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M. VIEGAS GUERREIRO os JUDEUS NA HISTÓRIA DE PORTUGAL LISBOA 1 9 6 5

os JUDEUS - fundacao-mvg.pt · Viviam na dependência directa e ... Era a casa de Deus, a escola e o lugar onde se decidia sobre ... de vexame em Que uma ou outra vez po-riam os seus

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M. VIEGAS GUERREIRO

os JUDEUSNA HISTÓRIA DE PORTUGAL

LISBOA1 9 6 5

JUDEUS. Pondo de parte, por lendária,a fama da sua vinda para a Península emtempo de Nabucodonosor, rei dos Caldeus(século VI a. C.), o que Iparece certo éque por aqui estanceavam ainda antes dosRomanos. A mais antiga notícia da existên-cia deles em território que havia de ser por-tuguês ascenda aos séculos VI ou VII d. C.,se é correcta a leitura que de duas ins-crições funerárias, descobertas em Espiche,no concelho de Lagos, fez Samuel Schwarz;aí se lêem alguns nomes de judeus. Hátextos que se lhes referem nos séculos Xe XI. No foral dado a Santarém porD. Afonso VI, de Leão, em 1095, tomam--se providências 'Para impedir o assassíniode judeus. Quando D. Afonso Henriquestoma a cidade, em 1147, encontra nela umaimportante colónia israelita. E no foraldado pelo monarca aos mouros forros deLisboa, Almada, Palmela e Alcácer (1170)não falta a menção de judeus. Foram nu-merosos, em Portugal, por' toda a IdadeMédia. Viviam na dependência directa eexclusiva do rei, que tinha sobre eles umpoder quase ilimitado. Etam seus, coisasua. D. Afonso II chamava-lhes judei 1nei.E num documento de D. Dinis lê-se: «E euquerendo-lhes fazer graça e mercee comeaaqueles que som meus quitem,ente ta1nbemos corpos come os averes deles ... » Instala-dos num lugar, logo que o seu número fossede 10 ou mais, agrupavam-se em comunida-des que tinham o nome de comunas e cujocentro aglutinante era a sinagoga. As co-munas eram constituídas por judeus 'pobres,mesteirais e homens-bons. Governava-as

um arrabi, que tinha também funçõesadministr at.ivas e legislativas, auxiliadopor vereadores, procuradores e almotacée.O máximo poder estava nas mãos de uma1-rabi-mor, de nomeação régia, que des-pachava directamente com o rei e sancio-nava a eleição dos arrabis, feita pelas co-munas. Pertencia-lhe ainda nomear cadaum dos ouvidoree que, em tempo de D. Di-nis, superintendiam no governo de cadauma das sete comarcas em que o Reinofoi dividido. As causas entre judeus eramjulgadas pelo arrabi da com una ou peloalmotacé. Destes se apelava para o ouvi-dor ou arrabi-mor e daqui para a justiçade el-rei. Em qualquer dos casos observa-vam-se as Ieis hebraicas. As causas entrejudeus e cristãos eram julgadas por juizesisraelitas, quando o cristão fosse autor, epor juízes cristãos, se réu, respeitando-senisto o antigo 'preceito de que o autor de-via seguir o foro do réu. Com D. Afonso Ve depois, as cíveis continuavam a ser jul-gadas por juizes israelitas, quando o cris-tão era autor, mas nas criminais respon-dia-se sempre perante magistrados cris-tãos. Por lei de D. Afonso III os judeusnão podiam ser procuradores nem advoga-dos em pleito de cristãos. Os judeus ins-talavam-se em bairros chamados [udarias,hoje [udiarias. Davam para os bairroscristãos, como convinha aos modos de vidapt-incipalmente urbanos de seus ocupantes.Ficavam, por isso, dentro das muralhas, esó fora delas quando o casa rio cristão asultrapassava. Não se pense, em todo o caso,que estes bairros eram homogéneos e bem

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distintos do aglomerado cristão. As casasque os constituíam, propriedade dos reis,da coroa ou de particulares, a quem asaforavam ou arrendavam, formavam ruelasestreitas e sinuosas, do mesmo tipo dascristãs e com elas se entrecruzavam. AtéD. Pedro I as judiarias comunicaram aber-tamente com as ruas de cristãos; com esterei, e daí em diante, fecharam-se todosos acessos e foram colocadas portas paraevitar tal comunicabilidade. Lisboa e Portopossuíram as principais judiarias do País,mas foram igualmente importantes as deLamego, Santarém, Benavente e Évora.Os judeus tinham liberdade de praticar osactos do seu culto dentro da judiaria. Fa-ziam-no na sinagoga. Era a casa de Deus,a escola e o lugar onde se decidia sobreos diversos assuntos da comunidade. Nãose arriscaram nunca a pregar o judaísmofora do seu grupo, nem isso estava nospreceitos da sua lei. Povo eleito de Deus,só a ele competiam as práticas da religiãohebraica, e era mercê destas e de sua vir-tude que Deus havia de conceder-lhes oprometido reino de 'paz e felicidade de quef'ruiria depois toda a humanidade. Comeste desinteresse proselítico concorria, po-rém, da parte dos cristãos, uma zelosaacção apostólica. Tinham os hebreus deouvir, na sua própria sinagoga, periódicossermões evangélicos e ainda os obrigava alei a iguais lições dadas nos adros dasigrejas. É certo que pouco ou nenhum pro-veito resultou deste zelo religioso; os he-breus raramente abjuravam da fé de seusmaiores. A relativa tranquilidade e auto-nomia de que desfrutavam, mercê da pro-tecção real, custavam-lhes caras. Eramsem número os tributos que pagavam, semcontar com obrigações várias, colectas eempréstimos extraordinários. Aqui se su-mariam alguns: capitação, que começavalogo aos 7 anos; impostos sobre bens imó-veis e mercadorias de colheita ou compra-das, sobre animais abatidos, sobre bestas,gados e colmeias; portagens, passagens ecostumagens; sisa judenga; algizas da ju-diaria de Lisboa; o genesim, para poderemouvir a seus rabinos a explicação da Lei;a judenga ou capitação de 30 dinheiros, emlembrança e castigo de terem vendido a J e-sus 'por este preço; e a contribuição doarabiado. Entre muitas obrigações, estas:no reinado de D. Sancho II davam «húubóó Calavre novo de Ruela e húa amcora»por cada galé que el-rei lançasse ao mar;ajudavam a reparar pontes, calçadas emuros ; eram obrigados a dar pousada aorei, a grandes senhores e justiças; e atéa serviço militar, sob o 'rei D. Pedro, aindaque mal se desempenhassem dele. E, comose tanto não bastasse, ainda as autoridades

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eclesiásticas os obrigavam a pagar dízimaà Igreja, uma vez por outra, e apesar doseu bom argumento de que não eram cris-tãos. Ameaçados de perseguições e expul-são, que os poderiam afastar de todos osseus bens imóveis, e ainda de confisco eperda dos mesmos, por causa do ódio rá-cico e religioso e da competição económica,não convinha aos sectários de Moisés apli-carem-se a modos de vida dependentes depropriedade imobiliária; daí a sua activi-dade essencialmente mercantil, monetáriae profissional. Foram os mais deles comer-ciantes, usurários, rendeiros, funcionáriospúblicos, físicos e cirurgiões, alfaiates, ou-rives, ferreiros, sapateiros, tecelões, curti-dores, tintureiros, armeiros, para não citarsenão os ofícios em que principalmente seocupavam. Exerciam o comércio dentro efora da judiaria, e era vê-los a comprare a vender nas praças públicas, nas feirase mercados, de monte em monte, com almo-creves cristãos, no seu negócio de adqui-rentes dos produtos da terra, ou de ven-dedores de panos e outras coisas menores.Esta sua operosidade mercantil em maisde uma ocasião prejudicou o comérciocristão, sobretudo com o surto de de-senvolvimento que esta actividade econó-mica tomou a partir dos Descobrimentos.Geraram-se então rivalidades graves en-tre judeus e cristãos e com frequênciaelas estiveram na base de medidas jus-tas e injustas promulgadas contra a gentede Judá e dos desmandos e violências quesofreu, embora quase sempre se invocas-sem razões de carácter religioso. Entre asdisposições que dificultavam as transacçõesisraelitas, sem falar nos pesados encargosdo fisco, contavam-se, por exemplo, as com-plicadas formalidades legais a que tinhamde sujeitar-se os contratos escritos de com-pra, venda, troca, renda, aforamento ouparceria. E tudo com a desculpa de acau-telar os cristãos da usura ou malícia ju-daica. Dedicavam-se igualmente os judeusao comércio externo; e ainda aqui se pre-tendeu eliminar a sua perigosa concorrên-cia, com queixas formuladas em cortes; atal porém nunca se atendeu. A usura foimodo de vida a que também muitos se en-tregaram. As próprias leis talmúdicas aconsentiam e regulamentavam. Condenadapela Ig-reja aos cristãos e ora proibida oratolerada, sob condições, aos judeus por leisreligiosas e de Estado, nunca a onzena dei-xou de praticar-se. Nem de outro modopodia ser num país em que se usava amoeda. E cada vez mais, à medida que aeconomia monetária ia substituindo o an-tigo sistema de trocas. O progresso docomércio exigia o recurso à banca judaicae dela se serviam igualmente os negocian-

tes em situação de aperto, a coroa, os no-bres, o povo, sob forma de penhores, e, oque é mais para admirar, as próprias cor-porações eclesiásticas. Tradição, princípios,legalidade soçobravam ante as necessidadesimpostas 'pelos novos rumos da vida sociale económica. Muitos foram os litígios nas-cidos dos opressivos juros hebraicos ouda insolvência abusiva de cristãos, prote-gidos pelos poderes públicos. Os documen-tos das 'Chancelarias estão cheios de quei-xas recíprocas, e, com benefícios maiorespara cristãos, não deixam, no entanto, deser ouvidos O'S judeus, que com o seu di-nheiro desempenhavam, por esse tempo, pa-pel de relevo na vida nacional. Peritos naaquisição e administração de capitais, aeles tiveram ainda de recorrer a coroa, anobreza e mesmo o clero, não só como ren-deiros de seus direitos, mas também comoadministradores de bens. É de imaginaro rigor com que procederiam e a situaçãode vexame em Que uma ou outra vez po-

riam os seus executa-dos. E sobretudo noque respeitava à Igre-ja, que, com desprezopelas prescrições dodireito canónico, su-jeit ava os cristãosà hu m il h a ç ã o ju-daica; e a tal pontoque chegou a con-sentir que hebreusentrassem nos tem-plos à hora da missae, celebrada esta, aímesmo cobrassem osimpostos. Disso selamentaram O'S povos

.: em cortes e a prela-Judeu-azulejos de S. Vi- dos, mas sempre com

cente de Fora pOUCO êxito. Vemo--Ios assim desempe-

nhar altos lugares na Fazenda, entre O'S

quais sobressai o de almoxarife-mor doReino, no Qual tomaram assento sobD. Afonso Henriques, D. Dinis, D. Pedroe D. F'ernando. E, apesar das .proibiçõesde D. Duarte e de D. Afonso V, D. João IIainda os tinha como seus agentes fiscais.Além das ocupações financeiras de suapredilecção, muitos foram O'S judeus quese dedicaram a ofícios mecânicos. Forma-vam um corpo artcsanal de grande volumeno quadro económico da Nação, e de talmodo importante, com O' desenvolvimento docomércio e da indústria, que cidades e vi-las do País se viam obrigadas a contratá--los por ricas mensalidades e 'privilégios.Parece que a todos preferiram o mester dealfaiate, logo seguido do de ourives, fer-reiro e sapateiro. Num inventário feito se-

bre documentos que vão de 1439 a 1496achámos O'S números de 58 alfaiates, 41ourives, 34 ferreiros e 17 sapateiros. Aagricultura foi labor que pouco os atraiu,pelas razões já expostas. Ainda assim, te-mos menção deles corno donos de prop rie-dades ; mas há-de notar-se que poucos fo-ram O'S lavradores delas, trabalho que dei-xavam a assalariados cristãos. E comonota final a seus modos de vida e inte-resses mencionaremos ainda ciências e ar-tes a que muito se deram, como a medi-cina, a astronomia e a astrologia. Foramos médicos mais notáveis do seu tempo eos preferidos por reis e grandes senhores.No mesmo inventário prof issional há poucocitado contam-se O'S nomes de cerca de trêscentenas de físicos e cirurgiões. Como as-trólogo ficou célebre o de D. Duarte, mes-tre Guedelha, e foi a um astrónomo ju-deu, o famoso Abraão Zacuto, que a ciên-cia náutica portuguesa ficou devendo astábuas de declinação solar. A solidariedadejudaica, em tantas circunstâncias manifes-tada em face da hostilidade dos cristãos,nem sempre se observou dent ro das judia-rias. Antagonismo de classes, mesquinhosinteresses ,pessoais, rivalidades e indisci-plina social trouxeram mais de uma vez aperturbação a esses pequenos estados. Mastudo isso nada era em comparação com osproblemas que suscitava a convivência comcristãos. Outras e muitas razões de con-flito se somaram aqui, e tão poderosas egraves que acabaram por subverter O' jámelindroso mas possível equilíbrio socialde séculos. Judaísmo e cristianismo eramreligiões inconciliáveis. O Deus uno e únicoda primeira não admitia a plural idadecristã do mistério da Santíssima Trindade.Cristo não !podia ser filho de Deus. Estemundo não era necessàriamente mau. Oreino de Deus começaria na Terra parase consumar eternamente no Céu. Corpoe espírito não eram realidades antinómi-cas, mas complementares: o corpo invólu-cro divino da alma. Deus mandaria aomundo um messias 'para repor Israel nasua antiga pátria e seria pelo exemplo deIsrael que a humanidade se redimiria. Dousreinaria, então, sobre toda a Terra. Ne-gam-se, como se vê, princípios essenciaisdo cristianismo, que os judeus considera-vam como ramo espúrio do judaísmo euma religião de idólatras. O antagonismoera, portanto, absoluto e não havia lugarpara tréguas. Contra O' judaísmo se levan-tou, por isso, o poder dialéctico dos douto-res da Igreja e por todos os meios, dosescritos às !pregações, se combateu a reli-gião hebraica. De feição apologética deinício, O' antijudaísmo 'passou a agir de

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modo compulsivo depois que o cristianismose tornou religião do Estado, do século IVem diante. Mas há-de dizer-se que a posiçãoda Cúria .Romana foi normalmente de tole-rância e compreensão para com os Israeli-tas. Já assim não sucedeu com a baixa ele-rezia, nas mãos da qual o anti-semitismose converteu muitas vezes em doutrina domais puro e repugnante ódio. E ao fana-tismo de frades e clérigos se associou tam-bém este ou aquele prelado e a pena lúcidae perversa de alguns letrados. Fizeram-secontra os judeus muitas e gravíssimasacusações, legítimas algumas, mas as maisdelas fantásticas e infames: a) tinham as-sassinado Jesus e Deus espalhara-os pelomundo, para castigo exemplar de seu exe-crando crime; b) crucificavam criançascristãs em lembrança do assassínio e be-biam-lhes o sangue; c) açoitavam imagensde Cristo e profanavam as hóstias consa-gradas; d) tinham parentesco com o Diabo;e) usavam da usura para humilhar e em-pobrecer os cristãos; f) eram uma raça detraidores e apátridas, de idólatras e sodo-mitas, impura, intocável, cujo contacto pu-nha em perigo a pureza dos costumes e aintegridade da Fé. Esta uma pequena partedo requisitório. Assim se foi criando, aolongo dos séculos, um tipo ideal de judeuintrinsecamente mau e fisicamente repug-nante. Era necessário, portanto, evitar omais possível o convívio com a gente odiosa.Nisso se empenhou a Igreja, com algumapoio do poder temporal. O Concílio de La-trão (1215) deliberou que os Hebreus usas-sem trajo que os distinguisse dos cristãos.A medida, porventura promulgada porD. Afonso IH, não se executou e nem D. Di-nis fez caso dela. Parece que foi D. Afon-so IV quem a fez cumprir. Tinham de usarum sinal amarelo no chapéu e de cortaros cabelos à tesoura - acabavam as gade-lhas. Surgiam, assim, entre nós, os chama-dos judeus de sinal, publicamente expostoa escárnio e zombaria, Com D. Pedro sãocompelidos a trazer uma estrela de panono peito e D. João I ordena que seja ver-melha e de seis pontas. A disposição nãofoi, no entanto, regularmente respeitada.Outra determinação tomada para restringira conversação de cristãos com hebreus foi ade fechar as [udiarias, Publicou-a e pô-laem efeito D. Pedro 1. Mas, tal como acon-tecia com a do sinal, também esta teve rea-lização deficiente. As judiarias encenavamas suas portas, mas havia casas de judeusque as tinham abertas para as dos cristãos.E, se não portas, janelas a meia altura poronde se fazia o comércio. O horário de en-cerramento nem sempre se cumpria, e me-nos o do recolher. As queixas caíam no Paço

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e em cortes, em regra com fundamento re-ligioso, mas as mais das vezes estava bemclaro, por detrás delas, o interesse materialdos comerciantes burgueses prejudicadopela concorrência judaica. O grande danoque vinha para a alma da convivênciacom judeus já fundamente se calava quan-do as justiças de el-rei e grandes senhoresse aposentavam em casas de judeus. E aimpostura subia de ponto com reclamaçõesde cristãos por se lhes aboletarem em casajustiças e senhores. Tinham-no por vexamee consideravam sem razão «que o livrefosse servo e o infiel isento». Os monarcaacudiam com novas ordens, que mal seobservavam, e iam, por outro lado, conce-dendo licenças a judeus para viverem forados seus bairros. Ainda para separar asgentes dos dois credos se recorreu a outrosexpedientes: a) regulamentou-se a entradados judeus em casa de mulheres cristãs ea destas nas judiarias; b) os hebreus nãopodiam beber vinho em tabernas de cris-tãos; c) proibiu-se-lhes terem servidores eescravos cristãos; d) e terem ajuntamentocarnal com cristãs, sob pena de morte paraambos os infractores. Estas, como outrasprescrições, tiveram imperfeita execução. Ecomo se havia de pôr regra à comunicaçãode dois povos que a todo o momento eramobrigados a conviver? Comerciavam entresi, iam os hebreus a casa dos cristãos ven-der e coser panos, amprcatavam-lhes dinhei-ro, construíam-lhes as habitações, cuidavamdeles na doença e até lhes adivinhavam ofuturo. Gente que mal se distinguia dacristã, que falava a mesma língua e ven-cida de iguais tentações, que admira que,em períodos normais de paz, livres da ex-citação doutrinária, se tenham estabelecidocom ela relações de simpatia e amizade,com todas as consequências daí resultantes?Nem a pr ivança amiga de clérigos e ju-deus se pôde evitar. E que outra sortehavia de ter uma lei dirigida contra umtipo humano mais abstracto do que real,mais forjado pelo ódio e pela cobiça doque por juízo sereno e justo? Como lhe nãohavia de escapar, no natural devir social,uma realidade diferente? E podia o rei,que precisava deles, molestá-los sem me-dida? Isto não quer dizer que se não te-nham dado incidentes de gravidade entrea gente dos dois cultos. De poucos, porém,temos notícia. Aqui se mencionam dois,para exemplo: costumavam os cristãos deLeiria, em temp-o de D. Fernando, assaltare roubar a judiaria em dias de Quinta eSexta-Feira Santas; o monarca pôs cobroa tal desacato. E distúrbio mais sério foieste que se deu sob o governo de D. Afon-so V: as justiças açoitaram uns moços que

haviam maltratado judeus na Ribeira deLisboa. O povo miúdo amotinou-se e, aosgritos de «mattalos e rouballos», correu àjudiaria, onde pilhou, zurziu e matou al-guns israelitas que lhe resistiram. O so-berano mandou executar os supostos cul-pados. Mas o anti-semitismo não afrouxa,robustecido de dia para dia pelo antago-nismo crescente entre a finança judaica ea cristã. Os maus tempos de D. João IIe a tragédia da expulsão aproximam-se,Por edicto dos Reis Católicos, Fernandoe Isabel, de 31 de Março de 1492, são osJudeus obrigados a sair de Espanha ou aconverter-se ao cristianismo, sob pena demorte e de confisco dos bens. Repetiam-seos desmandos de 1391, por via dos quaisse abrigou entre nós uma multidão de ju-deus, fugida ao. assassínio, à violação e aoroubo. D. João II abriu-lhes as portas doReino, com a mira nos lucros que daí lheviriam; paga riam 8 cruzados por cabeçaem troca de salvo-conduto para aqui residi-rem nos oito meses que mediariam entrea chegada e a partida e os insolventes se-riam reduzidos à escravidão. Uma turbaavaliada em cerca .de60 .00.0 almas atra-vessou a fronteira; uns com dinheiro, ou-tros sem ele, sujeitos ao rigor da lei. Ostrabalhos que passaram são memoráveis:demoraram os barcos prometidos : em vezde liberdade de destino, só portos de de-sembarque no Norte de África, e aindaaqui apenas Arzila e Tânger; iam sofrendopelo caminho os maus tratos da marinha-gem e lá os dos Mouros. Muitos preferi-ram ficar, apesar da condição de escravos.E, para cúmulo <la desgraça, arrancou-lheso rei os filhos menores, que, depois de bap-tizados, seguiram para S. Tomé a fim depovoarem a ilha como bons cristãos. D. Ma-nuel mostra-se clemente com os hebreusmal sobe ao trono : <lá liberdade aos queD. João II escravizara. Mas a inicial bene-volência acaba quatro anos depois. O reimanda, por Decreto de Dezembro de 1496,que saiam do País, antes do fim de Outu-bro do ano seguinte, com ameaça de mortee confisco' dos bens, todos os judeus quenão quisessem baptizar-se. O decreto invo-cava raZÕES religiosas, mas parece que foicondição imposta a D. Manuel pelos ReisCatólicos para que se casasse com sua fi-lha Isabel. O que, em todo o caso, não es-tava no propósito do monarca era mandá--los embora. A economia da Nação não de-via sujeitar-se a tão rude prova.' Fingindoque os expulsava, tomou as mais cruéise perversas medidas para os reter noReino. Mandou tirar aos pais os filhosmenores de 14 anos e deu-os a educar a

cristãos. Reduziu a um, o de Lisboa, ostrês 1P0rtos por onde havia de escoar-sea massa israel ita, e ainda aqui lhe nãoacudiu com os navios indispensáveis. CQII1-centraram-se, apesar de tudo, no Paláciodos Estaus, no Rossio, mais de 20000 ju-deus. Tentou o. rei que se convertessem pelapersuasão e logo se resolveu a smpregara força. A água do baptismo a todos caiusobre a cabeça, a poder de empurrões, degolpes e espancamentos. Acabavam, destemodo, ,por decisão do rei e durante séculos,os judeus em Portugal. Ficavam os con-verso? ou cristãos-novos. De sua trágicahistória pode o leitor tomar conta lendo,neste dicionár-io, os artigos sobre cris-tãos-novos e Santo Ofício, Tribunal do.

Rua da Judia ria. em Castelo de Vide

Judeus propriamente ditos só tornarãoa Portugal <los meados do século XVIIIem diante, e sobretudo depois das re-formas de Pombal (1773, 1774), queacabam com a distinção ventre cristiios--novos e crieiãoe-celhoe, e da extinção doTribunal do Santo Ofício (1821). São <les-cendentes dos judeus de desterro de Por-tugal e outros, que nos vêm de toda a parte,e muitos de Marrocos e· Gibraltar, Insta-Iam-se no continente e nas ilhas adjacen-tes; Lisboa, Porto, Faro e Ponta Delgada

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são centros preferidos de imigração. Em1928 já se pratica regularmente o cultojudaico em sinagogas existentes nestas ci-dades. Em suma, a religião hebraica, comos preceitos éticos, políticos e económicosque se lhe associavam, impunha ao povoque a praticava a formação de um agre-gado social independente no seio das na-ções em que tinha de viver. Constituíam,assim, os nossos judeus medievais um pe-queno estado, com estatuto próprio, dentroda nação portuguesa. Estado sem territó-rio real, é certo, mas vivendo, iPor seumessianismo, na irreprimível esperança deo vir a ter um dia. Tendo de viver entrecristãos, cujo Deus eram acusados de as-sassinar, em tempos de funda superst.çãoe fanatismo, não admira que tenham sus-citado ódio, que mais de uma vez se haviade cevar na sua carne. Quer empunhandoarmas de abominável vingança, quer mani-festando ilustrada antipatia, não houveclasse que os não subestimasse, até a dosseus protectores. O Judeu era para todoso protótipo do mal, o assassino de Je us,o astroso que só não traía ou enganavase não podia. Isso se lê em documentos, naeloquência das letras e nas marcas inde-léveis da tradição. Eram coisa ruim masindispensável à vida dos Estados. A dou-trina e a prática divergiam com compro-missos Espiritualmente contraditórios. A in-tolerância era forçada a er tolerante, enessa negação tiveram de embarcar as pró-prias autoridades eclesiásticas. Um relativorecalcamento de sentimentos e instintos,ainda muito maior do lado dos judeus: opovo eleito e santo a ter de submeter-sea idólatras e às mais pungentes humilha-ções. Mas o instinto de sobrevivência atudo obriga e na condição humana nãofalta simpatia, amor e desejo de paz quese sobreponham como pesados montes àmagma inflamável dos impulsos de repre-sália, É evidente que, revolvida e postaem ebulição, mais de uma vez, foi capazde destruir as super iores estruturas. Nabase desta malquerença estavam motivosde vária ordem: uns, religiosos, de queninguém tinha culpa; outros, humanos, deque todos eram responsáveis, Do lado dosjudeus: orgulho religioso e rácico; inso-ciabilidade voluntária, com repúdio decasamentos sxogâmicos ; usura por vezescruel, e até supostamente legítima, dadoque se exercia com gente de uma fé falsa,com os maus, contra o povo opressor; umaimpossibilidade de sentir como seus os pro-blemas nacionais alheios. Do lado dos cris-tãos: um mesmo desprezo religioso e oacervo de todas as violências e injustiçasa que conduziu a sua situação de povodominador. Misturam-se crenças, ideias e

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interesses, mas estes últimos são, as maisdas vezes. a força propulsora dos factos,embora se velem de pretextos admissíveis,principalmente confe ionais. Nem todasas classes cornparticipam, porém, com amesma responsabilidade nos graves des-mandos que o anti-semitismo provocou. Opovo miúdo que roubou, violou e matoufoi instrumento cego nas mãos de fradese clérigos fanáticos. A burguesia endinhei-rada, sob a pressão dos interesses, tê-lo-iaigualmente incitado às mais repugnantesacções. Os 'reis e os nobres protegiam osperseguidos, castigando os crimino os, oulavavam as mãos como Pilatos, quando nãoencolhiam os ombros, com visível aprova-ção do castigo que a gente ruim merecia.O de que se não deve duvidar é que au1Taia-miúda de servos, adscritos e assa-lariados, em voz nos concelhos nem di-reito de cidade, não tinha de defende!" ca-pitais ameaçados nem de se vingar de de-sumanas extorsões fiscais; sua actuacâoteria sido quase só policial e repressiva,ainda que no pior dos sentidos. Cobiça einveja também, desejo torvo de se aliviarda opressão dos grandes, contra os quaisnada podia, tomando como vítimas os in-defesos judeus? É possível que um poucode tudo isso. Em todo o caso, e fora umou outro período de perturbações, os ju-deus viveram com relativa tranquilidadeem Portugal durante a Idade Média.

[M. v. G.]

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