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JOELMA APARECIDA DO NASCIMENTO OS “HOMENS” DA ADMINISTRAÇÃO E DA JUSTIÇA NO IMPÉRIO: ELEIÇÃO E PERFIL SOCIAL DOS JUÍZES DE PAZ EM MARIANA, 1827-1841 UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS JUIZ DE FORA, MG 2010

OS “HOMENS” DA ADMINISTRAÇÃO E DA JUSTIÇA NO IMPÉRIO ... · Nascimento, Joelma Aparecida do. ... Denise Maria Ribeiro Tedeschi, Maykon Rodrigues dos Santos, Dejanira Resende,

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  • JOELMA APARECIDA DO NASCIMENTO

    OS HOMENS DA ADMINISTRAO E DA JUSTIA NO

    IMPRIO: ELEIO E PERFIL SOCIAL DOS JUZES DE PAZ

    EM MARIANA, 1827-1841

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA

    INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS

    JUIZ DE FORA, MG

    2010

  • JOELMA APARECIDA DO NASCIMENTO

    OS HOMENS DA ADMINISTRAO E DA JUSTIA NO

    IMPRIO: ELEIO E PERFIL SOCIAL DOS JUZES DE PAZ

    EM MARIANA, 1827-1841

    Dissertao apresentada ao Curso de Ps-graduao em

    Histria da Universidade Federal de Juiz de Fora para a

    obteno do grau de Mestre em Histria.

    Orientadora: Prof. Dr. Carla Maria Carvalho de

    Almeida.

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA

    INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS

    JUIZ DE FORA, MG

  • Nascimento, Joelma Aparecida do.

    Os homens da administrao e da justia no Imprio: eleio

    e perfil social dos juzes de paz em Mariana, 1827-1841 / Joelma

    Aparecida do Nascimento. 2010.

    188 f. : il.

    Dissertao (Mestrado em Histria)Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2010.

    1. Juizes - Brasil. 2. Eleies. I. Ttulo.

    CDU

    347.962(81):324

  • AGRADECIMENTOS

    Nesta etapa de finalizao de mais uma das fases da vida e que integra a opo

    de dedicar-me ao estudo, pesquisa e ensino de Histria, enfim, ao ofcio de historiador,

    tenho muito a agradecer. Agradeo, primeiramente, Deus e dedico esta conquista, aos

    meus pais, Joo e Elionora, e minha irm Jnia, que sempre me apoiaram.

    Agradeo minha orientadora Prof. Dr. Carla Maria Carvalho de Almeida que

    sempre com todo cuidado me atendeu. Sua orientao, ininterruptamente, atenciosa e

    precisa me deu nimo para continuar nessa empreitada. Agradeo-lhe por ter

    acompanhado e acreditado na concretizao deste trabalho.

    Ao Prof. Dr. lvaro de Arajo Antunes, amigo e idealizador desta investigao

    desde a graduao, na Universidade Federal de Ouro Preto. Foi ele quem me apresentou

    este objeto de pesquisa pelo qual pude me inquietar e me apaixonar. Por isso, agradeo-

    lhe por me abrir estes novos horizontes e por estar sempre disposto a me atender.

    Aos professores, Dr. Maria Fernanda Vieira Martins e Dr. Wlamir Silva

    agradeo a participao na banca examinadora. Foi fundamental poder contar com a

    atenta leitura destes profissionais, autores de pesquisas que me entusiasmam e pelas

    quais tenho imensa admirao.

    Da Universidade Federal de Juiz de Fora agradeo ao Prof. Dr. Alexandre M.

    Barata pelas importantes observaes, momentos de discusso e, ainda por suas

    riqussimas sugestes e reflexes pesquisa, ao participar do meu exame de

    qualificao. Agradeo ainda Ana Mendes, sempre to compreensiva e pronta a nos

    atender.

    Aos amigos, que desde a graduao, auxiliaram-me em minhas indagaes e nos

    meus momentos de leve desespero, Simone Cristina de Faria, Denise Maria Ribeiro

    Tedeschi, Maykon Rodrigues dos Santos, Dejanira Resende, Tatiana da Costa Senna e

    Rodolfo Chaves.

    Aos amigos, em especial, pelas aproximaes dos nossos trabalhos e

    semelhantes inquiries, companheiros de pesquisa pelos arquivos de Mariana e que por

  • diversas vezes me acudiram, Leandro Braga de Andrade, Pedro Eduardo de Andrade e

    Thiago Enes.

    Em Juiz de Fora, lugar onde por muitas vezes me senti muito s, tambm ganhei

    amigos. Agradeo s queridas Paula Ferrari e Adriana Carvalho, sempre muito

    atenciosas, e que primeiro me acolheram naquela cidade. s tambm queridas Lvia

    Badar e Gislene Lacerda por me asilarem em sua casa e me oferecem o seu amparo.

    Agradeo Luigi C. Barbosa pelo aprendizado de vida que nunca se apagar.

    Aos amigos que de outras formas me ajudaram, me apoiando e tentando sempre me

    animar, Maria Emlia C. Barbosa, Maria Marina C. Tavares, Maria Helena, Renata

    Perrout e Franois F. Moreira e seu filhinho, meu afilhado, Francisco. Agradeo

    tambm s antigas amigas, da minha cidade natal, que se preocuparam comigo e me

    ofereceram apoio, de Itambacuri-MG, Las Aparecida de Melo Freire e Emanuele

    Rodrigues.

    Ao Diretor do Arquivo Histrico da Cmara Municipal de Mariana Prof. Dr.

    Marco Antnio Silveira e aos funcionrios Olinda, Felipe e Rafael, agradeo por to

    prontamente me atenderem e com muita afeio participarem das minhas aflies. Aos

    funcionrios do Arquivo Histrico da Casa Setecentista de Mariana: senhor Antero,

    Cssio, Consola e Fabrcio pelo apoio.

    Enfim, a todos que torceram por mim, obrigada!

  • RESUMO

    O Juizado de paz representou uma das mais importantes instauraes do novo

    paradigma de organizao poltica e social que angariou as inovaes mais ilustradas e

    liberais do ordenamento jurdico europeu, indo ao encontro de uma vasta tradio e

    institucionalizao em primeira instncia. Estabelecido no Brasil na Constituio de

    1824, e regulamentado em 1827, o Juizado de paz, apesar das amplas funes denotadas

    seu cargo e de ser um marco do desenvolvimento da administrao e da justia no

    Brasil, trata-se de tema pouco visitado na historiografia brasileira. A presente pesquisa

    tem por objetivo investigar os indivduos eleitos para juiz de paz, no extenso municpio

    de Mariana, provncia de Minas Gerais, entre 1827-1841. Os propsitos foram abordar a

    inaugurao desta instituio to ainda incgnita e, analisar as eleies locais que

    elegiam aqueles homens e as funes desempenhadas pelos mesmos. Alm disso, e

    paralelamente, procurou-se traar o perfil e insero social desses homens que, alm de

    juzes de paz, compunham a to economicamente diversa sociedade mineira da primeira

    metade do sculo XIX.

    Palavras-chave: Juiz de paz, eleies e funes locais, perfil socioeconmico.

  • ABSTRACT

    The Judge of peace represented the major new paradigm instauration of political and

    social organization that raised the most learned and liberal innovations of the European

    legal system to suit a wide tradition and institutionalization in the first instance.

    Established in Brazil in the 1824 Constitution and regulated in 1827, the Judge of peace,

    despite the broad functions denoted his position and be a milestone in the development

    of administration and justice in Brazil, it is little visited theme in the historiography

    Brazil. This research aims to investigate the individuals elected to justice of the peace in

    the vast city of Mariana, in the province of Minas Gerais, between 1829-1841. The

    purpose was addressing the inauguration of this institution as yet unknown, and

    examine the local elections that elected the men and the functions performed by them.

    Furthermore, and in parallel, we tried to trace the profile and social integration of those

    men who, in addition to justices of the peace, made up as economically diverse mining

    company in the first half of the nineteenth century.

    Keywords: Justice of the Peace, elections and local functions, socioeconomic profile.

  • LISTA DE ILUSTRAES E FIGURAS

    FIGURA 1 Organograma sumrio das funes e dos assistentes do cargo de juiz de

    paz............................................................................................................................................52

    FIGURA 2 Quantidade de eleies por localidade. Mariana, 1829-1841............................95

  • LISTA DE TABELAS

    TABELA 1 Registro nominal para juzes de paz em processos-crime . Mariana, 1830-

    1841..........................................................................................................................................63

    TABELA 2 Correspondncias de juzes de paz remetidas para a Cmara Municipal de

    Mariana, 1829-1841.................................................................................................................76

    TABELA 3 Nmero de Juzes de paz eleitos por ano e Freguesia.......................................90

    TABELA 4 Outros cargos e funes dos indivduos eleitos................................................97

    TABELA 5 Obrigaes especficas aos juzes de paz. Mariana, 1829-1841.....................107

    TABELA 6 Juntas de paz presididas pelos juzes..............................................................110

    TABELA 7 Listas do Jri cumpridas pelos juzes..............................................................111

    TABELA 8 Fontes indicadoras da insero social dos juzes de paz.................................125

    TABELA 9 Informao de ocupao para todos os votados. Mariana, 1832.....................129

    TABELA 10 Informao de ocupao para todos os eleitos. Mariana, 1832.....................131

    TABELA 11 Informaes agrupadas para os eleitos e de ocupaes predominantes.

    Mariana, 1831-1832...............................................................................................................132

    TABELA 12 Quantidade de eleies por localidade. Mariana, 1829-1841.......................134

    TABELA 13 Perfil de Antnio Martins da Silva................................................................135

    TABELA 14 Composio da riqueza dos juzes de paz por faixa de fortuna....................151

    TABELA 15 Monte-Mor dos juzes de paz mais ricos de Mariana, 1829-1841................153

    TABELA 16 Nmero de juzes de paz proprietrio e da faixa de escravos por faixa de

    fortuna....................................................................................................................................155

    TABELA 17 Percentual de inventrio com presena de dvidas ativas.............................157

    TABELA 18 Naturalidade dos juzes de paz......................................................................161

    TABELA 19 Pertencimento Irmandades e ordens religiosas e pedidos de celebrao de

    missas.....................................................................................................................................162

    TABELA 20 Perfil de Antnio Jos de Souza Guimares.................................................165

    TABELA 21 Perfil de Joo Carvalho de Sampaio.............................................................168

    TABELA 22 Bens listados no inventrio de Antnio Lus Soares.........................170

  • SUMRIO

    INTRODUO......................................................................................................................13

    CAPTULO 1 FUNDAMENTOS E FORMAS DA ADMINISTRAO DA JUSTIA:

    APONTAMENTOS SOBRE ANTIGO REGIME E LIBERALISMO

    POLTICO.............................................................................................................................24

    1.1 Monarquia e oficialato: consideraes histricas acerca da administrao da Justia .....24

    1.1.1 A administrao da Justia no Brasil oitocentista: desafios para a historiografia

    brasileira?................................................................................................................................ 32

    1.2 A implementao do Juizado de paz no Brasil e em Portugal: breve histrico ................43

    1.2.1 Entre a lei e o costume....................................................................................................43

    1.2.2 O Juizado de paz no Brasil..............................................................................................47

    1.2.3 O Juizado de paz em Portugal.........................................................................................67

    CAPTULO 2 AS ELEIES E FUNES DOS JUZES DE PAZ EM MARIANA,

    1829-1841................................................................................................................................80

    2.1 Das eleies locais: continuidades e mudanas na virada do sculo XVIII para o sculo

    XIX..........................................................................................................................................80

    2.2 Das funes dos juzes de paz: governabilidade local......................................................99

    CAPTULO 3 INDCIOS DO PERFIL SOCIOECONMICO DOS JUZES DE PAZ

    EM MARIANA....................................................................................................................115

    3.1 Herana e adaptao em uma vila do Imprio: hierarquias sociais em Mariana............117

    3.1.1 Diversidade econmica e regional na primeira metade do sculo XIX.......................118

    3.1.2 Setores ocupacionais e atividades dos juzes de paz....................................................124

    3.2 Distribuio e composio da riqueza: bens e fortunas..................................................149

    3.3 Estratificao social e circulao dos juzes de paz........................................................159

    CONSIDERAES FINAIS..............................................................................................172

    REFERNCIAS...................................................................................................................174

    ANEXOS...............................................................................................................................181

  • 13

    Introduo

    Uma nova organizao poltica e administrativa era intentada pelo governo do

    Brasil perante a situao especfica aps a independncia de 1822. Neste contexto,

    estavam em voga mudanas situadas entre a transio de uma estrutura administrativa

    colonial e a implantao de um novo sistema jurdico-administrativo. Tal temtica

    logo muito conhecida. Porm, a regulamentao do Juizado de paz em 1827, tema,

    quando no relegado, seguido apenas a escolta daqueles processos maiores. este aqui

    o propsito, distinguir a inaugurao desse Juizado e um pouco dos que nele serviram

    no Termo de Mariana - provncia de Minas-Gerais, entre os anos de 1829-1841.

    De origem constitucional a criao do Juizado de Paz no Brasil foi decretada na

    Constituio outorgada por D. Pedro I em 1824. Sua regulamentao ocorreu anos

    depois, pela Lei regulamentar das atribuies, da competncia e jurisdio dos Juzes de

    Paz, em 15 de Outubro de 1827. Esta Lei determinou a obrigatoriedade da conciliao

    das partes nos processos judiciais, sendo esta a principal funo, de incio, a ser

    desempenhada pelos juzes de paz.1

    Vrias alteraes cunharam o seu funcionamento, especialmente no primeiro

    Reinado (1822-1831) e no perodo Regencial (1831-1840). O Cdigo do Processo

    Criminal de 1832, por exemplo, muito debatido e com clara preferncia pelas

    instituies locais, modificou significativamente as atribuies dos juzes de paz. Este

    continha, com a Disposio provisria acerca da administrao da Justia Civil a ele

    anexada, 27 artigos dispostos somente sobre a conciliao. O Cdigo foi modificado

    posteriormente, com a proclamao da maioridade de D. Pedro II quando foram

    distribudas, para outras autoridades, funes antes exercidas pelos juzes de paz.2

    Este pretende ser ento um estudo desta instituio o Juizado de Paz e dos

    ocupantes do cargo, e do mesmo modo, das relaes delineadas nos espaos poltico-

    sociais entre estes e a instncias do governo local, em especial a Cmara Municipal de

    Mariana. Por outro lado, nos consente ainda apreender as discusses e debates acerca da

    formao do Estado no Brasil. Entendemos aqui esse Estado como um constante

    1 VIEIRA, Rosa Maria. O Juiz de Paz: do Imprio a nossos dias. Braslia: Editora da Universidade de

    Braslia, 2002, pp. 73-77. 2 Idem.

  • 14

    normatizador do poder e da construo da sua prpria autoridade, mas que esbarrava,

    por vezes, nas instncias locais representativas como foi o caso do Juizado de Paz ,

    no alcance da Lei e da concretizao das suas prticas centralizadoras.

    Neste sentido, so muitas as indagaes concernentes a esta fase da ordem

    jurdica e da atuao da justia do Brasil Imperial. Entre o alcance do poder do Estado e

    a repercusso local de suas medidas h um tortuoso caminho que sinaliza vrias

    problemticas. Um dos questionamentos liga-se ao desenrolar da relao entre o

    funcionamento da Cmara Municipal uma instituio impregnada das prticas

    anteriores da governabilidade colonial e o novo processo eleitoral, instaurado a partir

    da criao do Juizado de Paz.

    De acordo com Russel-Wood as alteraes econmicas e sociais nos territrios

    do Imprio portugus, aliadas s diversidades locais tornavam a tarefa do governo

    municipal cada vez mais complexa nos sculos XVII e XVIII. Nesse contexto, as

    Cmaras assumiram amplas responsabilidades concomitantemente ao aumento da

    burocracia ao nvel local.3 Para a regio das Minas Gerais em decorrncia das

    descobertas e intensas exploraes aurferas foi estabelecido um considervel aparelho

    administrativo no sculo XVIII encabeado e, muitas vezes, organizado pela Cmara

    Municipal.4

    A importncia da estruturao da Cmara em Mariana antiga Vila do Carmo

    e em geral na Amrica Portuguesa5, responsvel pela organizao administrativa e

    manuteno da ordem judiciria nas comunidades, instiga a compreender como se

    situou a organizao camarria aps as subsequentes mudanas na administrao da

    justia que serviram ao Imprio Constitucional do Brasil. Russel-Wood j indicara que

    em meados do sculo XVIII existia autonomia das instncias de poder local para o

    exerccio da justia e como os juzes, na poca os juzes ordinrios, influenciavam no

    controle do governo local.6 neste sentido que buscamos perceber como se

    3 RUSSEL WOOD, A. J. O governo local na Amrica Portuguesa: um estudo de divergncia cultural.

    In: Revista de Histria. So Paulo: v.55, ano XXVIII, 1977, pp.25-79. 4 Idem, pp.26-28.

    5 Esta importncia j foi evidenciada na historiografia brasileira. Alguns exemplos so: VENNCIO,

    Renato Pinto. Estrutura do Senado da Cmara (1711-1808). In: Termo de Mariana. Histria e

    Documentao. Mariana: Imprensa Universitria da UFOP, 1998. FRAGOSO, Joo; BICALHO, Maria

    F.; GOUVA & Maria de F. (orgs.). O Antigo Regime nos trpicos: a dinmica imperial portuguesa

    (sculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2001. 6 RUSSEL WOOD, Op. Cit., p.49.

  • 15

    desenvolveram as relaes entre os oficiais camarrios e os juzes de paz que

    constantemente se corresponderam como a Cmara de Mariana.

    Neste interstcio de modificaes polticas vrias questes vem tona, como as

    das relaes dos juzes com outros grupos representantes do poder e o interesse do

    indivduo em permanecer no cargo de juiz de paz, sendo este no remunerado. Por outro

    ngulo, como demonstrado por uma historiografia j firmada, das adequaes

    econmicas por que passou Minas Gerais no sculo XIX aps a queda da produo

    aurfera e o crescimento das atividades agropastoris,7 importante atentarmos, em

    especfico, para os reflexos no perfil econmico dos homens que participaram da

    administrao da justia.

    Como no sculo XVIII, tambm no XIX havia um sistema de Leis criado a partir

    do centro para atender s necessidades emergenciais de um governo local, representado

    pelas Cmaras Municipais. Tal sistema foi ainda caracterizado e corroborado no sculo

    XIX por uma crescente descentralizao poltica pautada na negociao entre as esferas

    local e central.8 Buscou-se manter a ordem mediante as novas mudanas institucionais

    definidas aps 1822, pautadas por propostas de descentralizao poltica por um lado e

    concentrao de poder para o governo, por outro.9

    Tratamos assim de um perodo circunscrito a amplas reformas liberais, para as

    quais, de uma forma geral, o poder visando o interesse geral e apoiado na lei teria de

    ser nico, embora se admitisse que a administrao pudesse ser empreendida em nvel

    local. Esta distino entre o poder do centro e o da periferia far curso durante todo o

    sculo XIX. Para as correntes revolucionrias, o poder das cmaras tradicionais era um

    dos alvos a serem vencidos, no que se depara com dois resultados distintos: pela poltica

    centralizadora desarticula-se este plo perifrico de poder, mas, por outro lado, cria-se

    um dispositivo poltico que, ao tornar disponveis para o governo vrios cargos pblicos

    distritais, atribui ao mesmo a possibilidade de comprar fidelidades e alargar a rede da

    sua influncia social. No plano do poder judicial, aponta-se para a funo de julgar, que

    dependente de critrios mais alargados do que a simples observncia da lei. Para a

    organizao judiciria liberal os juzes eletivos localizam-se entre duas correntes: por

    7 Destaque para: ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. Homens Ricos, homens bons: produo e

    hierarquizao social em Minas Colonial: 1750-1822. 2001. Tese (Doutorado)-UFF, Niteri, 2001. 8 VELLASCO, Ivan de Andrade. As sedues da ordem: violncia, criminalidade e administrao da

    justia Minas Gerais, sculo 19. So-Paulo: Edusc/Anpocs, 2004. 9 Idem.

  • 16

    um lado, era o corolrio de uma plena democratizao do direito e da vida judiciria,

    porm, por outro, eram restos suspeitos do pluralismo poltico pr-estatal.10

    O estabelecimento do novo modelo de Estado foi assim marcado pelo confronto

    do discurso da descentralizao caracterizada pela distino entre o sistema pluralista do

    Antigo Regime e o sistema monista descentralizado. Tais oscilaes vo ao encontro

    dos objetivos que por ora se apresentam em situar a movimentao de juzes eletivos

    os juzes de paz na estrutura jurdico-administrativa do governo Monrquico

    Constitucional brasileiro. Portanto, procuraremos identificar os indivduos inseridos

    nesse contexto e compreender sua representao e deslocamentos nesse processo de

    mudanas.

    A delimitao espacial do termo de Mariana pertencente Comarca de Vila Rica

    foi escolhida para esse trabalho por abarcar uma tradicional regio que se destacou,

    desde o incio da ocupao do territrio, devido busca pelo ouro. Essa regio

    apresentou intensa movimentao econmica e populacional sendo que, sua sede

    constituiu importante centro administrativo, comercial e religioso na segunda metade do

    sculo XVIII e para as primeiras dcadas do XIX.11

    Alm disso, outra motivao dessa

    delimitao espacial tem relao no apenas com a reconhecida importncia

    administrativa de Mariana, mas tambm com a riqussima documentao disponvel

    para essa localidade.

    Enfim, nesta pesquisa pudemos discutir sobre as mudanas no sistema jurdico-

    administrativo que tentaram afirmar o poder central e a aplicao da justia. Assim

    sendo, nos trs captulos desenvolvidos a seguir propomos o estudo das tentativas da

    implantao de um poder local que, ao mesmo tempo em que demonstra a diligncia da

    construo de uma mquina administrativa centralizada e o funcionamento da justia,

    perpassa o desenvolvimento das relaes destas duas esferas, e em suas mais variveis

    contradies. Isso pode ser percebido quando se cria a figura do juiz de paz eletivo no

    plano paroquial, com amplos poderes de ao jurdica e policial, (...).12

    O Juizado de

    Paz, considerado a base do Direito Processual brasileiro, teve o instituto da conciliao

    10

    HESPANHA, Antnio Manuel. Guiando a mo invisvel: Direitos, Estado e Lei no Liberalismo

    Monrquico Portugus. Coimbra: Almedina, 2004, pp.331-349. Esta obra trata do constitucionalismo

    monrquico portugus do sculo XIX com enfoque para a questo poltica do Liberalismo. Apesar de

    tratar do Portugal monrquico o autor faz incurses sob o projeto constitucional para a Europa em geral, e

    retrata, efizcamente, a impossibilidade da realizao prtica de alguns dos pressupostos do Liberalismo. 11

    ALMEIDA, Op. Cit., p. 7. 12

    VELLASCO, op. cit.

  • 17

    abolido em 1890, entretanto pela Constituio de 1891 os Estados do pas poderiam

    ainda legislar sobre os processos e muitos adotaram o instituto Juizado de Paz

    mantendo a conciliao espontnea, como Minas Gerais, So Paulo e Rio de Janeiro.13

    Para tanto, trabalhamos com fontes de origem administrativa e judicial,

    localizadas no Arquivo Histrico da Cmara Municipal de Mariana, dentre as quais

    destacamos os livros de atas de eleies, as correspondncias oficiais, os livros de

    censos, os livros de matrcula da Guarda-nacional, as leis e as sries de miscelnea.

    Nessa documentao, nossa primeira preocupao esteve em, alm de construir a

    listagem dos homens eleitos para o perodo em Mariana, verificar indcios da sua

    atuao, suas preocupaes e realizaes, e de acordo com a legislao vigente.

    As outras fontes privilegiadas, de origem cartorial, localizadas no Arquivo

    Histrico da Casa Setecentista de Mariana so os inventrios post-mortem, os

    testamentos e processos-crime. O inventrio um documento cartorial que nos traz,

    dentre outras informaes, a relao de bens do falecido o que nos permite identificar a

    riqueza dos indivduos eleitos juzes de paz. O cruzamento dos nomes dos eleitos e a

    riqueza que detinham contriburam para a descrio do seu perfil social e a atividade

    econmica desenvolvida.

    J os testamentos, so tambm indicadores de insero social, pois nos revela o

    pertencimento Irmandades e Ordens religiosas e foram aqui utilizados para avaliar a

    condio de distino social de cada indivduo. Alguns processos-crime foram ainda

    utilizados, a partir do cruzamento dos nomes dos juzes eleitos, para demonstrar as suas

    participaes, seja como rus ou autores, nos ditos processos.

    Tambm primordiais para anlise do perfil dos homens eleitos juzes de paz

    foram as listas nominativas. Essas listas nominativas de habitantes, especialmente, as de

    1831-1832 foram elaboradas para atender s determinaes do governo provincial de

    Minas Gerais para levantamentos eleitorais, para o recrutamento militar ou para a

    tributao. Muitas vezes indicava a ocupao do chefe do domiclio relativa atividade

    econmica que sustentava a famlia, alm do estado civil, cor, origem e idade.14

    Para os

    13

    Idem, pp. 77-79 14

    Vale lembrar os minuciosos tratamentos demogrficos dados a esses conjuntos documentais por

    COSTA, Iraci Del Nero. Arraia-mida. Um estudo sobre os no-proprietrios de escravos no Brasil.

    MGSP Editores. So Paulo. 1992; LIBBY, Douglas Cole. Transformao e Trabalho em uma economia

    escravista. Minas Gerais sculo XIX. So Paulo. Brasiliense: 1988; ANDRADE, Francisco Eduardo de. A

    enxada complexa: Roceiros e fazendeiros em Minas Gerais na primeira metade do sculo XIX. Belo

  • 18

    nossos propsitos, tais listas se tornam ainda mais relevantes pelo fato de sua

    elaborao ter sido de responsabilidade dos Juzes de Paz de cada distrito dos diversos

    municpios mineiros.15

    Aliadas aos inventrios, o trabalho com tais fontes contribuiu

    para a percepo da principal atividade desenvolvida pelo homem que, alm de eleito

    juiz de paz, possua outras atividades, notadamente, as econmicas.

    Enfim, neste trabalho, de incio passa-se por uma literatura mais clssica acerca

    das anlises que envolvam as relaes entre grupos e indivduos, e como essas relaes

    se delineiam para o estudo das sociedades de Antigo Regime e para o sculo XIX.

    Traamos um breve panorama sobre a situao da poltica, da justia e da lei no sculo,

    mas ressaltando, a posio da administrao e da justia no contexto daquelas

    transformaes polticas, bem como, o desempenho de algumas anlises da

    historiografia brasileira que realaram tais premissas.

    Buscou-se ainda no primeiro captulo delinear, apesar dos poucos trabalhos

    existentes, um breve histrico sobre a implementao do Juizado de Paz no Brasil e em

    Portugal. Tal escolha partiu-se primeiramente devido a ordem dos acontecimentos, que

    acontecera com a inaugurao das Constituies Polticas das duas naes, ambas

    propagadas por D. Pedro I, bem como, a criao do Juizado de Paz naquele mesmo

    perodo.

    No segundo captulo buscou-se esmiuar o processo das eleies para juiz de

    paz, abarcando vrias freguesias pertencentes ao termo de Mariana. Deparamo-nos com

    uma questo de ordem metodolgica sobre qual deveria ser o encaminhamento, para

    identificar corretamente o que havia de essencial, de especfico, de inovador naqueles

    processos. Pelo grau de especificidade, a nica sada foi analisar cada eleio, uma a

    uma, separadamente. O recorte temporal perpassa a Lei de 1828, que dispunha sobre as

    eleies municipais e a administrao das Cmaras Municipais, e ainda o Cdigo

    Criminal de 1830 e o Cdigo do Processo Criminal de 1832, considerados de cunho

    liberal, at a lei do Ato Adicional de 1834 e sua Lei de Interpretao em 1840, essas

    ltimas de carter conservador. Abarca desta forma, o perodo mais premente do

    estabelecimento das funes dos juzes de paz, que sofrero uma reduo em 1841, com

    Horizonte. Dissertao de mestrado. FAFICH. UFMG, 1995; e ANDRADE, Leandro Braga de. Senhor

    ou Campons? Economia e Estratificao social em Minas Gerais no sculo XIX. Mariana: 1821-1850.

    Dissertao de Mestrado. PPGH. FAFICH. UFMG. 2007. 15

    Um estudo da origem das listas e da sua utilizao como fonte histrica em: PAIVA, Clotilde.

    Populao e economias. Minas Gerais do sculo XIX. Tese de Doutorado. USP. So Paulo, 1996.

  • 19

    a Reforma do Cdigo. Discute-se assim, o ambiente poltico, as principais alteraes

    legislativas e as prticas administrativas exercidas pelos juzes de paz.

    Por fim, no terceiro e ltimo captulo analisa-se o perfil econmico-social para o

    grupo de indivduos eleitos como juzes de paz no Termo de Mariana. A principal idia

    desse captulo vai ao encontro da observao acerca da conservao da comunicao

    intra-grupos e a permanncia destes na qualidade de elites econmicas e polticas,

    destacando a qualidade de juiz de paz. Busca-se saber enfim, quem foram na sociedade

    marianense os juzes de paz, aliando a discusso de cunho mais poltico e administrativo

    ao perfil socioeconmico destes homens, na medida em que foram homens abastados e

    de alguma forma envolvidos em outras atividades e ocupando outros cargos.

    Por sua vez, trata-se de observar a complexidade e diversidade das relaes

    interindividuais lembrando sempre da importncia em se considerar a capacidade de

    articulao e de adaptao dos indivduos diante da abrangncia de novas conjunturas,

    polticas e econmicas. Aspectos estes h muito ressaltados, explorados e trazidos para

    a abordagem histrica por anlises que privilegiaram as relaes sociais e as estratgias

    individuais formadoras de redes de interaes diversas. Torna-se essencial portanto, o

    uso da histria social ajustada a anlises qualitativas e quantitativas na elaborao dos

    dados, bem como, das indicaes do mtodo prosopogrfico do rastreamento da vida

    dos indivduos e das formulaes para o universo destes atores. 16

    Nesse sentido, a maior demonstrao foi apontada pela corrente conhecida como

    micro-histria italiana representada por pesquisadores como Carlo Ginzburg e Giovanni

    Levi no final dos anos de 1970. Tal corrente nasceu das trocas de um pequeno grupo de

    historiadores italianos e pode ser compreendida como uma reivindicao do direito

    experimentao em histria. A micro-histria surgia como uma reao a um momento

    especfico da histria social, e props reformular certas exigncias.17

    A reduo de escala proposta por Carlo Ginzburg, Carlo Poni, e depois Edoardo

    Grendi, convidava a outra leitura do social. A histria social dominante refletia sobre

    agregados annimos analisados em longos perodos, com dificuldades para apreender os

    16

    STONE, Lawrence. La crisis de la aristocracia, 1558-1641. Madri: Alianza Editorial, 1985.

    Consideraes acerca da histria das elites e o mtodo prosopogrfico ver: CHARLE, Christophe. A

    prosopografia ou biografia coletiva: balano e perspectivas. In: HEINZ, Flvio M. (Org.) Por outra

    histria das elites. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. 17

    REVEL, Jacques. Prefcio. In: LEVI, Giovanni. A herana imaterial: trajetria de um exorcista no

    Piemonte do sculo XVII. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2000, p.17.

  • 20

    acontecimentos. Apoiados na arquivstica italiana, os autores propunham acompanhar o

    nome dos indivduos e dos grupos de indivduos. Tem, portanto, duas faces, usada em

    pequena escala e na identificao das estruturas invisveis, nas quais o vivido se

    articula.18

    Ressaltamos como os emaranhados de situaes do flego ao tema e servem,

    antes de tudo, para apresentar o lugar social em que se demarcaram continuidades e

    inovaes no palco da ao da justia nas primeiras dcadas do sculo XIX. Assim, fica

    evidente a importncia que daremos s formulaes observadoras dos aspectos

    relevantes da lgica social como formas adaptadas a novas circunstncias.

    Como bem props o italiano Giovanni Levi, os problemas enfrentados pelos

    atores sociais e suas aes integram uma racionalidade limitada que abarca os

    recursos e as escolhas que, por sua vez, agregam toda a sociedade. E ainda, dentro dos

    sistemas normativos e em meio a um cenrio especfico, em que cada sociedade se

    encontra, funcionam as estratgias, e o indivduo a inserido tem seu espao de

    atuao.

    Parece-nos que as leis do Estado moderno se tenham imposto sobre

    resistncias importantes e, historicamente, irrelevantes. Mas as coisas

    no se deram exatamente dessa forma: nos intervalos entre sistemas

    normativos estveis ou em formao, os grupos e as pessoas atuam com

    uma prpria estratgia significativa capaz de deixar marcas duradouras

    na realidade poltica que, embora no sejam suficientes para impedir as

    formas de dominao, conseguem condicion-las e modific-las.19

    E essas foram indicaes que frequentemente se manifestaram nos mais variados

    trabalhos: a preferncia por fenmenos circunscritos, a aproximao cada vez mais

    estreita entre histria e antropologia, o fim da iluso etnocntrica, enfim vrios

    caminhos que reforaram estudos mais peculiares.20

    Ou seja, os fatores sociais

    incidentes sobre o homem e que interferem diretamente em suas aes, nos aspectos das

    18

    Idem, pp.17-19 19

    LEVI, Giovanni. A herana imaterial: trajetria de um exorcista no Piemonte do sculo XVII. Rio de

    Janeiro: Civilizao Brasileira, 2000, p.45. O autor evidenciou a importncia em prestarmos ateno aos

    diversos fatores que influenciam os comportamentos sociais. Demonstrou como uma sociedade podia

    privilegiar as relaes pessoais de solidariedade, de dvida e de reciprocidade. Ao realizar uma anlise

    estrutural de dois aspectos fundamentais, como o mercado de terras e as estratgias familiares, sugeriu

    alguns dos princpios normativos sobre os quais comunidades, do mundo campons do Antigo Regime, se

    organizavam no sculo XVII. 20

    GINZBURG, C. & PONI, C. O nome e o como: troca desigual e mercado historiogrfico. In: A

    micro-histria e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1991, p.172.

  • 21

    mudanas polticas, das estratgias de ao e das relaes sociais. Neste tipo de

    abordagem o ator histrico participa de processos e se inscreve em contextos de

    dimenses e de nveis variveis

    Na verdade, a escolha no alternativa entre duas verses da realidade

    histrica do Estado, uma que seria macro e a outra micro. Uma e

    outra so verdadeiras (e muitas outras mais em nveis intermedirios

    que seria conveniente recuperar de modo experimental), e nenhuma

    realmente satisfatria porque a constituio do Estado moderno

    precisamente feita do conjunto desses nveis, cujas articulaes ainda

    precisam ser identificadas e pensadas. A aposta da anlise microssocial

    e sua opo experimental que a experincia mais elementar, a do

    grupo restrito, e at mesmo do indivduo, a mais esclarecedora porque

    a mais complexa e porque se inscreve no maior nmero de contextos

    diferente.21

    Deve-se lembrar ademais, que os questionamentos a que Levi se props, bem

    como dos autores ligados a micro-histria, nasceram de uma aproximao com a

    antropologia. Foi representativa a influncia das idias do antroplogo noruegus

    Fredrik Barth para quem os sistemas de normas so repletos de incoerncias e a

    sociedade vista como um contexto de aes. Para Barth, os valores e os recursos do

    indivduo servem de parmetros realizao de suas escolhas ou estratgias trata-se

    de um processo generativo.22

    Como chamou ateno Ginzburg, no se deve esquecer o uso do mtodo

    prosopogrfico, pois aliado a esse, h possibilidades de selecionar, na massa dos dados

    disponveis, casos relevantes e significativos.23

    Tal mtodo de pesquisa consiste,

    grosso modo, em definir um grupo e estabelecer um questionrio biogrfico de anlise a

    partir de um ou vrios critrios que serviro descrio da dinmica social. Foram

    representativos, neste sentido, os trabalhos de Lawrence Stone para a Inglaterra do

    sculo XVII.24

    Partimos, enfim destes preceitos para pensarmos a administrao da Justia do

    territrio brasileiro aps a independncia, em meio a um emaranhado de relaes e de

    21

    REVEL, Jacques (org.). Jogos de escalas: a experincia da microanlise. Rio de Janeiro: Fundao

    Getlio Vargas, 1998, p.32. 22

    BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variaes antropolgicas. Rio de Janeiro: Contra Capa

    Livraria, 2000. 23

    GINZBURG, Op. Cit. 24

    STONE, Lawrence. La crisis de la aristocracia, 1558-1641. Madri: Alianza Editorial, 1985.

  • 22

    momentos conflituosos. Trata-se de um contexto especfico daquela realidade em que,

    por espaos curtos de tempo, ocorreram mudanas bruscas: marcou-se de incio (1808)

    o transplante da realeza e a capital do Imprio, a separao dos reinos e a independncia

    da colnia, a implantao da Constituio e a abdicao do imperador, a diviso dos

    poderes polticos e a criao de novas autoridades.

    O indivduo nesse interstcio, seja ele parte integrante ou no da mquina

    centralizada de fazer leis, habituava-se a uma Legislao determinada e passava a

    conviver constantemente com inmeros decretos e regulamentaes advindas do centro.

    Como este acolheu ou reagiu a tais realidades o que buscamos compreender.

  • 23

    Captulo 1 Fundamentos e formas da administrao da justia: apontamentos

    sobre Antigo Regime e Liberalismo Poltico

    As tramas suscitadas em torno da administrao da Justia e a aplicabilidade da

    justia local eram para os to conturbados primeiros anos do sculo XIX, pouco

    esclarecidas. No Brasil, isso se dava principalmente pela falta de bases polticas

    determinadas, ainda encabeadas nos moldes da dinmica imperial portuguesa.

    Assim, o cenrio poltico aps a independncia forma um contexto de intensas

    transformaes sociais que se estendem desde um incremento e edificao da

    monarquia constitucional at a uma ruptura com o Antigo Regime, identificado ao

    Absolutismo despotista.25

    A independncia da colnia do antigo Imprio Portugus, em

    1822, a Carta Constitucional de 1824, e as transformaes que a partir da se deram,

    conjuntamente s heranas que se verificaram so os focos da presente anlise.

    Pensando ainda em como, desde pelo menos o sculo XVIII, administrao e justia se

    confundiam.

    Buscamos enfim, neste primeiro captulo evidenciar como alguns fatores da

    composio colonial, relativos administrao e justia, de alguma forma legaram

    influncias sobre o aparato de governo posterior independncia e sobre os modos de

    governar. Alm disso, procuramos demonstrar a ausncia de, ou os poucos, trabalhos

    que na historiografia brasileira contemplaram o cotidiano da administrao e da justia

    local para a primeira metade do sculo XIX.

    Logo, ao buscarmos analisar tais momentos, assinalados por to importantes

    marcos, nos remetemos a um contexto mais amplo, no mbito mesmo da histria do

    pensamento liberal europeu, deparando-nos de imediato com tamanha abrangncia.

    Logicamente, no nos seria possvel examinar com o devido aprofundamento os

    pensadores que dedicaram parte de suas obras ao estudo do Liberalismo poltico do

    sculo XIX, o que nos vinculou a limitar nossa anlise a alguns pontos representativos

    do tema.

    25

    MARTINS, Maria Fernanda Vieira. A velha arte de governar: um estudo sobre poltica e elites a partir

    do conselho de Estado (1842-1889). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007, pp.43-44.

  • 24

    1.1 Monarquia e oficialato: consideraes histricas acerca da

    administrao da Justia

    Em termos amplos, as foras da tradio e dos resqucios do Antigo Regime

    mostraram-se presentes no somente pela forma como se organizou a poltica e a

    administrao imperial, mas tambm pela herana e pela importao de um modelo de

    organizao que circundavam as prticas e os comportamentos dos indivduos que aqui

    permaneceram:

    (...), certo tambm que, no Brasil, adotou-se um iderio europeu ps-

    revolucionrio que havia se esmerado em marcar a ruptura com o

    Antigo Regime, identificando o absolutismo ao despotismo e negando

    qualquer relao de continuidade entre estes e o novo modelo poltico-

    administrativo que ento se instalava. Mas, nem a Monarquia

    absolutista europia foi necessariamente desptica, nem a monarquia

    constitucional reviveria no sculo XIX totalmente livre dos resqucios

    do Antigo Regime. A experincia poltica brasileira demonstraria a

    fora dessa tradio ao seguir, em grande medida, a forma como se

    organizou e consolidou a monarquia portuguesa e seu modelo de

    administrao.26

    Quanto ao Brasil, em relao ao modelo de administrao a ser seguido, os

    moldes atravs dos quais se estabeleceram a administrao colonial portuguesa podem

    ser percebidos quando nos dirigimos ao estudo das bases da governabilidade local. O

    exemplo da administrao da justia local demonstra que desde os primrdios da

    colonizao do territrio, foi transplantada nos padres da metrpole portuguesa,

    regulada principalmente nas Cmaras Municipais. Por meio da atuao dos oficiais

    locais possvel perceber as profundas razes fincadas na Amrica Portuguesa e

    norteadoras dos seus rumos.

    Em relao especialmente justia, no antigo Regime apreende-se que o aparato

    dogmtico do direito comum, relativo construo jurdica dos corpos como um

    investimento simblico, o meio atravs do qual a auto-representao da sociedade

    assegurava a sua reproduo poltica alargada, eram as proposies destinadas a

    modelar normativamente estas sociedades.27

    26

    Idem, p.43. 27

    HESPANHA, Antnio Manuel. As Vsperas do Leviathan: instituies e poder poltico, Portugal sc.

    XVII. Almedina: Coimbra, 1994, p.306.

  • 25

    De acordo com Antnio Manuel Hespanha o que era singular no pensamento

    social do Antigo Regime seria a definio organicista da sociedade a partir da

    considerao das suas funes: esmiuadas na caracterizao social como uma

    qualidade pertencente prpria natureza individual, para qual a sociedade se enxerga

    por meio de grupos de indivduos portadores da mesma funo e titulares de um mesmo

    cargo; e ainda, pela definio deste enquadramento e destas funes a partir da

    constituio tradicional da sociedade definidas pela tradio levando a que o estatuto

    social decorresse no tanto da situao atual das pessoas, mas de uma posse estabelecida

    pela tradio familiar, pelo uso e pela fama.28

    Da a ideia de uma sociedade naturalmente estratificada e desigualmente

    ordenada: os estatutos diferentes, cada qual correspondente a uma funo social e

    designando um conjunto de pessoas, a este conjunto de pessoas com um mesmo

    estatuto que a teoria social e jurdica do antigo regime chamava um estado ou

    ordem.29

    Caracterizada como uma Monarquia corporativa, a Monarquia portuguesa tinha

    como princpios bsicos o poder real partilhado, e em um espao poltico dotado de

    poderes com diferentes hierarquias entre os oficiais rgios, sendo estes, gozadores de

    uma proteo alargada de seus direitos e com variadas atribuies, sendo estas tambm

    estendidas s suas colnias.30

    Para essa Monarquia no existiu um modelo ou estratgia

    geral de domnio, mas sim variados caminhos para justificar a sua expanso colonial, e

    no houve harmonia nas polticas de colonizao, pois estas eram diferenciadas de

    acordo com o tempo e com as conquistas dos diferentes espaos.31

    Desse modo, prevalecia nessa expanso territorial portuguesa a carncia de uma

    constituio colonial unificada, sendo que a heterogeneidade de laos polticos impedia

    o estabelecimento de uma regra uniforme de governo, ao mesmo tempo em que criava

    limites ao poder da coroa ou dos seus delegados.32

    A inconsistncia do direito colonial

    28

    Idem, pp.307-308. 29

    Ibidem, p.308. 30

    HESPANHA, Antnio Manuel. A constituio do Imprio portugus. Reviso de alguns

    enviesamentos correntes. In: FRAGOSO, Joo; BICALHO, Maria F. & GOUVA, Maria de F. (orgs.).

    O Antigo Regime nos trpicos: a dinmica imperial portuguesa (sculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro:

    Civilizao Brasileira, 2001, pp.166-167. 31

    Idem, p.170. 32

    Ibidem, p.172.

  • 26

    moderno decorria, dentre outros fatores, da disposio do direito comum europeu

    baseado nos princpios da preferncia por normas particulares, como tambm:

    (...), a incoerncia do sistema jurdico derivava tambm de algo que j

    foi evocado a constituio pluralista do Imprio, em que cada nao

    submetida podia gozar do privilgio de manter seu direito, garantido por

    tratado ou pela prpria doutrina do direito comum, de acordo com a

    qual o mbito de um sistema jurdico era marcado pela naturalidade.

    Da que o direito portugus s se aplicasse aos naturais (Ord. Fil II, 55),

    governando-se os nativos pelo seu direito especfico.33

    A Monarquia portuguesa, portanto, vinculava-se ao modelo corporativo,

    emergente de um paradigma jusnaturalista, caracterizado pela superioridade da

    jurisprudncia sobre a poltica. A ao poltico-administrativa era o fator mais

    importante, e o rei teria que manter as jurisdies dos restantes dos corpos polticos

    sempre em equilbrio:

    Assim, o paradigma jusnaturalista limitava fortemente a capacidade de

    aco da coroa. No s ao persistir numa concepo do poder que

    apenas parcamente lhe concedia poderes integrveis numa

    administrao activa, promotora de novos equilbrios sociais e

    polticos, como ao subordinar toda a actividade da coroa s regras de

    uma prudentia iuris, norteada pela conservao da ordem estabelecida e

    servida por um estamento corporativista e eminentemente conservador

    (no sentido mais radical do termo)(...).34

    Esse sistema e a organizao poltico-jurdico caracterizou tambm a

    administrao colonial na Amrica Portuguesa. Havia diferentes cargos estendidos e/ou

    criados na colnia para conduzirem aquela expanso.35

    O problema do domnio estava

    ligado ao da organizao poltico-administrativa do prprio Imprio portugus. Vrios

    modelos administrativos foram ento utilizados correspondentes s solues

    encontradas para os diferentes pontos conquistados:

    Assim, o imprio portugus no se estrutura sobre um modelo nico de

    administrao, antes fazendo conviver instituies muito variadas

    (instituies municipais e senhoriais de tipo europeu, capitanias-

    donatrias, feitorias-fortalezas, situaes poltico-institucionais

    desenhadas, caso a caso, em tratados de paz, de vassalagem e de

    33

    Ibidem, p.172-173. 34

    HESPANHA, Antnio Manuel. As Vsperas do Leviathan: instituies..., p.286. 35

    HESPANHA, Antnio Manuel. A constituio do Imprio..., pp.170-187.

  • 27

    protectorados, simples enquadramento tctico a partir das redes de

    relaes comerciais, da aco dos missionrios ou mesmo da presena

    de aventureiros portugueses, etc) em territrios tambm eles mltiplos,

    de acordo com as intenes e oportunidades de ocupao.36

    Nesse contexto, a estrutura do governo colonial, tradicionalmente inspirado nos

    modelos administrativos do Reino, foi reservada s zonas de ocupao permanente, e as

    restantes instituies e formas de domnio foram adaptadas entre expedientes formais

    como os de municpio e capitanias-donatrias s modalidades menos

    institucionalizadas, porm:

    Esta mistura de poderes no chocava, de maneira nenhuma, o

    imaginrio poltico moderno, cuja vertente pluralista bem notria.

    Poderes divididos o da coroa, com o da Igreja; ambos com os dos

    municpios, da famlia e do patronato constituam a realidade

    quotidiana do cenrio poltico europeu. E nem os poderes de facto

    eram desconhecidos. Portanto, estas formas de governo misto ou

    informal no eram mais que a continuao, agora no ultramar, de

    formas de exercitar o Poder na Europa.37

    Dessa forma, necessrio reconhecer que no Portugal moderno estavam

    presentes rupturas, mas tambm a continuidade de certas prticas de governo e culturais

    resistentes. Isto tem sido evidenciado em vrios estudos que se empenharam em

    demonstrar a capacidade da Monarquia nos Estados europeus em lidar com as elites,

    uma relao que poderia se dar de variadas maneiras.38

    36

    HESPANHA, Antnio Manuel; SANTOS, Maria Catarina. Os poderes num imprio ocenico. In:

    MATTOSO, Jos (Org.) Histria de Portugal: o antigo regime. Lisboa: Editorial Estampa, 1993, pp.351-

    366. 37

    Idem, p.353 38

    Neste sentido, podemos nos referir a discusso acerca das chamadas redes clientelares tema muito

    recorrente na historiografia brasileira que trata o perodo colonial refere-se s tramas das relaes de

    poder no Antigo regime portugus e extensivas s suas colnias, e que com variaes se estenderam ao

    sculo XIX. ngela Barreto Xavier e Antnio Manuel Hespanha reafirmaram a ideia de que na

    colonizao portuguesa o sistema poltico atuante foi dotado de peculiaridades. Para estes, a pluralidade

    das redes de relaes sociais foi responsvel por gerar estratgias e prticas que ultrapassavam os limites

    das prticas institucionais do Antigo Regime. A poltica real assumia diversas formas e as chamadas

    redes clientelares naquela sociedade no eram um fenmeno exclusivo da corte e dos ambientes

    polticos. Os regimentos das relaes entre Rei e sditos no Portugal moderno poderiam ser

    transplantados para a Amrica portuguesa e tais aspectos, inclusive, circundaram esforos das anlises de

    alguns historiadores brasileiros para o entendimento da conformao das elites coloniais. Essas anlises

    para o Portugal do sculo XVII e meados do XVIII clarificam o entendimento do sentimento de lealdade

    e amizade que regeram a corte, os sditos e todas as pessoas que compartilhavam de um mesmo

    sentimento da naturalidade de um sistema pautado no Rei, como topo e responsvel pelo restante. Ver:

    HESPANHA, Antnio Manuel; XAVIER, ngela Barreto. As redes clientelares. In: MATTOSO, Jos

    (Org.) Histria de Portugal: o antigo regime. Lisboa: Editorial Estampa, 1993.

  • 28

    A forma mais disseminada de governo local para os domnios portugueses nos

    sculo XVII e XVIII foi atravs dos Senados das Cmaras, ou Conselho Municipal.

    As alteraes econmicas e sociais do Imprio portugus, aliadas s diversidades locais

    e territoriais das suas possesses, contriburam para tornar a tarefa do governo

    municipal cada vez mais complexa, e as Cmaras assumiam amplas responsabilidades

    concomitantemente ao aumento da burocracia em nvel local.39

    A instalao das Cmaras Municipais funcionava como uma resposta direta a

    fatores sociais, econmicos, polticos, religiosos, militares e tnicos dos diversos

    territrios da expanso portuguesa. Havia constante adaptao da nomeao do pessoal

    burocrtico, sua qualidade, nmero, dentre outros critrios, diretamente ligados s

    especificidades necessrias - a criao destes rgos tinha como fator condicionante as

    modificaes e transformaes locais que por serem variadas interferiam, enfim, na

    composio da oficialidade.40

    Na administrao colonial a Cmara era regida pela mesma lei da metrpole, as

    Ordenaes Filipinas de 1603. Conforme a lei, a Cmara Municipal tinha faculdades

    poltico-administrativas, judiciais, fazendrias e de polcia. Apenas nos locais com

    estatuto de vila poderiam se instalar as Cmaras. Estas eram compostas pelos homens

    bons das localidades, e atravs deles, elegiam-se os juzes, os vereadores, os homens

    que serviam administrao das vilas. A Cmara cuidava de administrar os bens da

    municipalidade, aplicar a lei, fazer o policiamento, cobrar as multas e arrecadar os

    impostos locais, dentre outras diversas atribuies.41

    Assim, a instalao das Cmaras Municipais representa em nossa histria uma

    das primeiras tentativas de implantao de um governo local, e, por isso,

    representativa das diversas experincias de organizao da administrao e da aplicao

    da justia local. O aumento de pessoal burocrtico era uma constante. As nomeaes

    tambm. E, no sculo XIX com a Legislao imperial tentara-se diminuir o poder de

    justia das Cmaras repassando-o ao juiz de paz pela Lei Orgnica das Cmaras

    Municipais de 1828.42

    39

    RUSSEL-WOOD, A. J. O governo local na Amrica Portuguesa: um estudo de divergncia cultural.

    In: Revista de Histria. So Paulo: v.55, ano XXVIII, 1977, pp.25-79. 40

    Idem, pp.25-36. 41

    SALGADO, Graa (coord.). Fiscais e meirinhos: a administrao no Brasil colonial. 2 ed. Rio de

    Janeiro: Nova Fronteira, 1985, pp.69-71. 42

    Para mais detalhes sobre a Lei e o perodo ver Captulo 2.

  • 29

    Assim, para o sculo XIX, especificamente, que no contexto do Liberalismo

    poltico europeu, a questo se mostra um pouco diferente, o importante no ser se os

    preceitos do sistema e se os princpios liberais eram aplicados no dia a dia. Mas, sim, se

    estavam presentes na prpria teoria poltica e jurdica da poca, no modo como se

    ensinava o direito, nos modelos de como se organizava o Estado, nas leis como estavam

    nos livros ou mesmo nas constituies que deveriam reger a organizao do sistema.

    O liberalismo neste sentido de uma constituio de liberdades

    individuais foi, em Portugal, mais ou menos o mesmo que me parece

    ter sido em toda a Europa Ocidental, sem sequer excluir as Ilhas

    Britnicas: um projecto constitucional que, alm de teoricamente algo

    inconsistente, no podia tambm realizar os pressupostos da sua

    realizao prtica. Ou, pondo as coisas, de forma diferente: um projecto

    constitucional que, para realizar os seus pressupostos de realizao

    prtica, tinha que comear por desmentir alguns dos seus postulados

    tericos.43

    Na realidade, j havia sinais da ideia de um governo ativo na legislao e na

    prtica poltica desde finais do Antigo Regime. Porm, a revoluo liberal portuguesa

    precisava de Estado. A eficcia administrativa, cujo modelo vinha da Frana (e depois

    da Alemanha) s se atingiria com reformas, e o ponto chave era a ordem. 44

    Mas, o discurso constitucional a questo se mostra bem mais complexo ao tentar

    perceb-lo na prtica, pois ele constitui um conjunto de mensagens emitidas com

    intenes originrias, mas tambm entendido por receptores, diferente de

    destinatrios, com diferentes horizontes de leitura e intenes de apropriao, se o

    direito no poltica, as solues jurdicas tm inevitveis consequncias jurdicas.45

    Em Portugal, novos processos sociais exigiam novas medidas reguladoras, novas

    reparties. Os direitos eram agora subordinados ao direito sistemtico. E esse direito

    sistemtico conexo lei. O Estado devia atuar em nome de todos. A ruptura

    constitucional fundadora distingue o modelo poltico iluminista das anteriores

    monarquias de Antigo Regime, o despotismo iluminado traz de novo a constituio das

    monarquias de Antigo Regime, o novo impacto da lei. A lei aparece como subsidiria

    43

    HESPANHA, Antnio Manuel. Guiando a mo invisvel: Direitos, Estado e Lei no Liberalismo

    Monrquico Portugus. Coimbra: Almedina, 2004, p.6. 44

    Idem, pp.7-8. 45

    Ibidem, pp.25-26.

  • 30

    de uma ordem da razo que se ira positivar na criao dos cdigos que circundaram o

    sculo XIX.46

    Em Portugal destaca-se a conjuntura institucional vintista na dcada de 1820 e

    os projetos constitucionais da restaurao joanina com o retorno de D. Joo VI do

    Brasil. A carta constitucional de 1826, promovendo prticas poltico-constitucionais

    visava a constituio dos aparelhos do governo e modelos jurdicos consubstanciados

    por meio do direito e do Estado.47

    Em 1820, na sequncia de um movimento militar, apoiado por um grupo de civis

    pertencentes burguesia ilustrada, proclamada a Junta de governo do Porto

    encarregada de convocar Cortes para se fazer uma constituio. O projeto de Bases da

    Constituio promulgado em 1821. Ainda estando no Brasil, D. Joo VI forado a

    aceitar a constituio de Lisboa. Quanto fonte do poder constituinte e aos processos

    constituintes, quanto natureza da constituio, quanto relao entre direitos e

    constituio, em todos estes pontos o argumento da continuidade traduz uma releitura

    da tradio, induzida pela preocupao de legitimar a mudana, mas que no oculta

    tambm as novidades. Nas ideias de ampliao e de reforma as cortes assumiram um

    poder constituinte. Buscou-se dar nova forma ou alargar o mbito das leis fundamentais

    histricas da Monarquia. No iderio poltico da poca se revalorizava a tradio poltica

    e jurdica como instncia de positivao da ordem jurdico-constitucional.48

    As novidades foram muitas quer em relao constituio tradicional do

    Reino, quer mesmo em relao constituio reformista a partir da segunda metade do

    sculo XVIII. Uma novidade fundamental era a de reconhecer s cortes um papel

    constituinte. Algumas dessas novidades estiveram no plano da nova linguagem poltico-

    constitucional.

    No Antigo Regime e na ordem constitucional americana ou inglesa, os direitos

    estavam antes da lei, podendo ser invocados contra esta. Mas, na tradio constitucional

    portuguesa, esse ponto de vista, se tinha caracterizado pela constituio monrquica

    corporativa. Apesar de se considerar limitado pelos direitos adquiridos, estes eram

    estabelecidos no mbito da ordem jurdica positiva.49

    46

    Ibidem, pp.10-18. 47

    Ibidem, pp.19. 48

    Ibidem, pp.62-80. 49

    Ibidem, pp.71-72.

  • 31

    A transio do Estado de polcia para o Estado de direito significou a introduo

    de limites ao Estado, porm de limites que no eram os puros direitos individuais, mas

    as normas da lei que os tornavam efetivos na sociedade civil. Assim, a lei a vontade

    do poder, institudo pelo pacto poltico aparece como a origem dos direitos.50

    O que se pretendia era um Estado em que o predomnio da vontade do poder

    (materializada na lei) se impusesse. J havia tendido para este modelo o Estado

    absolutista ilustrado, agora diferente dele, mudara-se o conceito de lei, da vontade do

    soberano para a vontade geral. O projeto poltico liberal preocupara-se em restabelecer a

    positividade da ordem poltica restaurando o conceito de nao e resignificando o

    conceito de Estado.51

    No obstante, a todo o contedo exposto acima, existem diferenas, mas tambm

    continuidades entre a constituio do Antigo Regime e a primeira constituio liberal

    portuguesa, tais como: a religio catlica continua sendo a religio da nao princpio

    de Antigo Regime, como tambm persiste a manuteno da estrutura fiscal (forais,

    direitos banais, dzimos), beneficial (bens da coroa, comendas) ou fundiria (morgadios,

    capelas). As determinaes de 1821 ficaram servindo provisoriamente como a primeira

    Constituio portuguesa em vigor de maro de 1821 a outubro de 1822.52

    A Constituio Monrquica aponta para uma definio no geral e no

    igualitria da nao. A nao estava longe de ser um conjunto de indivduos com

    direitos homogneos, pois era diferenciada quanto possibilidade de participao na

    deciso poltica. Como ocorreu, por exemplo, nos artigos da Constituio brasileira de

    1824, especialmente, referentes s eleies quando restringe os votantes e os que

    poderiam ser eleitos. Ou seja, no momento de se falar politicamente, restringira-se a um

    grupo social que, nos seus traos sociais, no se difere muito do mundo poltico do

    Antigo Regime.53

    50

    Ibidem, p.72. 51

    Ibidem, pp.74-75. 52

    Ibidem, pp.77-78. 53

    Ibidem, pp.81-86.

  • 32

    1.1.1 A administrao da Justia no Brasil oitocentista: desafios para a

    historiografia brasileira?

    A afirmao de um poder central, capaz de exercer o monoplio da

    jurisdio sobre o territrio nacional, realizou-se atravs de um processo

    permanente de luta e negociao com determinados agentes e grupos

    sociais de bases regionais que encarnavam tendncias centrfugas, em

    grande medida condicionadas pela prpria formao social da poca,

    quando, em grande parte do nosso territrio, ainda no se fazia presente,

    claramente definido, um quadro mais dinmico de entrelaamento

    social.54

    A administrao da Justia era um dos fatores a serem organizados aps a

    independncia de 1822. O Brasil, politicamente independente de Portugal, tinha como

    desafio cunhar o governo do territrio, administrado h muito, nos moldes do

    absolutismo portugus. Para a histria poltica do Brasil muitos analisaram o papel das

    elites neste contexto. Das anlises mais recentes fica a ideia de que no somente a elite

    desempenhou um papel importante na formao do Estado nacional, mas, que as

    mudanas implementadas atingiam toda a sociedade.

    Nesse sentido, aps a independncia teve incio o que seria depois caracterizado

    como o princpio da formao do Estado. Carregada de resqucios coloniais,

    especialmente no tocante s mudanas condizentes a administrao da Justia, foi

    possvel uma relativa e necessria conciliao entre os poderes do centro e os das

    localidades, para a sustentao do Imprio e a adoo do constitucionalismo. Os debates

    travados na poca so reveladores das discordncias existentes e dos problemas que

    viriam. Porm, para a historiografia brasileira, o tema est longe de se esgotar.

    Vrios trabalhos buscaram compreender para a primeira metade do sculo XIX a

    formao, a organizao e o desenvolvimento do Estado e da Nao brasileiros. Nesse

    sentido, clssicos trabalhos de interpretaes do Brasil tiveram grande repercusso.

    Buscamos delinear abaixo alguns daqueles que de alguma forma tentaram considerar as

    condies e as respostas de adaptao social para o perodo. Na perspectiva aqui

    defendida importa localizarmos a trama que envolve os indivduos localizados entre as

    camadas com poder de influenciar decises, e como eles foram incorporados nesse

    processo de estruturao do Estado imperial.

    54

    VELLASCO, Ivan de Andrade. As sedues da ordem: violncia, criminalidade e administrao da

    justia Minas Gerais, sculo 19. So-Paulo: Edusc/Anpocs, 2004, p. 16.

  • 33

    O ponto central a considerao da gnese dos novos crculos caractersticos

    dessa sociedade, de tal maneira, a corroborar com a ideia de que a situao poltica do

    perodo possibilitou um diferente raio de ao para ambas as partes envolvidas, o centro

    e a periferia. De onde, se torna fundamentalmente importante, uma anlise da atuao

    dos novos poderes que foram institudos a partir da independncia de 1822.

    Tomando como essencial as relaes entre o Estado e estes novos poderes que

    iam surgindo e sendo criados pelo prprio, cabe observar que em meio s mudanas,

    essa sociedade conjugou antigas prticas e valeu-se de suas possibilidades. A criao

    dos juzes de paz foi exemplar neste sentido ao oferecer recursos pontuais frente a

    imposio do Estado queles detentores de representatividade local.

    Tudo isso desde a formao histrica inicial e o desenvolvimento poltico do

    Estado brasileiro foi alvo de abordagens diversas e, de uma maneira genrica, por

    meio de diferentes interpretaes, passou-se a dar maior peso s relaes desenvolvidas

    entre o poder central e as elites, ao longo do perodo imperial, em identificaes, por

    exemplo, como foram as de Ilmar Rohloff de Mattos.55

    A abordagem desse autor estabeleceu que o processo de construo do Estado

    monrquico brasileiro pode ser visto como resultado de uma dinmica social ligada

    formao de uma classe senhorial e dirigente. Essa classe foi aos poucos sendo

    identificada como a elite ascendente ao poder representada pelos fazendeiros da regio

    do Vale do Paraba fluminense e reunidos em torno dos dirigentes saquaremas, em

    meados dos anos de 1830 at o incio da dcada de 1860.

    Para Mattos a construo do Estado Imperial e a constituio da classe senhorial

    foram processos inteiramente relacionados, sendo esta uma relao propiciada pela

    interveno de uma fora social: os Saquaremas. O tempo Saquarema foi ento o

    resultado, bem como, a condio da ao saquarema, os produtores ou controladores do

    tempo.56

    Para o autor, no perodo colonial existiam duas faces: a face metropolitana

    representada pelo Reino, e a face colonial representada sob a forma da regio, esta

    ltima guardando uma resistncia prpria. A regio aos poucos se tornou o resultado da

    ao colonizadora, dos processos adaptativos dos seus agentes ao territrio americano,

    55

    MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema: a formao do Estado imperial. So Paulo: Hucitec,

    1987. 56

    Idem, p.12

  • 34

    das formas associativas de interesses face metropolitana e das representaes em

    permanente elaborao, entre as quais ganharam destaque as de grandeza e opulncia. O

    primeiro resultado da produo colonial, e agente gerador de uma opulncia, foi a

    transformao do colonizador em colono.57

    Esse processo aconteceu na medida em que, os proprietrios eram em condies

    coloniais os plantadores escravistas, e ao construrem suas individualizaes

    possibilitaram o recorte de sua regio e pareciam constituir uma classe social. Mas, ao

    mesmo tempo o isolamento das regies e dos plantadores limitava aquela constituio.

    Nas cmaras os plantadores reafirmavam os nexos complementares e contraditrios que

    os uniam aos colonizadores. Quase ao mesmo tempo, questionavam o preo do

    monoplio e reivindicavam meios para sustentar a ordem escravocrata: 58

    Fundar o Imprio do Brasil, consolidar a instituio monrquica e

    conservar os mundos distintos que compunham a sociedade faziam

    parte do longo e tortuoso processo no qual os setores dominantes e

    detentores de monoplios construam a sua identidade enquanto uma

    classe social.59

    Para Mattos, com a instalao da corte em 1808 houve o estabelecimento de uma

    subordinao, e como resultado disso, a inaugurao de uma relao distinta: o

    enraizamento dos interesses metropolitanos, ou seja, dos colonizadores no sudeste

    brasileiro. Na rea polarizada pela cidade do Rio de Janeiro foi-se constituindo o feixe

    de foras polticas concretizadoras do rompimento com as cortes portuguesas. Ligados

    ao aparelho do Estado, expandiam seus interesses, procuravam exercitar uma direo e

    impunham uma dominao, por fim, levaram a cabo o se forjar enquanto classe. Esta

    no se constituiu apenas dos plantadores, mas tambm dos comerciantes que lhes

    viabilizavam e com eles se confundiam, alm dos setores burocrticos, articulados entre

    a poltica e os negcios. Formou-se ento a classe senhorial, distinguida nesta trajetria

    por apresentar o processo no qual ela mesma se forjava no interior da construo do

    Estado imperial.60

    Para o autor a coroa tornou-se o agente propiciador de uma restaurao e de uma

    expanso dos monoplios que fundaram uma classe senhorial a garantia da unidade do

    57

    Ibidem, pp.20-26 58

    Ibidem, p.40 59

    Ibidem, p.126 60

    Ibidem, p. 50-57

  • 35

    Imprio se constitua na garantia de uma continuidade tambm. Essa unidade e

    continuidade sublinhavam a relao entre a construo do Estado imperial e a

    constituio da classe senhorial. Diferente dos plantadores escravistas, que restringiam

    sua atuao quase que ao exerccio de uma dominao nas suas propriedades, a classe

    senhorial servia-se do Estado imperial para construir a sua unidade e sua expanso.61

    Estar no governo do Estado era, principalmente, a capacidade de se exercer uma

    direo poltica, intelectual e moral. Por isso, para alguns, a busca constante em conter

    medidas liberais, como a Lei da Guarda Nacional de 1831, de elegibilidade local para os

    postos da oficialidade, ou mesmo, a do Cdigo do Processo Criminal de 1832 que

    reforava amplamente o papel do juiz de paz. Para outros, as contradies liberais,

    incapazes de evitar que a liberdade a qual defendiam fosse atrelada ao princpio da

    ordem e Monarquia. Por isso, tambm para os conservadores, o empenho em

    caracterizar os distintos poderes polticos e definir-lhes uma hierarquizao, e, por

    ltimo, o seu esforo, sobretudo, em articular diferenciao e definio, a essa poltica

    determinada.62

    Na anlise de Ilmar de Mattos, esse Estado se impunha ao restante do territrio

    atravs desta classe dominante a classe senhorial do mundo do governo. Mas, ao

    mesmo tempo, o autor no adentrou ao quadro de relaes entre estes polticos daquela

    classe e os proprietrios e elites locais de outras regies do pas. Tambm deixou de

    lado o funcionamento e a repercusso desse controle exercido pela autoridade central

    sobre as demais regies do vasto territrio.

    A reflexo de Jos Murilo de Carvalho se diferenciou das consideraes de

    Ilmar R. de Mattos. Para Carvalho, a herana burocrtica portuguesa forneceu a base

    para a manuteno da unidade e estabilidade na ex-colnia; e possibilitou ainda uma

    homogeneidade da elite poltica, treinada em Coimbra e reproduzida aps a

    independncia. Na anlise de Carvalho, o processo poltico brasileiro foi concebido por

    uma formao tardia, no sofreu grandes mudanas de governo e conservou uma

    supremacia civil. O autor ressaltou a necessidade de se analisar os envolvidos nas

    decises polticas, qual seja, a elite poltica.63

    E, diferentemente do que postulara

    61

    Ibidem, pp. 91-92. 62

    Ibidem, pp. 136-144. Mais detalhes sobre a Guarda-Nacional, e sua eleio, sob presidncia do juiz de

    paz, foram demonstrados no Captulo 2. 63

    CARVALHO, Jos Murilo de. A construo da ordem: a elite poltica imperial; Teatro de sombras: a

    poltica imperial. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2003, pp.58-59 e pp. 152-159.

  • 36

    Raimundo Faoro, a saber, a manuteno de uma elite burocrtico-patrimonial no poder,

    a elite, para Carvalho, foi marcada por distines e limites. Havia uma minoria que

    influenciava determinados processos: a elite no era um simples representante do poder

    rural e o Estado no era um simples executor dos interesses dessa classe. A elite,

    juntamente com a burocracia, no funcionava como um estamento rbitro da nao:

    A continuidade propiciada pelo processo de independncia, pela

    estrutura burocrtica e pelo padro de formao de elite de Portugal

    certamente deu ao Estado imperial maior capacidade de controle e

    aglutinao do que seria de esperar de simples porta-voz de interesses

    agrrios. Mas, em contrapartida, no havia na elite e na burocracia

    condies para constiturem um estamento nem podia o Estado ser to

    sobranceiro nao. A burocracia era dividida em vrios setores e a

    homogeneidade da elite provinha mais da socializao e do treinamento

    do que de 'status' comum e de privilgios que a isolassem de outros

    grupos sociais. 64

    Nessa discusso Carvalho enfatizou uma elite dotada de homogeneidade. Tal

    homogeneidade foi fornecida pela socializao dessa elite por via da educao, da

    ocupao e do treinamento. A burocracia se confundiu com a elite, mas se dividia

    verticalmente e horizontalmente. Para o autor era nessa cpula que Faoro pensou, ou

    seja, na burocracia poltica representante de uma parte resumida da elite poltica e de

    1% de todo o funcionalismo. Para Jos Murilo existiam setores mais representativos no

    interior deste processo, pois:

    O segredo da durao dessa elite estava, em parte, exatamente no fato

    de no ter a estrutura rgida de um estamento, de dar a iluso de

    acessibilidade, isto , estava em sua capacidade de cooptao de

    inimigos potenciais. Alm da diviso interna, outra caracterstica da

    burocracia imperial contribua para reduzir seu poder de controle e de

    direo da sociedade. Trata-se da distribuio dos funcionrios pelos

    vrios nveis de poder central, provincial e local. Essa distribuio

    acompanhava a prpria estrutura do aparato estatal e revelava, ao

    mesmo tempo, aspectos da natureza do Estado.65

    Os aspectos que afetaram a formao dessas elites ligam-se s singularidades da

    formao de classes e do Estado que se indicava. Nesse sentido, demandas centrais da

    histria vem tona, como a fase da histria brasileira de constituio deste sistema,

    64

    Idem, p. 42. 65

    Ibidem, pp. 151-152.

  • 37

    traado entre fronteiras geogrficas gigantes e reguladas por resqucios coloniais. A

    complexidade do processo de formao e constituio do Estado nas ex-colnias,

    especialmente em pases diferentes dos primeiros pases de revoluo burguesa,

    caracterizou-se por um processo de prazos temporais muito curtos. Para alguns setores,

    como na economia, existiram elementos externos e controladores dos mercados de

    exportao e participantes tambm dos arranjos polticos. Alm do fato de que, na

    Amrica do sculo XIX existiram modelos de organizao poltica que introduziram

    justificativas ideolgicas e incentivadoras de aes entre grupos polticos opostos.66

    As maiores decises polticas do perodo ps-independncia foram tomadas por

    aqueles que haviam sido educados em Portugal. Os cdigos legais do imprio foram

    redigidos por essa gerao, como o Cdigo do Processo Criminal e o Cdigo Comercial,

    e mesmo a Constituio de 1824 com suas reformas posteriores.67

    Para Carvalho a herana burocrtica portuguesa forneceu a base para a

    manuteno da unidade e da estabilidade da ex-colnia no sentido, principalmente, de

    possibilitar uma homogeneidade intraclasses dominantes e a regimes de compromisso.

    A elite portuguesa teve como poltica a reproduo na colnia de uma outra elite

    sua semelhana por meio da homogeneidade ideolgica, e com treinamento em

    Coimbra. E, principalmente, essa mesma elite se reproduziu em condies idnticas,

    aps o processo da independncia. A partir de ento, a burocracia foi o canal essencial

    para a mobilidade dessa elite estabelecida na nova situao poltica: 68

    O governo trazia para a esfera pblica a administrao do conflito

    privado, mas ao preo de manter privado o contedo do poder. Os

    elementos no pertencentes camada dirigente local eram excludos da

    distribuio dos bens pblicos, inclusive da justia. O arranjo deu

    estabilidade ao Imprio, mas significou, ao mesmo tempo, uma sria

    66

    Ibidem, pp. 13-22. 67

    Ibidem, pp. 58-59. Segundo Carvalho o Imprio durou 67 anos podendo ser subdividido em cinco

    perodos. O Primeiro Reinado entre 1822-1831 em que seu fim significou o afastamento de polticos

    ligados a D. Pedro I e a entrada de nova gerao de lderes. O segundo perodo foi a Regncia (1831-

    1840) em que a nova gerao chega ao Senado e ao Conselho de Estado, j dividida entre conservadores e

    liberais. Os prximos perodos giraram em torno de dois ministrios geralmente considerados como

    pontos de inflexo da poltica imperial. O primeiro foi o do Marques do Paran (1853), conhecido como

    Ministrio da Conciliao que significou o fim de uma fase de lutas entre liberais e conservadores

    culminando na Revoluo Praiera, ltima de grande porte do Imprio. O segundo Ministrio foi o do Rio

    Branco (1871), o mais longo do Imprio; tpico conservador modernizante, fez grandes reformas. Assim

    os cinco perodos foram: 1- Primeiro Reinado (1822-1831), 2- Regncia (1831-1840), 3- Consolidao

    (1840-1853), 4- Apogeu (1853-1871), 5- declnio e queda do Imprio (1871-1889). 68

    Ibidem.

  • 38

    restrio extenso da cidadania, portanto, ao contedo pblico do

    poder. O governo se afirmava pelo reconhecimento de limites estreitos

    ao poder do Estado.69

    Dessa forma, a ecloso dos conflitos regionais e a ligao da elite poltica aos

    agentes externos propiciaram uma conjuntura especfica e no to distantes das

    contradies ainda presentes no seio dessa sociedade. A anlise de Carvalho se

    aproximou mais do que aqui perseguimos: em consideraes que se voltem para os

    fatores sociais caractersticos de um contexto especfico, e mesmo, a continuidade de

    determinados resqucios influenciadores dos comportamentos e das mobilidades

    individuais.

    Ainda mais presentes no seio das nossas indagaes, em apreciaes mais

    recentes sobre a construo do Estado nacional brasileiro, em suas mais prementes

    complexidades, ultrapassando, enfim, aquelas abordagens sintetizadas em opor liberais

    e conservadores, burocratas e classes senhoriais, autoridade central e provincial e

    mesmo Estado e poderes locais, so as anlises de Maria Fernanda Vieira Martins e

    Wlamir Silva.

    Em abordagem sobre o Conselho de Estado, instituio to importante na

    histria da formao do Estado imperial, Maria Fernanda Vieira Martins perpassou

    inquiries que s vm a contribuir para os questionamentos dos que se debruam sobre

    o tema de como foi possvel a construo do Estado imperial estando em jogo a coeso

    da sociedade brasileira naquele perodo da nossa histria.70

    O dito rgo foi criado em 1823, com manuteno confirmada com a Carta

    Constitucional de 1824 e funcionou ao longo de todo o Segundo Reinado (1842-1889).

    O primeiro Conselho atuou junto ao imperador D. Pedro I e foi extinto no conjunto das

    medidas liberais presentes na reforma constitucional de 1834, mas sendo recriado

    depois em 1841.71

    Corria o ano de 1841. Aps o fracasso do sistema de regncias que

    havia conduzido proclamao antecipada da maioridade de dom Pedro

    II pela Assemblia Geral Legislativa, declarada em julho do ano

    anterior, era elaborado o projeto de criao do Conselho de Estado, que

    69

    Idem, p. 159. 70

    MARTINS, Maria Fernanda Vieira. A velha arte de governar: um estudo sobre poltica e elites a partir

    do conselho de Estado (1842-1889). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007. 71

    Idem, p.25.

  • 39

    reuniria poltico de vrias tendncias e origens diversas, com o objetivo

    de apoiar e consolidar a unidade nacional e a prpria monarquia..72

    Ao abordar os agentes que serviram no segundo Conselho de Estado a autora

    demonstrou as origens das prticas institucionais e os seus esforos em como conciliar

    as heranas de uma concepo poltica e administrativa de influncia portuguesa com as

    novas demandas trazidas pelo iderio liberal europeu.

    Funcionando como uma instituio estvel no seu perodo de atuao que

    somente foi encerrado com o fim da monarquia o Conselho resistiu efizcamente, visto

    que sua atuao poltica sempre excedeu as suas atribuies originais. O Conselho de

    Estado foi assim uma instncia de relacionamento entre Estado e elites traduzindo o

    pensamento do governo, mas tambm representou a adequao deste mesmo governo

    aos interesses dos grupos dirigentes e das elites presentes, objeto de pesquisa que

    permiti ento a compreenso dos espaos e limites que se davam para a execuo dos

    princpios e projetos para o pas a partir dos grupos dirigentes.73

    Para tanto a autora analisou a formao socioeconmica, trajetrias, relaes,

    redes de sociabilidades e parentesco dos membros do Conselho representados por uma

    elite dos principais grupos econmicos do pas, dos grandes negociantes e proprietrios

    de terras e escravos, contnuos a oligarquias regionais e antigas famlias influentes. Bem

    como, destacou tambm as suas participaes em instncias diversas do Estado e da

    sociedade civil para conhecimento das principais diretrizes e prioridades daqueles

    componentes, buscando suplantar os limites da Corte como espao exclusivo do poder

    imperial. Em relao s suas carreiras a autora pde demonstrar que

    Considerando-se em conjunto suas carreiras nos diversos cargos do

    Poder Judicirio, importante destacar que essa vasta experincia,

    principalmente no nvel local, lhe proporcionaria um profundo

    conhecimento da maquina da Justia bem como da prpria legislao,

    seus limites e imperfeies e a conscincia das dificuldades de faz-la

    funcionar a contento. Suas trajetrias lhes trariam amplo cabedal para a

    funo que exerceriam no Conselho de Estado, no somente no que se

    refere ao papel da instituio como tribunal de instancia superior da

    72

    Ibidem, p.23. 73

    Ibidem, p.26.

  • 40

    Justia, mas ainda por sua atuao na reorganizao e reforma

    judiciria.74

    Perante uma situao de carter imediatista frente s necessidades prementes da

    poltica do perodo as elites perseguiram a formao e o modelo constitucional em

    defesa da monarquia e da lei, sendo as inmeras reformas do perodo referncias neste

    sentido. Amplas redes polticas e econmicas ligavam assim as diversas regies

    caracterizando uma relao dinmica, entre elites governantes e poderes locais, sendo

    que o grupo que chegou a cpula da administrao imperial no era um grupo

    homogneo que teria assumido o Estado, e por isso a necessidade de se considerar uma

    pluralidade e diversidade dos interesses ali representados:

    A ao do Conselho de Estado colocou em prtica um amplo programa

    de organizao da estrutura de governo, conduzido pelas elites

    imperiais, que procurou, aps o processo de Independncia, os

    caminhos para adequao do Brasil nova ordem internacional. Nesse

    sentido, interagindo com os demais poderes. O Conselho contribuiu

    diretamente para o fortalecimento do modelo monrquico e para a

    superao das heranas coloniais permanncias de um passado

    colonial que estava ainda vivamente presente sob diversos aspectos e

    que permeava as relaes sociais e polticas, a forma de entender o

    Estado e as prticas cotidianas de controle poltico e econmico -,

    processo para o qual inegvel a influencia dos modelos tericos e das

    praticas liberais.75

    J Wlamir Silva destacou a ao autnoma das elites polticas a partir da

    formulao e contraposio de projetos polticos gestados na primeira metade do sculo

    XIX. Mais, precisamente, o autor destacou as peculiaridades, aes e idias de um

    fragmento da elite poltica brasileira na provncia de Minas Gerais. Buscando as origens

    dos membros daquela elite provincial o autor destacou, na dinmica da construo de

    um plano nacional o projeto liberal-moderado.76

    Se distanciando das anlises que tratam as crises do alvorecer do Imprio

    conectado fatores puramente econmicos, de um movimento da estrutura econmica,

    ou seja ligadas a uma classe dominante, ou mesmo quelas, ainda mais recorrentes,

    linhas de argumentao que tratam a estrutura do Estado e os padres de cultura poltica

    74

    Ibidem, p.127. Dentre as informaes disponveis para 64 Conselheiros de Estado, 29 ocuparam cargos

    no judicirio, de Juzes (de rfos, do crime, de paz, de fora), 19 foram Desembargadores das relaes, 8

    Ministros do Superior Tribunal de Justia, 6 Ouvidores e 6 Promotores, entre 1842-1887. Ver Quadro 18. 75

    Iidem, p.391. 76

    SILVA, Wlamir. Liberais e Povo: a construo da hegemonia liberal-moderada na Provncia de

    Minas Gerais (1830-1834). So Paulo: Hucitec, 2009, p.19.

  • 41

    como meras tradio herdada de Portugal. Outras vertentes, que para o autor tambm

    deixam de lado questes essenciais so as que privilegiaram o controle poltico pelas

    elites locais e conectado ao poder socioeconmico dos fazendeiros e proprietrios de

    escravos.77

    Tais anlises desconsideraram o que para o autor tem de mais peculiar naquele

    contexto de importantes mudanas da primeira metade do sculo XIX, e mesmo