são
diferentes dos Cafés (Coffe Shops), apesar do termo Cafeteria, em português, referir-se a ambos. Ao invés de serviço
de mesa, os alimentos ficam disponíveis em balcões permitindo o acesso dos clientes. É comum, nas escolas norte-
americanas, a utilização de travessas que recebem os alimentos diretamente, sem a utilização de pratos. O sistema de
alimentação das cafeterias das escolas públicas norte-americanas vem recebendo diversas críticas por
disponibilizarem aos jovens estudantes um alimento de baixa qualidade nutricional e alto valor calórico como
hambúrgueres, pizzas e “tacos”. Fonte: MARIANI, John F. America Eats Out. New York: William Morrow & Co,
1991. 96 ESL (Inglês como Segunda Língua) refere-se ao estudo do idioma inglês por pessoas que possuem outra língua
nativa. Esse termo é mais comumente usado em relação a cursos ou disciplinas especiais voltadas para alunos que não
possuem o inglês como língua nativa. Esta disciplina faz parte do currículo obrigatório das escolas norte-americanas
devido ao grande afluxo de imigrantes que chegam aos Estados Unidos anualmente. Fonte: http://www.iatefl.org/
(acesso dia 01/05/2010).
57
até uma aula de português. Porque assim, como o número de brasileiros
cresceu demais então eles criaram essas aulas para acomodar quem
estava chegando. Mas era algo temporário. Era para ficar tendo este tipo
de aula até você falar inglês e ir para as aulas com os americanos.
Quando eu cheguei nos Estados Unidos, eu lembro que na escola agente
era dividido em série né, era uma escola pública para a cidade, então todo
mundo vai para esta escola e, acho que foi na quinta série, essa turma de
“ESL” (English as a Second Language) eram cinco brasileiros que tinha.
E depois veio mais quatro. E tinha outras pessoas, tinha da América
Latina afora, tinha um russo lá também e era um grupinho pequeno. Eram
no máximo umas doze pessoas, doze alunos. E quando eu saí desta escola,
eu fiquei da quinta até a sétima série, esse grupo tinha mais de cinqüenta
pessoas. É impressionante, cresce muito rápido. E depois, na hora que
entra na outra escola (High School) é muito mais brasileiro. Então foi
aumentando muito rápido. (Gerson, 20/01/2009, dezoito anos)
Antônio e André também falam das suas primeiras impressões e de suas
experiências com a ESL:
Eu não entendia nada. Aí o que eu aprendi primeiro foi dizer “eu não
entendo nada” em inglês. Foi a primeira frase que eu aprendi. Aí eu
chegava para o professor e dizia que não sabia fala inglês e sentava. O
professor também já sabia, porque lá tinha muitos imigrantes, eu não era
o primeiro. Aí eles já sabiam como fazer. Aí deu certo, depois de um
tempo. O problema é a vergonha que agente passa com os alunos né. Os
alunos estão vendo, você calado, não fala nada. Alguém vem falar com
você e você fica calado porque não entende nada. Mas é só no começo só.
(Antônio, 10/01/2009, dezessete anos)
Sobre a ESL, Antônio acrescenta:
Eu estudei na escola lá que era muita gente, muito americano, muito
brasileiro também foi em Newark. Aí, lá tinha as classes especiais. Porque
assim, eu estudei em duas escolas. Tinha uma escola que era mais
americano, mas as duas escolas tinham as classes especiais para
imigrante, que eles chamavam de ESL (English as a Second Language).
Eles falam que era o inglês como segunda língua da pessoa, pois a pessoa
está aprendendo a segunda língua. Aí tem essa classe separada e as
pessoas que estão nessa classe... Nas outras classes que agente vai fazer
com os americanos ele já sabem que agente vai nessa classe ESL e eles já
sabem que agente não fala muito inglês e eles ficam ajudando agente a
aprender inglês. (Antônio, 10/01/2009, dezessete anos)
As aulas eram só em inglês. Tinha uma classe que ensinava português
(ESL), mas era só eu e um menino lá. Minha sala mesmo tinha onze
alunos, nove eram brasileiros, só que era só eu e um menino lá que fazia
58
esta aula (ESL – Inglês como segunda língua). (André, 10/01/2009,
dezesseis anos)
Além da dificuldade imediata da língua, as diferenças entre os modelos escolares
adotados no Brasil e nos Estados Unidos causavam estranheza aos jovens imigrantes.
Érica cita vários fatores como o tamanho da escola, a diferença dos conteúdos e das
abordagens destes conteúdos e a diferença no enquadramento dos alunos nas séries:
A escola era muito grande. Tinha várias salas, muitos alunos. Tinha desde
os meninos pequenininhos, tipo nenéns, como se diz, berçário, até a oitava
série. Tinha três andares a escola. Bem grande. Chamava Arlinton School.
Era pública. O ensino, lá nos Estados Unidos, em geral é muito fraco.
Matemática, para você ter uma idéia, eu estava na sétima, oitava série e
estava aprendendo somar, dividir e multiplicar. É sério. Eu fazia as
folhinhas de exercício, com os numerozinhos... A única coisa que eu
aprendi lá foi isso. O ensino lá é muito fraco. Eu saí daqui quando eu
estava cursando a quinta série. Estava terminando a quinta série. Eu saí
daqui novinha. Lá eu tive que cursar toda a quinta série de novo. Isso
principalmente por causa do inglês né. Eu não sabia nada. Então me
mandaram para a quinta série de novo para ver se eu aprendia alguma
coisinha. (Érica, 17/01/2009, dezoito anos)
Imagem 11 - Arlington Elementary School, Lawrence, MA – Pátio Central 97
Antônio estudou em duas escolas e também narra às diferentes experiências que
vivenciou em cada uma delas:
Na primeira escola que eu fui. Eu estudei em duas escolas. Na primeira
escola tinha muito brasileiro. Na outra escola que eu fui tinha uma
brasileira só. Eu conheci essa brasileira na classe de ESL. Que agente
nem se via na escola, só nesta classe especial que tinha, das pessoas que
97
http://www.lawrence.k12.ma.us/about_schools.htm#elementary (Acesso dia 01/05/2010)
59
não falavam inglês. Na primeira escola que eu fui, para você ter uma
idéia, tinha três mil alunos. Era muito misturado, muita gente mesmo. Aí
tinha brasileiro, tinha muito “espano”, não era tanto americano nesta
primeira escola que eu fui, que era lá em Newark, lá em Newark tem muito
imigrante. (Antônio, 10/01/2009, dezessete anos)
A segunda foi quando eu mudei de cidade. A segunda não tinha tantos
imigrantes não. Minha sala de ESL tinha o quê; uns vinte alunos só. Eu
morei em duas cidades, morei em Newark e depois em Colônia. Em
Newark, para falar a verdade eu andava mais com brasileiro e espano.
Foi quando eu mudei para lá e meu inglês não era tão bom, mas depois,
quando eu mudei para Colônia eu tentei andar mais com os americanos.
Para mim aprender o inglês. Aí eu comecei a andar mais com os
americanos. Alguns porto-riquenhos. Lá tinha muitos jamaicanos. Só que
os jamaicanos só conversam em inglês. (Antônio, 10/01/2009, dezessete
anos)
É importante ressaltar que essas escolas estão localizadas em áreas onde vivem
imigrantes já estabelecidos há mais tempo, onde os brasileiros, nesse caso, são outsiders
por não falarem nem inglês, nem espanhol, o que aprofunda as dificuldades e o
sentimento de segregação.
Por sua vez, Carla, traumatizada pela morte do colega descrita anteriormente,
descreve a escola como um lugar que lhe causava desconforto e medo:
Eu andava só com o Paulo (brasileiro), só com ele mesmo. A maior parte
do tempo. Quando aconteceu a morte deste menino, que eu contei para
você, foi logo quando eu entrei na High School. Tanto que eu falei, mãe,
eu não quero mais estudar... Eu andava só com o Paulo mesmo. Eu
tentava me isolar o máximo. Não me identificava com nenhum grupo... Se
você é de um grupo, você tem que andar como eles andam. Se um colocar
o boné para traz, todos têm que colocar o boné para traz. Lá é um
absurdo. Eles mandam. Tem o Principal, o diretor da escola, só que lá ele
não manda em nada não. Quem manda são os alunos. Ele tenta, coitado...
(Carla, 17/01/2009, vinte cinco anos)
Érica, irmã de Carla, analisa a mesma escola sobre outra perspectiva: “Mas lá
isso aí é verdade, existe esse trem de grupo mesmo. Tem o grupo dos „esquisito‟, dos
„não sei o quê‟. Tipo filme mesmo. É desse jeito a escola. É muito engraçado.”
Assim, a vida a destes jovens, sobretudo na escola, defrontava-se com uma
sociedade que aparentemente é multicultural, mas que segrega os estudantes em grupos
étnicos, ou seja, a etnicidade, marca as relações entre os estudantes e divide-os entre nós
e eles, os White-American e os outros grupos que são etnicizados, como os afro-
american, os hispânicos-latinos, os asiáticos, etc. Dentro desta lógica de separação fica
60
a questão de onde se inserem os jovens brasileiros que se parecem como os mexicanos,
mas não falam espanhol.
Por fim, Gerson sintetiza seus primeiros momentos da vida escolar no contexto
migratório de forma eloqüente:
Eu lembro, quando eu cheguei assim que eu ficava perdido, não sabia o
quê que era, não sabia o que fazer. Eles mandavam eu fazer alguma coisa
e eu não sabia o que era para fazer, ficava parado, meio desesperado
assim, mas isso foi passando, fui aprendendo sem ver, fui aprendendo
assim. (Gerson, 20/01/2009, dezoito anos)
O relacionamento e valorização dos jovens em relação aos estudos podem ser
avaliados pela quantidade de horas dedicadas a realização de deveres de casa fora do
horário de aula. Alejandro Portes afirma que a valorização dos estudos pelos jovens
imigrantes é um fator decisivo nas comunidades migrantes bem sucedidas, como no
caso das comunidades de Cubanos em Miami, ou dos Punjab Sick, na Califórnia 98
.
Portes faz uma abordagem interessante e inovadora quanto às características
peculiares dos jovens que nasceram na sociedade de destino e dos que chegaram dos
seus países de origem. Sua análise tem como pressuposto a idéia de que a segunda
geração de imigrantes vive um conflito permanente entre manter a língua, os costumes e
a orientação cultural dos pais ou ceder às pressões por assimilação da sociedade de
destino.
Estudando o processo de assimilação dos jovens das comunidades de cubanos e
haitianos em Miami, indianos da vertente Punjabi Sikh, vietnamitas e mexicanos na
Califórnia, Portes elaborou o conceito de Assimilação Segmentada. Tomando como
exemplo o caso dos mexicanos no sul da Califórnia, podemos observar que os jovens de
ascendência mexicana são divididos em três grupos: os recém-chegados, com pouco ou
nenhum domínio da língua inglesa; os de “orientação-mexicana”, que nasceram no
México, preservam sua identificação com a terra natal, mas já vivem nos Estados
Unidos a mais de cinco anos; e os Chicanos e os Cholos, que constituem a segunda
geração, nascidos nos EUA. Apesar de estarem em desvantagem quanto ao domínio da
língua, os dois primeiros grupos apresentam médias escolares - e um comprometimento
98
PORTES, Alejandro. “Children of Immigrants: Segmented Assimilation and Its Determinants”. In PORTES,
Alejandro (org.), Economic Sociology of Immigration: Essays on Networks, Ethnicity and Entrepreneurship, New
York: Russell Sage Foundation, 1995, p.249-279.
61
em relação aos estudos e ao planejamento de uma carreira profissional - superiores aos
apresentados pela segunda geração.
A explicação para este resultado passa pelo seguinte mecanismo: os imigrantes
recém-chegados, com poucos recursos econômicos, acabam concentrando-se nas
regiões mais centrais das áreas urbanas, onde entram em contato direto com as minorias
étnicas locais. Essas minorias são constituídas pela descendência de imigrantes
anteriores que falharam no seu projeto de ascensão econômica e social, sofreram um
processo de discriminação e exclusão, e criaram, até como mecanismo de defesa, uma
postura contrária e combativa aos valores da maioria - representada pela classe média
branca. Uma mensagem típica associada à juventude de algumas minorias étnicas é a
descrença no sistema educacional como veículo de ascensão social dentro de uma
sociedade fortemente excludente. Portes cita, como exemplo, que “existe um dilema
entre ser chicano e se sair bem na escola”.99
Os jovens recém-chegados são
pressionados pelos seus colegas a adotarem as mesmas posturas e as mesmas “normas
da minoria”. O resultado é que: aqueles que optam pelo caminho da assimilação aos
traços culturais dos que nasceram nos EUA apresentam um desempenho mais fraco. Os
que mantêm uma identidade cultural mais preservada apresentam melhores resultados
escolares, maiores possibilidades de engessarem nas universidades e ascenderem
socialmente.
Esta conclusão é inovadora na medida que vai de encontro à maioria dos estudos
anteriores, que sempre enxergavam na assimilação à cultura norte-americana o caminho
mais seguro para a mobilidade econômica do imigrante. Porém, o que Portes questiona
não é o valor da assimilação em si. A grande questão que os movimentos migratórios
recentes nos coloca é: Qual setor da sociedade de destino um grupo particular de
emigrantes é assimilado? Vários imigrantes sequer têm acesso aos valores e costumes
da cultura majoritária. A assimilação não é uniforme, mas sim segmentada:
Assimilação Segmentada pode ser definida como uma nova forma de
análise da assimilação cultural dos imigrantes onde é possível distinguir
três principais caminhos de aculturação: 1) o caminho consagrado pela
teoria, onde à integração com a maioria, representada pela classe média
branca, anda em paralelo com a mobilidade social, 2) o caminho que leva
99
PORTES, Alejandro. “Children of Immigrants: Segmented Assimilation and Its Determinants”. In PORTES,
Alejandro (org.), Economic Sociology of Immigration: Essays on Networks, Ethnicity and Entrepreneurship, New
York: Russell Sage Foundation, 1995, p.255
62
na direção oposta: à pobreza permanente e a assimilação às camadas pobres
da sociedade, 3) terceiro caminho que une mobilidade econômica com
preservação da solidariedade e do pertencimento à comunidade migrante.100
Quanto mais coesa for uma comunidade imigrante, menos suscetível ela será à
influência das “normas da minoria”, e menores serão as possibilidades de uma
assimilação ligada a um “nivelamento por baixo”. Portes utiliza o exemplo dos Punjabis
Sikhi, no norte da Califórnia, para ilustrar este caminho alternativo. Num ambiente onde
a discriminação da maioria branca mostra-se bastante elevada é possível notar a grande
influência que a comunidade indiana exerce sobre seus jovens de segunda geração. Os
pais imigrantes instigam nos filhos a evitarem brigas e o contato excessivo com os
brancos, ressaltam a importância do domínio do inglês e de um bom desempenho
escolar. A conseqüência é que os jovens Punjabis apresentam uma média escolar
superior a da maioria.
A despeito do fato de que os imigrantes indianos não encontram um grupo étnico
já estabelecido que pressione seus jovens para uma assimilação niveladora, nota-se que,
dentro dessa comunidade específica, e de outras comunidades imigrantes bem
sucedidas, as redes sociais são bastante densas e o capital social é abundante. Capital
Social pode ser definido, no caso referente aos pais dos imigrantes, como a habilidade
ou capacidade de contar com vários “parceiros étnicos” (vizinhos, parentes, amigos, e
pessoas da comunidade) para reforçar suas expectativas sobre sua prole e supervisionar
o comportamento da mesma.101
Apesar de não oferecer informações sobre as médias escolares dos jovens
brasileiros, foi possível extrair das entrevistas alguns insights sobre o processo de
assimilação. Questões como o tamanho da rede familiar, o número de horas dedicadas
aos estudos e dever de casa, os principais parceiros étnicos, fornecem indícios sobre a
densidade das redes sociais e a abundância do capital social dentro da comunidade
brasileira. É importante lembrar que os entrevistados, no caso, não são todos
pertencentes à mesma comunidade, apesar de concentrarem-se em Massachusetts e
Nova Jersey.
100
PORTES, Alejandro. “Children of Immigrants: Segmented Assimilation and Its Determinants”. In PORTES,
Alejandro (org.), Economic Sociology of Immigration: Essays on Networks, Ethnicity and Entrepreneurship, New
York: Russell Sage Foundation, 1995, p.251 101
Idem, p.266
63
Neste sentido, a fala dos jovens entrevistados ressalta que estes dedicavam
poucas horas aos estudos, mas apresentam diferentes justificativas para este fato. André
mostrou-se bastante sincero ao relatar suas dificuldades:
(risos) Eu não era muito chegado em fazer meu dever de casa, já fui até
castigado. Nossa, ficava umas meia hora depois da aula quando eu não
fazia meu dever de casa... Mas eu tinha um pouquinho de dificuldade né.
Mas eu fazia muito, ficava umas meia hora tentando fazer o dever. Meu
outro irmão, ele morava em outra cidade, mas direto ele me ensinava pelo
computador o dever, me passava para mim. Fazia umas meia hora...
Quando você não faz, eles passam uma frase que você tem que copiar
umas cento e vinte vezes. Isso aí depende do professor. Nossa eu peguei
uma professora lá que era brava. Tinha que ficar copiando, não pode sair
não, ninguém queria ficar lá no final da aula. Eu fazia o máximo, mas
quando não dava para fazer eu ficava. Mas eu tentava, para não ficar eu
tentava fazer direito. (André, 10/01/2009, dezesseis anos)
É interessante notar que o castigo freqüente ao qual André era submetido partia
muito mais de sua dificuldade em lidar com o idioma do que com uma falta de vontade
em fazer as tarefas. Neste ponto, o sistema escolar norte-americano parece não perceber
e identificar esta dificuldade, sobretudo entre os imigrantes, acionando o recurso da
punição através da cópia repetitiva de sentenças.
Antônio e Gerson justificam as poucas horas de estudo através da presença do
regime de tempo integral das suas respectivas escolas. Segundo Antônio:
Se eu estudava fora da escola? Não tanto, porque eu ficava muito tempo
na escola. Das oito até as três da tarde. Então quando eu chegava da
escola, se tivesse um dever de casa eu fazia em meia hora, uma hora o
dever de casa. Não ficava muito tempo não. Mas também porque eu ficava
tanto tempo na escola, que depois da escola eu não ficava pensando muito
nisso não. Mas os deveres de casa lá, com uma hora dava para fazer e
ficava bom, não precisava muito tempo não. (Antônio, 10/01/2009,
dezessete anos)
Gerson completa:
Nossa, era pouco. Porque lá agente entrava na escola sete e vinte da
manhã, era bem cedo assim, e saia duas horas da tarde. Então você ficava
o dia inteiro na escola. Tinha muita coisa para fazer depois, então
estudar depois da aula eu não estudava nada. É porque lá escola também
você tinha um horário livre, em alguns dias, e você usava esse horário
para fazer essas coisas, para você não ter que levar as coisas para casa.
64
Às vezes levava uma coisinha ou outra. Eu achava muito fácil. (Gerson,
20/01/2009, dezoito anos)
Érica é a exceção quando afirmou estudar mais de três horas por dia depois da
escola (que também era de Tempo Integral):
Deixa eu ver... Eu chegava lá pelas três horas, então, eu estudava umas
duas ou três horas por dia. Eu fazia a atividade de casa, aprendia alguma
coisa... Porque minha mãe sempre dizia “oh, pega alguma coisa para
você ler, o que você não entender, vai no dicionário, vê o quer dizer”. Ela
comprou um dicionário para mim, e eu fui aprendendo assim. (Érica,
17/01/2009, dezoito anos)
Uma rede familiar extensa é geralmente um sinal de abundância de Capital
Social dentro de uma comunidade de imigrantes. Sabe-se que o simples fato da
existência de muitos parentes na mesma comunidade não é sinal da configuração de
redes sociais suficientemente densas para influenciar os jovens. Contudo, a presença de
irmãos, tios, primos, etc, reforçando os mesmo referenciais e valores, é sem dúvida uma
importante força para evitar o caminho de uma assimilação às minorias marginalizadas.
Os jovens entrevistados informam a presença de 9 a 40 parentes diretos morando nos
EUA, um número suficiente para a configuração de um capital social relativamente
abundante.
Aqui cabem duas ressalvas. A primeira é o fato de que as entrevistas são apenas
indícios e não geram dados probabilísticos, ou seja, não permitem generalizações e nem
é este o nosso objetivo. A segunda está ligada ao fato de que, como os imigrantes
indianos, os jovens brasileiros não encontram uma minoria étnica local solidamente
estabelecida que os pressionem a aderir valores combativos aos valores da maioria. Os
hispanos (utilizando a terminologia dos entrevistados) não são, de modo algum, uma
referência identitária para os jovens brasileiros. Pelo contrario, estes se esforçam para se
diferenciar dos “latinos” considerados por eles excessivamente agressivos e
preguiçosos.
Teresa Sales, no texto “Segunda Geração de Emigrantes Brasileiros nos EUA”
aponta que os jovens por ela entrevistados, asseguravam que o sistema de ensino no
Brasil mostrava-se superior ao norte-americano. Porém, o desempenho escolar dos
jovens imigrantes não se apresentava superior à média dos alunos. Sales ressalta que:
65
Os jovens adolescentes entrevistados, em sua grande maioria, dizem que o
sistema de ensino no Brasil é melhor do que o americano. Explicam que
saíram do Brasil em uma classe mais baixa do que a que foram alocados
quando lá chegaram. Mas não apenas isto. Dizem também que, de modo
geral, o sistema de ensino é mais fraco nos estados Unidos e que no Brasil
eles aprendiam mais do que lá, mesmo aqueles que aqui estudavam em
escolas públicas.102
O discurso que Sales identificava nas entrevistas com os jovens brasileiros de
Somerville, também são reproduzidos aqui. Perguntado se achava a escola fácil ou
difícil, Gerson respondeu:
Ah, sei lá, não achava muito difícil não. Você escolhia as aulas que você
fazia. Então vamos supor, então, por um ano você tem que fazer uma aula
de ciências, uma aula de matemática e uma aula de história. Só que você
pode escolher. Vamos supor, se você gosta de biologia, você faz biologia.
Você não precisa fazer física por exemplo. Você pode se formar lá sem ter
feito uma aula de física. Agora, assim, você precisa fazer uma aula de
ciências que é mais geral e é obrigatória. Então por isso, para mim era
mais tranqüilo. Por exemplo, espanhol... Eu fazia só para passar. (Gerson,
20/01/2009, dezoito anos)
Apesar de ressaltar a dificuldade com a língua, Érica também se alinhava ao
discurso da fragilidade do ensino nos Estados Unidos:
Assim, o difícil era a língua porque eu não sabia. Mas a escola, o ensino
lá é muito fraco. Tipo assim, eu ficava muito estressada. Porque quando
chegava o boletim, bem, não era boletim mesmo, eu tenho até guardado
ali. As minhas notas eram sempre todas ótimas, mas sempre vinha uma
reclamação porque eu não sabia ler. Eu não me comunicava muito e eles
sempre reclamavam por isso. Quando eu cheguei lá, tinha uma mulher
que ajudava agente. Ela se chamava Renata. Ela era tipo uma tutora,
brasileira. Mas ela ficou dois meses só e aí eu fiquei na mão. Eu falei
“Meu Deus, e Agora?” Ela saiu, não sei se ela foi banida desse negócio
de ajudar... Não sei te dizer. Aí toda vez vinha meu boletim com as notas
todas ótimas, mas com os professores reclamando “ela não se comunica
com os colegas” e tal. Mas não tinha jeito, eu não sabia, ia fala o quê?
Isso no início, mas depois minha notas foram boas. (Érica, 17/01/2009,
dezoito anos)
E acrescentava a dificuldade de ser uma imigrante, enfrentado um sistema de
ensino e uma língua diversos:
102
SALES, Teresa. Segunda Geração de Emigrantes Brasileiros nos EUA. In: CASTRO, Mary Garcia (org.).
Migrações Internacionais: Contribuições para política. Brasília: CNPD, 2001. p.362
66
Ah, sei lá. Acho que neste aspecto assim do ensino, por ser país de
Primeiro Mundo, Primeiro Mundo entre aspas né... Eu acho que é muito
fraco. Acho que eles deveriam dar um pouco mais de atenção ao
imigrante. Eles olham para agente tipo assim “olha, ela é estranha”. Era
estranho. Sei lá. Aqui (Brasil) agente fica até meio dia e meio, uma hora
no máximo e aprende muito mais do que lá. Então, eu penso assim, se eles
acham que tem mais horas de estudo o menino está aprendendo mais, não
é assim não. O ensino é muito fraco. Mas depois eu fui pegando. Igual
essa professora minha, da quinta série, acho que o nome dela era “Miss
Graylow”, um trem assim, depois ela foi me ajudando. Eu fui subindo de
série e ela foi me ajudando. Ela virou tipo uma colega, uma amiga. Toda
vez eu ia lá visitar ela. Então eu acho assim: em termos de ensino é fraco,
mas o povo acaba acostumando. (Érica, 17/01/2009, dezoito anos)
Neste ponto, podemos perceber a importância da língua para o imigrante e como
domínio ou não do idioma torna-se um fator que marca a segunda geração, pois é ela
que faz o trânsito entre as duas culturas e, portanto, a questão da língua torna-se central
no seu processo de inserção na sociedade norte-americana, diferentemente de seus pais
que, em geral, não terão oportunidade de aprender o inglês.
Neste caso, é importante ressaltar que Carla apresenta um discurso diferente
sobre o ensino norte-americano:
Eu não ia bem nos estudos. Eu tive o azar de não ser uma escola bilíngüe.
Eu fui para lá sem saber falar inglês. Aí eu falei com o Principal 103
se
poderia ter uma aula em português, e ele falou que não. Então eu fui
aprendendo assim, aos trancos e barrancos. Difícil. Por exemplo, na
matéria “História dos Estados Unidos”. Como eu estudei o tempo todo
aqui, como eu ia saber a história dos Estados Unidos? Não sabia nada. E
aí falavam, falavam... Eu não entendia nada. A única coisa que eu achei
fácil lá foi a matemática, moleza. Agora, História, Geografia, Biologia
essas coisas, eu só tirava “F”. É a mesma coisa daqui, só que a única
diferença daqui é que... Aliás, aqui no Brasil eles pedem o inglês né, a
obrigação é saber inglês. Lá não, você tem que ter duas línguas. O
Espanhol e depois eu peguei o Francês. Obrigatório. (Carla, 17/01/2009,
vinte cinco anos)
Como ressalta Teresa Sales, a avaliação do nível de ensino americano tem que
ser relativizada, pois faz parte de um discurso construído e disseminado dentro da
comunidade brasileira nos Estados Unidos. 104
Forma-se a imagem do estudante
103
Principal – Termo que designa o diretor da escola ou professor mais velho, encarregado da parte administrativa
escolar. Fonte: Dicionário Oxford Pocket para Estudantes de Inglês. Oxford University Press. www.oup.com/elt
(Acesso dia 01/05/2010) 104
SALES, Teresa. Segunda Geração de Emigrantes Brasileiros nos EUA. In: CASTRO, Mary Garcia (org.).
Migrações Internacionais: Contribuições para política. Brasília: CNPD, 2001. p.367
67
brasileiro bem sucedido, e do melhor nível de ensino dos colégios brasileiros, onde na
verdade existe uma diferença de foco. O ensino mais enciclopédico e teórico no Brasil
contrasta com uma visão norte-americana, mais pragmática, onde são comuns aulas
como carpintaria, cerâmica, mecânica, culinária, economia doméstica, etc. A impressão
de que o ensino nos Estados Unidos é mais fácil, parte, sobretudo do diferente critério
de alocação dos estudantes nas classes, onde, em geral, os alunos brasileiros vão para
classes superiores às que iriam se estivessem no Brasil.
Entretanto, quando perguntados sobre suas impressões gerais sobre a escola nos
Estados Unidos, os jovens, em geral, descreveram um quadro bastante positivo,
sobretudo no que se refere à possibilidade de se escolher quais disciplinas que poderiam
ser cursadas. Gerson, que ressaltou a “fraqueza” do ensino norte-americano, descreve
sua escola da seguinte maneira:
Uma coisa que, comparando com as escolas aqui, um lado muito bom que
as escolas tem lá, é que lá, durante seu tempo escolar, o tempo para você
se formar no terceiro ano, e lá são quatro, você já está praticamente
decidido está praticamente decido o que quer fazer . Por você desde o
início da sua carreira escolar você escolher o que vai fazer, você não tem
aquele negócio que tem muito; que é você formar e pensar “e agora, o que
vou fazer?”. “Vou fazer vestibular de que?” Aí você vê pessoas fazerem
vestibular de cinco coisas que são totalmente diferente uma com a outra.
A pessoa entra muitas vezes sem saber o que está fazendo. Eu sou um caso
desses. Eu entrei, fiz Ciências da Computação, não era nada do que eu
estava querendo aí eu mudei de curso. Lá isso acontece muito menos
porque durante o seu ano escolar você escolhe as áreas que você quer. Se
você gosta de até cozinhar, lá tem as aulas de culinária para você ir
fazendo. Então você vai praticando muita coisa e, além disso, você se
descobre. Descobre mais o que você quer e vai praticando isso antes de se
formar. E lá você fica muito mais envolvido com a escola também. Lá,
praticamente todo mundo lá, além de ir as aulas, faz alguma coisa a mais
na escola. Ou seja, no ano inteiro tinha esportes que se praticava na
escola e você viajava para você jogar. Tinha coisas a mais tipo clube de
filmagem, de teatro, esse tipo de coisa que sempre envolvia a escola.
Então lá os alunos são muito mais envolvidos com a escola. (Gerson,
20/01/2009, dezoito anos)
Antônio acrescenta:
A escola é boa, muito boa. Na escola lá você tem um armarinho onde você
põe as suas coisas. Os professores são bom demais... O que eu gostava na
escola lá era como... aqui no Brasil os alunos ficam na classe e os
professores vem. Lá não, lá cada professor tem sua classe. Os alunos é
que mudam. Quando bate o sinal você tem dois minutos para por seu livro
68
da aula passada no armarinho que você tem e pegar o seu outro livro e ir
para a classe. Era isso que eu gostava. O que eu não gostava lá era as
regras que tinha que não podia usar boné, essas coisas, mas isso é normal
de toda escola. Isso eu não gostava, tipo, não podia ficar com o celular do
lado de fora. Não era usar, não podia nem ficar com ele dependurado do
lado de fora. Esse tipo de coisa... Os professores que eu tive sempre
foram legais. (Antônio, 10/01/2009, dezessete anos)
Da mesma forma, aqui encontramos também uma exceção. Para André, a
barreira da língua tornou-se intransponível:
A escola aqui (Brasil) é melhor né, porque lá eu não tinha muita
facilidade, mas não era ruim a escola lá não. Mas eu preferia aqui. Se eu
soubesse o inglês ia ser muito melhor estudar lá, mas eu só falava o
português, não dava para participar muito da escola lá por isso eu falo
que aqui é melhor. (André, 10/01/2009, dezesseis anos)
É importante destacar que a aprendizagem do inglês ou de outra língua torna-se
mais difícil à medida que a criança já freqüentou escola no Brasil e teve que reaprender
nos EUA. Também vale relembrar os estranhamentos que a escola representou para
André o que pode ser uma das causas do por que aprender inglês se tornou impossível
para ele.
A disciplina que a maioria dos entrevistados menos gostava era a Matemática,
apesar de que a maioria ressaltava que as dificuldades com os conceitos matemáticos
também já existiam no Brasil. História Americana também foi apontada como uma das
matérias que os jovens imigrantes menos gostavam, sobretudo por ser obrigatória e
também por não dominarem nenhum conhecimento prévio sobre o assunto.
Entre as preferidas estão Ciências e Biologia, sendo que Antônio cita
particularmente as experiências realizadas e as constantes idas ao laboratório. Gerson
foi o entrevistado que demonstrou mais entusiasmo ao descrever uma disciplina cursada
na sua escola, em Malden:
Eu fiz uma aula que eu gostei pra caramba lá, que eu escolhi fazer, na
verdade foram duas. Uma, quando eu cheguei no terceiro ano lá, eu
comecei a fazer o terceiro ano lá, só que como a aula começa em agosto
eu fiz metade do ano lá e voltei aqui e fiz o terceiro ano de novo. Eu voltei
era em dezembro. Então eu fiz neste último semestre duas aulas que eu
gostei demais; uma chama Video Production que era para você aprender
coisas de filmagem, para você fazer produção de televisão mesmo. Isso eu
fiz esses seis meses dessa aula no terceiro ano, e a outra aula foi uma aula
69
de robótica que eles ofereciam na escola e que você começava a aprender
a fazer este tipo de robô e tal com Lego.105
Bom, o que eu não gostei... eu
vou falar com você de uma aula do primeiro ano que eu fiz, uma aula de
história americana, eu não gostei acho que influenciado mais pelo
professor do que da aula. O cara era nojento. Mas eu acho que era isso,
não lembro se tinha muita coisa assim. (Gerson, 20/01/2009, dezoito anos)
Um ponto que perpassa a narrativa dos entrevistados sobre suas experiências
com a o sistema escolar norte-americano é a importância da prática do esporte. Neste
caso, rapazes e moças apresentam visões um pouco distintas, sendo que, sobretudo para
os primeiros, a prática de um esporte no âmbito escolar, o pertencimento a um dos times
oficiais da escola, tornou-se uma parte importante e que marcou profundamente suas
experiências migratórias. Gerson tentou praticar futebol americano, mas não foi
selecionado. Logo em seguida entrou para o time de vôlei da escola. Perguntado se o
esporte ajudava o jovem imigrante a se socializar, Gerson respondeu da seguinte forma:
Não, é muito além disso. Lá, durante as suas horas de escola você tem a
aula de educação física. O esporte é sempre uma coisa extra que você faz.
Então, nas escolas lá, não só a maioria das pessoas querem fazer esporte,
até mesmo para ficarem conhecidas na escola, mas o suporte que a
comunidade toda da para o esporte é muito maior. Lá, por exemplo, se
você praticar algum esporte bem, vinham pessoas de faculdade olhar você
jogar. Eles vinham atrás de talento né. Você saia em jornal. Não da
escola, mas da cidade onde você morava, por causa do esporte. Então,
não só eles incentivam muito mais você praticar esses esportes né, mas
você continuar praticando. Eles tem um cuidado muito maior de fazer
você continuar praticando esportes, você não desistir, de você manter uma
coisa até mesmo por... até mesmo para a faculdade, eles vinham procurar
de fora. Eu conheci muita gente na época em que eu jogava que ganharam
bolsas né por praticar esportes. Então eles vinham procurar de fora,
agente via, agente via, sempre que agente ia jogar em algum lugar fora ou
jogar na escola nossa: “Oh, agente sabe que tem um olheiro aí da
faculdade tal” né. Então agente ficava mais ansioso ainda para jogar,
ficava querendo mais e tal e só incentivava. Só. (Gerson, 20/01/2009,
dezoito anos)
Antônio narrou que “praticava o futebol americano e malhava muito na escola”.
Participava do time de futebol americano da sua segunda escola, em Colônia e destacou
a importância do time na sua experiência:
105
Lego é um brinquedo composto por pequenos blocos de plástico que se encaixam formando diversas
formas e padrões. Fonte: http://www.lego.com/default.aspx (acesso dia 15/05/2010)
70
Ajudou demais. Quando você, por exemplo, faz futebol americano, e você
faz uma boa jogada, ou marcava ponto, atacava, fazia um ataque bom lá,
aí no outro dia todo mundo estava te elogiando, te cumprimentando. Você
está andando no corredor da escola e todo mundo fica parando você,
elogiando, falando. E no outro dia até pode usar o uniforme... Porque se
você ganha o jogo, no outro dia os jogadores que jogaram podem ir com o
uniforme de jogo, entende? Teve um jogo que agente estava perdendo, era
o jogo para ganhar o troféu. Faltando vinte segundos, porque no futebol
americano o tempo para, faltando vinte segundos para agente fazer o
ponto, agente consegue o ponto e eles tinham que virar. Eles vieram com
força e faltava pouco para eles fazerem o ponto deles, faltando quatro
segundos para eles fazerem o ponto deles, agente conseguiu segurar e eu
participei da jogada. Agente conseguiu parar eles e ganhou o troféu.
Nossa, esse jogo... se eu tivesse a fita desse jogo. Eu devia ter gravado.
(Antônio, 10/01/2009, dezessete anos)
A sensação de isolamento que o próprio Antônio relatou quando descreveu sua
dificuldade com domínio da língua inglesa era amplamente compensada pela
valorização advinda do seu desempenho esportivo. Assim o esporte, para alguns jovens
imigrantes, torna-se um instrumento de socialização muito mais importante e profundo
do que a simples possibilidade de fazer amigos e se divertir. Torna-se um instrumento
de auto-afirmação para indivíduos que muitas vezes apresentam uma baixa auto-estima,
devido às diferentes dificuldades a serem superadas na adaptação escolar. Cabe destacar
também o papel do esporte na construção de identidade de gênero masculina e a idéia de
competição, muito presente na sociedade norte-americana.
A possibilidade de um crescimento futuro, uma possível inserção em alguma
universidade, também faz parte do imaginário do esporte. Antônio complementa:
Isso é uma preparação né, o High School lá. O segundo grau lá é uma
preparação, uma preparação para o esporte na universidade. Todos os
esportes. Por isso que tem bastante esporte lá. Tem basquete, tem
“westeriling” que é a luta romana sem quimono. Essa cidade aqui (foto)
que eu também joguei Futebol Americano não tinha tanto imigrante não,
que era Colônia. A primeira cidade que eu fiquei lá, Newark, tinha. Até
que lá em Newark eu tentei entrar no time de Futebol americano e não
consegui. Porque lá é mais difícil. Lá é maior a cidade. A cidade menor,
em Colônia, é mais calmo né. – É mais calmo. E o time deles é melhor do
que o de Newark (risos). Nós ganhamos deles. Quanto as regras do futebol
americano, demorou um pouquinho para aprender. Eu passei um bocado
de vergonha lá no meio do jogo. Mas depois que eu aprendi também...
Depois que você aprende... Nossa Senhora. (Antônio, 10/01/2009,
dezessete anos)
71
Imagens 12 e 13 - Time de futebol americano e mascote da Newark High School 106
Carla e Érica, por sua vez, afirmaram que praticavam esportes apenas na
Educação Física. À parte a diferença de gosto pessoal por uma atividade física, as
jovens ressaltaram que o esporte não foi tão importante assim no processo de adaptação.
Segundo Érica: “Não, não. Eu não gostei também não porque eu sempre fui baixinha
né. Eu gostava de basquete, mas eu sempre fui baixinha. E era sempre o grupinho
deles, né. Sabe, só entre eles.” Carla vai direto ao ponto: “Para mim o esporte não
ajudou a fazer amigos. Eu ficava com o pé atrás, né”.
As diferentes experiências entre rapazes e moças em relação à importância do
esporte para a socialização do jovem migrante ficam atenuadas quando perguntados se
106
http://www.newarkfootballboosters.com (Acesso dia 01/05/2010)
72
já se sentiram descriminados no ambiente escolar. Neste ponto percebemos como o
discurso sobre a trajetória migratória é construído e, muitas vezes, distante da
experiência. O relato mais marcante desta distância entre discurso e vivência foi feito
por André. Perguntado se já havia se sentido descriminado na escola por ser um
imigrante brasileiro, André respondeu categoricamente que não, nunca havia se sentido
descriminado, que era bem aceito e tinha muitos amigos. Porém, quando lhe foi pedido
para relatar algo que o marcou no período que esteve na escola americana, André relata
a seguinte experiência:
Ah, eu chegava lá e começava a estudar... Igual a primeira vez que eu
entrei dentro da escola... A primeira vez que você estuda lá você tem que
tomar pelo menos umas dez vacinas para entrar na escola, porque eles
pensam que os brasileiros têm doenças, eu quando cheguei, quando entrei
no “pré” tive que raspar até a cabeça, porque eles pensam que, eles
achavam que nós tínhamos piolho... e eu cheguei lá com a cabeça raspada
e chorava pedindo ao meu pai para não deixar eu entrar, para fazer a
aula. Mas quando eu chegava lá, que eu peguei mesmo a escola, eu
gostava de ir para passear lá, mas quando eu entrava na escola eu já
queria voltar pra cá. (André, 10/01/2009, dezesseis anos)
O impacto desta experiência foi tão profundo que levou André a se emocionar e
pedir para interromper a entrevista brevemente. A cabeça raspada era o símbolo
máximo, para o jovem entrevistado, da sua inadequação ao novo contexto. A diferença
óbvia da falta de domínio do idioma era ainda mais acentuada na diferença marcada no
corpo, na cabeça. Entretanto o discurso imediato proferido pelo jovem, até como uma
forma de autodefesa, era o da não discriminação. Ao meu ver, o sentimento de
inadequação foi tão profundo e marcante que ainda não foi possível, para o jovem que
viveu esta experiência, articulá-lo em sua fala/discurso.
Antônio também tenta minimizar o termo “discriminado”:
Discriminado não, discriminado não. Mas eu tive um problema uma vez
por não fala inglês. Eles vêm e começam a fazer brincadeiras. O pessoal
que falava inglês. Mas foi um “trem” bobo, passou, foi mais no começo.
Às vezes a pessoa nem quis fazer muito na maldade também. (Antônio,
10/01/2009, dezessete anos)
Carla e Érica seguiram a mesma direção. Ambas responderam que não foram
discriminadas, para, quase que imediatamente, relatarem suas dificuldades. Para Carla,
o principal problema foi a língua:
73
Porque eu não sabia falar inglês, então eles ficavam meio que rindo,
sabem ficavam zuando. Logo quando eu cheguei lá, foi um negócio que
nunca saiu da minha cabeça. Eu cheguei, estava muito frio, e lá como
agente é que muda de sala, eu esqueci minha jaqueta na sala. Aí um
menino ficou falando, falando, falando e ria e eu não estava entendendo
nada. Eu pensava, Meu deus, o que será? Aí chegou uma menina e disse
“Mira-te” e apontou, então eu percebi que tinha esquecido a jaqueta, e a
sala inteira ria de mim. Tipo assim, eu era motivo de “zombação” lá.
Todo mundo rindo porquê eu não sabia falar inglês. Não os americanos.
Os porto-riquenhos. Os americanos coitados, os americanos pelo menos
tentavam embolar lá, tentavam gesticular, faziam tudo para que eu
pudesse entender, mas os porto-riquenhos... nunca ajudaram em nada.
(Carla, 17/01/2009, vinte cinco anos)
Desta forma percebemos que a escola, espaço que Portes sinaliza como um dos
instrumentos mais importantes para a inserção do imigrante na nova sociedade, exclui,
segrega, não ensina a língua como deveria o que num certo sentido pode contribuir para
que, contraditoriamente, ao invés de confirmar-se como um instrumento de inclusão, o
espaço escolar acaba tornando-se uma arena onde as ambigüidades e angustias da
condição de jovem migrante são acentuadas.
74
O Mundo do Trabalho
“Se você trabalhar pesado você vai ganhar „dinheiro pesado‟. Se você quiser
trabalhar tranqüilo você só vai ganhar um „dinheiro tranqüilo‟ 107
O mundo do trabalho possui um papel de destaque na vida dos jovens e
adolescentes imigrantes, sobretudo porque o trabalho abre as portas para outro mundo: o
consumo. O trabalho é tido como um valor dentro da comunidade brasileira. É através
do trabalho que o projeto migratório concretiza-se, e é fácil perceber a centralidade que
o trabalho ocupa na vida e no cotidiano da maior parte dos jovens emigrantes. Entre os
entrevistados, apenas Gerson não trabalhou durante o período em que morou nos
Estados Unidos. Diferente dos demais entrevistados, os pais de Gerson fizeram questão
de que o filho não trabalhasse para que pudesse se dedicar somente aos estudos.
Antônio e André trabalharam em atividades relacionadas à construção civil.
André, o mais novo dos irmãos, trabalhava depois da aula durante os dias de semana e
durante os finais de semana. O trabalho durante os dias de semana não possuía uma
regularidade fixa e dependia do volume de serviço que os seus parentes conseguiam
obter. Ele descreve assim sua experiência:
Trabalhei às vezes depois da aula e sempre tinha trabalho no sábado ou
domingo, mas nossa era muito trabalho. Meu tio arrumava para mim.
Arrumei um monte de bico lá para trabalhar. Direto aparecia uma coisa
diferente. Só uma vez eu arrumei um serviço por tempo maior, era um
serviço que agente ficava envernizando casa, essas madeiras assim. Já fiz
muita coisa tipo “ceramicar” banheiro, envernizar casa, aqueles tetos
provisórios, sabe, também já coloquei. Uma vez também eu já trabalhei na
carpintaria. Mas esse aí foi só um dia só porque eu não agüentei. Foi até
de um cara que morava aqui em Valadares. Eu trabalhei um dia só no sol
quente, não dá não, é muito pesado. No dia que eu cheguei eles estavam
começando a construir, então eu peguei o serviço mais pesado. Tipo
assim, pegar o martelo e bater aqueles pregos de aço em volta da casa
toda, sabe... aí não dá para mim não, carpintaria é pesada demais. Tinha
uns trabalhos pesados e tinha uns bons. Igual o que eu te falei de mudar o
teto foi numa universidade. Era dentro da universidade, ar condicionado
ligado... mas os outros, de envernizar agente ficava dentro da casa toda
fechada, aquele cheiro forte... (André, 10/01/2009, dezesseis anos)
André tinha apenas sete anos quando emigrou e trabalhou dos doze aos dezesseis
anos em serviços como os descritos por ele. A carpintaria, considerado um dos serviços
107
Antônio, nome fictício, entrevistado em 10/01/2009.
75
mais pesados na área de construção civil, pois está diretamente associada à construção
de casas, era o principal trabalho do irmão mais velho de André. Antônio nos conta:
Trabalhei na carpintaria, na construção. Carpintaria porque lá as casas
são de madeira, então era carpintaria que fala na construção de casa. Nos
finais de semana eu também ia para Newark e sempre aparecia um
trabalho para mim lá. Quando eu cheguei lá eu trabalhei também com
mecânica. Com mecânica eu trabalhava só no sábado só. No sábado eu ia
para a mecânica dar um “Help” né? (Antônio, 10/01/2009, dezessete
anos)
É importante destacar que nessa idade na qual no Brasil, em geral, os
adolescentes apenas estudam, os jovens entrevistados tenham que trabalhar e que o
trabalho possua uma centralidade em suas vidas. Com essa idade é proibido trabalhar no
Brasil, mas, nos Estados Unidos, mesmo com a proibição do trabalho adolescente em
diversos estados, é muito comum encontrar jovens filhos de imigrantes em construções
ou reformas pesadas.
Quando perguntado sobre o que achava do trabalho, Antônio mostra, entretanto,
como alguns valores estão incorporados em seu discurso. É uma fala dura que revela a
instabilidade desse mercado de trabalho. São visões relacionadas ao trabalho e à
preguiça (onde “ser preguiçoso” é não agüentar trabalhar muitas horas seguidas) que são
freqüentemente cultivados e reafirmados entre grupos imigrantes:
Ah, lá o trabalho, se você trabalhar pesado você pode saber que você vai
ganhar alguma coisa. Se você trabalhar pesado você vai ganha “dinheiro
pesado”. Se você quiser trabalhar tranqüilo você só vai ganhar um
“dinheiro tranqüilo”. Se você quiser trabalhar devagar, você vai ganhar
um “dinheiro devagar”. Você não vai ganhar quase nada. Assim quando a
pessoa vai lá para trabalhar pesado, só pesado e marcar assim: “daqui a
cinco anos eu vou embora” e trabalhar pesado mesmo, você pode saber
que a pessoa vai voltar cheio de dinheiro. Mas se a pessoa ficar
preguiçosa, igual acontece lá... lá é assim, a pessoa vai na casa do patrão
que leva de carro para a carpintaria, e aí se a pessoa começa a ficar
preguiçosa, começa a querer que busque em casa, depois a pessoa começa
a acordar mais tarde, aí a pessoa já está o quê; acordando nove horas
para ir ao trabalho, o patrão tem que ir buscar em casa... aí não tem jeito,
a pessoa não vai ganhar dinheiro. E corre o risco de talvez ser despedido,
o que é o pior. Porque lá, o patrão se agarra muito na pessoa que está
trabalhando com ele, ainda mais na carpintaria, porque precisa mesmo da
pessoa. Aí o patrão começa a pensar “eu preciso desse cara”. Tem vezes
que eles vão até na casa da pessoa. Vão fazer o quê. (Antônio,
10/01/2009, dezessete anos)
76
Carla trabalhava regulamente depois das aulas. Se a construção civil era o foco
do trabalho dos irmãos André e Antônio, Carla e Érica acompanhavam sua mãe na
atividade de limpeza e faxina, mostrando uma diferença relativa ao gênero e às
atividades laborais, no contexto do trabalho emigrante. Segundo Carla:
Eu trabalhava. Fazia part-time.108
Eu estudava até as três e depois
trabalhava das seis até oito e meia, mais ou menos. Duas horas e meia,
mais ou menos. Eu trabalhava de limpar casa, junto com minha mãe.
Como se diz... faxina. É, era faxina. Minha mãe ia, fazia o serviço na parte
de cima e eu fazia na parte de baixo. Então ia nós duas. Duas horas de
trabalho. (Carla, 17/01/2009, vinte cinco anos)
Érica também acompanhava a mãe e a irmã na atividade da faxina, mas, por ser
mais nova, não exercia essa atividade com regularidade. Porém ela nos conta uma
experiência de trabalho inusitada:
Bom, trabalhar, trabalhar não. Eu só fiquei lá assim, com intérprete. Igual
tinha uma mulher lá que o marido dela era imigrante e ele foi preso. O
marido dela era chefe da minha mãe, lá no trabalho dela. Ela não sabia
inglês, não tinha quem conversasse com o advogado, aí ela me pagava. Eu
cheguei a morar um mês, dois meses com ela, para poder traduzir as
coisas para ela. Ah, sei lá, tipo assim, se eu pudesse morar na minha casa
e trabalhar lá e ser, entre aspas, intérprete dela... mas é ruim agente
morar fora de casa. E era longe, era em outro estado. Mas o emprego
assim, ele mesmo, eu traduzindo, eu achei legal porque agente ficava
aprendendo mais coisas com as pessoas que agente conversa em inglês.
Eu ficava aprendendo. Mas emprego mesmo, contratado assim não.
(Érica, 17/01/2009, dezoito anos)
Este é um relato importante pois revela um dos lugares da segunda geração: o de
tradutor. Isso é comum entre filhos de imigrantes e representa uma autonomia dos filhos
em relação aos pais, sobretudo porque eles entendem e apreendem com mais facilidade
os significados de outro sistema cultural. Assim Érica relata que ficava “aprendendo
coisas” que seus pais, por não dominarem o inglês, não conseguiam se situar,
interpretar, entender.
108
Part-Time Jobs – São empregos de tempo reduzido, onde o trabalhador não possui nenhum benefício garantido
(como plano de saúde, previdência, seguro, etc.). Geralmente um emprego part-time não dura mais de 30 a 35 horas
por semana. Devido a flexibilização da economia, o número de empregos desta natureza vem aumentando
consideravelmente nas últimas décadas em todo o mundo. Fonte: Part-Time Work Information Sheet, International
Labour Organization. http://www.ilo.org/public/english/protection/condtrav (Acesso 01/05/2010)
77
Percebe-se claramente também que o trabalho é um componente do cotidiano
destes jovens, mesmo não sendo este exercido de forma regular ou mesmo formal. E
esse é um ponto que separa a vida no Brasil da vida nos Estados Unidos. Carla e Érica,
que regressaram há mais tempo para o Brasil, afirmam que aqui nunca precisaram
trabalhar. O mundo do trabalho converte-se, no retorno ao Brasil, no mundo da família,
dos primos, do colégio e das festas.109
O trabalho nos Estados Unidos também significa a abertura ao mundo do
consumo e os jovens norte-americanos também são estimulados a trabalharem desde o
início da adolescência. Porém, podemos perceber na seguinte fala de Antônio que os
trabalhos procurados (ou oferecidos) pelos jovens norte-americanos são diferentes dos
tipos de trabalhos que Antônio e seu irmão experimentaram:
Os brasileiros correm atrás, mas os porto-riquenhos e os americanos... Os
americanos correm atrás também, mas eles não trabalham que nem nóis,
os brasileiros, eles gostam de trabalhar mais no Mcdonalds, nesse “trem”
de comida rápida. Só trabalham neste tipo de coisa. O trabalho deles era
mais fácil, mas ganhavam menos. Ganhavam seis dólares, sete dólares a
hora. Nós não. Quando agente corria atrás do pesado nós ganhávamos
doze dólares a hora. (Antônio, 10/01/2009, dezessete anos)
Ou seja, trabalho de imigrante é trabalho pesado, mesmo que sejam adolescentes
em idade escolar. Neste ponto, o domínio da língua inglesa influencia não só no tipo de
trabalho que é oferecido ao jovem migrante, como também a mobilidade ou o
reconhecimento dentro do próprio trabalho na construção civil. Antônio prossegue:
Oh, na carpintaria, como era muito brasileiro, falava em português. As
vezes aparecia um americano, como o patrão-chefe, e aí quem sabia fala
em inglês com os americanos se dava bem. Os meus amigos americanos
que trabalhavam nas “comidas rápidas”: Burger King, Subway, aqueles
trem que eles tem lá, falavam só em inglês, nesses falam só em inglês. De
vez em quando aparece um espano lá que não sabia falar inglês, para
comprar comida, aí chamavam os que sabiam o espanhol. Era até bom
quando você for entrar num emprego lá você saber falar mais de uma
línguas. Porque lá tem muito imigrante e sempre aparece uns que não
sabem falar inglês, aí a pessoa sempre ajuda, então se você fala duas
línguas é bom. Mas tudo isso tem um limite. Porque na construção, o que
vale é o que a pessoa sabe fazer ali. Assim, eu sabia falar inglês, mas o
cara que sabia fazer os serviços ganhava muito mais que eu, porque ele
109
MENEZES, Gustavo Hamilton. Filhos da Imigração: Sobre a Segunda Geração de Imigrantes Brasileiros nos
EUA. Programa de Pós-graduação em Antropologia Social – UNB, Brasília, 2002. (Dissertação, Mestrado). p. 8
78
sabia fazer tudo na casa, mas não fala o inglês. Então isso depende do
emprego. Se você for um vendedor, uma coisa assim, você tem que falar
inglês. (Antônio, 10/01/2009, dezessete anos)
Alejandro Portes, também em sua análise sobre a Assimilação Segmentada,
observa que as comunidades que evitaram o caminho da assimilação “por baixo”, como
os vietnamitas na Califórnia e os cubanos na Flórida, apresentam uma espécie de
economia intracomunitária, com vários pequenos estabelecimentos e serviços voltados
para o próprio grupo étnico. Quanto mais pujante e dinâmica for esta economia
intracomunitária, mais empregos e oportunidades ela gerará para os jovens imigrantes,
facilitando sua adesão aos valores e princípios da comunidade.110
Apesar dos brasileiros nos Estados Unidos serem fortemente orientados e
balizados pelo trabalho, todos os entrevistados afirmaram que trabalhavam para
empregadores norte-americanos. Para ilustrar, Portes indica que os jovens cubanos e
vietnamitas geralmente conseguem trabalhar para empregadores dentro do mesmo
grupo étnico, respectivamente, em 94,2 e 54,4% dos casos; enquanto mexicanos e
haitianos, que apresentam indícios de uma assimilação às minorias marginalizadas
locais, conseguem trabalho com empregadores co-étnicos em 19,2 e 15,9% dos casos
respectivamente.111
Apesar de descreverem o trabalho como penoso ou cansativo, os quatro jovens
demonstraram claramente que sentem falta do dinheiro que costumavam ganhar através
do trabalho. Carla e Érica ganhavam 200 e 300 dólares respectivamente por semana.
André ganhava 75 dólares por dia de trabalho e Antônio, que exercia o trabalho mais
pesado, ganhava por hora:
Eu ganhava por hora né. Quando eu trabalhava no mecânico eu ganhava
oito dólares a hora. Carpintaria eu comecei com dez, depois passou para
doze. Doze dólares a hora. Aí numa semana eu fazia quatrocentos dólares,
quinhentos dólares. (Antônio, 10/01/2009, dezessete anos)
Mais interessante do que descobrir o volume de dinheiro que estes jovens
ganhavam com suas atividades laborais, é saber como os entrevistados gastavam o
110 PORTES, Alejandro. “Children of Immigrants: Segmented Assimilation and Its Determinants”. In PORTES,
Alejandro (org.), Economic Sociology of Immigration: Essays on Networks, Ethnicity and Entrepreneurship, New
York: Russell Sage Foundation, 1995, p.266Alejandro (org.), Economic Sociology of Immigration: Essays on
Networks, Ethnicity and Entrepreneurship, New York: Russell Sage Foundation, 1995, p.268 111
Idem, p. 248
79
dinheiro que percebiam. Neste ponto podemos vislumbrar o fascínio e a importância
que o consumo exerce no universo dos jovens migrantes. Érica não deixa dúvidas:
Roupa, roupa, roupa, roupa. E comida também. (risos) Ai meu Deus, eu
comia tanto... Roupa, brinco, calça, essas coisas. Mais coisa de mulher
mesmo, sabe? O único dinheiro que eu guardei foi da última vez que eu
recebi. Foram trezentos dólares que eu trouxe quando agente veio
embora. Foi na é poça que agente estava quase vindo embora mesmo. E
ela (empregadora) ficou sozinha lá. Depois eles até vieram para o Brasil,
ela veio aqui (Governador Valadares), visitar agente aqui em casa, agente
se reencontrou. (Érica, 17/01/2009, dezoito anos)
Carla ressalta que o dinheiro ganho com a faxina lhe proporcionou a compra de
um carro:
Gastava comigo. Comprava roupa, ia nos passeios com os amigos, como
eu disse antes. Também comprei meu carro quando fiz dezoito anos. Eu
comprei um carro. Celular. Gastei muito dinheiro com o celular. Nunca
juntei dinheiro para nada não. (Carla, 17/01/2009, vinte cinco anos)
André afirma que juntou dinheiro, mas com o objetivo de consumir, e reafirma
como as roupas e acessórios visíveis externamente são os artigos preferidos na hora das
compras:
Eu juntei um pouquinho de dinheiro para mim. Quando eu fui para lá, eu
não era muito da moda lá. Eu não tinha muita roupa da moda. Eu juntei
muito dinheiro, fui para o shopping com meu primo e comprei muita
roupa, comprei muita roupa. O primeiro dinheiro que eu juntei eu gastei
tudo em roupa, tênis. (André, 10/01/2009, dezesseis anos)
Por fim, Antônio destaca que a perspectiva de se manter nos Estados Unidos
afetou o seu comportamento referente ao equilíbrio entre poupar e gastar. Quanto aos
itens preferidos de consumo, Antônio não foge à regra:
Ah, eu gastava quando ia mais em festa, nos parques também. Eu gostava
muito de ir nos parques, sair com os amigos. E tinha minhas coisas
também. Eu comprava bastante coisa. Roupa, eu ia no shopping e
comprava bastante roupa. Assim, eu segurei também um dinheiro, mas
quando eu chegava a trabalhar, assim, se eu ganhasse uns quatrocentos
na semana, se eu ganhasse uns quatrocentos ou quinhentos e tirava
duzentos para mim comprar roupas, para mim, e aí guardava o resto. Eu
pensava, eu achei que eu ia ficar lá, não imaginei que iria voltar não,
80
então eu pensava em gastar lá mesmo. (Antônio, 10/01/2009, dezessete
anos)
Na obra “Consumidores e Cidadãos”, Nestor Canclini faz uma profunda análise
sobre a questão do consumo e da formação das identidades na pós-modernidade. Ao
situar essa relação nas perspectivas da globalização, Canclini procura demonstrar como
esses vínculos são imaginados e reproduzidos pelas indústrias culturais.112
Para além da cultura, homens e mulheres, sobretudo os jovens, percebem que
muitas perguntas próprias dos cidadãos como: “a que lugar pertenço e que direitos isso
me garante?”, ou “como posso me informar ou quem representa meus interesses?”, são
respondidas mais pelo consumo privado de bens e dos meios de comunicação de massa
do que pelo exercício das regras abstratas da democracia ou pela participação coletiva
em partidos ou associações desacreditadas.
No caso dos jovens emigrantes, a relação entre consumo e pertencimento fica
clara. Sobretudo na roupa, no tênis, nas jóias e acessórios externos, todos comprados em
shopping centers. Segundo Canclini, no mundo globalizado, as formas de se exercer a
juventude “sempre estiveram associadas à capacidade de apropriação de bens de
consumo e à maneira de usá-los.” 113
Apesar de localizar estas mudanças ocorridas nas três últimas décadas do século
XX, Canclini deixa claro que se está avançando simplesmente para uma mercantilização
e padronização integral dos bens e mensagens culturais, sintetizando, deste modo, o
dilema do ser jovem no contexto da globalização.
Num tempo em que as relações tornam-se virtuais, que as imagens e o marketing
tornam-se os instrumentos de mediações por excelência, é coerente que os jovens se
sintam convocados como consumidores ainda quando se forem interpelados como
agentes ou cidadãos.114
O consumo propicia o pertencimento e o trabalho propicia o consumo. Talvez
por isso que os entrevistados, apesar de ressaltarem os rigores dos trabalhos aos quais se
submeteram, fizeram questão de destacar os aspectos positivos dos mesmos. Perguntado
se gostava do ambiente de trabalho, Antônio complementa:
Gostava. Apesar de ser um bocado pesado... Eu gostava mais da paisagem
dos Estados Unidos, as vezes você vai trabalhar nuns lugares bonitos, e
112 CANCLINI, Nestor Garcia. Consumidores e Cidadãos. 5ª Ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005. 113 Idem, p. 14 114 Ibidem, p. 9
81
nuns casões, coisa de filme mesmo. Uma vez eu fiz um casão, um casão
que o cara falou que ia vender por mais de quinhentos mil dólares.
(Antônio, 10/01/2009, dezessete anos)
Carla segue mais ou menos a mesma linha:
Olha, eu tinha nada que reclamar de lá. Em relação ao trabalho. Só a
única coisa que eu fiquei meio assim foi o negócio da High School. Do
trabalho eu não tenho nada para reclamar não. Sempre me trataram bem
no trabalho. Lá não existe este negócio de discriminação se você trabalha
de faxineira, de limpeza. Lá não existe isso não. Você é um ser humano
como qualquer um. Não é igualo aqui no Brasil não. Aqui no Brasil, se
você é faxineira, você é faxineira. Lá não. Lá inclusive é tudo muito mais
fácil de limpar. As coisas são mais práticas. Não usam água, é só um
produto e rapidinho você limpa. Pesado é. Minha mãe trabalhou no
pesado lá. Ela fazia limpeza de cinema. Aí ela trabalhava mesmo. Mas eu
não. Cansava o trabalho que eu fazia no domingo. Lá é assim, você
trabalha muito, mas ganha bem. Entendeu, a questão é essa. No domingo,
por exemplo. Tinha um negócio de cimento assim, que eles faziam as
peças para a NASA e aí caia muito óleo no chão. Agente tinha que limpar
tudo. Todo domingo ia lá eu e meu primo. Todo domingo lavar aquele
pátio enorme. Mas agente ganhava cinqüenta dólares numa questão de
quatro, cinco horas. É, agente gastava duas, três, quatro horas do
domingo no máximo. Então agente ia antes do almoço e logo estava livre.
Tinha o resto do dia livre. Aí agente ia para o “Mall”, passeava. Tinha o
“Mall” também, o shopping, era um passeio que agente ia. Comer, comer,
comer. Gastava muito com comida. Lá é assim. Agente dizia: ah, vamos
jantar... (Carla, 17/01/2009, vinte cinco anos)
Imagem 14 - Trabalhadores Imigrantes da Construção Civil nos EUA 115
115
http://www.guiadoimigrante.com/artigo.php?idPublicacao=4208 (Acesso dia 01/05/2010)
82
Podemos perceber que os filhos dos imigrantes se inserem no mercado de
trabalho nos mesmos trabalhos que seus pais realizam: a construção civil para os
homens e a faxina para as mulheres e reproduzem, nos seus discursos, as mesmas
representações que seus pais - trabalho pesado, mas paga bem, limpeza fácil, produtos
bons, sem nenhum questionamento sobre o impacto desses produtos que em geral são
altamente tóxicos para a sua saúde. Os relatos ainda revelam como os imigrantes estão
desprotegidos; afinal, são adolescentes, jovens trabalhando com produtos químicos
pesados, sem a menor noção do risco, apenas dos dólares que podem ganhar para se
inserir no mundo do consumo.
Uma diferença marcante entre o mundo do estudo e o mundo do trabalho reside
na questão da discriminação. Se na escola os jovens sentiram-se de certa forma
excluídos, devido muitas vezes aos problemas com o domínio da língua, no trabalho,
sobretudo nos trabalhos para os quais os jovens imigrantes são direcionados, ser
imigrante é quase um valor e não um demérito. Perguntado se já havia se sentido
discriminado no trabalho por ser um imigrante brasileiro, Antônio declarou:
Não, não. Porque lá tem muito imigrante, então se falar de um, você está
falando de todo mundo então eles nem tentavam fazer discriminação. O
chefe, eu digo assim o patrão que estava pagando a obra era quase
sempre americano, ele que podia discriminar mas lógico que não fazia. O
que movia o chefe lá, o que fazia o chefe ganhar dinheiro eram os
imigrantes, você não via os americanos fazerem o que nós fazíamos. Eu já
trabalhei com um americano lá e o americano não trabalha que nem nós
não. Já trombei com os americanos em construções lá e os americanos
não davam tanto lucro que nem nós dava não, para os patrão lá não, por
isso que não nos discriminavam, eles até gostavam dos imigrantes. Quem
não gosta dos imigrante lá é esse pessoal que fica mais dentro de casa,
que não sabe da vida lá fora. Mas depois que você sabe da vida lá fora
você vê que nas construção quem está fazendo as coisas são os imigrantes.
Quem está trabalhando ali fora são os imigrantes. A comida lá... a melhor
comida lá são dos restaurantes dos imigrantes, os restaurantes mexicanos,
brasileiro, português. Então quem discrimina tem que ser muito bobo.
(Antônio, 10/01/2009, dezessete anos)
Carla, novamente, parece em sintonia com a fala de Antônio:
Nunca teve nenhuma discriminação em relação ao trabalho. Pelo
contrário. Lá aonde agente trabalhava de part-time, eles gostavam muito
de brasileiro, nossa vinham falar, queriam aprender um pouco de
português, perguntavam como se falava tal palavra em português,
83
tentavam se virar para falar com agente. Mas isso era aonde agente
trabalhava. (Carla, 17/01/2009, vinte cinco anos)
Por fim, Antônio e Carla, reproduziram dois incidentes que de certa forma
demonstram os riscos dos trabalhos que os imigrantes efetuam, geralmente sem
nenhuma regulação ou proteção das instituições oficiais. Carla:
Teve um incêndio onde eu trabalhava. Era uma firma onde eu trabalhava
na parte de cima e minha mãe trabalhava na parte de baixo. Aí, na parte
de baixo começou a pegar fogo... Porque este cliente era tipo um
laboratório. Eles faziam experiências químicas. Faziam experiências,
coisa de doido. Aí uma vez deu incêndio lá com um cara lá. Aí todo
mundo desceu para ver, uma loucura. É, todo mundo do prédio saiu. Eu
fiquei muito espantada porque para eles, eles achavam tudo meio que
normal, isso acontecer. Eles têm que fazer o teste entende? Eles usam
proteção e tudo, mas você que tá limpando não tem proteção. (Carla,
17/01/2009, vinte cinco anos)
O episódio relatado por Carla – ao sentir-se desprotegida perante um princípio
de incêndio – nos revela a invisibilidade do trabalhador imigrante, que não está
desprotegido apenas nas leis, mas também nas questões de segurança e saúde. Antônio
completa:
Eu já ouvi falar muito acidente de brasileiro lá. Quando eu estava lá uma
fez, eu estava de férias, fui trabalhar e fiquei numa república lá, uns dois
meses eu fiquei na república. Aí um cara uma vez chegou lá e disse:
“nossa senhora, hoje eu vi um cara cair de cima da ponte”. Caiu lá de
cima da ponte, encima das pedras. Aí morreu na hora, e era brasileiro.
Isso acontece. Porque serviço na altura você tem que trabalhar com cinto.
Mas parece que o cara foi mudar uma tábua lá, coisa rápida, não pôs o
cinto não, foi lá e caiu. (Antônio, 10/01/2009, dezessete anos)
Em síntese, podemos perceber como o imigrante, mesmo ainda muito jovem, é
construído pelo trabalho, conforme afirma Sayad. 116
No caso dos brasileiros, essa fala é
recorrente e emerge a imagem de brasileiro como povo trabalhador, que constrói nossa
identificação nos EUA distintiva em relação a outros grupos de imigrantes. Entretanto,
vale destacar que o imigrante brasileiro trabalha mais e recebe menos, não tem
seguridade social, é indocumentado, não tem nenhuma assistência e, no caso de acidente
116
SAYAD, Abdelmalek. Imigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo: Edusp, 1998.
84
de trabalho, deixa de ganhar. Então essa preferência pelo trabalhador brasileiro, deve ser
situada no contexto de exploração da mão de obra imigrante dentro do mercado
secundário de trabalho, ou seja, embora não sintam a discriminação do patrão a própria
condição de trabalho é discriminatória, ressaltando que não há adolescentes americanos
na construção civil. .
CONSIDERAÇÕES FINAIS: OS PLANOS PARA O FUTURO
“Eu gostaria de voltar um dia sim... mas um dia, agora não. Para te falar a
verdade, pra ser sincero mesmo, eu não sei o que eu quero...” 117
Os novos olhares, objetos e temáticas inerentes a História do Tempo Presente,
tornaram possível que temas como a migração moderna de jovens, advindos de países
periféricos acompanhando seus pais na aventura migratória, pudessem ser abordados
através de uma perspectiva histórica, o que não significa descuido com o método ou
uma supervalorização/aniquilação da subjetividade presente nas narrativas e nas
escolhas do autor.
Para tanto, o arcabouço teórico da História Oral, e suas implicações práticas,
foram fundamentais para a análise histórica das experiências destes sujeitos, o que, de
certa forma, propiciou que este trabalho pudesse ser realizado:
O valor do relato não está naquilo que o narrador possa esclarecer, informar
(...) mas antes naquilo que ele pode transmitir como experiência vivida e
revivida, como realidade subjetiva... 118
Reconhecendo os limites deste trabalho, sobretudo a ausência de uma análise
mais acurada de como a imprensa produzida pelas comunidades de brasileiros nos
Estados Unidos (e a própria mídia norte-americana) retratam os jovens imigrantes em
contraste com a narrativa dos próprios jovens - análise que fica para trabalhos futuros -
nos despedimos dos entrevistados destacando os seus planos, suas perspectivas em
relação à permanência no Brasil ou a um possível retorno aos Estados Unidos. É
117
André, dezesseis anos, entrevistado em 10/01/2009. 118
GALLIAN, D. M. C. O historiador como inquisidor ou como antropólogo? Um questionamento para os
historiadores orais. In: Revista de História, FFLCH-USP, São Paulo: agosto de 91 a julho de 92, nº 125-126, p. 100
85
interessante notar como as duas irmãs, Carla e Érica possuem perspectivas opostas
quanto a um possível retorno para os Estados Unidos. Érica aborda um tema que influi
de forma direta na vida dos imigrantes neste final da primeira década do século XXI: A
crise financeira internacional.
Ah, falavam que o “Brasil não tem dinheiro”, que o “Brasil, não sei o
quê”, que “aqui que era país de primeiro mundo”. Falavam assim,
falavam que lá que era país de primeiro mundo. Ai, ai, dá até vontade de
rir, porque agora você viu que “primeiro mundo” que está lá. Você viu a
crise? Mas era assim, eles não falavam muito bem do Brasil não. Diziam
“ah, eu saí do Brasil porque lá não tem nada né, só aquela violência” e
não sei o quê... (Érica, 17/01/2009, dezoito anos)
Em sua fala final, Érica deixa claro o que, para ela, quais são as principais
diferenças entre viver no Brasil e viver nos Estados Unidos:
Depois que eu fui para lá eu tive uma imagem muito diferente daqui,
porque lá, eu penso assim, lá agente tem dinheiro, tem tudo né, mas não
vive. Aqui, você sem dinheiro, você vive. Sabe? Você vai se virando.
Sempre tem um jeito. Quando eu digo que lá não se vive é assim: você não
sai, não é igual aqui, não tem agitação, não tem liberdade. Aqui a noite
começa meia-noite. Lá, meia-noite você está em casa já. É assim. Eu
também não tinha muita idéia das coisas, eu era muito pequena. Então, eu
pensava isso. Eu quero ficar aqui (no Brasil) com certeza. Aos trancos e
barrancos, mas eu continuaria aqui. “Cê” tá doido. Lá não tem vida não.
“Cê” tá doido. (Érica, 17/01/2009, dezoito anos)
Carla apresenta uma visão oposta. Quer voltar para os Estados Unidos o mais
rapidamente possível. Podemos compreender, contudo, nas suas explicações, como o
mundo do consumo baliza sua decisão:
Se eu pudesse ir ontem, eu já teria ido. Minha mãe não deixa não. Mas eu
tenho vontade de ir lá, estou falando para minha mãe que estou querendo
ir lá. Esse ano agora em Junho, Julho. Meu melhor amigo foi par lá. Meus
amigos, que são agora meus amigos mesmo, ficaram nos Estados Unidos.
Então eu acho que talvez eu posso ir. É uma coisa que eu quero para mim.
A única coisa que me deixa mais “assim” é por que eu gosto muito de
“Micareta” né, então quando chega o “Gevê Folia” 119
eu fico meia tensa
(risos). Mas, mesmo assim eu quero ficar lá porque lá eu vivia a “Vida de
Americano.” Fui de Boston a Miami de carro. Entendeu? Iii... viajei a
119
O Gevê Folia é a maior festa de axé do interior de Minas Gerais e leva turistas de todo o Brasil a Governador
Valadares. O tradicional carnaval fora de época está inserido no calendário brasileiro de micaretas. Fonte:
www.gvfolia.com.br (acesso 01/05/2010).
86
muito lugar nos Estados Unidos. Pegava meu carro e oh, “pernas pra que
te quero.” (Carla, 17/01/2009, vinte cinco anos)
Viver uma “vida de americano” significa compartilhar, como fazem os norte-
americanos, segundo a visão dos jovens imigrantes, as possibilidades de consumir; seja
através do consumo de comida, das roupas, de viagens com os amigos ou com a compra
de um carro.120
Viver a vida de americano é poder alcançar os bens de consumo, sejam
concretos ou midiáticos, estar na moda, globalizar-se.
Augusto compartilha da vontade de Carla de regressar. Mesmo a consciência das
dificuldades de ser um imigrante indocumentado não o demove da idéia de regressar aos
Estados Unidos, que Antônio classifica como “mais sofisticado” e cita a possibilidade
de conhecer Orlando e Miami (cidades turísticas associadas aos Parques Temáticos da
Disney, Universal, entre outros. Um sonho de consumo de muitos jovens):
Viver no Brasil não é tão ruim, só que lá nos Estados Unidos é mais
sofisticado. Lá você vai na praia e tem o toldo, tem lugar para você andar,
é muito melhor. A estrutura é melhor. Sem contar com as cidades famosas
que agente pode ir lá, igual na Flórida, em Orlando, Miami. (Antônio,
10/01/2009, dezessete anos)
Igual eu falei aqui, o Brasil é bom para vir, passear, mas morar é nos
Estados Unidos. Se eu tivesse o “papel” 121
né, mas acho que eu consigo
os papéis agora. Eu vou tentar agora, mas eu vou mesmo sem papel. Aí eu
vou ficar morando nos Estados Unidos e passeando aqui no Brasil.
Conversei com a mãe né, estou querendo ir para lá. Vamos ver no que vai
dar... (Antônio, 10/01/2009, dezessete anos)
Gerson ressalta um indício interessante quanto às perspectivas dos jovens
migrantes: cada caso é um caso e não há um consenso entre a maioria sobre voltar, ficar
ou partir. Parece não haver, para ele, nem mesmo um consenso interno sobre o assunto:
Quando eu estava lá e alguém me perguntava sobre o Brasil, eu dizia que
adorava o Brasil. Eu gostava, os amigos que eu tinha lá e tal, tal... mas eu
sempre quis voltar. Eu tinha amigos lá que não queriam voltar nunca
mais, tinha uns que queriam. Não tem tipo uma definição assim, vai de
cada um, da vida que cada um viveu lá. (Gerson, 20/01/2009, dezoito
anos)
120 SALLES, Teresa. Brasileiros longe de casa. São Paulo: Cortez, 1998
121 Visto; permissão de estadia nos Estados Unidos como um trabalhador legalizado.
87
Agora estou muito feliz com as aulas de inglês que eu estou dando aqui
(Governador Valadares). Por isso eu quero continuar aqui. Eu prefiro
morar no Brasil, sei lá, o negócio aqui é melhor. Se eu tiver oportunidade
de talvez, a carreira que eu escolher eu puder fazer lá fora e acho que
posso ir para lá futuramente. Acho que não tem problema nenhum de
morar fora. Talvez para passear, eu até tenha vontade. Para morar eu não
tenho assim vontade, vontade não. (Gerson, 20/01/2009, dezoito anos)
Por fim, André também admite que não sabe bem definir o que planeja para o
futuro. Vale destacar que, a indefinição quanto ao futuro não é uma marca exclusiva do
jovem emigrante brasileiro, mas sim uma característica de muitos jovens, sobretudo
num contexto pós-moderno onde as ideologias e as crenças perdem espaço para um
consumo globalizado de referências culturais. 122
Oh, as três vezes que eu fui, que eu era menorzinho um pouquinho, eu ia
para lá, mas ficava doidinho para voltar. Essa última vez agora é que eu
fui e queria ficar lá mesmo, mas só que, aí minha mãe foi lá e conversou
comigo. Eu não queria vim muito não, mas ela conversou comigo aí eu
vim com ela, mas eu queria ficar lá. Eu gostava de ir para lá, mas quando
eu chegava lá eu queria voltar pra cá.
Ah, eu tinha uns amigos que nasceram aqui e foram prá lá que falaram
que nunca mais voltariam aqui (Brasil). Eles achavam lá melhor, eles
achavam o Brasil muito ruim. Igual a última vez que eu vim mesmo, nossa
eu tive muitos amigos que falaram pra mim não voltar pra cá, falando
para mim ficar que lá era melhor, falando que lá o estudo é melhor...
falavam que o Brasil era ruim. Eu não concordava muito com isso. Eu
gosto do Brasil né. Eu gosto de lá também, mas eu gosto mais daqui.
Gostaria de voltar um dia sim... mas um dia, agora não. Para te falar a
verdade, pra ser sincero mesmo, eu não sei o que eu quero...
Assim, este trabalho teve como objetivo a tentativa de reconstruir e analisar
parte da trajetória de cinco jovens emigrantes brasileiros, no início do século XXI,
através de suas narrativas. Procuramos, em primeiro lugar, discutir um conceito de
emigrante e os tipos de migração que mais se adequavam a experiência vivida por estes
jovens.
A partir daí, o debate sobre as diferenças e semelhanças entre os “novos” e
“velhos” fluxos migratórios serviram como base para a apresentação dos nossos
personagens e dos cenários onde tomaram lugar suas narrativas: a partida de
122
CANCLINI, Nestor Garcia. Consumidores e Cidadãos. 5ª Ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005. p. 9
88
Governador Valadares, e o porquê desta cidade como ponto de partida, e as cidades
norte-americanas aonde os jovens viveram enquanto moravam nos Estados Unidos.
Procurei trazer o máximo possível a fala dos entrevistados quando estes
discorreram sobre as atividades de lazer, os relacionamentos, brigas, o papel da língua e
da igreja. Todos estes aspectos nos ajudam a formar um retrato destes jovens e
procuram responder, afinal, quem são estes novos emigrantes, como vivem, como se
formam e como pensam e agem.
A escola e o trabalho mereceram destaques especiais por exercerem um papel
fundamental na trajetória destes rapazes e moças. É na escola que o choque da língua,
das diferenças culturais e físicas são sentidas e vivenciadas de forma mais intensa, e é
pelo trabalho que estes jovens identificam-se como sujeitos através do consumo e do
discurso do imigrante brasileiro trabalhador e bem sucedido.
89
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Anexo
Roteiro de Perguntas – Entrevistas
1) Você nasceu no Brasil ou nos Estados Unidos?
2) Com quantos anos você foi para lá?
3) Onde você mora ou morava nos EUA?
Lazer e Convivência Étnica
4) Onde você morava havia outros brasileiros perto?
5) A maioria dos seus amigos era brasileiros, americanos ou de outras
nacionalidades?
6) Nas horas de folga, quando você estava com seus amigos, o que vocês
costumavam fazer? (música, esportes, jogos...)
7) Em que língua vocês conversavam?
8) Você teve namorado(a) nos EUA? Era brasileiro(a), americano(a) ou de outra
nacionalidade?
9) Você participava das festas e dos eventos promovidos pela comunidade
brasileira? Cite um exemplo.
10) Você já se envolveu em alguma briga lá? Por quê?
11) Você participava de alguma igreja nos EUA? Qual? Era de qual nacionalidade?
12) Você gostava de ir à igreja?
O Estudo
13) Você estudava em uma escola onde se falava e ensinava o português e o inglês
(bilíngüe) ou numa escola que só ensinava em inglês?
14) A escola era pública ou particular?
15) Você tinha colegas brasileiros? (maioria, minoria – quantidade)
16) Na sua escola, qual era o principal grupo que você costumava andar?
17) Mais ou menos quantas horas você dedicava ao estudo fora da escola?
18) Você ia bem nos estudos? Achava a escola fácil ou difícil?
19) Em suas palavras, como você descreveria a escola nos Estados Unidos?
20) Qual era a disciplina que você mais gostava? E a que você menos gostava?
21) Você teve dificuldade com o inglês na escola?
22) Você praticava algum esporte na escola?
23) Você já se sentiu discriminado na sua escola por ser brasileiro ou filho de
brasileiro?
95
24) Você se lembra de algum incidente ou de algum caso relativo a escola que você
ache interessante contar?
Língua e Adaptação
25) Na sua casa, entre seus pais e irmãos, que língua vocês falam? O tempo todo?
26) Você aprendeu o inglês na escola ou foi naturalmente? E o português?
27) Seus pais falam inglês?
28) Você ganhava mesada? (caso não trabalhar)
Mundo do Trabalho
29) Você trabalhava enquanto estava nos EUA, mesmo que fosse um emprego de
meio-período?
30) Mais ou menos quanto você ganhava por semana?
31) Com dinheiro que ganhava você gastava principalmente com o quê?
32) Seus empregadores eram americanos ou brasileiros? E os clientes?
33) Em suas palavras, como você descreveria o trabalho nos EUA?
34) Seus amigos trabalhavam?
35) Qual era a língua mais comum que as pessoas falavam no ambiente de trabalho?
36) Você já se sentiu de alguma forma discriminado(a) no seu trabalho por ser
brasileiro ou filho de brasileiro?
37) Você se lembra de algum incidente ou de algum caso relativo ao trabalho que
você ache interessante contar?
Contatos com o Brasil
38) Com que freqüência você falava com parentes e amigos no Brasil?
39) Este contato era principalmente por telefone, internet, carta...
40) Você acompanhava notícias sobre o Brasil? Através da televisão, da internet, dos
jornais da comunidade brasileira ou de qual meio?
41) Mais ou menos quantas vezes por ano você vinha ao Brasil? Você gostava de vir
ao Brasil?
Perguntas Finais
42) Você cresceu formando uma imagem do Brasil através do que os outros te
contavam. Qual era a imagem que você tinha do Brasil?
43) Qual era a imagem que seus amigos, conhecidos e parentes tinha do Brasil, na
sua maioria?
44) Você pensava em voltar a morar no Brasil?
45) Foi discutido com você a decisão de emigrar?
46) Me fale um pouco sobre a história dos seus pais.
47) Você possui a nacionalidade americana?
48) Hoje, se você pudesse escolher, você moraria no Brasil ou nos EUA?