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e hoje olhamos para as estrelas apenas para contemplar sua beleza e seu mistério, no final do século XV e início do XVI esses astros eram fundamentais para a vida política e econômica da Europa, pois serviam como guias para desbravar oce- anos desconhecidos e conquistar novos continentes. Acostumados a viajar apenas no hemisfério norte e próximos à costa européia, os navegadores tiveram que se valer de métodos já conhecidos de orientação, mas que permitissem a exploração de mares nunca antes mapeados. Um desses métodos foi a adaptação e aperfeiçoamento dos conhecimen- tos de identificação do céu e de instrumentos astronômicos. Segundo Fernando Vieira, astrô- nomo do Planetário da Gávea, no Rio de Janeiro, a orien- tação a partir da identifi- cação do céu surgiu quan- do os homens, aproxi- madamente há oito mil anos, deixaram de ser nô- mades e se instalaram em l u g a res fixos. Saindo ape- nas nos períodos de caça, eles podiam se afastar de suas aldeias com a cert e z a de reencontrá-las na volta. Além de guias, as estrelas já eram usadas para deter- minar o período e as estações do ano. Para facilitar o reconhecimento do céu, algumas civilizações resolveram agrupar as estrelas em constelações, que formavam desenhos de figuras legendárias daqueles povos e que lembravam o período pelo qual estavam passando. Assim, a cons- telação de Órion – o caçador gigante, na qual localizamos hoje as Três Marias – representava a época das caças. Arquivos do Museu de Astrologia de São Paulo (MASP), afirmam serem os gregos os primeiros a dar nomes às constelações, hoje uni- versalmente conhecidas. Mas fo- ram os árabes que começaram a nomear as estrelas, ainda no sécu- lo XI. Antes disso, apenas as mais brilhantes, como Sirius e Antares, tinham recebido nomes. Muitos mapas da esfera celeste foram desenhados em pedra, em 70 a.C. Essa identificação do céu e os estudos dos movimentos dos astros e da Terra permitiram que os navegadores pudes- sem se orientar no tempo e no espaço nas longas viagens dos tem- pos modernos. Com a busca intensa dos povos europeus por trocas comerciais lucrati- vas no início do século XVI, os governos pas- ADRIANA OTERO, FERNANDA LIMA, LUCIANA FREIRE E V ANESSA MASCARENHAS Os guias da noite Boas Noites 21 Quando as estrelas são mais que simples pontos luminosos Os gregos foram os primeiros a dar os nomes às constelações, mas foram os árabes que começaram a nomear as estrelas, ainda no século XI O noturlábio é um tipo de astrolábio usado à noite A balestrilha era usada para determinar a latitude durante à noite

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e hoje olhamos para as estrelasapenas para contemplar suabeleza e seu mistério, no final doséculo XV e início do XVI essesastros eram fundamentais para a

vida política e econômica da Europa, pois serviamcomo guias para desbravar oce-anos desconhecidos e conquistarnovos continentes.

Acostumados a viajar apenas nohemisfério norte e próximos àcosta européia, os navegadore stiveram que se valer de métodos jáconhecidos de orientação, masque permitissem a exploração demares nunca antes mapeados. Umdesses métodos foi a adaptação eaperfeiçoamento dos conhecimen-tos de identificação do céu e deinstrumentos astronômicos.

Segundo Fernando Vieira, astrô-nomo do Planetário da Gávea, no

Rio de Janeiro, a orien-tação a partir da identifi-cação do céu surgiu quan-do os homens, apro x i-madamente há oito milanos, deixaram de ser nô-mades e se instalaram eml u g a res fixos. Saindo ape-nas nos períodos de caça,eles podiam se afastar desuas aldeias com a cert e z ade reencontrá-las na volta.Além de guias, as estre l a sjá eram usadas para deter-

minar o período e as estações do ano.Para facilitar o reconhecimento do céu, algumas

civilizações resolveram agrupar as estrelas emconstelações, que formavam desenhos de figuraslegendárias daqueles povos e que lembravam operíodo pelo qual estavam passando. Assim, a cons-

t e l a ção de Órion – o caçadorgigante, na qual localizamos hojeas Três Marias – representava aépoca das caças.

Arquivos do Museu de Astrologiade São Paulo (MASP), afirm a mserem os gregos os primeiros a darnomes às constelações, hoje uni-versalmente conhecidas. Mas fo-ram os árabes que começaram anomear as estrelas, ainda no sécu-lo XI. Antes disso, apenas as maisbrilhantes, como Sirius e Antares,tinham recebido nomes. Muitosmapas da esfera celeste foramdesenhados em pedra, em 70 a.C.

Essa identificação docéu e os estudos dosmovimentos dos astros eda Terra permitiram queos navegadores pudes-sem se orientar notempo e no espaço naslongas viagens dos tem-pos modernos.

Com a busca intensados povos europeus portrocas comerciais lucrati-vas no início do séculoXVI, os governos pas-

ADRIANA OTERO, FERNANDA LIMA, LUCIANA FREIRE E VANESSA MASCARENHAS

Os g u i a s da n o i t e

Boas Noites 21

Quando as estrelas são mais que simples pontos luminosos

Os gregos foram osprimeiros a dar os

nomes às constelações, mas

foram os árabes quecomeçaram a nomearas estrelas, ainda no

século XI

O noturlábio é um tipode astrolábio usado ànoite

A balestrilha era usadapara determinar a latitude

durante à noite

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saram a investir nasnavegações para oOriente. Estimuladaspela possibilidade denovas conquistas, astécnicas náuticas e aengenharia naval so-f reram grandes ino-vações re v o l u c i o n á-rias, permitindo arealização de trajetoslongos. Se antes essesn a v e g a d o res se base-avam apenas naE s t rela Polar paracalcular o ponto on-de estavam, confor-me foram navegan-

do para o Hemisfério Sul novos conhecimentos docéu foram sendo necessários. A partir daí, paraatender às novas demandas, ins-t rumentos astronômicos e mapascelestes foram sendo adaptados,assim como as tabelas matemáti-cas com a declinação dos astro sforam aperf e i ç o a d a s .

A chamada navegação costeira,a mais usada até então, tal como onome sugere se restringia a via-gens que contornassem as costas.Afastando-se da terra firme elançando-se aos oceanos, os nave-g a d o res passaram a fundamentar-se no tipo de navegação astro-nômica. Nessa técnica, os astro ss e rvem como pontos de re f e r ê n c i apara determinar as coord e n a d a sde latitude e longitude, principali n f o rmação para se localizar em umm a p a.

Segundo arquivos da Marinha, para se saber alatitude, bastava medir a altura máxima – chama-da culminação – de algumas estrelas em relação aonível do mar, através do sextante, instrumentoconstruído para ser usado em terra firme, sendoadaptado aos movimentos dos navios. A partir deum sistema de espelhos era possível observ a r,

simultaneamente, o horizonte e o astro, e medir adistância de um para o outro. Com importantesmelhorias, o sextante é usado ainda hoje na nave-gação como complemento de outros sistemas maismodernos.

Outro instrumento capaz de calcular a latitude ànoite é a balestrilha, conjunto de duas réguas per-pendiculares entre si. A vertical se alinha com ohorizonte e com a estrela observada. A partir daposição que as varas assumem é possível saber aaltura em graus do astro. Além desses, ainda haviamuitos outros, como o noturlábio – que funcionavada mesma maneira que um astrolábio – e o kamal,um pedaço quadrado de madeira com um fio todomarcado por nós preso em seu centro, que permitiacalcular a altura angular da estrela. O kamal, tam-bém chamado de “Tábuas da Índia”, foi levado aPortugal por Vasco da Gama, após tê-lo capturadode pilotos árabes no Oceano Índico, para que osp o rtugueses pudessem comparar sua eficácia.

Preferiram, no entanto, o astro-lábio.

Os navegantes port u g u e s e s ,quando chegaram à América, pas-saram a observar as estrelas doHemisfério Sul. Mestre João,cirurgião do rei D. Manoel, ficouconhecido como o “narrador docéu astral e de suas estrelas”, assimcomo Pero Vaz de Caminhadescreveu em carta a terra e seushabitantes. Foi Mestre João quemnomeou a constelação do “Cru-zeiro do Sul”, que tinha para osnavegadores dos mares do Sul amesma importância que a EstrelaPolar teve nas viagens do He-misfério Norte. O primeiro nave-

gante, que se tem registro, a ver essaconstelação foi Alvise de Cadamosto, em 1455,quando viajava pelas costas da África.

Atualmente, a navegação através dos astros épouco empregada, porque há outros meios maissimples e seguros para se obter as coordenadasexatas. Os novos instrumentos, chamados GPS,recebem sinais de satélites que permitem aobtenção de posições precisas de qualquer embar-

Julho/Dezembro de 200322

Mestre João, cirurgiãodo rei D. Manoel,

ficou conhecido comoo “narrador do céu

astral e de suas estrelas”, assim comoPero Vaz de Caminha

descreveu em carta a terra e seus habitantes.

As estrelas ganharam nomesainda no século XI

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cação num exato momento, sem a necessi-dade de efetuar nenhum cálculo.

Ainda hoje, nos surpre e n d e m o scom a coragem e a determinaçãodaqueles navegadores de selançarem nessas viagens de explo-ração, com pouca tecnologianaval e quase nenhum conheci-mento das rotas marítimas. É difícilimaginar que utilizavam elementosdisponíveis na natureza, sempre tão

p resentes no imaginário dos sere shumanos, como as estrelas. N o

entanto, se ontem aqueles pontin-hos no céu da noite foram essen-ciais para a construção domundo em que vivemos, hojesão quase esquecidos na corre r i ados tempos pós-modernos.

Boas Noites 23

Não eram só os astros quefacilitavam a navegação du-rante a noite. Quando as via-gens eram feitas próximas àcosta, os faróis se apresentavamcomo verdadeiras lanternas. Op r i m e i ro foi construído em 3a.C., na Ilha de Pharos, noslimites do rio Nilo. Localizadosna costa marítima, cada farolpossui características pré-deter-minadas que, ao serem re c o-nhecidas pelo navegante, comu-nicam a posição e o local ondese encontram.

Atualmente, no Brasil, cada

um emite um sinal, uma cor,número e intervalo de piscadasd i f e rentes. Não existem doisfaróis iguais no país. Atravésdeles é possível também selocalizar no mapa. Um nave-gador perdido poderia encon-trar seu destino observ a n d oapenas como o sinal do farolestá sendo transmitido: core s ,piscadas e intervalos entre suasluzes.

Capaz de atrair a atenção nãosó de navegadores como tam-bém de viajantes em terr a ,amantes e até mesmo cineastas,

os faróis resistiram aos avançostecnológicos e são considerados,por muitos, um símbolo deromantismo. O filme brasileiroA ostra e o vento, por exemplo,teve como cenário o Farol dasConchas, localizado na Ilha doMel, no litoral sul do Brasil.

Os faróis dominam a pai-sagem, sinalizam a magia e sãoconsiderados os olhos da noite.Ao emitir luz avisam os nave-gantes que eles não estão sós, etestemunham a cada dia umanova história de aventure i ro sque viajam pelos mares.

Os olhos da noite

O século XVI foi um período marcante para o aprimoramento das técnicas de navegação

Mapa celestial de Dendera com as figuras das constelações