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1 Fernando Andreoni Vasconcellos OS JUÍZES CRIAM TRIBUTOS Pontifícia Universidade Católica do Paraná Curitiba, Outubro de 2003

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Fernando Andreoni Vasconcellos

OS JUÍZES CRIAM TRIBUTOS

Pontifícia Universidade Católica do Paraná Curitiba, Outubro de 2003

2

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ

CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS

CURSO DE DIREITO

OS JUÍZES CRIAM TRIBUTOS

Monografia apresentada à Banca Examinadora da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, como exigência parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito, sob a orientação do Professor Dalton Dallazem.

CURITIBA 2003

3

Aos meus pais, pelo amor de todos os dias.

4

“... porque qualquer homem, mesmo perfeito, entre os homens, não será nada, se lhe faltar a sabedoria que vem de Vós”. (Oração de Salomão para obter sabedoria – Sabedoria 8.9).

5

SUMÁRIO

RESUMO...............................................................................................................

07

1. INTRODUÇÃO.................................................................................................

08

2. FRIEDRICH MÜLLER E A CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO........................

2.1. NORMA E TEXTO DA NORMA.......................................................

2.1.1. A norma jurídica para Friedrich Müller e as fontes do Direito...................................................................................

2.2. NORMATIVIDADE, PROGRAMA DA NORMA E ÁREA DA

NORMA – DEFINIÇÕES TALHADAS POR MÜLLER......................

2.2.1. Normatividade......................................................................2.2.2. Programa da norma.............................................................2.2.3. Âmbito da norma..................................................................

2.3. ROBERT ALEXY E SUAS CRÍTICAS À TEORIA DE FRIEDRICH

MÜLLER...........................................................................................2.4. PAULO DE BARROS CARVALHO E FRIEDRICH MÜLLER:

SIMBIOSE FACTÍVEL OU DOUTRINAS HETEROGÊNEAS?.........

11

11

14

16

161820

22

26

3. O PERCURSO GERATIVO DE SENTIDO DE PAULO DE BARROS CARVALHO..................................................................................................

3.1. A PROPOSTA SEMIÓTICA DE PAULO DE BARROS CARVALHO

PARA INTERPRETAÇÃO DO DIREITO...........................................3.2. ENUNCIADO COMO SUPORTE FÍSICO DAS SIGNIFICAÇÕES

JURÍDICAS – ÍNICIO DA INVESTIGAÇÃO......................................3.3. DA LITERALIDADE TEXTUAL À SIGNIFICAÇÃO EM ESTADO

PROPOSICIONAL...........................................................................

3.3.1. Fórmulas atômicas e fórmulas moleculares: Um paralelo com a lógica formal..............................................................

3.4. MÍNIMO IRREDUTÍVEL DE MANIFESTAÇÃO DO DEÔNTICO

COMO CONJUNTO ARTICULADO DAS SIGNIFICAÇÕES PRESCRITIVAS...............................................................................

3.5. A PRÉ-COMPREENSÃO MULLERIANA SOB A ÓTICA DE PAULO DE BARROS CARVALHO...................................................

30 30 31 34 37 39 40

6

4. OS JUÍZES CRIAM TRIBUTOS?.................................................................

4.1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS...........................................................4.2. O INÍCIO DA CONTROVÉRSIA – POSSÍVEL DESLINDE

LINGÜÍSTICO...................................................................................4.3. DIREITO TRIBUTÁRIO – O ÁPICE DO APEGO AO SINTÁTICO...4.4. CRIAR, CRIAÇÃO E CRIADOR.......................................................4.5. A CONCREÇÃO DO DIREITO E A DUALIDADE DA NORMA EM

GERAL E ABSTRATA E INDIVIDUAL E CONCRETA.....................4.6. O SISTEMA CONSTITUCIONAL TRIBUTÁRIO E AS

EXIGÊNCIAS FISCAIS.....................................................................4.7. OS JUÍZES CRIAM TRIBUTOS!.......................................................

44

44

444851

53

5559

5. CONCLUSÕES.............................................................................................

64

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.....................................................................

67

7

Fernando Andreoni Vasconcellos E-mail: [email protected]

RESUMO

O trabalho aqui apresentado é na realidade o cotejo de duas doutrinas

aparentemente antagônicas: a de Paulo de Barros Carvalho e a de Friedrich Müller. Para tanto, busca-se identificar pontos congruentes nas duas obras, sendo a produção da norma jurídica o local de maior proximidade. Tanto o Professor da PUC/SP e USP como o Professor de Heidelberg, tratam com acuidade o tema, merecendo destaque os pormenores de cada proposta. “Programa normativo, âmbito normativo, norma de decisão e normatividade em Müller; o “trânsito entre a literalidade textual, passando pelo conjunto de significações dos enunciados prescritivos até alcançar o domínio articulado das significações” em Paulo de Barros Carvalho. Estas investigações científicas são examinadas ao escopo de se vislumbrar um método jurídico hábil a descrever o Direito Tributário como fenômeno, cuja chancela da Constituição se mostra imperiosa. Chega-se à conclusão de que a realidade fática afasta os dois autores em suas conclusões, tendo a expressão que dá título ao trabalho uma factível ressonância na Constituição quando justificada sob a ótica de Friedrich Müller. A resposta para a pergunta colocada no título enfrenta dois desfechos. Na busca pela síntese, seja o deslinde lingüístico, seja o substancial, encontrarão no Judiciário o local apropriado para a construção constitucional do conceito de tributo.

8

1. INTRODUÇÃO

Se Geraldo Ataliba estiver certo e o Direito Tributário realmente se forma

em torno do conceito de tributo, constitucionalmente pressuposto,1 as linhas

escritas por Friedrich Müller nos oferecerão instrumentos preciosos para se

realizar a vontade da Constituição em matéria tributária, diante das sempre

singulares relações jurídico-tributárias.

O Direito Tributário se mostrou um campo fértil quando se pretende manejá-

lo à luz da Teoria Geral do Direito. Paulo de Barros Carvalho, forte nesta

constatação, elaborou sua regra-matriz de incidência, buscando, essencialmente,

em Lourival Vilanova, Hans Kelsen e Carlos Cossio seus fundamentos

doutrinários.

A regra-padrão de incidência, norma geral e abstrata que é, apoiou-se na

idéia de que “tributo é norma”,2 vale dizer, “na norma de tributação se contém o

tributo”,3 ou melhor, “a norma em sentido estrito será a que prescreve a

incidência”.4 A norma geral e abstrata, por tudo isso, encontrou em Paulo de

Barros Carvalho sua glorificação na seara tributária. O tributo seria, pois, a norma-

padrão de incidência saturada com preceitos legais, longe de qualquer

singularidade do caso concreto.

Pareceu-nos, todavia, que a abstração presente na regra-matriz de

incidência não teria o condão de representar uma entidade tributária, importa

dizer, o tributo constitucionalmente pressuposto não deveria se apresentar ao

contribuinte numa abstração que foge das particularidades do caso concreto. Uma

abstração como tributo não se coadunava, pois, com uma proposta de máxima

efetividade da Constituição.

1 ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. 2001, p. 37. 2 VIEIRA, José Roberto. IPI - A Regra-Matriz de Incidência. Texto e Contexto. 1993, p. 70. 3 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Teoria Geral do Tributo e da Exoneração Tributária. 2000, p. 105. 4 CARVALHO, Paulo de Barros. Fundamentos da Incidência. 1998, p. 80.

9

Friedrich Müller, noutra banda, propôs uma teoria que valoriza a realidade

fática na feitura da norma jurídica, contrariando autores como Paulo de Barros

Carvalho, Norberto Bobbio e Robert Alexy que vêem a norma como proposição

(ou conjunto de proposições), i.é, como uma proposição que é a significação do

enunciado.5 Em Müller, podemos dizer, os reflexos dos imperativos

constitucionais, no caso concreto, são destacados. Os argumentos ventilados

como supedâneo da frase que dá título ao estudo foram colhidos, em grande

parte, na obra de Friedrich Müller.

A expressão os juízes criam tributos, a qual possui uma poderosa carga

emotiva, no presente trabalho, visando ao convencimento do leitor, valeu-se da

“teoria estruturante da norma jurídica” de Friedrich Müller para lograr êxito em seu

intento, importa dizer, pretendeu-se demonstrar que a assertiva não viola a

Constituição, ao contrário, a consagra. Sem desprestigiar a regra-matriz de

incidência, a qual “representa mais uma primorosa contribuição do jurista Paulo de

Barros Carvalho à doutrina do direito tributário”,6 deslocamo-na no fenômeno da

definição do tributo: não será o centro, mas sim, uma de suas partes. Tendo os conceitos como seletores de propriedades, compreenderemos

que o tributo haverá de ser definido pela lavra do juiz, dentro de sua competência

constitucionalmente estabelecida. Valoriza-se, com esta empreitada, a postura do

Judiciário enquanto base de apoio do Estado de Direito, sem contudo esvaziar a

dignidade normativa dos enunciados positivados. Tratar-se-á, pois, da

“constitucionalização do tributo”, melhor dizendo, “da exigência fiscal”.

Não se estará negando a existência de exigências, pelo fisco, a título de

tributo, longe disso, estas não só existem como encontram respaldo nas

prerrogativas do produto legislado. No entanto, não há como confundir tributo com

exigência fiscal, porquanto esta é engendrada pelo legislador infraconstitucional e

aplicada de ofício pela Administração Fazendária; o tributo, a seu turno, é talhado

com os substratos do caso concreto e com a incidência de valores constitucionais

tributários, os quais poderão ser manejados pela pessoa do juiz.

5 SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Lançamento Tributário. 2001, p. 35. 6 FERREIRA JARDIM, Eduardo Marcial. Dicionário Jurídico Tributário. 2000, p. 148.

10

Alterar terrenos sedimentados, temos consciência, é missão ingente,

principalmente quando se analisa autores de escol. No entanto, não nos

intimidaremos.

A espinhosa tarefa de confrontar duas grandes doutrinas merece a ressalva

exposta por Artur de Almeida Tôrres ao comentar a polêmica entre Rui Barbosa e

Carneiro Ribeiro, em torno da redação do projeto do Código Civil de 1916.

Permitimo-nos acrescentar um “não” na expressão insculpida pelo filólogo, a qual

terá especial repercussão em nosso trabalho: “Abalançando-nos a tão árduo

empreendimento, esperamos também que ‘não’ nos julguem, com a mesma

elevada intenção com que procuramos julgar os dois grandes mestres”.7

A nossa pretensão, vale lembrar, será alcançada acaso a expressão posta

no título, com os esforços retóricos empreendidos, seja aceita pelo leitor, apenas

com as ressalvas metodológicas por nós apresentadas.

Por derradeiro, apenas uma lembrança de caráter metodológico: neste

trabalho, em obséquio ao rigor científico, mantivemos no corpo do texto algumas

citações em língua espanhola, por entendermos que problema algum terá o leitor

na compreensão da mensagem pretendida. Quanto à língua francesa, cumpre

esclarecer que toda referência, sempre em nota de rodapé, atinou à uma idéia

parafraseada no corpo do texto, sendo que a transcrição no idioma original serviu

como supedâneo ao texto já exarado. A homenagem oferecida aos mestres

estrangeiros, com um itinerário deste jaez, se nos afigura suficiente a justificar a

manutenção das citações na língua de origem.

7 TÔRRES, Artur de Almeida. Comentários à Polêmica entre Rui Barbosa e Carneiro Ribeiro. 1959, p. 168.

11

2. FRIEDRICH MÜLLER E A CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO

2.1. NORMA E TEXTO DA NORMA

Há tempos o conceito de norma jurídica é afastado do conteúdo semântico

do signo Lei, sendo a literalidade textual (textos, enunciados, preceitos,

disposições) considerada um dos elementos (não único) necessários ao processo

interpretativo. Deveu-se a Friedrich Müller esta judiciosa constatação que será

essencial à empreitada hermenêutica.

A não-identidade entre texto da norma e norma trouxe à lume uma crítica

incisiva ao positivismo legalista, demonstrando que a Lei é apenas a “ponta do

iceberg” da hermenêutica jurídica.8

A corrente doutrinária de Friedrich Müller vislumbra o texto como enunciado

exarado pelo legislador; afasta-se, pois, a proposição obtida pelo exegeta do

enunciado presente no direito positivo, calhando a ressalva porque “en el uso

corriente del lenguaje es común que tomemos como sinónimas”.9 Veremos que

em Müller a proposição alcançada não será a única matéria prima à criação da

norma jurídica. Tal descrímen se nos afigura fundamental dentro desta proposta,

porquanto para o Professor alemão a norma jurídica não deve ser vista somente

como proposição, assim como quer Norberto Bobbio.10 Ao revés, além da

concepção de não ser a norma constituída tão-só linguisticamente, firmou-se

entendimento no sentido de ser ela determinada pela realidade social, por seu

8“Le texte de norme, dans une codification, n’est que la ‘partie émergée de l’iceberg’, et ce sous deux aspects principaux”. (MÜLLER, Friedrich. Discours de la Méthode Juridique. 1996, p. 168). 9 (ECHAVE, Delia Tereza, URQUIJO, María Eugenia e GUIBOURG, Ricardo. Lógica, proposición y norma. 1995, p. 35). Separando diametralmente os dois conceitos, comenta o trio argentino: "Una proposición es, pues, el significado de un enunciado declarativo o descritivo. No es el enunciado mismo, que está compuesto por palavras de algún idioma determinado, ordenadas según ciertas reglas gramaticales: es el contenido del enunciado, que es común a las diversas maneras de decir lo mismo". (Idem,. pp. 36-7). 10 “Desde el punto de vista formal, que hemos adoptado aqui, una norma es una proposición. Un código, una Constitución son un conjunto de proposiciones”. (BOBBIO, Norberto. Teoría General del Derecho. 1997, p. 41).

12

âmbito normativo.11 Por isso, “a normatividade comprova-se apenas na

regulamentação de questões jurídicas concretas”.12 Para Müller, a interpretação

do teor literal da norma é um dos elementos mais importantes do processo de

concretização, mas somente um deles.13

Isso significa que a norma é produzida não apenas a partir de elementos

que se depreendem do texto (mundo do dever-ser), mas também a partir de

elementos do caso ao qual será ela aplicada, isto é, a partir de elementos da

realidade (mundo do ser).14 Por isso, toda e qualquer norma somente faz sentido

com vistas a um caso a ser solucionado, seja ele fictício ou efetivamente pendente

de desfecho.15 Cuida-se, pois, de um projeto vinculante que abarca tanto a regra

jurídica como o suporte fático - para utilizar o léxico de Pontes de Miranda -,

superando o positivismo jurídico, como se demonstrará oportunamente.16

Como se vê, “o verbalismo normativo é o somenos, o realismo

extravocabular da norma é tudo, principalmente quando se trata de matéria

constitucional, no processo de sua concretização [...]”.17

Daí a repulsa à idéia de que “não é a interpretação que invalida a lei”,18 o

que consagraria uma correspondência biunívoca entre dispositivo e norma, sendo

que ao intérprete restam funções outras que não seja a “necropsia da lei morta”.19

Humberto Ávila, notório cultor da doutrina alemã, atento à esta constatação,

cita o caso da declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto,

exarada pelo Supremo Tribunal Federal, cabendo ao Pretório Excelso o exame da

11 “Ce n’est pas le texte d’une norme (constitutionnelle) qui vient d’être concrétisée, et encore moins le texte de norme placé au début de la concrétisation qui règle un cas concret; mais c’est bien l’assemblée parlementaire, l’organe gouvernemental, le fonctionnaire de l’administration ou la formation de jugement qui, à la lumière de la formulation linguistique de cette norme (constitutionnelle) comme à l’aide d’autres moyens méthodiques, rendent, publient, motivent la décision qui doit régler le cas, et qui, le cas échéant, veillent à as mise en ceuvre dans les faits”. (MÜLLER, Friedrich. Discours de la Méthode Juridique. 1996, p. 169). 12 MÜLLER, Friedrich, Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. 2000, p. 61. 13 Idem, Ibidem. 14 GRAU, Eros Roberto, Pareceres. Juristas e Apedeutas. 2003, p. 87. 15 MÜLLER, Friedrich. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. 2000, pp. 61-3. 16 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado, 2000, pp. 49-82. 17 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 1993, p. 419. 18 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 1998, p. 117. 19 (Idem, Ibidem). Sobre a inexistência de uma correspondência biunívoca entre disposições e normas, porém numa ótica semântica, veja-se: (CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2000, pp. 1167-1170).

13

constitucionalidade da norma, investigando as “significações” advindas do

enunciado posto ao seu crivo “em sede de controle abstrato”.20

A Corte Excelsa, na mesma linha de raciocínio, editou a Súmula n.º 400,

acolhendo a idéia de que um mesmo enunciado poderá originar distintas normas

jurídicas, para fins de interposição de recurso extraordinário.21 O Código de

Processo Civil nos mostra, da mesma sorte, que existem itinerários hábeis a

resolver divergências na aplicação do Direito, tais como: i)uniformização de

jurisprudência (artigos 476 a 479); ii) embargos infringentes (art. 530); iii)

embargos de divergência (art. 546).22

Sem embargo, ao dizer que os enunciados prescritivos do direito positivo

não possuem sentido como algo concluído e dado de antemão, Müller aproxima a

teoria da norma da aplicação do direito e destaca o papel do sujeito

compreendente, axiomatizável, na feitura da norma concretizanda. Não será,

portanto, a concretização jurídica uma reelaboração de valorações legislativas,

porquanto os casos jurídicos não podem nem devem ser pré-solucionados.23

Valendo-se desta teoria, interpretação e método não serão utilizados,

singelamente, para conservar orientações preexistentes, mas como meio de

transformar as orientações preexistentes diante do caso sempre novo.24

Continuamos nosso estudo, sabedores de que a literatura sobre a norma

jurídica é vasta, difícil de ser reduzida a uma unidade - como ponderado por Tércio

Sampaio Ferraz Júnior -,25 porém fortes nas doutrinas de Friedrich Müller e Paulo

de Barros Carvalho.

20 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 2003, p. 22. 21 “Decisão que deu razoável interpretação à lei ainda que não seja a melhor, não autoriza recurso extraordinário pela letra a do art. 101, III, da C. F”. (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, Súmula n.º 400). 22BRASIL, Lei n.º 5.869, de 11 de JANEIRO de 1973, Institui o Código de Processo Civil, URL www.senado.gov.br, Acesso em 25 de julho de 2003. 23 MÜLLER, Friedrich. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. 2000, p. 66. 24 (MÜLLER, Friedrich. Direito, linguagem, violência: Elementos de uma teoria constitucional, 1995, p. 41). Apesar de Friedrich Müller entender que uma norma que não é (ou não é mais) observada acaba tendo sua validade comprometida (Idem, Ibidem), entendemos, com Paulo de Barros, que tal fenômeno encontra-se no plano da eficácia social da norma jurídica: “A eficácia social ou efetividade, por sua vez, diz respeito aos padrões de acatamento com que a comunidade responde aos mandamentos de uma ordem jurídica historicamente dada”. (CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 2003, p. 83). 25 “Houve já quem, só no âmbito sociológico, contasse 82 definições de norma”. (FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Teoria da Norma Jurídica. 2000, pp. 35-6). “Son posibles muchas distinciones entre las normas

14

2.1.1. A norma jurídica para Friedrich Müller e as fontes do Direito

Empreendendo a atividade semântica, podemos perceber o rol de termos

jurídicos havidos como de mesmo sentido da expressão fontes do direito. Eurico

M. Diniz de Santi,26 ao trabalhar o tema, elencou oito significações possíveis:

(i) o fundamento de validade de uma ordem jurídica; (ii) a norma jurídica de competência

que regula a produção de outras normas jurídicas; (iii) as contingências extra-jurídicas que condicionam psicologicamente a convicção e vontade do sujeito que pratica o ato de criação; (iv) o fato jurídico lato sensu, i.é, o ato de produção juridicizado pelas normas que

regulam a forma de produção normativa; (v) o produto desse ato, i.é, o veículo introdutor

de normas jurídicas; (vi) a norma jurídica construída pelo intérprete a partir desse veículo

introdutor; (vii) o evento jurídico tributário como supedâneo da incidência e fundamento de

direitos subjetivos e correlatos deveres e, por fim, (viii) o ulterior ato de aplicação do direito

que cristaliza em linguagem jurídica o evento jurídico tributário e a adjacente relação jurídica.

O próprio Eurico Santi acaba por reconhecer que “as verdadeiras fontes do

direito são os fatos jurídicos produtores de normas”,27 definição esta que nos

interessa no intento de divisar os pontos incongruentes nas obras de Paulo de

Barros Carvalho e Friedrich Müller. Neste estádio, restringimo-nos a ponderar

sobre os possíveis fatos jurídicos que, na doutrina de Müller, poderiam ensejar a

criação de normas jurídicas. “Programa da Norma” e “Âmbito da Norma” dividem o

posto de fundadores de normas jurídicas para Müller, vale dizer, são estes os seus

fatos jurídicos, ao contrário do que ocorre em Paulo de Barros, onde as chamadas

“fontes reais” não são vislumbradas no processo gerativo de sentido.28

Daí porque Müller acha insuficiente uma hermenêutica jurídica limitada ao

emprego de cânones interpretativos que têm em mira apenas e tão-somente a

literalidade textual, como sói ocorrer em Savigny, sendo fadada ao insucesso pois

jurídicas. Todos los tratados de filosofia del derecho y de teoría general del derecho han examinado cierto número de ellas”. (BOBBIO, Norberto. Teoría General del Derecho. 1997, p. 128). 26 SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Decadência e Prescrição no Direito Tributário. 2000, pp. 48-9. 27 Idem, Ibidem. 28 Idem, Ibidem.

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se restringe às regras clássicas de interpretação, importa dizer, a concretização do

direito não pode ser inteiramente controlável metodologicamente.29

A metódica estruturante de Müller constrói uma hierarquização entre os

elementos concretizadores da norma, para dirimir conflitos entre seus

“compositores”. Paulo Bonavides dedica especial atenção à teoria de Müller em

seu profundo Curso de Direito Constitucional, enfatizando o binômio programa da

norma e âmbito da norma como diretrizes diretas na construção da norma, sem

olvidar daqueles elementos que têm importância secundária, por se relacionarem

mediatamente e indiretamente na empreitada hermenêutica.30

Entram em jogo na teoria de Müller os seguintes elementos de concretização da norma: os

elementos metodológicos numa acepção estrita (os da interpretação gramatical, histórica, genética sistemática e “teleológica”, a par de alguns princípios isolados de interpretação

constitucional), os elementos do âmbito da norma, os elementos dogmáticos, os elementos

teóricos ou de uma teoria da Constituição, os elementos técnicos de solução e os

elementos político-jurídicos ou político-constitucionais. Desses elementos, alguns se

relacionam diretamente com a norma, outros só o fazem de modo indireto e mediato. Estão

em relação direta com a norma os elementos metodológicos tomados numa acepção

estrita, bem como os do âmbito da norma e parte dos elementos dogmáticos. Os demais, não se relacionando diretamente com a norma, desempenham funções auxiliares, limitadas

no ato de concretização.

Optamos por centrar nossas considerações sobre o programa da norma e

sobre o âmbito da norma, díade basilar na obra de Müller.31

Muito bem. Afigura-se-nos que o “âmbito normativo” de Müller poderia ser

encaixado numa fase do processo exegético de Paulo de Barros, bastando

algumas ponderações em seu “percurso gerativo de sentido”, pela porta aberta, e

sempre criadora, da pré-compreensão.

29 MÜLLER, Friedrich. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. 2000, pp. 69-70. 30 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 1993, p. 422. 31 Quantos aos demais elementos, estes não serão analisados em profundidade, porquanto tangenciam da tônica do estudo. Da mesma sorte, os conflitos entre elementos é matéria cuja investigação descabe no trabalho.

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2.2. NORMATIVIDADE, PROGRAMA DA NORMA E ÁREA DA NORMA –

DEFINIÇÕES TALHADAS POR MÜLLER

2.2.1. Normatividade Extrapolando o teor literal da norma, numa seara de dados extra-

lingüísticos, encontramos a normatividade, conceito atinente ao tipo estatal-social:

“de um funcionamento efetivo, de um reconhecimento efetivo e de uma atualidade

efetiva desse ordenamento constitucional para motivações empíricas na sua

área.32 Trata-se, pois, daqueles dados que não poderiam ser estipulados no texto

da norma em homenagem à sua pertinência, vale dizer, não poderiam estar

contidos na norma jurídica, em razão do seu objeto.33 São eles, dentre outros:

materiais legais, manuais didáticos, comentários e estudos monográficos,

precedentes e material do Direito Comparado.34

Fenômeno que se destaca quanto à normatividade é, pois, o direito

consuetudinário, conexo a imperativos do Estado de Direito e da Democracia; seja

porque o direito também se manifesta pela forma não-escrita (inclusive o direito

constitucional) e com qualidade de norma, seja porque mesmo no âmbito do

direito vigente, a normatividade que se manifesta em decisões práticas não está

vinculada lingüisticamente apenas pelo texto da norma concretizanda.35

Uma hermenêutica que aponta para além do positivismo legalista pode, à

luz da metódica estruturante de Müller, compreender que o texto da norma “dirige

e limita as possibilidades legítimas e legais da concretização materialmente

determinada do direito no âmbito do seu quadro”36 (função limitadora), sendo

sobremaneira importante a aferição de sua normatividade quando se está lidando

com um emaranhado imenso de enunciados positivados.

Esta constatação torna-se essencial para a composição da estrutura da

norma, a ser analisada numa conjugação entre normatividade de um lado, e 32 Idem, pp. 53-4. 33 MÜLLER, Friedrich. Discours de la Méthode Juridique. 1996, pp. 168-9. 34 MÜLLER, Friedrich. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. 2000, p. 55.

35 Idem, p. 55. 36 Idem, p. 56.

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norma e texto da norma de outro, destacando-se nesse processo estruturado a

função concretizadora do destinatário da norma.37

Conceitos jurídicos em textos de normas não possuem “significado”, enunciados não

possuem “sentido” segundo a concepção de um dado orientador acabado [eines

abgeschlossen Vorgegebenen]. Muito pelo contrário, o olhar se dirige ao trabalho concretizador ativo do “destinatário e com isso à distribuição funcional dos papéis que,

graças à ordem [Anordnung] jurídico-positiva do ordenamento jurídico e constitucional, foi

instituída para a tarefa da concretização da constituição e do direito.

Sabe-se que a “norma jurídica só adquire verdadeira normatividade quando

com a ‘medida de ordenação’ nela contida se decide um caso jurídico”,38 ou seja,

“uma norma jurídica que era potencialmente normativa ganha normatividade atual

imediata através de sua passagem a norma de decisão que regula concreta e

vinculativamente o caso carecido de solução normativa”.39 Tal decisum, ressalte-

se por fundamental, deverá ser publicado e fundamentado, de tal forma que a

norma de decisão encontre plena ressonância com o Texto Constitucional.

Uma definição de normatividade que, a nosso ver, enquadra-se na teoria

estruturante pós-positivista de Müller, foi-nos ofertada por Canotilho, em seu

célebre Direito Constitucional e Teoria da Constituição.40

Normatividade é o efeito global da norma (com as duas componentes atrás referidas) num

determinado processo de concretização. O efeito normativo pressupõe a realização da

norma constitucional através da sua aplicação-concretização aos problemas carecidos de decisão. A normatividade não é uma “qualidade” da norma; é o efeito do procedimento

metódico de concretização.

Daí se deduz “que na análise da praxis jurídica a normatividade se

apresenta como um ‘processo estruturado’ e que a análise da relação da

37 Idem, Ibidem. 38 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2000, p. 1184. 39 Idem, pp. 1184-5. 40 Idem, p. 1166.

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normatividade com a norma e o texto da norma prossegue com a análise da

estrutura da norma”.41

A normatividade, nesse contexto, pode (e é) visualizada anteriormente à

prolação da decisão, fato que lhe orienta, num momento em que o juiz encampa

os valores circunscritos em sua pré-compreensão.

[...] toda vez que o magistrado se defronta com uma controvérsia, com um interesse

resistido, deve idealizar a solução mais justa para o caso concreto. Ele deve partir para a fixação do desiderato, inicialmente, de acordo com a formação humanística que possui e,

somente após, já fixado o desiderato desejável para o caso, partir para a dogmática, o

apoio para a conclusão a que chegou inicialmente. Encontrando esse apoio, como quer o

direito, torna translúcido o direito no provimento judicial.42

A posição exegética adotada pelo Pretório Excelso no colacionado aresto

deixa clara a importância da pré-compreensão no processo hermenêutico jurídico,

razão pela qual a destacamos em nosso estudo.

2.2.2. Programa da norma

O teor literal expressa, juntamente com todos os recursos interpretativos

auxiliares, o “programa da norma”.43 Pertence adicionalmente à norma, em

nível hierárquico igual ao “âmbito da norma”.44

O programa da norma é identificado através de todas as determinantes da

aplicação das leis, reconhecidas como legítimas, enquanto tratamento do texto da

norma desde os métodos tradicionais de interpretação até as figuras

interpretativas específicas das grandes áreas do Direito.45

Em sede de Direito Tributário, com apoio em Paulo de Barros Carvalho, é

possível definir quais seriam as principais figuras interpretativas específicas

41 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 1993, p. 420. 42 BRASIL, Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário n.º 111.787-GO, Rel. Min Marco Aurélio. 43 MÜLLER, Friedrich. Direito, linguagem, violência: Elementos de uma teoria constitucional. 1995, pp. 42-3.

44 MÜLLER, Friedrich. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. 2000, p. 57. 45 MÜLLER, Friedrich. Direito, linguagem, violência: Elementos de uma teoria constitucional. 1995, p. 43.

19

previstas no Código Tributário Nacional, a saber: i) princípios do direito tributário;

ii) princípios do direito público; iii) eqüidade; iv) princípios gerais do direito privado;

v) interpretação literal; vi) interpretação mais favorável ao sujeito passivo.46

Reduzindo o campo factual ao campo de espécie, o jurista formula, logo

após, o programa normativo, extraído da interpretação dos dados lingüisticos, que

por serem apropriadamente selecionados, serão matéria prima à generalização do

programa da norma.47 Em face do programa normativo operar-se-á a fundamental

empresa do processo hermenêutico de Müller, mas não a única, dentro de uma

metódica que pretende sobrepujar o positivismo legalista.

Conjugando realidade com idealidade, Müller decompõe quase

anatomicamente as bases de sua metódica estruturante:48

Não se deve esquecer que o programa da norma destaca, da totalidade dos dados efetivos

atingidos por uma prescrição, os momentos relevantes para a decisão jurídica, no sentido

de uma diretiva orientadora; ele estabelece, portanto, critérios de relevância com caráter de

obrigatoriedade, tanto para a indagação quanto para a ponderação. A linguagem sempre

tem – v.g. na literatura, na linguagem cotidiana, na linguagem dos jornais ou de livros informativos [Sachbücher] – caráter de signo, caráter de representação, e isso significa

num sentido de vários significados: ela tem um caráter de representante

[Stellvertretercharakter] da realidade; se ela apontar para a realidade, ela evoca associações de ou juízos sobre partículas da realidade. Em virtude da referência social, do

nexo de decisão e do caráter de vigência da normatividade jurídica especificadamente

aumentados e formalizados, esse estado de coisas reaparece mais fortemente nas

funções, nas estruturas e nos métodos do trabalho jurídico. Abstraindo aqui de casos-

limite, o programa da norma, que permite avaliar a relevância de dados empíricos a partir da área da norma da prescrição, não é nem unívoco nem absolutamente vago. Muito pelo contrário, ele indica espaços de ação metodicamente domináveis, dentro dos quais o

trabalho jurídico se deve legitimar e com base nos quais ele pode ser controlado e

criticado.

46 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 2003, pp. 103-8. 47 MÜLLER, Friedrich. Discours de la Méthode Juridique. 1996, p. 132. 48 MÜLLER, Friedrich. Direito, linguagem, violência: Elementos de uma teoria constitucional. 1995, p. 44. 49 Idem, p. 43.

20

2.2.3. Âmbito da norma

Como já dito, em igual hierarquia ao programa da norma, tem-se o âmbito

da norma. “Ela é a estrutura básica do segmento da realidade social, que o

programa da norma ‘escolheu para si’ como a ‘sua’ área de regulamentação ou

que ele, em parte ‘criou’”.49 Fazendo-se um paralelo com o estilo ponteano, é

factível a correlação entre âmbito da norma com suporte fático, “[Tatbestand] da

regra jurídica, isto é, aquele fato, ou grupo de fatos que o compõe, e sobre o qual

a regra jurídica incide [...]”.50 Friedrich Müller vislumbra duas possibilidades para o âmbito da norma,

podendo ele ter sido gerado ou não pelo direito. Exemplos de criação do direito

seriam “os prazos, datas, prescrições de forma, regras institucionais e

processuais”. 51 Por situações não geradas pelo Direito, poder-se-ia citar “arte e

ciência, pesquisa e ensino, que são determinadas como ‘livres’ pelo programa da

norma no Art.5º, 3 al. 1 da Constituição Alemã”.52

O âmbito da norma deverá ser identificado empiricamente, por ser parte

integrante material da prescrição jurídica, vale dizer, “é tirado do conteúdo fático

geral da esfera regulativa da prescrição”.53 Tal aferição dependerá da competência

daqueles sujeitos que se colocarem em atitude cognoscente.54 Por entender que

“Direito” e “realidade” não subsistem autonomamente por si no processo efetivo de

concretização prática do Direito, Müller irá aproximar a teoria da norma da

aplicação do direito. 55 Dentro desta orientação, é significativa a seguinte

afirmação de Pontes de Miranda:56

50 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. 2000, p. 66. 51 MÜLLER, Friedrich. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. 2000, p. 57. 52 (MÜLLER, Friedrich. Direito, linguagem, violência: Elementos de uma teoria constitucional. 1995, p. 43). Neste diapasão, podemos apontar, em nossa Constituição de 1988, os seguintes âmbitos de norma não-gerados pelo direito: art. 5º, incisos IV (pensamento), VI (culto religioso), IX (expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação), XIII (exercício do trabalho) dentre outros.

53 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 1993, p. 421. 54 “Até que ponto isso é feito de forma tecnicamente competente ou amadorística, é unicamente uma questão de formação dos juristas”. (MÜLLER, Friedrich. Direito, linguagem, violência: Elementos de uma teoria constitucional. 1995, p. 43). 55 MÜLLER, Friedrich. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. 2000, p. 58. 56 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. 2000, p. 68.

21

Quem afirma ser a regra jurídica toda a fonte de eficácia jurídica abstrai o suporte fático.

Quem afirma que “é do suporte fático que nascem os efeitos e a regra jurídica apenas os

liga”, esse não abstrai a regra jurídica, mas põe-na acima da determinação jurídica, de

modo que só se vêem suportes fáticos e efeitos, e dá à lei papel semelhante ao das leis

naturais.

O corpo da norma jurídica não será, portanto, isolável do seu âmbito de

regulamentação, como algo alheio à realidade que lhe origina, composto

singelamente por um juízo hipotético. A interdependência entre elementos

normativos e empíricos – fatores ordenante e ordenado - se nos afigura cabal na

proposta mulleriana de realização do direito. Escreveu excelentemente Friedrich

Müller:57

O âmbito da norma não é idêntico aos pormenores materiais do conjunto dos fatos. Ele é

parte integrante material da própria prescrição jurídica. Da totalidade dos dados afetados

por uma prescrição, do “âmbito material”, o programa da norma destaca o âmbito da norma

como componente da hipótese legal normativa [Normativtabestand]. O âmbito da norma é

um fator co-constitutivo da normatividade. Ele não é uma soma de fatos, mas um nexo

formulado em termos de possibilidade real de elementos estruturais que são destacados

da realidade social na perspectiva seletiva e valorativa do programa da norma e estão, via

de regra, conformados de modo ao menos parcialmente jurídico. Em virtude da conformação jurídica do âmbito da norma e em virtude da sua seleção pela perspectiva do

programa da norma, o âmbito da norma transcende a mera facticidade de um recorte da

realidade extrajurídica. Ele não é interpretável no sentido de uma “força normativa do

fáctico”.

Importante é o âmbito da norma enquanto conjunto de elementos

estruturais retirados da realidade social, porquanto “o intérprete interpreta também

57 “Seuls les éléments appropriés du champ factuel ou du champ d’espèce peuvent devenir des éléments du champ normatif, en tant qu’ils sont ainsi généralisables et se tiennent dans les limites impératives tracées par le programme normatif. Si ces conditions sont remplies, les aspects factuels concernés forment, comme il a été dit plus haut, la structure globale effective dans le ressort de la disposition juridique en question. Il s’agit là d’un énoncé juridique et non d’un énoncé de la science sociale. Dégager les faits et les structures particuliéres à partir du champ factuel pour en montrer le caractère “fondamental” – en tant que co-fondateur de la norme -, ce procédé ne se réalise pas dans la perspective empirique du spécialiste des sciences sociales, mais du point de vue juridique, c’est-à-dire du point de vue du travailleur du droit qui est responsable de la décision d’espèce en cause”. (MÜLLER, Friedrich. Discours de la Méthode Juridique. 1996, pp. 199-200).

22

os fatos que consubstanciam o caso, necessariamente, além dos textos, ao

empreender a produção prática do direito”.58

Tendo em mira um determinado caso, dentro de uma faixa enorme de

eventos reais, ao conjugarmos “programa da norma” e “âmbito da norma”,

alçaremos uma formulação lingüística da decisão particular, ou seja, um caso será

solucionado (decidido) quando agregarmos aos co-fundadores da norma geral e

abstrata um caso jurídico, para formar uma norma de decisão.

2.3. ROBERT ALEXY E SUAS CRÍTICAS À TEORIA DE FRIEDRICH MÜLLER

Por reprovar a teoria que pretende construir a norma jurídica unicamente a

partir de enunciados lingüísticos, Friedrich Müller enfrenta um grande embate

doutrinário com aqueles que defendem a literalidade textual do direito positivo

como espaço único à construção da mensagem deôntica. Mesmo não atacando

frontalmente a teoria do Mestre de Heidelberg, Paulo de Barros Carvalho põe em

relevo e às claras seu entendimento no livro Fundamentos Jurídicos da Incidência,

dizendo que “as construções de sentido têm de partir da instância dos enunciados

lingüísticos, independentemente do número de formulações expressas que

venham a servir-lhe de fundamento”.59

No entanto, quem mais surrou a teoria da norma de Müller foi Robert Alexy,

em seu célebre “Teoria de Los Derechos Fundamentales”. Alexy, notável

representante da kultur jurídica germânica, apesar de pugnar por uma não-

identidade entre norma e texto de norma, ao defender sua “teoría semántica de la

norma”, contesta pontos basilares da proposta de Müller, em três objeções assim

sintetizadas:60

La primera niega que las teorías orientadas por el concepto semántico de las normas estén obligadas a fundamentar sus decisiones jurídicas exclusivamente con la ayuda de

argumentos semánticos (“datos lingüísticos”); la segunda se dirige, en general, en contra

de la propuesta de incluir en el concepto de norma argumentos porque ellos sean 58 GRAU, Eros Roberto, Pareceres. Juristas e Apedeutas. 2003, p. 87. 59 CARVALHO, Paulo de Barros. Fundamentos Jurídicos da Incidência Tributária. 1998, p. 22. 60 ALEXY, Robert. Teoría de Los Derechos Fundamentales. 1993, p. 77.

23

necessarios para la fundamentación de la decisión; la tercera se dirige especialmente en

contra la tesis según la cual los argumentos que deben ser incluidos en las normas deban

ser exactamente los referidos al ámbito normativo (“datos reales”).

Voltando os olhos para a sua doutrina dos direitos fundamentais, Robert

Alexy compara-a com a teoria engendrada por Friedrich Müller; a chamada

“disposição de direito fundamental” corresponde ao que Müller chama “texto”, o

que leva o nome de “norma” é o que Müller considera “programa da norma” e, a

noção de “âmbito da norma”, ponto nodal da teoria de Müller, em Alexy é deixada

de lado.61

Robert Alexy entende que, acaso seja considerada a teoria de Müller,

“entonces o bien habría que incluir en el concepto de norma todo el arsenal de la

argumentación jurídica o limitar considerablemente el ámbito de la argumentación

jurídica, a costa de su racionalidad”.62 Tal constatação tem em mira a premissa

segundo a qual toda fundamentação jurídica deve valer-se, exclusivamente,

daquilo que pertence à norma. Na perspectiva de Alexy, tal itinerário englobaria,

no conceito de norma jurídica, juízos de valor independentes, ou, extremamente,

eliminaria-os da argumentação jurídica. Para defender seu “concepto semántico

de norma”, principalmente contra a crítica de que tal teoria estaria obrigada a

fundamentar as decisões jurídicas unicamente com argumentos semânticos

(lingüisticos), Alexy ataca a doutrina de Müller, sustentando sê-la dependente de

fundamentos extra-normativos, i.é, deveria a argumentação jurídica compor, in

totum, o conceito de norma, fato que só subsistiria “si fuera correcto el enunciado

según el cual lo que no pertence a la norma no puede ser utilizado en las

fundamentaciones jurídicas”.63 Configurar-se-ia, pois, uma tarefa hercúlea.

O Professor da Universidade de Kiel direciona suas ressalvas, também, à

significação elegida por Müller de ”normativamente relevante”, em contraste com

61 Idem, p. 75. 62 Idem, Ibidem. 63 “Ni siquiera la teoría de Müller se atiene a este enunciado ya que a más de elementos directamente referidos a las normas (elementos metodológicos en sentido estricto, elementos del ámbito normativo y algunos elementos dogmáticos) admite como elementos de las fundamentaciones jurídicas elementos no directamente referidos a las normas (algunos elementos dogmáticos, elementos técnicos de solución, elementos teóricos, político-constitucionales y político-jurídicos) sin cualificarlos como pertenecientes a la norma”. (Idem, p. 75).

24

os componentes da norma jurídica. Mesmo reconhecendo que no “âmbito

normativo” não estarão inclusos “todos los argumentos posibles en la

argumentación jurídica”,64 Alexy rechaça a proposta de inserção, no bojo da norma

jurídica, de um ponto de vista amplo daquilo que seja normativamente relevante,

porquanto nem todo “lo que es normativamente relevante es una norma jurídica o

una parte de ella”.65 Ao vislumbrar um significado diminuto de “normativamente

relevante”, Alexy pretende afastar do conceito de norma elementos empíricos e

valorativos, os quais, segundo o professor tedesco, já seriam invocados em “una

norma abierta con relación al caso que hay que decidir”.66 Por isso, arremata

Alexy:67

Para el ideal del Estado de derecho ha de ser más útil una clara separación entre aquello

que un legislador ha impuesto como norma y aquello que un intérprete presenta como

razones para una determinada interpretación, que una fidelidad a la ley creada a través de una definición del concepto de norma.

Em verdade, Alexy afasta-se de Müller por restringir os argumentos

estruturantes do processo normativo, vale dizer, separa a norma como “objeto

semântico” das razões que a sustentam.

64 Idem, p. 78. 65 Idem, Ibidem. 66 Idem, p. 79. 67 (Idem, p. 78). A seu turno, Friedrich Müller defende-se golpeando: “Toutefois Alexy n’entend pas considérer ces derniers arguments comme des éléments structurants du processus de la normativité. Au lieu de cela, il indique qu’il convient de distinguer clairement la norme, comme “objet sémantique”, des raisons qui la soutiennent. [...] Mais en réalité, le travail juridique du texte est bien plus complexe que ce que veut bien admettre ce modèle additif. Le chemin qui mène du texte de norme à la norme juridique ne doit pas être compris, précisément, comme l’application de règles sémantiques objectives. Il s’agit bien plus d’un processus actif de sémantisation (Semantisierung). Ce n’est que dans l’argumentation juridique que le texte brut peut acquérir as signification. Ce n’est qu’à partir de ce moment que peut être produit le motif déterminat de la décision. Il est déjà communément admis parmi d’autres représentants de la théorie du discours, et surtout chez Jürgen Habermas, que les règles sémantique ne peuvent être matérialisées à la façon dont le suppose Alexy. Il serait de ce fait temps, pour ces participants à la discussion aussi, de remplacer le modèle additif – sémantique plus argumentation juridique – par une analyse intégrale de l’argumentation juridique en tant que pratique sémantique. Il deviendrait alors parfaitement clair que le texte de norme établi par le législateur ne contient pas déjà la norme ni qu’il suffirait de le compléter au moyen de l’argumentation, mais que le texte de norme ne peut servir de base à la production d’une norme juridique qu’en passant d’abord par la voie de l’argumentation juridique”. (MÜLLER, Friedrich. Discours de la Méthode Juridique. 1996, p. 207).

25

J. J. Gomes Canotilho bem divisa a separação das duas correntes, num

rigor doutrinário que sabe diferençar interpretação de concretização, descrímen

que nos ajudará ao fito de afastar Alexy (interpretativista) de Müller (concretista).68

Interpretar uma norma constitucional consiste em atribuir um significado a um ou vários

símbolos linguísticos escritos na constituição com o fim de se obter uma decisão de

problemas práticos normativo-constitucionalmente fundada. Sugerem-se aqui três

dimensões importantes da interpretação da constituição: (1) interpretar a constituição significa procurar o direito contido nas normas constitucionais; (2) investigar o direito

contido na lei constitucional implica uma actividade – actividade complexa – que se traduz

fundamentalmente na ‘descrição’ de um significado a um enunciado ou disposição linguística (‘texto da norma’); (3) o produto do ato de interpretar é o significado atribuído. Concretizar a constituição traduz-se, fundamentalmente, no processo de densificação de

regras e princípios constitucionais. A concretização das normas constitucionais implica um processo que vai do texto da norma (do seu enunciado) para uma norma concreta – norma

jurídica – que, por sua vez, será apenas um resultado intermediário, pois só com a

descoberta da norma de decisão para a solução dos casos jurídico-constitucionais teremos

o resultado final da concretização. Esta ‘concretização normativa’ é, pois, um trabalho técnico–jurídico; é, no fundo, o lado ‘técnico’ do procedimento estruturante da

normatividade. A concretização, como se vê, não é igual à interpretação do texto da norma; é sim, a construção de uma norma jurídica.

68 (CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2000, pp. 1164-5). O processo de concretização em Müller, como seu viu, abandona a singeleza dos métodos tradicionais de interpretação, buscando uma hermenêutica além da mediação semântica dos enunciados lingüisticos do texto. ”Relevante para o processo concretizador não é apenas a delimitação do âmbito normativo a partir do texto de norma. O significado do texto aponta para um referente, para um universo material, cuja análise é fundamental num processo de concretização que aspira não apenas a uma racionalidade formal (como positivismo) mas também uma racionalidade material. Compreende-se, pois, que: (1) seja necessário delimitar um domínio ou sector de norma constituído por uma quantidade de determinados elementos de facto (dados reais); (2) os elementos do domínio da norma são de diferente natureza (jurídicos, econômicos, sociais, psicológicos, sociológicos); (3) a análise do domínio da norma seja tanto mais necessária: (a) quanto mais uma norma reenvie para elementos não-jurídicos e, por conseguinte, o resultado de concretização da norma depende, em larga medida, da análise empírica do domínio de norma e (b) quanto mais uma norma é aberta, carecendo, por conseguinte, de concretização posterior através dos órgãos legislativos”. (Idem, pp. 1182-3). Note-se que Canotilho usa “significado” no sentido da “significação” husserliana, assim como seu ‘domínio normativo’ é o que chamamos “âmbito normativo”. Aliás, diga-se que apesar de toda teoria voltar-se, no mais da vezes, para as normas constitucionais, a ressalva de Lourival Vilanova sobre a existência de gradação das fontes merece ser sobrelevada: “Não é o Direito internacional, geral ou particular, nem a Ciência-do-Direito, nem a Lógica, que estatuem a gradação normativa, ou, em termos de fontes do Direito, quais as fontes e qual a ordem de gradação que elas têm no interiores do ordenamento positivo. Depende da morfologia do poder (um poder de funções concentradas não estatui a gradação normativa que ostenta um Estado-de-Direito), dos substratos sociais que mantêm o poder e das ideologias e valorações que justificam a estrutura do poder. (VILANOVA, Lourival. Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. 1997, pp. 313-4).

26

2.4. PAULO DE BARROS CARVALHO E FRIEDRICH MÜLLER: SIMBIOSE

FACTÍVEL OU DOUTRINAS HETEROGÊNEAS?

Seriam as duas vigas mestras deste trabalho inconciliáveis em suas

essências ou a factibilidade do diálogo entre as propostas estaria mais próxima do

que muitos pensam? Se Friedrich Müller pretende superar o positivismo legalista,

Paulo de Barros se aproxima de Lourival Vilanova e de seu formalismo lógico em

grande parte de sua obra. Porém não em toda ela.

Na realidade, toda a doutrina de Paulo de Barros Carvalho é fulcrada na

idéia de que a norma jurídica, em sua inteireza bimembre, serve de “materia prima

para la gran maquinaria lógica”,69 forte na lição de que “qualquer objeto, de

qualquer domínio, pode ingressar na forma lógica através da transformação

sintática variável”.70 Ao revés, Friedrich Müller entende que a norma jurídica deve

amalgamar o programa da norma e âmbito da norma. São considerados dois

fenômenos de igual hierarquia e essenciais à concretização do direito, vale dizer,

sem os quais o mundo fenomênico não será alterado pelo direito.

Eurico Diniz de Santi, na qualidade de grande seguidor das lições

carvalhianas, informa-nos sobre a aproximação das investigações de Paulo de

Barros Carvalho à obra de Charles Peirce, no que pertine à afetação da realidade

pelo direito.71

Assim como a representação semiótica na curva assintótica de Charles Sanders Peirce, o

direito não toca a realidade, que lhe é intangível. O direito só produz novo direito, altera a

realidade sem com ela se confundir, construindo suas próprias realidades.

Vê-se, pois, o quão diferente é a realidade fática quando cotejada nas duas

obras, possuindo, nitidamente, dois pesos. O âmbito da norma não teria lugar, a

priori, na obra de Paulo de Barros Carvalho. Direito e realidade, para Müller, “não 69 ECHAVE, Delia Tereza, URQUIJO, María Eugenia e GUIBOURG, Ricardo. Lógica, proposición y norma. 1995, p. 38. 70 VILANOVA, Lourival. Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. 1997, p. 48. 71 SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Decadência e Prescrição no Direito Tributário. 2000, pp. 53-4. 72 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 1993, p. 421.

27

são esferas incomunicáveis nem categorias autônomas subsistentes por si

mesmas”.72

Outrossim, a dualidade entre norma tributária em sentido amplo e norma

tributária em sentido restrito, de grande magnitude na obra de Paulo de Barros

Carvalho, em Müller, seria deixada de lado, porquanto tal descrímen não se

encaixaria na idéia de programa da norma. Além disso, a bimemoridade

constitutiva da norma jurídica, consagrada no binômio antecedente/conseqüente

da Regra-Matriz de Incidência, na obra de Müller não terá ressonância.

Em que pesem tais divergências, entendemos que no atinente à

interpretação do direito, alguns campos de congruência podem ser realçados.

Se por um lado Paulo de Barros Carvalho restringe a concretização do

direito a uma formalística, no trato da Regra-Matriz de Incidência, por outro, o

percurso da construção de sentido como modelo de interpretação, fulcrado a partir

da análise do discurso, é uma parte de sua obra que vem sofrendo evoluções no

decorrer dos anos, nas diversas edições do Curso. Tal constatação não escapou

ao crivo de José Roberto Vieira:73-74

73 (VIEIRA, José Roberto. A Semestralidade do PIS: Favos de Abelha ou Favos de Vespa?. 2002, p. 90). Até a 7º Edição do Curso era nítida a influência de Carlos Maximiliano na obra de Paulo de Barros Carvalho, na seguinte linha de raciocínio: “A Hermenêutica Jurídica tem por objeto o estudo e a sistematização dos processos aplicáveis para determinar o sentido e o alcance das expressões do Direito. As leis positivas são formuladas em termos gerais; fixam regras, consolidam princípios, estabelecem normas, em linguagem clara e precisa, porém ampla, sem descer a minúcias. É tarefa primordial do executor a pesquisa da relação entre o texto abstrato e o caso concreto, ente a norma jurídica e o fato social, isto é, aplicar, aplicar o Direito. Para o conseguir, se faz mister um trabalho preliminar: descobrir e fixar o sentido verdadeiro da regra positiva; e, logo depois, o respectivo alcance, a sua extensão. Em resumo, o executor extrai da norma tudo o que na mesma se contém: é o que se chama interpretar, isto é, determinar o sentido e o alcance das expressões do Direito”. (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 1995, p. 01). Na 15ª e última edição do Curso, onde já era patente o afastamento da colecionada doutrina, manteve-se a ressalva à obra de Carlos Maximiliano, antes já exarada, sendo ali considerado “modelo hermenêutico convencional”. (CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 2003, pp. 94-8). Ao superar está primeira fase, Paulo de Barros Carvalho encampou premissas semióticas que o fizeram alterar sua obra, vale dizer, a norma restou vislumbrada como significação dos enunciados prescritivos do direito positivo. Nesse passo, Maria Rita Ferragut, uma de suas promissoras discípulas, é quem nos esclarece sobre os componentes do triângulo básico - modelo analítico de comunicação sígnica -, definidos por Edmund Husserl e acatados por Paulo de Barros Carvalho: “Signo é a unidade do sistema que permite a comunicação humana, possuindo status lógico de relação. Nele, um suporte físico associa-se a um significado e a uma significação”. (FERRAGUT, Maria Rita. Presunções no Direito Tributário. 2001, p. 15). Mais importante do que o signo (isolado) na doutrina carvalhiana, estão os enunciados prescritivos que formam a camada lingüistica do direito positivo, a qual constitui ponto basilar do todo arquitetado. Dessa forma, são importantes no processo exegético proposto, os ângulos da linguagem, dentro do itinerário de construção da norma jurídica. Sobre eles, disse o lógico Georges Kalinowski: “Las expressiones de todo lenguaje poseen diversas funciones. Se las puede dividir en pragmáticas, semánticas y sintácticas. Dado que la pragmática estudia las relaciones que existen entre las

28

Não é por outro motivo que Paulo de Barros Carvalho, que antes expunha o labor científico

do jurista como o “... desvelar o conteúdo, sentido e alcance da matéria legislada”, passou a referi-lo como o “...construir o conteúdo, sentido e alcance da matéria legislada.

E, algo novo poderá surgir. Na última edição do Curso, Paulo de Barros

Carvalho inseriu a figura da pré-compreensão no percurso gerativo de sentido, a

qual ultrapassa a simples análise cognitiva, aproximando-se de uma das grandes

vigas da obra de Friedrich Müller:75

No entanto, a decisão jurídica não se esgota nas suas partes cognitivas. Ela aponta para além das questões “hermenêuticas” da “compreensão”, no sentido genericamente peculiar

que “hermenêutica” e “compreensão têm nas ciências humanas [Geisteswissenchaften]. É

claro que a relação entre os elementos cognitivos e os elementos não-cognitivos no processo de concretização muda conforme a função jurídica exercida e que e. g. o

interesse de “conhecimento” cognitivo passa, na concretização científica diante de um caso

fictício, nitidamente para o primeiro plano.

Ao seguir este raciocínio, Paulo de Barros Carvalho abre uma ampla

margem para futuras alterações, dentro de uma hermenêutica filosófica, na qual

Friedrich Müller busca fundamento.

expresiones y los hombres que las utilizan, merecen el nombre de funciones pragmáticas las que implican directamente al hombre que habla (escribe) o a aquél a quien se habla (escribe). [...] Puesto que la semántica es a su vez, el estudio de las relaciones entre las expresiones y las ideas o las cosas que les corresponden, las funciones de significación y de designificación son las funciones semánticas principales. [...] Las sintaxis examina, finalmente, las relaciones existentes entre las expresiones como partes de otras expresiones. (KALINOWSKI, Georges. Introducción a la Lógica Jurídica. 1973, pp. 46-47). 74 O exame interpretativo na primeira fase doutrinária de Paulo de Barros Carvalho, a qual seguia a dicção de Carlos Maximiliano, poderia assim ser sintetizada: “No processo de comunicação, um emissor associa um conteúdo a uma expressão, emitindo um signo: isto é o que se chama de codificação. Inversamente, na recepção da mensagem, um receptor transforma a expressão referindo-a ao conteúdo expresso: isto é o que se chama decodificação. O resultado do trabalho de codificação é o texto, enquanto o produto da decodificação é a interpretação”. (MENDES, Antônio Celso. Direito, Linguagem e Estrutura Simbólica. 1994, p. 35). 75 (MÜLLER, Friedrich. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. 2000, pp. 63-4). A pré-compreensão será melhor cotejada no sub-item 3.5. O exato momento em que Paulo de Barros atinou à pré-compreensão merece ser transcrito: “Esse processo interpretativo encontra limites nos horizontes da nossa cultura (H1 e H2), pois fora dessas fronteiras não é possível a compreensão. Na visão hermenêutica adotada, a interpretação exige uma pré-compreensão que a antecede e a torna possível”. (CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 2003, p. 129).

29

Fala-se em mudanças porque a atenção à pré-compreensão apresenta-se

como uma superação do puro simbolismo do tipo matemático, de um cálculo

simbólico, mostrando que a hermenêutica jurídica deve se preocupar com o

conteúdo material das proposições jurídicas e com as operações intelectuais do

sujeito de conhecimento.

Após exarar esta observação ao tom de provocação, cotejaremos as duas

obras ao fito de lograr êxito no empreendimento visado.

30

3. O PERCURSO GERATIVO DE SENTIDO DE PAULO DE BARROS

CARVALHO

3.1. A PROPOSTA SEMIÓTICA DE PAULO DE BARROS CARVALHO PARA

INTERPRETAÇÃO DO DIREITO

Consideramos neste capítulo as premissas talhadas pela corrente analítica

do chamado “constructivismo-lógico-jurídico” da PUC/SP.76 Seu maior expoente é

Paulo de Barros Carvalho; sua maior influência é Lourival Faustino Vilanova. Sob

o timbre dos ensinamentos destes mestres, acrescido das lições daqueles que os

influenciaram, bem como dos seus também seguidores, pretende-se desenvolver

cortes metodológicos (em termos cognoscentes) na norma jurídica.

Em sede de Ciência do Direito, vale dizer, suscetível de comprovação

empírica, operando com modo de referência descritivo de fatos e “valor-de-

verdade”77 - produzindo proposições jurídicas de sobrenível78 -, tenta-se

incursionar nos subsistemas descritos por Paulo de Barros Carvalho ao perscrutar

a origem da norma jurídica em seu percurso gerativo de sentido.79 Ei-los: a) conjunto de enunciados, tomados no plano da expressão;

b) conjunto de conteúdos de significação dos enunciados prescritivos; e

c) o domínio articulado de significações normativas. 76 Termo empregado por Paulo de Barros Carvalho ao prefaciar obra de Maria Rita Ferragut intitulada Presunções no Direito Tributário. (FERRAGUT, Maria Rita. Presunções no Direito Tributário. 2001, p. 08). 77 “Valor de verdade de uma proposição significa tão somente o facto dessa proposição ser verdadeira ou falsa”. (FIDALGO, António. Semiótica Geral. 1999, p. 56). 78 “São dois sistemas que nos interessam: um, o direito positivo, sistema nomoempírico prescritivo, formado por normas jurídicas e regido pela lógica deôntica; outro, a Ciência do Direito, metalinguagem relativa ao direito positivo, sistema nomoempírico teorético (descritivo), formado por um feixe de proposições descritivas regidas pelas leis da lógica clássica”. (SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Lançamento Tributário. 2001, p. 54). 79 Em vista da homogeneidade lógica do sistema, para Paulo de Barros Carvalho inexiste diferenciação entre norma de incidência tributária e norma jurídica (stricto sensu). “Nenhuma diferença há entre a percussão de uma regra jurídica qualquer e a incidência da norma tributária, uma vez que operamos com a premissa da homogeneidade lógica das unidades do sistema [...]”. (CARVALHO, Paulo de Barros. Fundamentos Jurídicos da Incidência. 1998, p. 07).

31

Com o alinhamento das pontuações realçadas, pode-se dividir os

subdomínios assinalados por Paulo de Barros Carvalho que, produzidos à luz dos

conceitos semióticos, delineiam a figura normativa intrinsecamente, numa

empreitada exegética que tem em mira a análise do discurso.

3.2. ENUNCIADO COMO SUPORTE FÍSICO DAS SIGNIFICAÇÕES

JURÍDICAS – ÍNICIO DA INVESTIGAÇÃO

Iniciamos o corte de cunho metodológico, forte no princípio da

imutabilidade (homogeneidade) sintática do texto legal, na intimidade da estrutura

sintático-gramatical que é o enunciado80 - aqui tomado como produto da atividade

psicofísica de enunciação.81

O sistema da literalidade textual, objeto de análise neste sub-item, deve ser

entendido separadamente do plano do conteúdo, vale dizer, nesse momento

importante será a análise sintática bem como morfológica do texto jurídico posto

intersubjetivamente.82 A importância da investigação nesta seara pode ser

restringida a dois itens: “i) marca o início do percurso de interpretação; e ii) é o

espaço, por excelência, das modificações introduzidas no sistema total”.83

Por certo que o legislador (lato sensu), no processo legiferante, imbuído na

enunciação do desejo de compor texto jurídico dotado de constitucionalidade –

“presunção de que o legislador teve a pretensão de elaborar norma jurídica

válida”84 - deve ater-se, além da observância de regras gramaticais, ao contexto

em que tal normativo será inserido, i.é, na pluralidade morfologicamente dada de

80 SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Lançamento Tributário. 2001, pp. 40, 35. 81 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 2003, p. 117. 82 Cabe aqui transcrever a ressalva de Paulo de Barros Carvalho que, após conceituar texto como sendo a união do plano do conteúdo ao plano da expressão, obtempera a respeito: “Torna-se indispensável sublinhar que não operamos exclusivamente com a base material do texto, mesmo porque, ao travarmos contacto com ele, já se desencadeiam os processos de elaboração de sentido, invadindo o plano do conteúdo. Mas, o objetivo é conter esses impulsos de nossa subjetividade, mantendo-nos, o mais possível, no nível físico da literalidade textual, para concretizar o fim epistemológico que nos propusemos. Só assim nos será dado apreendê-lo como sistema, ou melhor, como subsistema da totalidade discursiva”. (Idem, p. 114). 83 Idem, p. 127. 84 NEVES, Marcelo. Teoria da Inconstitucionalidade das Leis. 1988, p. 146.

32

expressões do direito positivo e, principalmente, no contexto do sistema

constitucional. Por isso fala-se em sistema jurídico.

Muito significativa, nessa ordem de idéias, a posição doutrinária assumida

por Antônio Fidalgo no que pertine à enunciação:85

Em termos linguísticos, a dimensão pragmática é exposta principalmente na questão de

enunciação. Tarefa da pragmática é estudar as condições de enunciação. Não basta que

uma frase esteja correcta do ponto de vista gramatical, é preciso também que ela se

adeque ao contexto para que possa ter o sentido pretendido e possa ser entendida nesse

sentido.

Com o seu trânsito fácil entre os domínios semióticos, mais uma vez o

professor português nos ensina:86

Vamos ver que não basta a gramaticalidade de uma frase como condição da sua

enunciação. Se L for uma língua natural e GL o sistema de regras gramaticais dessa

língua, então qualquer cadeia de símbolos é considerada uma frase de L se tiver sido

construída de acordo com as regras de GL. A gramaticalidade de uma frase significa, em termos pragmáticos, que a frase quando enunciada é compreensível a todos os ouvintes

que dominam GL.

Contudo, os problemas de ordem pragmática não terão ressonância no

plano textual (corpus do direito positivo), vale dizer, nesse momento o plano do

conteúdo é deixado de lado e as atenções voltam-se para “as diretrizes

fundamentais de organização de frases”,87 ou melhor, dir-se-á que o modo

expressional frástico (de frase) terá o sentido como objetivo.88 Este sentido, no

85 FIDALGO, António. Semiótica Geral. 1999, p. 74. 86 Idem, p. 78. 87 CARVALHO, Paulo de Barros. Fundamentos da Incidência. 1998, p. 63. 88 Mesmo na forma lógica, para que haja sentido no que fora formalizado, indispensável será a presença de variáveis proposicionais hábeis a caracterizar uma assertiva sintaticamente compreensível: “Que há estruturas sintáticas nos enunciados interrogativos comprova-se considerando que não é qualquer aglutinação de vocábulos que dá uma pergunta com-sentido. Há enunciados interrogativos sem-sentido, como os há com-sentido. Unir somente termos sincategoremáticos nunca conduzirá a uma pergunta sintaticamente bem formulada (ex.: “se então ou é?”)”. (VILANOVA, Lourival. Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. 1997, pp. 39-40). Sobre os conceitos de sincategoremas e categoremas, ensina-nos Lourival Vilanova: “As constantes lógicas são termos que a lógica clássica bem denominou de sincategoremas. O sincategorema é um termo incompleto, que, por si só, é insuficiente para montar uma estrutura. Se naquela proposição implicacional (condicional, denominada também hipotética) suprimo as variáveis, restam apenas

33

entanto, poderá cambiar, em vista da inafastável mutabilidade semântico-

pragmática, podendo qualquer enunciado prescritivo alcançar novas significações.

Retomando a análise do texto como suporte material (base empírica e

objetivada) utilizado na mensagem comunicacional (deôntica) – o qual se vale de

um código comum no processo de feitura da comunicação, por obediência às

regras de formação, como acima assinalado por Antônio Fidalgo -, diga-se que na

qualidade de suporte físico de significações, o corpus (texto) encerra uma das

principais características do sistema de enunciados: ser findável; seja o plano

descritivo (linguagem da ciência do direito), seja o plano prescritivo (linguagem do

direito positivo). Importante, principalmente, em vista do árduo desiderato de se

vislumbrar a plenitude da norma jurídica.

Para finalizar este sub-item, oportuno trazer à colação as considerações de

Lourival Vilanova sobre as regras de formação dos textos prescritivos.89

Tenhamos agora em conta a linguagem do direito positivo, não a linguagem da ciência-do-

direito positivo (dogmática). Gramaticalmente, o direito usa o modo indicativo ou o modo

imperativo dos verbos. O indicativo presente e o indicativo futuro são mais freqüentemente usados. Vários verbos são usados para indicar classes de ação ou conduta (comissiva ou

omissiva), uma vez que o direito positivo assenta nas relações sociais e atende aos vários

interesses individuais e coletivos de uma dada situação histórica. Um único verbo não

exprimiria essa rica morfologia da vida humana. Assim, temos o pluralismo gramatical, não

só nos termos, mas, vale acrescentar, nas formas sintático-gramaticais. A sintaxe e o estilo

lingüistico do direito positivo vincula-se aos contextos culturais, de que a linguagem é uma

parte integrante.

“se... e... então”. Faltam os termos completantes, os categoremas, suportes das constantes lógicas. Basta que numa estrutura como “S é P”, suprima-se um ou outro, ou ambos os categoremas, representados pelos símbolos S e P, para destruir-se a forma lógica como forma sintaticamente bem-formada”. (Idem. p. 46). 89 (VILANOVA, Lourival. Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. 1997, p. 67). Repisando seu ensinamento, até alcançar a clareza solar, preleciona Lourival Vilanova: “Geralmente, usam o indicativo-presente ou indicativo-futuro, modo verbal esse que oculta o verbo propriamente deôntico. O dever-ser transparece no verbo ser acompanhando de adjetivo participial: “está obrigado”, “está facultado ou permitido”, “está proibido” (sem falar em outros verbos, como “poder” no presente ou no futuro do indicativo). Transparece, mas não aparece com evidência formal. É preciso reduzir as múltiplas modalidades verbais à estrutura formalizada da linguagem lógica para se obter a fórmula “se se dá um fato F qualquer, então o sujeito S’, deve fazer ou deve omitir ou pode fazer ou omitir conduta C ante outro sujeito S‘ ”, que representa o primeiro membro da proposição jurídica completa”. (Idem, p. 95).

34

3.3. DA LITERALIDADE TEXTUAL À SIGNIFICAÇÃO EM ESTADO

PROPOSICIONAL

Em sede de direito positivo, os enunciados prescritivos – cujo escopo é

regular as condutas intersubjetivas90 –, esparsos pelos diversos diplomas legais,

encontram no intérprete a interligação necessária à construção-conjugação das

proposições prescritivas respectivas (significações), ao fito de obter sua

composição dual (proposição implicacional ou condicional, hipotética) da norma

jurídica. No entanto, a bimemoridade constitutiva da norma jurídica não será vista

neste instante da relação interpretativa trifásica. As significações oriundas dos

enunciados jurídico-prescritivos ficarão ao aguardo da devida articulação,

promovida pelo exegeta, ulteriormente, num processo de conjugação.

Neste estádio, chamado de sistema de significações proposicionais, a

literalidade textual pode ser tocada pelo intérprete em uma atitude axiológica. O

exegeta, agora sim, ingressa no plano do conteúdo, não se restringindo a

questões sintáticas ou morfológicas do texto do direito positivado. Busca,

finalmente, selecionar as significações das estruturas sígnicas postas.

A propósito, o escólio de Paulo de Barros Carvalho, a respeito do

subdomínio denominado ”conjunto dos conteúdos de significações dos enunciados

prescritivos”.91

O jurista que ingressa no plano do conteúdo dos documentos jurídico-prescritivos já

mergulhou, por assim dizer, no mundo do direito. Lida, agora, com o significado dos signos

jurídicos, associando-os e comparando-os, para estruturar não simplesmente significações

de enunciados, mas significações de cunho jurídico, que transmitam algo peculiar ao universo das regulações das condutas intersubjetivas.

Com efeito, saliente-se que essa posição doutrinária não olvida da força

prescritiva presente em frases isoladas do direito positivo. Porém, parte-se do

90 Lourival Vilanova separa os conceitos de proposições descritivas e prescritivas: “Teremos de compreender, como veremos, dentro do conceito de proposição, tanto os enunciados da linguagem descritiva de objetos, como os enunciados da linguagem prescritiva de situações objetivas, ou seja da linguagem cuja finalidade é “alterar a circunstância”, e cujo destinatário é o homem e sua conduta no universo social”. (Idem, p. 40). 91 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 2003, pp. 117-8.

35

raciocínio de que, para a composição completa da norma jurídica, faz-se mister a

conjugação das proposições obtidas dos respectivos enunciados prescritivos

(implícitos ou expressos).92

Para Paulo de Barros Carvalho, nos domínios do axiológico, i.é, no trato de

princípios, a mensagem prescritiva deverá ser obtida por meio de enunciado(s)

inscrito(s) no direito positivo, ou, se-lo-á na conjugação de enunciados esparsos

(mas sempre expressos) do direito positivo. Daí a inclinação do mestre da

PUC/SP por um sistema de enunciados jurídico-prescritivos composto por regras e

princípios.

Pois bem. Tenhamos em mente que, no mais das vezes, a linguagem do

direito positivo está construída (disfarçada) com partículas lógicas apofânticas, de

forma categórica (ou aparentemente categórica), como se estivesse, apenas,

descrevendo situações da vida social. Não é, pois, esse o modus que afeta o

enunciado jurídico.93 Mesmo oculto em certas ocasiões, “o dever-ser é o modal

específico das proposições normativas [...]”,94 cabendo ao intérprete a função de,

conjugando as proposições alcançadas, encontrar a mensagem deôntica contida

no mandamento.

Por esses caminhos, discorrendo conceitualmente sobre as

dessemelhanças entre a causalidade natural e a causalidade jurídica, ensina-nos

Lourival Vilanova:95

A forma lógica da proposição implicacional (ou condicional, hipotética) parece ser a que

melhor corresponde à relação semântica fato jurídico/eficácia (efeito = eficácia interna, o efectual do fato-causa). Tanto a causalidade natural como a causalidade jurídica

encontram na proposição implicacional sua adequada forma sintática. Numa como na

outra, há variáveis, há relações entre as variáveis e, acrescentemos, há relação funcional

(mais que relação). Numa e noutra, podemos aplicar a função: y = f(x), onde y representa a

conseqüência (ou o efeito, no plano real), e x representa a hipótese (a causa, ou o fato

92 Os enunciados implícitos (v.g. supremacia do interesse público sobre o privado) são obtidos, em Paulo de Barros Carvalho, no processo interpretativo, por derivação lógica dos enunciados expressos do direito positivo. 93 “O modus que afeta o enunciado jurídico é o deôntico: estatui que deve ser a implicação do conseqüente pela hipótese”. (VILANOVA, Lourival. Causalidade e Relação no Direito. 2000, p. 92). 94 VILANOVA, Lourival. Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. 1997, p. 71. 95 VILANOVA, Lourival. Causalidade e Relação no Direito. 2000, pp. 86-7.

36

jurídico, no plano real). A diferença (parece-nos) residiria no operador, não no functor

interno (“ , símbolo da implicação), mas num functor que afeta a proposição implicacional,

em seu conjunto. Seria um functor-de-functor (algumas vezes denominado functor

functoral), ou um operador de segundo grau, que vem modalizar, imprimir um modus à

implicação, em seu todo.

Noutra oportunidade, Lourival Vilanova nos esclarece a respeito do conceito

de “functor-de-functor”, nessa oportunidade chamado de “variável functoral”, na

relação implicacional entre hipótese/tese.96

Assim sendo, tem-se functor deôntico com incidência sobre a relação-de-implicação entre

hipótese e tese e mais outro functor deôntico no interior da estrutura proposicional da tese.

Ou em redução formal “D (p q)”, sendo p proposição descritiva e q proposição

prescritiva. Explicitando o interior de q, temos “S’ R S’’” onde R é a variável functoral

(Kalinowski, Études de Logique Déontique, págs. 42, 82, 184), cujos valores substituintes

são as constantes deônticas “permissão, “proibição” e “obrigação” (variável R e valores

substituintes R’, R” e R’’’). A variável substituenda R é interpretável pelo verbo deôntico

“dever-ser.

A composição de unidades lógicas, determinadas pela presença das

estruturas condicionais, não será, no entanto, exigida neste subdomínio. Será num

esforço de contextualização que o dever-ser restará inequívoco.

Estando nítidas as diferenciações entre enunciado e proposição por ele

expressada, cumpre ao sujeito em atitude cognoscente (interpretativa), integrando

o conceito de forma ao de conteúdo, construir a norma (geral e abstrata) em sua

inteireza constitutiva,97 importa dizer, deve alcançar a unidade mínima e irredutível

de manifestação do deôntico.

96 VILANOVA, Lourival. Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. 1997, pp. 99-100. 97 Vislumbrando a Regra-Matriz de Incidência em sua integridade ontológica, diz Paulo de Barros Carvalho com precisão: “Voltemos, entretanto, ao esquema lógico da norma-padrão de incidência, para dizer que a montagem da regra há de começar exatamente aí, no plano formal, lugar de variáveis e de constantes, as primeiras inteiramente aptas para serem saturadas pelos conteúdos concretos do direito positivo, apresentando-se, agora, como estruturas lógico-sintáticas de significações e, portanto, habilitadas para regular as condutas intersubjetivas. [...] É no esforço empírico de consulta ao direito positivo que a forma se junta à substância semântica, formando textos, no seu sentido bem próprio, isto é, a integração do plano de expressão com o plano do conteúdo (manifestação). E no âmbito dos textos, sim, poderemos encetar a escalda edificadora do sentido da mensagem editada pelo legislador, que a Análise do Discurso chama de percurso

37

3.3.1. Fórmulas atômicas e fórmulas moleculares: Um paralelo com a lógica

formal

Antes de ingressarmos no sistema de normas jurídicas (stricto sensu) –

num “esforço de contextualização, no léxico de Paulo de Barros Carvalho -,

passemos à analise da repercussão das fórmulas lógicas atômicas e moleculares

no processo gerativo de sentido dos signos jurídicos.98 Essa nomenclatura,

importada da física nuclear para a lógica, foi considerada por Paulo de Barros

Carvalho nas conclusões atinentes à integração dos três subsistemas

compreendidos na feitura da norma jurídica:99

[...] os primeiros (os enunciados) se apresentam como frases, digamos assim soltas, como

estruturas atômicas, plenas de sentido, uma vez que a expressão sem sentido não pode aspirar à dignidade de enunciado. Entretanto, sem encerrar uma unidade completa de

significação deôntica, na medida que permanecem na expectativa de juntar-se a outros

unidades da mesma índole. Com efeito, terão que conjugar-se a outros enunciados, consoante específica estrutura lógico-molecular, para formar normas jurídicas, estas sim,

expressões completas de significação dêontico-jurídica.

Esta arguta ilação do mestre paulista tem especial relevância no que pertine

à “função de verdade” – mutatis mutandis, à “função de validade” dentro da lógica

deôntica – de uma fórmula molecular em relação às unidades atômicas que a

compõe. Esta lição vem-nos da Argentina, no testemunho confiável de Delia

Teresa Echave, María Eugenia Urquijo e Ricardo A. Guibourg:

“Toda fórmula molecular es una función de verdad de las fórmulas atómicas que la

componem: es decir, su verdad o su falsedad dependen de la verdad o de la

gerativo de sentido”. (CARVALHO, Paulo de Barros. Base de Cálculo como fato jurídico e a taxa de classificação dos produtos vegetais. 1998, p. 121). 98 “Una fórmula atómica es aquella constituida exclusivamente por una variable proposicional, no modificada por operador alguno: “p”, por ejemplo. Las fórmulas en las que aparace un operador monádico (“-q”) o que resultam de un combinación de fórmulas unidas por conectivas diádicas ( “r v s”, “z = w”) se llaman moleculares”. (ECHAVE, Delia Tereza, URQUIJO, María Eugenia e GUIBOURG, Ricardo. Lógica, proposición y norma. 1995, p. 46). 99 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 2003, pp. 108-9.

38

falsedad de las proposiciones representadas por las variables simples”,100 tudo

porque “es evidente que en un último análisis las proposiciones moleculares se

descomponen en proposiciones simples llamadas atómicas”.101

Nessa órbita, tratando da bimembridade das normas jurídicas, alcançamos

deduções de grande valia, extensíveis a questões pontuais. Quanto à validade do

prescritor em detrimento do descritor, ensina-nos o jusfilósofo pernambucano

Lourival Vilanova: “Não é possível a hipótese (prótase) ser válida, ou verdadeira, e

a conseqüência (apódose) ser não-válida, ou falsa”.102 Vale dizer, não pode o

antecedente ser válido e o conseqüente inválido, porquanto eivaria de invalidade a

norma em sua integridade.

Cuida-se, nesse aspecto, das chamadas proposições condicionais103

(hipotéticas ou implicacionais), - relação antecedente/conseqüente -, vertidas com

o nexo se..., então... “No domínio das proposições deônticas, a lei formal de

implicação dirá: a implicação deôntica é não-válida (conceito paralelo ao de

falsidade) se a proposição antecedente for válida e a conseqüente não-válida”.104

Daí podemos concluir que, em Paulo de Barros Carvalho, a validade da

norma jurídica é comprovada pela validade dos enunciados/proposições que a

compõe.

A validade, aqui havida como existência, poderá ser inferida da norma geral

e abstrata para a norma individual e concreta, por aquele que tem competência

derradeira para fazê-lo, o Judiciário, sem que com isso haja previsibilidade na

individualização concebida:

Também aqui é insignificante o fato de que as normas jurídicas gerais sempre concedem

uma certa liberdade de arbítrio ao órgão aplicador do Direito. Pois, se a validade da norma

individual pode ser, enfim, deduzida logicamente da validade da norma geral que deve ser

100 ECHAVE, Delia Tereza, URQUIJO, María Eugenia e GUIBOURG, Ricardo. Lógica, proposición y norma. 1995, p. 46. 101 KALINOWSKI, Georges. Introducción a la Lógica Jurídica. 1973, p. 11. 102 VILANOVA, Lourival. Causalidade e Relação no Direito. 2000, p. 97. 103 Sobre as proposições condicionais e bicondicionais, veja-se: (ECHAVE, Delia Tereza, URQUIJO, María Eugenia e GUIBOURG, Ricardo. op. cit., pp. 57-65). 104 VILANOVA, Lourival. Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. 1997, p. 124.

39

aplicada, existe tal dedutibilidade também se o órgão competente para a fixação da norma

individual tem uma certa liberdade de arbítrio.105-106

Assim, uma norma geral e abstrata poderá gerar, ao alvedrio do julgador,

tantas outras normas de decisão sempre válidas.107 De se observar que isto se

deve à não-identidade entre norma jurídica e texto da norma.

3.4. MÍNIMO IRREDUTÍVEL DE MANIFESTAÇÃO DO DEÔNTICO COMO

CONJUNTO ARTICULADO DAS SIGNIFICAÇÕES PRESCRITIVAS

Patente, pois, o fato da norma jurídica requerer o trabalho exegético,

ensejador da união do plano da expressão (plano dos significantes) ao plano do

conteúdo, unificador das proposições prescritivas advindas dos enunciados

jurídico-prescritivos, necessário ao trato da mensagem deôntica completa.

O esforço de contextualização terá em mira as significações obtidas pelo

exegeta a partir do direito positivo para, ao manejá-las, compor as unidades

completas de sentido, onde a condicionalidade será nítida. Logo após, poderá o

intérprete cotejar o produto de seu empreendimento exegético junto ao

emaranhando de enunciados prescritivos do ordenamento jurídico, principalmente

105 (KELSEN, Hans. Teoria Geral das Normas. 1986, p.240). Cabe aqui a ressalva exarada por Lourival Vilanova quanto aos fundamentos extra-lógicos que norteiam o ato decisório. “[...] a Lógica mesma é impotente para escolher a premissa maior, isto é, a proposição normativa geral. Não é potente para essa seleção, justamente porque não tem meios para decidir sobre o conteúdo normativo da proposição jurídica”. (VILANOVA, Lourival. Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo, 1997, p. 317). Esta obtemperação não será, no entanto, incongruente com a obra de Kelsen, o que se infere no seguinte asserto: “Questiona-se a relação de uma norma geral com sua aplicação a um caso concreto, também não é meu problema que na decisão desse caso concreto se possa partir de diferentes normas gerais, que diferentes normas gerais podem ser aplicadas a um caso concreto, ou que uma e a mesma norma possa ser interpretada de modo diferente na sua aplicação a um caso concreto; que, portanto, pode chegar a haver diferentes decisões desse caso pela via da conclusão lógica, o que prejudica essencialmente o valor da conclusão”. (KELSEN, Hans. op. cit., p. 239). Portanto, alheios à validade da norma individual e concreta (de decisão) têm-se os fundamentos axiológicos que corroboraram à sua criação, nada obstante o fato de que “as normas individualizadas fundamentam-se, em último termo, nas normas gerais. Nem sempre, é certo, como num sistema de enunciados científicos”. (VILANOVA, Lourival, Causalidade e Relação no Direito. 2000, p. 82). 106 Veja-se também, a crítica de Karl Larenz aos juízos subsuntivos, i.é, os “juízos mediante os quais se conhece um particular como caso do conceito geral (conceito de gênero ou de espécie) que é pensado conjuntamente com o conceito desse particular”. (LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 1989, p. 309). 107 “A norma de decisão, que representa a medida de ordenação imediata e concretamente aplicável a um problema, não é uma ‘grandeza autónoma’, independente da norma jurídica, nem uma ‘decisão’ voluntarista do sujeito de concretização; deve, sim, reconduzir-se sempre à norma jurídica geral”. (CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2000, p. 1185).

40

em seus mais altos escalões, ao escopo de verificar a

constitucionalidade/legalidade do objeto alcançado.

A norma jurídica, agora sim, será visualizada em sua totalidade ontológica,

após o esforço de contextualização exercido pelo intérprete.

Para encerrarmos este sub-item, reservamos um exemplo que é muito

valioso porque saiu da pena do próprio Paulo de Barros Carvalho:108

Imaginemos enunciado constante de lei tributária que diga, sumariamente: A alíquota do

imposto é de 3%. Para quem, souber as regras de uso dos vocábulos “alíquota” e

“imposto”, não será difícil construir a significação dessa frase prescritiva. Salta aos olhos,

contudo, a insuficiência do comando, em termos de orientação jurídica da conduta. A primeira pergunta certamente será: mas 3% do quê? E o interessado sairá à procura de

outros enunciados do direito positivo para entender a comunicação dêontica em sua

plenitude significativa. Digamos que não lhe custe deparar com oração prescritiva gravada assim: A base de cálculo é o valor da operação. Pronto, o montante a ser recolhido a título

de imposto já pode ser imediatamente apurado. Remanescem, ainda, na mente do

intérprete, outras dúvidas que hão de ser esclarecidas. A quem deve pagar a quantia do

tributo? Quem será o sujeito ativo dessa exação? E, novamente, continuará ele na busca de outras unidades de significação que possam completar o sentido da mensagem. Não

encontrando disposição expressa no texto examinado, o interessado consultará a Lei

Constitucional brasileira, investigando a quem fora outorgada a competência para legislar a

matéria, índice seguro, na maior parte dos casos, para identificar-se o titular do direito

subjetivo público à exigência do gravame.

3.5. A PRÉ-COMPREENSÃO MULLERIANA SOB A ÓTICA DE PAULO DE

BARROS CARVALHO

Dentro da doutrina de Paulo de Barros já houve, é verdade, referência aos

domínios do axiológico no processo exegético, em função do reconhecimento da

presença da ideologia de quem interpreta, um sujeito imbuído de valor, que se

debruça sobre o direito, um objeto da cultura.109 A extração da idéia de uma

fórmula lingüística pelo sujeito compreendente, importa dizer, a compreensão

108 CARVALHO, Paulo de Barros, Fundamentos da Incidência. 1998, pp. 70-1. 109 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 2003, p. 111.

41

da(s) proposição(ões) contida(s) em um(s) enunciado(s), será o momento onde

serão vislumbradas as significações/proposições no sistema objetivado do direito

positivo. Nesse momento, diz Paulo de Barros, o jurista ingressa no plano de

conteúdo dos documentos jurídico-prescritivos, para estruturar significações de

cunho jurídico.110 Sua compreensão da base física do texto estará,

inevitavelmente, mergulhada em premissas valorativas que nortearam a criação

da significação.111

O percurso gerativo de sentido de Paulo de Barros, dessa forma, consistirá

num processo puramente cognitivo que, segundo Müller, “se esgotará (consumirá)

no conhecimento da significação objetivamente dada”.112 O papel do sujeito é

diminuído por se trabalhar unicamente com a compreensão.113 Não será factível

à compreensão, singelamente cognitiva, a percepção da concretização do Direito

em sua totalidade compositiva.

Paulo de Barros, porém, na última edição de seu Curso, incluiu novas

feições valorativas em seu processo exegético, dando-lhe margem científica para

110 Idem, p. 118. 111 “Eis o momento do ingresso no plano do conteúdo. Tendo o intérprete isolado a base física do texto que pretende compreender, estabelecendo, por esse modo, o primeiro contato com o sistema objetivado das literalidades, avança agora disposto a atribuir valores unitários aos vários signos que encontrou justapostos, selecionado significações e compondo segmentos portadores de sentido”. (Idem, pp. 117-8). 112 “Le positivisme enfin, toujours prédominat, veut concevoir la concrétisation comme un processus purement cognitif qui s’epuiserait dans la connaissance de la signification (la “norme juridique”) objectivement donnée à l’avance d’un texte et dans son application tecnico-instrumentale au cas concret” (MÜLLER, Friedrich. Discours de la Méthode Juridique. 1996, p. 210). 113 Quer-nos parecer que a compreensão engendrada por Paulo de Barros Carvalho, em seu percurso gerativo de sentido, aproxima-se do par “conotação-denotação”, o qual é intimamente relacionado com a “díade intensão-extensão” da lógica moderna, presente na definição de compreensão de Nicola Abbagnano, verbis: “Dizia Arnauld: Nas idéias universais, é importante distinguir bem duas coisas, a C. e a extensão. Chamo de C. da idéia os atributos que ela inclui em si e que não podem ser retirados sem destruí-la; assim, a C. da idéia de triângulo contém extensão, figura, três linhas, três ângulos e a igualdade desses três ângulos a dois retos, etc. Chamo de extensão da idéia os sujeitos aos quais essa idéia convém que também se chamam inferiores de um termo geral que, em relação a eles, é chamado superior; assim, a idéia de triângulo, em geral, estende-se a todas as diversas espécies dos triângulos” (Log., I, 6). Essa distinção encontrava alguns precedentes na lógica medieval, mas foi expressa de modo aproximado só a partir do séc. XVI (p. ex., por CAJETANUS, In Porphyrii Praed., ed. 1579, I, 2, p. 37; cf. HAMILTON, Lectures on Logic, I, 1866, p.141). À própria distinção vinculava-se a determinação da relação inversa que há entre C. e extensão assim definidas: à medida que a C. se empobrece, isto é, torna-se mais geral, a extensão se enriquece, isto é, o conceito se aplica a mais coisas; e vice-versa. Essas distinções e observações foram retomadas pela lógica, especialmente alemã, do séc. XIX (cf. p. ex., LOTZE, Logik, 1843, §15), permaneceram constantes e por vezes foram expressas mediante o par sinônimo conotação-denotação, especialmente por escritores ingleses”. (ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 2000, p. 160).

42

novas incursões, quando mencionou a pré-compreensão.114 Trabalha-se, aqui,

no campo das cogitações.

O conceito tradicional do círculo hermenêutico, vale lembrar, encontrou na

pré-compreensão um fundamento que ultrapassa a semelhança sujeito/objeto do

intérprete com o texto.115 Tudo porque a compreensão, per se, não dirá realmente

os valores que ensejaram a feitura da norma jurídica,116 não podendo ser deixado

de lado o efeito criador da pré-compreensão.

A nós parece-nos que Paulo de Barros Carvalho, neste particular, inclina-se

para uma lógica não-plenamente-formal, pois não se mostrou indiferente aos

conteúdos das proposições/significações, nem às operações intelectuais do sujeito

do conhecimento. Seria uma evolução à margem de Lourival Vilanova?

Para Müller a pré-compreensão no direito biparte-se em jurídica e material

(não-jurídica), sendo a dualidade plenamente justificável em vista de sua teoria:117

Não é uma diferença lingüística (“gramatical”) dos textos das normas, mas a eficácia da pré-compreensão (jurídica) que demonstra que o texto da norma do art. 4º al. 1 da Lei

Fundamental possa afigurar-se ao jurista “menos claro”, “mais amplo” ou “mais

indeterminado” do que o texto da norma do art. 52 al. 1 da Lei Fundamental. Diante do

pano de fundo da sua pré-compreensão não-jurídica, ambos os enunciados talvez se

afigurem ao não-jurista igualmente “claros” ou “não-claros” em termos de conteúdo. Já no

quadro da sua pré-compreensão materialmente informada e orientada dos problemas

jurídicos e das normas, o jurista compara os âmbitos das normas das prescrições em

pauta, dos quais, ele conhece as linhas mestras ou os pormenores, com os seus textos. Já por ocasião dessa operação raciocinante previamente efetuada e muitas vezes não-

explícita, ele constata diferenças consideráveis entre as estruturas das normas.

114 (CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 2003, p. 129). Karl Larenz aborda a questão da pré-compreensão, vislumbrando-a num contexto de atores e cenários, com forças materiais atuantes, cuja posição do sujeito da interpretação é sobrelevada. (LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 1989, pp. 285-300). 115 “Le concept traditionnel de cercle herméneutique trouve ici un fondement qui dépasse le rapport sujet/objet de l’interprète auec le texte. Comme on l’a dit, on ne vise pas ainsi l’arbitraire dans la précompréhension juridique”. (MÜLLER, Friedrich. Discours de la Méthode Juridique. 1996, p. 219). 116“A essa pressuposição hermenêutica é que se dá o nome de pré-compreensão, porque evidentemente não é produto do procedimento compreensivo, já que é anterior a ele”. (GADAMER, Hans Georg. Verdade e Método: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 1999, p. 337). 117 MÜLLER, Friedrich. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. 2000, pp. 73-4.

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Poder-se-ia, desse modo, ao analisar o processo gerativo de sentido de

Paulo de Barros Carvalho, à luz da dualidade pré-compreensiva de Müller, cogitar

uma nova faceta de seu processo exegético. Por óbvio que sensíveis alterações

deverão ser feitas na obra do mestre paulista para tal construção. Nada impede,

no entanto, que imaginemos esta simbiose como corolário lógico do

aperfeiçoamento metódico que esta parte do Curso vem sofrendo. Iríamos além

de Paulo de Barros sem sair de Paulo de Barros.118 Em sede de cogitações, tal

itinerário deverá assumir que o sintático do texto normativo não será o único

fundamento para a construção da norma jurídica, podendo dados extra-lingüísticos

comporem a norma. Dessa forma, abrir-se-ia uma margem para a inclusão da

realidade fática no bojo do processo exegético, vale dizer, se se permite a

visualização da pré-compreensão não-jurídica, razoável será a inclusão do âmbito

da norma na empresa hermenêutica, a qual poderia então ser chamada

concretista. Sabe-se que a metódica mulleriana não vislumbra a hermenêutica,

unicamente, restrita aos elementos da linguagem, nem por homenagem à

segurança jurídica e à certeza do direito.

Este perfunctório sub-item agora é encerrado, após alguns comentários de

escopo provocativo, porém estamos cientes de que a obra de Paulo de Barros

Carvalho continuará evoluindo em passos largos, seguindo a dicção dos

modernos estudos da Teoria Geral do Direito.

118 Foi o próprio Paulo de Barros quem nos mostrou a factibilidade de construções metodológicas deste jaez: “E, de fato, há desdobramentos que se afiguram como corolários de uma teoria, não extraídos por aquele que a concebeu, mas que podem perfeitamente ser sacados por quem se dispuser a segui-la”. (CARVALHO, Paulo de Barros. O Princípio da Segurança Jurídica em Matéria Tributária. 1998, p. 79).

44

4. OS JUÍZES CRIAM TRIBUTOS? 4.1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS Chegamos à parte mais fácil do trabalho. A simplicidade anunciada não

quer significar a restrição do discurso à uma questão puramente verbal. Ao revés,

pretendemos convencer por argumentos jurídicos, na esteira dos ensinamentos de

Friedrich Müller, forte no senso científico de Paulo de Barros Carvalho.

Sabemos que a análise do campo de irradiação semântica da locução “os

juízes criam tributos” já vinga. Por essa passagem, sem as muralhas dos

preconceitos apriorísticos e com os olhos de bem se ver, razoabilidade e bom

senso indicam que novos caminhos podem ser edificados, longe de quaisquer

reducionismos.

O valor-de-verdade de todo o trabalho será posto em cheque nas linhas que

se seguirão. Por isso, pedimos que a análise seja feita sem “pré-conceitos”, onde

o Direito Tributário deverá ser visto como fenômeno e não como estagnação.

Para começar, sob os ventos de reanimadora doutrina, vejamos as obras

que nos inspiraram na escolha do título. Em Notas sobre Derecho y Lenguaje,

Genaro R. Carrió desenvolve judiciosa análise sobre o fenômeno ora posto à

observação, num subcapítulo chamado “Los Jueces Crean Derecho”. Imbuídos de

um espírito carrioninano, cotejaremos a interrogação posta no título da obra de

Mauro Cappelletti, “Juízes legisladores?”, visando um questionamento que dê

margem ao deslinde das controvérsias que rodeiam a matéria.

4.2. O INÍCIO DA CONTROVÉRSIA – POSSÍVEL DESLINDE LINGÜÍSTICO Depararemo-nos com a polissemia, a qual se mostra presente num grande

número de palavras quando utilizadas no âmbito do Direito. Os três vocábulos que

formam a expressão são eivados de plurivocidade, vale dizer, são ambíguos, o

45

que torna o trabalho cômodo, pois sempre encontraremos significações úteis,

porém o risco da equivocidade sempre estará presente, fato que poderá

comprometer a análise empreendida.

Com efeito, ao tratar a questão sob a angularidade terminológica, cada

proposição produzida pelo leitor ao examinar esta expressão poderá ter o seu

valor de verdade ou falsidade, em consonância com a significação eleita para a

interpretação. Carrió,119 atento à esta constatação, desenvolveu um quadro sobre

o valor veritativo das significações/proposições produzidas a partir da expressão

“los jueces crean derecho”, o qual tomaremos como norte, sendo o seu estilo terso

e elegante merecedor de uma generosa transcrição. Elenca, o professor

argentino, os requisitos para um desfecho lingüísticos:

a) precisar si en la disputa la expresión “los jueces” se usa como sinônimo de ( 1 ) “cada

uno de los jueces” o de ( 2 ) “el conjunto de los jueces, o los jueces como cuerpo”.

b) estipular un significado libre de vaguedad – en sentido restringido – para el vago

término “crean” y, una vez hecho eso, precisar si, en el contexto, “crean” siginifica ( 3 )

“siempre crean”, o ( 4 ) “dadas ciertas circunstanciais crean”; y c) precisar el significado o siginificados que, en el contexto de la polémica, puede tener la

multívoca palavra “derecho”, que tanto puede querer decir allí ( 5 ) “normas generales

sancionadas por el legislador”, o ( 6 ) “normas generales, legislativas o no, impuestas

por el poder público, incluido los jueces”, o ( 7 ) “normas generales, legislativas o no,

impuestas por el poder público, incluidos los jueces, o normas individuales que no son

una mera deducción a partir de aquellas normas generales”, o ( 8 ) “normas –

generales o individuales – impuestas por el poder público, incluindo los jueces”.

Si para eliminar la ambigüedad de “los jueces crean derecho” substituimos ese enunciado

por las proposiciones que resultan de las clarificaciones y precisiones sugeridas,

desaparecerá toda discordancia. Pues entonces aquel enunciado puede querer decir,

simplesmente, algunas de estas cosas:

I) “El conjunto de los jueces, dada ciertas circunstancias, elaboran, normas generales”

(significado incluido en [( 2 ) + ( 4 ) + ( 6 )];

II) “Los jueces, es decir cada uno de ellos, siempre dictan sentecias” [significado incluido en ( 1 ) + ( 3 ) + ( 8 )];

119 CARRIÓ, Genaro R. Notas sobre Derecho y Lenguaje. 1979, pp.107-9.

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III) “En ciertas circunstancias los jueces dictan sentecias que no son el resultado de una

mera deducción a partir de normas generales preexistentes” [significado incluido en (

1 ) + ( 4 ) + ( 7 )].

La afirmación ( I ) importa reconocer el caráter de fuente de derecho autónoma

pacíficamente asignado a la jurisprudencia. La afirmación ( II ) es una verdad de Perogrullo que no ha de conmover a nadie y com la que nadie puede honestamente disentir. La

afirmación ( III ) tampoco suscitará divergencias siempre que las partes entiendan lo mismo

por “mera deducción”.

Paralelamente puede ser que al sostener falsedad de “los sueces crean derecho” todo

cuanto se quiera decir sea una de estas dos cosas, o ambas:

IV) “Es falso que los jueces, ya actuando individualmente, ya como cuerpo, dicten leyes”

[siginficado ( 1 y 2 ) + ( 3 y 4 ) + ( 5 )];

V) “Es falso que los jueces actuando en forma individual dicten normas generales” [siginficado ( 1 ) + ( 3 y 4 ) + ( 6 )].

Es perfectamente posible que los antagonistas originarios concuerden acerca de ( IV ) y ( V

), sin que al sostener la falsedad del enunciado “los jueces crean derecho” se pretenda, por

lo demás, negar la verdad de ( I ) y [( II ) o ( III )], que, por otra parte, sería todo lo que

quieren afirmar quienes lo afirmam.

[...] Uno y otro pretenden que “los jueces crean derecho” dice algo más que en lo que nuestro

análisis le hemos hecho decir. Y respecto de ese “alo más” el desacuerdo subsiste, porque

ambas partes puden decir a dúo: “Estamos de acuerdo en todo lo que usted ha señalado, a

saber ( 1 ) que los jueces nunca dictan leyes; ( 2 ) que el conjunto de los juece, en ciertas

circunstancias, estabelene jurisprudencia; ( 3 ) que los jueces siempre dictan sentencias;

(4) que las sentencias judiciales, en ciertos casos, no constituyen una pura deducción a

partir de la ley; y ( 5 ) que una sentencia judicial no constituye una norma geral obligatoria

para otros jueces. Pero no obstante ello estamos en desacuerdo respecto de una cosa distinta, a saber, si los jueces crean derecho”.

Da mesma sorte, a palavra tributo encontrou em Paulo de Barros Carvalho

um show-room lexicográfico dos mais respeitados de nossa tributarícia.120

120 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 2003, p. 19.

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O vocábulo “tributo” experimenta nada menos do que seis significações diversas, quando

utilizado nos textos do direito positivo, nas lições da doutrina e nas manifestações da

jurisprudência. São elas:

a) “tributo” como quantia em dinheiro;

b) “tributo” como prestação correspondente ao dever jurídico do sujeito passivo;

c) “tributo” como direito subjetivo de que é titular o sujeito ativo; d) “tributo” como sinônimo de relação jurídico tributária;

e) “tributo” como norma jurídica tributária;

f) “tributo” como norma, fato e relação jurídica.

O cotejo das doutrinas nos trará resultados suficientes a ensejar a

aceitação daquilo que se está a afirmar.

Ao engendrarmos o encontro das significações, alcançamos uma

satisfatória resposta para a nossa pergunta inicial. Dentre as três significações,

destaca-se, nessa quadra conceitual, a noção da “matéria criada”. “Tributo é uma

relação jurídica, definiu-o o Código Tributário Nacional, através de seu objeto

dizendo tratar-se de uma prestação”.121 Por isso, “tende-se a trabalhar o tema das

fontes do direito tributário como o estudo ou causa das obrigações tributárias”.122

Ao assumirmos esta posição, não parece difícil sustentar que “um conjunto de

magistrados, em alguns casos, poderão criar relações jurídico-tributárias”, onde ali

não se sabia se existiam. Referimo-nos àquelas hipóteses onde uma exigência do

Poder Público, sem as vestes de tributo, será reconhecida pelo Judiciário como

tal, numa sentença de cunho declaratório-constitutivo, para o fim de adequar o

comportamento do sujeito ativo da obrigação ao sistema constitucional tributário.

Esta mesma relação jurídico-tributária poderia, noutra banda, ao talante do

magistrado que apreciar a causa, nunca existir, acaso o pleito em que se discute o

gravame seja julgado improcedente.

A proposição descritiva “os juízes criam tributos”, neste contexto, será

modalizada como problemática, na terminologia da lógica clássica, pois

possivelmente os juízes criarão tributos.123

121 ATALIBA, Geraldo. Direito Material Tributário. Relação Tributária e Hipótese de Incidência. 1978, p. 36. 122 SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Decadência e Prescrição no Direito Tributário. 2000, p. 50. 123 VILANOVA, Lourival. Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. 1997, p. 73.

48

4.3. DIREITO TRIBUTÁRIO – O ÁPICE DO APEGO AO SINTÁTICO

A estrita legalidade tributária, não é novidade, supera toda e qualquer

exigência presente noutros ramos do Direito no que pertine à obediência à Lei.

Nela se contém um plus, impondo ao legislador a necessidade de, ao descrever a

regra-matriz de incidência, atinar-se aos elementos descritores do fato jurídico e

aos dados prescritores da relação obrigacional.124 Tudo por força da tipicidade

tributária.

Em vista disso, estaria a nossa proposta em frontal descompasso com a

estrita legalidade, assim como das demais exigências constitucionais que se

referem à criação, instituição ou decretação de um tributo?

Como diria Geraldo Ataliba, “é cediço que a Constituição exige que o

legislador exaura a função instituidora de tributos, não relegando ao Executivo o

suprimento de nenhuma lacuna”.125 Disse-o bem Ataliba, mas tal asserção, a

nosso ver, estaria mais precisa se ao invés de tributo houvesse designação à

regra-matriz de incidência tributária.126

Sabe-se que o arcabouço de todas as figuras tributárias existentes em

nosso sistema tem o seu locus no Texto Constitucional. Ali, o constituinte definiu

suas exigências em pormenores, sem margem para inovações infra-

constitucionais. A regra-matriz de incidência, em face desta constatação, foi

primorosa. São os cinco critérios que deverão estar exaustiva e completamente

descritos na Lei tributária, em consonância com os ditames constitucionais, sob

pena de ter-se por ineficaz a relação jurídico-tributária pretendida.

Portanto, a regra-matriz de incidência há que ser saturada por preceitos

legais (stricto sensu) em sua bimembridade constitutiva, “seja a menção genérica

do acontecimento factual, com seus critérios compositivos (material, espacial e

124 Idem, pp. 157-8. 125 ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. 2001, p. 200. 126 Em vista da patente plurivocidade do vocábulo tributo, é possível que Geraldo Ataliba tenha empreendido a significação por nós pretendida. No entanto, a ressalva merece ser externada, em vista do descrímen perseguido no trabalho.

49

temporal)”,127 seja a “regulação da conduta firmada no conseqüente, também com

seus critérios próprios, vale dizer, indicação dos sujeitos ativo e passivo (critério

pessoal), bem como da base de cálculo e da alíquota (critério quantitativo)”.128

Dessarte, é essencial à exigência fiscal a presença destes cinco critérios,

sob pena de macular-se o desiderato estatal. Grosso modo, constituem o mínimo

necessário para que haja uma exigência fiscal, importa dizer, formam o conteúdo

suficiente a ensejar a cobrança fiscal. Mas o sistema constitucional tributário não

se satisfaz com a obediência aos cinco critérios, pelo contrário, existe um rol de

requisitos imperiosos que não se apresentam no “dia-a-dia” das cobranças fiscais.

Para alcançar tal pretensão, as pessoas com capacidade tributária ativa ancoram-

se em duas bases de sustentação: a presunção de constitucionalidade dos atos

legislativos e a regra de imperatividade da Lei (regra de calibração).129-130

Com isso, quer-se dizer que o conceito de tributo não será vislumbrado no

emaranhado de leis que saturarão a regra-matriz de incidência, ao contrário, além

de existirem peculiaridades estruturais atinentes a cada previsão constitucional de

tributo, a própria natureza de uma figura tributária impede uma definição a priori do

que será a relação jurídico-tributária, porventura existente, com a chancela dos

cânones constitucionais.131 Se consistirá ou não uma relação jurídico-tributária, 127 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 2003, p. 126. 128 Idem, Ibidem. 129 Sobremais, acresce-se às prerrogativas do produto legislado - manejado pelo Fisco na consecução de seus fins -, a presunção de legitimidade dos atos administrativos. Conceituando este atributo, disse Celso Antônio Bandeira de Mello: “Presunção de legitimidade – é a qualidade, que reveste tais atos, de se presumirem verdadeiros e conformes ao Direito, até prova em contrário. Isto é: milita em favor deles uma presunção juris tantum de legitimidade; salvo expressa disposição legal, dita presunção só existe até serem questionados em juízo. Esta, sim, é uma característica comum aos atos administrativos em geral; as subsequentmente referidas não se aplicam aos atos ampliativos. (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 2002, pp. 369-370). 130 Marcelo Neves, apoiado em Ghigliani, coloca a regra de calibração como corolário do princípio da presunção de constitucionalidade, dentro da relação entre autoridade legislativa e destinatário da lei: “Daí porque, quando descumpre ou desaplica uma lei por considerá-la inconstitucional, o destinatário assume o risco de sofrer as sanções impostas em virtude da interpretação contrária ao órgão competente”. (NEVES, Marcelo. Teoria da Inconstitucionalidade das Leis, 1988, p. 147). Entendemos por bem, ao menos para destacar os dois fenômenos, separa-los, deixando claro a inter-relação havida entre eles. Sobre a regra de calibração, veja-se: (FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Teoria da Norma Jurídica. 2000, p. 156). 131 Em que pese tratar-se de uma “regra”, passível, pois, de exceções, os “critérios” presentes na norma-padrão de incidência de Paulo de Barros Carvalho mereceram de Sacha Calmon Navarro Coêlho algumas ressalvas que ora transcrevemos: “É que o fato jurígeno (um “ser”, “ter", “estar” ou “fazer”) está sempre ligado uma pessoa e, às vezes, os tributos ou qualificações dessa pessoa são importantes para a delimitação da hipótese de incidência. Exemplo marcante da importância do aspecto pessoal constante das hipóteses de incidência nos oferta o “fato gerador” do ICMS. Com efeito, não basta haver circulação. É mister que a

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quem dirá será a pessoa que a criou, no momento de sua feitura e pelos

argumentos ali aduzidos e sobrelevados. A regra-matriz de incidência não

configurará o tributo, mas apenas e tão-somente será o norte da exigência levada

a efeito pela Administração Fazendária. Adiante demonstraremos a diferença

entre as duas situações.

Longe de qualquer celeuma que envolva a pertença de critérios outros na

estrutura lógico-sintática da regra-matriz de incidência, pretende-se uma

conceituação de tributo que valorize o Judiciário, por ser o único a ter competência

para conjugar os mandamentos constitucionais-tributários plenamente, afastando

normativos eivados de inconstitucionalidade e, dessa forma, criando uma relação

pessoa promotora da circulação seja industrial, comerciante, produtor agropecuário ou equiparado. (COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Teoria Geral do Tributo e da Exoneração Tributária. 2000, pp. 113-4). Noutra oportunidade, tratando do princípio da não-cumulatividade do ICMS, escreveu o professor mineiro: “Trilham por caminhos errados todos os que acham não integrar a norma jurídico-tributária do ICMS o princípio da não-cumulatividade. Integra sim, e integra a conseqüência. A base de cálculo não é o único modo de apurar-se o quantum do dever decorrente da realização do suposto. Seria reduzir a estrutura normativa à sua feição mais primária. Existem impostos sofisticados, do ponto de vista jurídico, tais como o ICMS e o imposto de renda, que exigem operações algo complexas para a conclusão do quantum debeature e que solicitam o concurso de leis e princípios diversos, todos convergentes a um só fim: a “quantificação” do dever do sujeito passivo da obrigação. [...] Ora, se o cálculo monetário do imposto devido pelo contribuinte não fizer parte da conseqüência da norma-de-dever, dita tributária, estará destruída toda a rica versatilidade científica da teoria da norma tributária, presa ao “fetiche” da base de cálculo, erigida, em face do tributo, por Becker, Amílcar de Araújo Falcão e Rubens Gomes de Souza como o seu elemento “definitório” (Idem, pp. 125-6). José Roberto Vieira, invocando a dualidade “norma tributária em sentido amplo/norma tributária em sentido estrito”, construída por Paulo de Barros Carvalho para justificar a mantença de cinco critérios na regra-matriz de incidência, defende o afastamento da não-cumulatividade da norma tributária em sentido estrito do IPI, vale dizer, afastando o pretendido por Sacha Calmon: “Todavia, este reconhecimento não implica admitir que a não cumulatividade venha a imiscuir-se na regra-modelo para desfrutar de efetividade, como inexplicavelmente quer SACHA CALMON. É suficiente que o cânone esteja consagrado no sistema normativo, e ele está, não na norma tributária em sentido estrito (norma-padrão), mas entre as outras normas tributárias do IPI, que pertencem ao vasto conjunto das normas em sentido amplo, abrangendo as relativas aos princípios e às providências administrativas [...]. É PAULO DE BARROS CARVALHO quem, com a perspicácia científica habitual, classifica as normas que veiculam a não cumulatividade, que, em termos de IPI, assim se mostram: aquela prevista no artigo 153, parágrafo 3º, II, do diploma constitucional é inegável norma principiológica, as demais enquadram-se entre as normas que fixam providências administrativas; todas elas normas tributárias em sentido amplo. Não diverge, quanto à não cumulatividade, o pensamento de JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO. [...] Com efeito, excepcionando o princípio constitucional, todas as regras atinentes à não cumulatividade inscrevem-se entre as normas que operacionalizam administrativamente o IPI, vinculando-se de forma estreita e constante com a etapa arrecadatória, situando-se por inteiro no plano do recolhimento; além, por conseguinte, de qualquer possível nexo com a norma-padrão, da qual a não cumulatividade está terminantemente apartada. Tanto que estas últimas páginas, a ela dedicadas, só fazem sentido porque imbuídas do escopo de afastá-la definitivamente do estudo da regra-matriz de incidência do IPI”. (VIEIRA, José Roberto. IPI - A regra-matriz de Incidência. Texto e Contexto. 1993, p. 125). A nossa proposta, como veremos, para afastar a trivialidade da estrutura lógico-sintática da regra-matriz de incidência, em vista das peculiaridades que rodeiam cada figura tributária, mantém intacto o projeto de Paulo de Barros Carvalho, realçando seu valor como mínimo necessário à exigência fiscal, porém pugnando por uma nova ótica do conceito de tributo, a ser traçado pela pessoa do juiz.

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jurídico-tributária com a chancela do Direito. Tenta-se, pois, afastar a trivialidade e

a inconsistência da regra-matriz de incidência.

Como veremos, somente o Judiciário terá legitimidade para dizer se a

exigência efetuada pelo Poder Público, em sede de tributação, está revestida dos

requisitos constitucionais, ou constituirá enriquecimento sem causa, passível de

restituição/compensação, noutras palavras, se tributo o era.

4.4. CRIAR, CRIAÇÃO E CRIADOR Nicola Abbagnano, em seu majestoso Dicionário de Filosofia, agracia-nos

com uma análise meridiana das definições de Criação, destacando que “em todas

as línguas, essa palavra tem sentido muito genérico, indicando qualquer forma de

causalidade produtiva: do artífice, do artista ou de Deus”.132

Em certas circunstâncias, diz o grande filósofo, o ato de criação aproxima-

se do ato de emanação, principalmente quando não se cria “ex nihilo”, vale dizer,

do nada.133

Carrió se deparou com a tríade que dá nome a este sub-item, numa nota de

rodapé com ares de capitulo.134

“ Crear, “creador, “creación” son palavras vagas; en mucho casos el uso no nos indicará

con claridad si la situación queda adecuadamente descripta por ellas. En nuestro caso, ¿ vamos a exigir una creación ex nihilo? ¿Nos vamos a conformar con la introducción de un

cambio sustancial en lo existente, incluso con la de cualqier modificación o agregado? Y si adoptamos el test del cambio sustancial que por un lado evita el peligro de que “crear”

quede sin aplicación posible y, por outro, no hace trivial el uso de esa palabra, ¿ qué

habremos ganado con sustituir un término vago por una fórmula que incluye outro,

132 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 2000, p. 220. 133 “Seu significado específico, porém, como forma particular de causação, é caracterizado: 1º pela ausência de necessidade do efeito em relação à causa que o produz; 2º pela ausência de realidade pressuposta no efeito criado, além da realidade da causa criadora (e nesse sentido diz-se que a C. é ‘do nada’); 3º pelo menor valor do efeito em relação à causa; e eventualmente 4º pela possibilidade de que um dos termos da relação, ou ambos, estejam fora do tempo. A 1º e a 2º características diferenciam a C. da emanação (v.) além de diferenciá-la das formas ordinárias de causação. A 3ª característica é comum à C. e à emanação e diferencia ambas das formas ordinárias de causação. A 4º característica, quando se verifica, aproxima a C. da emanação (que é eterna porque necessária), mas nem sempre se verifica.” (Idem, Ibidem). 134 CARRIÓ, Genaro R. Notas sobre Derecho y Lenguaje. 1979. (nota 6), pp. 107-8.

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“sustancial”, que parece la vaguedad en persona? Quien resuelve un caso por aplicación

de una regla que resulta de combinar otras reglas de modo original, ¿ha “creado” algo, en el sentido del test intermedio que examinamos? La misma pregunta puede formularse

respecto de aquel que adjudica sentido a un término vago frente a un caso no típico que se

presenta por vez primera. Las dificultades para atribuir a “crear” uno o varios significados

descriptivos precisos son enormes, y en ello, - así como en la fuerte carga emotiva que en el contexto lleva consigo la palavra – está, quizás, la raíz de la controversia. Ver infra

apartado 4 (v). Aquí asumimos, a riesgo de dejar a un lado algo demasiado importante, que

las partes estipulan un significado descriptivo unívoco (o varios) para “crean”.

Para alcançar nosso desiderato, empreendemos o verbo “criar” no sentido

de “evolução criadora”, para sobrelevar a multiplicidade quase infinita de

possibilidades da relação jurídica (que almeja ser tributária) ao ser levada ao

conhecimento de um juiz, sempre à luz do sistema constitucional tributário. Mais

uma vez, Nicola Abbagnano:135

Em sentido igualmente genérico, emprega-se essa palavra muito mais freqüentemente

para corrigir ou retificar o conceito de evolução e para introduzir nesta os caracteres de imprevisibilidade, liberdade e novidade. Nesse sentido, Bergson falou de “evolução

criadora”, para ressaltar a diferença e a complexidade das linhas evolutivas e das formas

orgânicas, bem como “a multiplicidade quase infinita de análises e sínteses entrelaçadas”

que pressupõem: diferença e multiplicidade que o homem pode captar diretamente em si

mesmo, na experiência da ação.

Ao enfatizar a novidade e imprevisibilidade da criação, buscamos ressaltar

a discricionariedade do juiz no momento do julgamento; e, por isso, atinamos à

infinidade de relações-jurídicas que poderão ser criadas ao talante do magistrado quando da feitura da norma de decisão.136

135 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 2000, p. 222. 136 “Dessa forma, temos para nós que não é dispensável no ato de julgar estudo e reflexão sobre si mesmo e sobre a sociedade, bem como, sobre a construção doutrinária e jurisprudencial pautada na descoberta de elementos existentes na intimidade do ordenamento jurídico, com base nas quais, a magistratura encontrará, dentro do possível, enquanto cabível e gradativamente soluções que incorporem às transformações sociais necessárias e, indiscutivelmente, desejadas”. (DUARTE, Liza Bastos. A impossibilidade humana de um julgamento imparcial. 2001, p. 258).

53

4.5. A CONCREÇÃO DO DIREITO E A DUALIDADE DA NORMA EM GERAL E

ABSTRATA E INDIVIDUAL E CONCRETA

Se por um lado a doutrina afirma ser “freqüente a classificação das normas

jurídicas em “geral e abstrata” e “individual e concreta”, como se fossem binômios

necessários”,137 por outro já reconheceu que “por desgracia la distinción entre lo

concreto y lo abstracto es de las más equívocas que existen”.138

Em profundidade, Norberto Bobbio combina os quatro caráteres, os quais,

em sua doutrina, possuem significados próprios:139

Por esto aconsejamos hablar de normas generales cuando nos encontramos frente a

normas que se dirigen a una clase de personas; y de normas abstractas cuando nos

encontramos frente a normas que regulan una acción-tipo (o una clase de acciones). A las

normas generales se contraponen las normas que tienen por destinatario un individuo particular, y que sugerimos denominar normas particulares; a las normas abstractas se

contraponen las normas que regulan una acción particular y que sugerimos llamar normas

concretas.

A generalidade, aqui estudada, não será vista como essencial à Lei, mas

como exigência do ordenamento jurídico construído em um Estado Democrático

de Direito, cuja Constituição prevê um dos melhores meios para consagrar a

igualdade formalmente concebida, quando a enunciou na cabeça de seu artigo

5º.140

Karl Engisch trata em sua obra da tensão entre concreto e o abstrato, sem

recriminar por completo, como pode parecer, a dualidade ora comentada. Filósofo

e penalista que é, Engisch aponta lugares no Direito Penal onde ocorre “la

137 QUEIROZ, Luis Cesar Souza de. Sujeição Passiva Tributária. 1999, p. 48. 138 ENGISCH, Karl. La Idea de Concrecion en el Derecho y en La Ciencia Juridica Actuales. 1968, p. 70. 139 BOBBIO, Norberto. Teoría General del Derecho. 1997, p. 130. 140 “A generalidade não é, pois, essencial à lei; é exigência que, através da evolução humana, se vem fazendo à lei (Constituição Política do Império do Brasil, art. 179; Constituição de 1891, art. 72; de 1934, art. 113, 1); de 1937, art. 122, I; de 1946, art. 141, §1º; de 1988, art. 5º, caput). (MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. 2000, p. 52). Norberto Bobbio, a seu turno, imputa aos domínios do ideológico a exigência da dualidade generalidade/abstratalidade: “Creemos que considerar la generalidad y la abstracción como requisitos esenciales de la norma jurídica tiene un origen ideológico y no lógico y por esto creemos que detrás de esta teoría hay un juicio de valor [...]”. (BOBBIO, Norberto. op. cit., p. 131).

54

equivocidad de la antinomia “abstracto-concreto”.141 Como veremos, o conceito

constitucional de tributo é, pois, uma demonstração cabal desta equivocidade.

Quanto às possibilidades conjugatórias das normas, dispensamos um maior

aprofundamento, não sendo elas tão importantes em nosso estudo. Relevamos,

isso sim, o princípio da praticabilidade, corolário da tipificação e da

conceitualização abstrata, o qual impõe à Administração Pública a utilização de

técnicas simplificadoras na execução das leis tributárias, como observado por

Maria Rita Ferragut.142 A simplificação imposta, concentramo-nos nisso, não se

confunde com a constitucionalização da exigência fiscal pretendida. Daí porque

acreditamos que o tributo, singularmente vislumbrado, não estará completamente

definido a priori.

Sobressai à evidência o fato de ser o conceito de tributo sobremodo

complexo, inalcançável sem o exame da realidade fática do caso concreto,

inatingível sem a incidência dos mandamentos constitucionais.

A regra-matriz desformalizada, esclareça-se, deverá ser vista como uma

abstração, importa dizer, o sistema constitucional tributário impõe que a regra-

modelo desformalizada “sea una abstracción que lleva a una idea, a un esquema

o a una visión general”.143 Todavia, é imperioso ao trânsito do “dever-ser” ao “ser”,

a conexão entre o “fato típico para o acontecimento concreto; da pessoa geral,

qualificada com um atributo (ser comerciante, ser pessoa jurídica, ser proprietário)

para pessoa individual, pontualmente identificada”.144 Cuida-se, pois, do processo

de concreção do direito. Os critérios da regra-matriz de incidência são, par

excellence, a orientação básica para se insculpir uma exigência tributária. Se a

regra-matriz foi “preenchida” corretamente, ou suficientemente, ou em

141 (ENGISCH, Karl. La Idea de Concrecion en el Derecho y en La Ciencia Juridica Actuales. 1968, p. 138). Cabe aqui mencionar o julgamento do Supremo Tribunal Federal por ocasião da apreciação do artigo 35 da Lei n.º 7.713/88, tributação por Imposto de Renda, sendo o dispositivo considerado constitucional ou inconstitucional (ou-excludente), conforme o lucro seja o resultado de uma firma individual, sociedade por quotas ou sociedade por ações. Sobreleva-se a alusão ao “sócio cotista”, sendo considerado inconstitucional quando, no contrato social, “não dependa do assentimento de cada sócio a destinação do lucro líquido a outra finalidade que não a de distribuição”, vale dizer, a análise do contrato social da empresa dirá se a norma é ou não compatível com a Constituição, ou melhor, se o tributo existe ou não para o contribuinte. (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário n.º 172.058-SC, 30/06/195, Rel. Min Marco Aurélio). 142 FERRAGUT, Maria Rita. Presunções no Direito Tributário. 2001, p. 81. 143 ENGISCH, Karl. op. cit., p. 417. 144 SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Decadência e Prescrição no Direito Tributário. 2000, p. 55.

55

consonância com o texto constitucional, não será a Administração Pública quem

irá dize-lo. Escapa, pois, de sua função, a qual opera, como dissemos, revestida

de prerrogativas que a justificam.

A regra-matriz de incidência, para compor um paralelo, participará do

“programa da norma” de Müller, o qual, como vimos, não será o único na

elaboração da norma jurídica.

A nossa Constituição foi criteriosa no desenho das figuras tributárias

passíveis de serem exigidas, sendo que o legislador infraconstitucional terá de

obedecê-la na complementação dos pormenores da obrigação tributária. Não é

tarefa fácil. As exigências fiscais, muita vez, invocarão normativos contrários à

Constituição no seu escopo arrecadatório. Outras vezes, as prestações

pecuniárias exigidas pelo fisco encontrarão ressonância e correspondência com o

núcleo de referência atribuído pela Constituição Federal. Em realidade, o “divisor

de águas” será o Judiciário, que terá o condão de verificar a constitucionalidade da

exação levada a efeito pelo ente de capacidade tributária ativa.

O arquétipo constitucional, vale ressaltar, sempre deverá ser observado,

assim como as regras de tributação impostas pela Constituição ao legislador

infraconstitucional, mormente a estrita legalidade. A produção legiferante, cujo

resultado está envolto de prerrogativas, deve estar atenta aos mandamentos

constitucionais, porquanto vale a máxima de que a Administração Pública aplica a

lei ex officio.

4.6. O SISTEMA CONSTITUCIONAL TRIBUTÁRIO E AS EXIGÊNCIAS

FISCAIS

Em boa verdade, fundamentamos nossa proposta em duas bases de

sustentação: o esclarecimento semântico da expressão “os juízes criam tributos”;

a ponderação factual dos elementos colhidos em nosso sistema constitucional.

Tanto na primeira empreitada como na segunda, o vocábulo “juízes” é

empreendido no sentido de “conjunto de magistrados”, dentro de um controle de

56

constitucionalidade. Os magistrados encontram na Constituição Federal o

arquétipo de todas as figuras tributárias, sendo ali, no bojo da Lei Fundamental, o

local apropriado para aferição da compatibilidade da exigência fiscal com o

sistema tributário. O controle de constitucionalidade poderá dizer se o que se está

exigindo é tributo ou não, individualizando a relação jurídico-tributária que se

pretende estabelecer, de tal arte que os requisitos constitucionais serão

investigados em pormenores, por aquele que tem competência para fazê-lo.145

Privilegiada é a matéria tributária quando tratada pelo constituinte, de tal

sorte que questões tributárias tenham umas mais, outras menos, conotação

constitucional, mas sempre tocarão o Texto Supremo. Dessa forma, por

entendermos que a constitucionalidade da Lei é matéria de ordem pública, ou

seja, poderá ser argüida ex officio pelo magistrado, todo sistema constitucional

tributário deverá ser observado pelo “juiz”, a partir do momento em que um

contribuinte se insurge contra um desiderato fiscal.146

O sistema constitucional tributário, nesse passo, será o crivo de toda e

qualquer lide tributária, sendo que o magistrado não ficará adstrito aos

argumentos ventilados pelas partes, tudo porque cumpre ao Judiciário o exame

das leis postas à sua análise, cabendo-lhe zelar pelo sistema, expurgando aquilo

que se lhe afigura em descompasso com a Constituição.

A norma de decisão, construída pelo juiz, sujeito compreendente, a partir da

apreciação individual do caso concreto, analisará a concordância da pretensão

fiscal com o texto constitucional, de modo que aquilo que se exige possa ser

considerado tributo. Tanto o “programa da norma” (leis tributárias que ensejaram a 145 Eduardo Fortunato Bim, neste diapasão, ao tratar da interpretação razoável como excludente de culpabilidade, oferece-nos uma lição: “O sistema prevê mecanismos para uniformizar a aplicação da lei, mas ao mesmo tempo em que o faz – prevendo recursos e impugnações a órgãos julgadores –, acaba reconhecendo a possibilidade de interpretações divergentes sobre um mesmo texto. Por isso, ninguém pode ser obrigado a adotar a posição contemplada pela Fazenda (mediante instruções normativas, autos de infração, etc.) ou por jurisprudência (administrativa ou judicial) não pacificada (desde que, obviamente, não seja parte), se acha que outra é mais razoável e o beneficia”. (BIM, Eduardo Fortunato. A Interpretação Razoável como Excludente da Culpabilidade no Direito Tributário Sancionador. obra inédita, pp. 14-5). Müller dirá que o caso concreto imporá a feitura de uma norma jurídica singular, especial para ele, visando uma ulterior norma de decisão a ser prolatada por um juiz. 146“A questão de constitucionalidade há de ser suscitada pelas partes ou pelo Ministério Público, podendo vir a ser reconhecida ex officio pelo juiz ou tribunal”. (FERREIRA MENDES, Gilmar. Controle de Constitucionalidade. Aspectos jurídicos e políticos. 1990, p. 202).

57

exigência, notadamente as que compõem a regra-matriz de incidência e os

mandamentos constitucionais), como o “âmbito da norma” (peculiaridades do

contribuinte, destacando-se a capacidade contributiva) serão cotejados pelo juiz

na feitura da norma de decisão.147

Aqui a doutrina de Müller fará diferença. Se uma prescrição em uma norma

de decisão só será considerada definitiva quando o caso estiver solucionado,148

em Müller, um julgamento administrativo não poderá ser considerado derradeiro,

i.é, numa matéria cuja afetação constitucional é patente, não se encontrará

plenamente solucionado o caso enquanto decidido unicamente na seara

administrativa. A norma de decisão, portanto, trará à lume a constitucionalidade ou

não do gravame, ou melhor, lhe reconhecerá ou não a natureza tributária.

O processo gerativo de sentido, a seu turno, tem dificuldades para agregar

os princípios constitucionais tributários em seu bojo, tudo porque a extração da

mensagem deôntica limita-se ao conteúdo do texto positivado, impedindo uma

efetiva irradiação de efeitos dos cânones sobre o caso concreto. Ademais, a

diferenciação entre norma e texto da norma quedar-se-á infrutífera, no bojo do

percurso gerativo de sentido.149 Os importantes valores de nosso sistema

constitucional tributário, tais como justo gasto do tributo afetado, capacidade

147 No bojo dos julgamentos administrativos, é verdade, a Administração Pública analisa as insurgências dos contribuintes em face de suas exigências. Quanto a isso não se olvida. Não será ali, no entanto, o local apropriado para a análise das controvérsias constitucionais, haja vista que “a inconstitucionalidade da norma tributária é matéria que a Administração não pode conhecer, porque o controle de constitucionalidade no nosso ordenamento jurídico é exclusivamente judicial”. (BRASIL, STJ, Recurso Especial n.º 9314122-8/RJ, Rel. Min. Ari Pargendler, DJU 18/03/1996, p. 7.554). Alguns dirão que nem toda irresignação em matéria tributária cingir-se-á à uma violação constitucional. Isso não nos interessa no presente estudo, porque o que se tem em mira é a compatibilidade da exigência fiscal com a Constituição, razão pela qual toda e qualquer decisão na seara administrativa estará pendente de uma palavra final do Judiciário (derradeira), sem que com isso se diminua a relevância daquele julgamento administrativo. Sobrelevamos, isso sim, o papel do Judiciário na apreciação de lesão ou ameaça de direito (artigo 5º, XXXV da CF). 148 MÜLLER, Friedrich. Discours de la Méthode Juridique. 1996, p. 132. 149 O fisco e o contribuinte terão posições diversas sobre o produto legislado. Se o fisco, de um lado, buscará aumentar sua arrecadação, impondo ao texto uma interpretação que melhor lhe atenda, o contribuinte, a seu turno, tentará alcançar uma exegese que diminua, ou afaste, determinada exação. Eduardo Fortunato Bim coleciona julgado do Tribunal Supremo Espanhol, datado de 21 de setembro de 1987, que visualiza no Judiciário o caminho para o deslinde: “Em definitivo, formalizada uma controvérsia interpretativa entre Administração tributária e contribuinte, este não pode ser sancionado por manter seus próprios critérios e acudir aos meios de defesa e tutela jurídica que o ordenamento jurídico lhe oferece. Nas palavras do Tribunal Supremo Espanhol, a discrepância entre a administração e o cidadão ‘é um debate cuja última palavra é nossa, e nunca de qualquer dos sujeitos ativo ou passivo da relação jurídica’. (grifo aposto) (BIM, Eduardo Fortunato. A Interpretação Razoável como Excludente da Culpabilidade no Direito Tributário Sancionador. obra inédita, p. 18)

58

contributiva, transparência fiscal, moralidade tributária, solidariedade fiscal, justiça

tributária, intributabilidade do mínimo existencial, cidadania fiscal unilateral e

bilateral, ética fiscal pública e privada, razoabilidade e proporcionalidade,150 que

teriam cabal importância na análise da constitucionalidade de uma exigência

fiscal, não serão considerados se esta não for devidamente particularizada.

Tanto Paulo de Barros Carvalho como Robert Alexy entendem que não há

confundir texto com norma; eles, no entanto, não justificam o descrímen quanto à

imperiosa singularidade da norma concretizanda, sendo que esta necessidade é

desconsiderada em suas doutrinas, vale dizer, a norma é obtida pelo intérprete

que se postará alheio ao caso concreto. Ou seja, a norma jurídica será construída

a partir de enunciado(s) disposto(s) no direito positivo; no entanto, se será

aplicada ao caso “A” ou ao caso “B”, diferença alguma se vislumbrará.151

A Constituição tem “vontade” de impor tributos, não se discute, mas o único

a saber qual “vontade” é esta, não será nem o Legislativo nem o Executivo, mas o

Judiciário, verdadeiro Guardião da Constituição.

A despeito da imposição constitucional, o juiz a realiza, construindo no caso

concreto a vontade da Constituição, delineando o tributo em consonância com o

sistema constitucional tributário, em homenagem à força normativa da

Constituição. Portanto, é cediço o dizer-se que só se terá um tributo se todas as

expectativas da Constituição forem obedecidas e isso só acontecerá,

efetivamente, após a chancela judicial.

Ao cabo do quanto se disse, destacamos o papel do “Juiz” na aferição da

compatibilidade da pretensão fiscal, i.é, daquilo que se está chamando de tributo,

com o sistema constitucional tributário.

150 Valores elencados por Roberto Wagner Lima Nogueira em seu jusfilosófico artigo sobre Ética Tributária. (NOGUEIRA, Roberto Wagner Lima. Ética Tributária e Cidadania Fiscal. 2002, pp. 20-40). 151 “Não é possível descolar a norma jurídica do caso jurídico por ela regulamentado, nem o caso da norma”. (MÜLLER, Friedrich. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. 2000, p. 63). Dos que assim pensam, podemos mencionar Eros Roberto Grau: “Por isso tenho insistentemente afirmado inexistirem soluções previamente estruturadas, como produtos semi-industrializados em uma linha de montagem, para os problemas jurídicos. O trabalho jurídico de construção da norma aplicável a cada caso é trabalho artesanal. Cada solução jurídica, para cada caso, será sempre, renovadamente, uma nova solução. Por isso mesmo - e tal deve ser enfatizado - a interpretação do direito se realiza não como mero exercício de leitura de textos normativos, para o que, repito-o, bastaria ao intérprete ser alfabetizado”. (GRAU, Eros Roberto, Pareceres. Juristas e Apedeutas. 2003, p. 88).

59

4.7. OS JUÍZES CRIAM TRIBUTOS!

Geraldo Ataliba trata, em seu Hipótese de Incidência Tributária, do

reconhecimento do tributo, que nas palavras do saudoso professor, será feito toda

vez “que se depare o jurista com uma situação em que alguém esteja colocado na

contingência de ter o comportamento específico de dar dinheiro ao estado (ou a

entidade dele delegada por lei)”.152 Multa, obrigação convencional, indenização

por dano ou tributo, são as quatro situações em que alguém pode ser devedor de

dinheiro ao estado – ou a outra pessoa indicada pela lei. O norte para se distinguir

tais exações é o artigo 3º do Código Tributário Nacional, lugar apropriado para se

saber os requisitos de uma figura tributária, dentro de um “conceito constitucional

de tributo”,153 visando instruir o legislador municipal, estadual (distrital) e federal.

O legislador recebe a mensagem sobre os requisitos de um tributo, tem ao

seu dispor o texto constitucional para saber os pressupostos necessários à uma

exigência fiscal, tudo ao seu alcance, vale dizer, o direito positivo vigente dirá o

caminho constitucional a ser traçado no exercício de uma competência tributária .

Em realidade, o legislador, valendo-se de suas prerrogativas, por nós já

delineadas, sempre terá o escopo de criar, gerar, instituir um tributo, dentro de seu

âmbito de competência constitucional. Produzirá sim, normativos a este escopo,

ultima ratio, para levar dinheiro aos cofres públicos. O fisco será o instrumento

essencial para se alcançar este fim.154 Se criaram ou não tributos, a resposta será

dada pelo Judiciário.

O produto legislado criado, para ser reconhecido como tributo, como se

sabe, independerá da “denominação e demais características formais adotadas

pela lei”, assim como “da destinação legal do produto da sua arrecadação”, forte

152 ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. 2001, p. 36. 153 Idem, pp. 32-3. 154 Quando tratamos de tributação, acabamos por utilizar expressões como Poder Público, Administração Fazendária, Fisco dentre outros vocábulos que têm a função semântica de designar tanto o Estado como outras pessoas (públicas ou privadas) designadas por lei como sujeitos ativos de obrigações tributárias. Sem propor uma confusão, cientes dos mandamentos constitucionais que permitem às pessoas titulares de competência tributária a transferência da capacidade tributária ativa, valemo-nos destas palavras que foram incorporadas pela praxis do Direito Tributário, sem perder de vista o rigor científico sempre buscado.

60

no artigo 4º do Código Tributário Nacional e seus desdobramentos. Administração

Fazendária ou Juiz, quem será o destinatário deste preceito legal?

Àqueles que têm capacidade tributária ativa, dentro da distribuição efetuada

por quem tem competência tributária para tanto,155 após instaurado o liame

obrigacional, promoverão exigências a título de tributo, porquanto assim se

presumem, até prova em contrário.

Portanto, presume-se tributo aquilo que as pessoas com capacidade

tributária ativa dizem ser. No entanto, se tributo o é, quem dirá será o Judiciário,

numa norma de decisão, instrumento hábil a tal desiderato.

A matéria de pagamento indevido já nos mostrou, e Luciano Amaro é quem

se recorda, que “na restituição (ou repetição) do indébito, não se cuida de tributo,

mas de valores recolhidos (indevidamente) a esse título”,156 sendo que o pseudo

sujeito ativo da obrigação tributária acaba “reportando-se, como dissemos, ao

rótulo falso e não ao conteúdo”.157 Assim, nesse caso, após o pronunciamento

jurisdicional, aquilo que era para ser tributo, nunca o será para os partícipes da

pretensa relação jurídico-tributária.158

Alguém (o solvens), falsamente posicionado como sujeito passivo, paga um valor (sob o

rótulo de tributo) a outrem (o accipiens), falsamente rotulado de sujeito ativo. Se inexistia

obrigação tributária, de igual modo não havia nem sujeito ativo, nem sujeito passivo, nem

tributo devido.

Se a restituição, porventura devida, será total ou parcial, para usar a

terminologia do CTN, prejuízo algum haverá o nosso intento, porquanto o

pronunciamento judicial sobre a exigência fiscal é que será buscado, e este já terá

ocorrido, alheio à procedência ou não da demanda. Melhor dizendo, a relação

havida entre as partes será considerada tributária ou não pelo juiz, e esta

constatação criará ou não um dever ou obrigação sob a forma de tributo. Antes,

repisamos, só havia uma presunção de que se tratava de tributo. 155 Sobre a diferenciação entre competência tributária e capacidade tributária ativa veja-se, por todos: (CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 2003, pp. 213-7). 156 AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 1998, p. 393. 157 Idem, Ibidem. 158 Idem, Ibidem.

61

Desta forma, a apreciação judicial terá o condão de transformar o vínculo

entre o solvens e o accipiens numa relação jurídico-tributária. Será, portanto, um

fato propulsor, idôneo à produção de uma entidade tributária.

Longe de pugnar por um método que aponte para a fragmentação da

tripartição dos poderes, distante de querer a relativização da estrita legalidade,

nossa proposta visa a constatação de um fenômeno, aliás, de certo modo já

dimensionado pela doutrina, sem ir de encontro com o direito positivo vigente,

mormente o sistema tributário constitucional.

Vê-se, pois, que uma importância recolhida a título de tributo poderá ser

devida ou não. Como já dito, presume-se que sim, sendo defeso ao suposto

sujeito passivo da relação jurídico-tributária negar-se ao seu adimplemento, sem

se valer dos meios lícitos para tanto, por força da imperatividade da Lei.

Os supedâneos para uma exigência fiscal sofrerão constantes análises de

pertinência ao sistema, incluindo o controle que a Administração Pública exerce,

não se esquecendo dos processos administrativos instalados por inconformismo

do contribuinte. Não se olvida da autotutela exercida pela Administração Pública,

mas como o que se busca é a definitividade, o Judiciário sobrepõe-se-lhe na

função julgadora.159

159 “PRINCÍPIO DA LEGALIDADE – OFENSA REFLEXA – INADMISSIBILIDADE DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO – A alegação de ofensa ao princípio da legalidade não basta, só por si, para viabilizar o acesso à via recursal extraordinária. É que a interpretação judicial de normas legais – por situar-se e projetar-se no âmbito infraconstitucional – culmina por exaurir-se no plano estrito do contencioso de mera legalidade, desautorizando, em conseqüência, a utilização do apelo extremo. Precedentes. O Supremo Tribunal Federal tem acentuado que o procedimento hermenêutico do Tribunal inferior – que, ao examinar o quadro normativo positivado pelo Estado, dele extrai a interpretação dos diversos diplomas legais que o compõem, para, em razão da inteligência e do sentido exegético que lhes der, obter os elementos necessários à exata composição da lide – não transgride, diretamente, o princípio da legalidade. Precedentes. A INTERPRETAÇÃO DO ORDENAMENTO POSITIVO NÃO SE CONFUNDE COM O PROCESSO DE PRODUÇÃO NORMATIVA – O ordenamento normativo nada mais é senão a sua própria interpretação, notadamente quando a exegese das leis e da Constituição emanar do Poder Judiciário, cujos pronunciamentos qualificam-se pela nota da definitividade. A interpretação, qualquer que seja o método hermenêutico utilizado, tem por objetivo definir o sentido e esclarecer o alcance de determinado preceito inscrito no ordenamento positivo do Estado, não se confundindo, por isso mesmo, com o ato estatal de produção normativa. Em uma palavra: o exercício de interpretação da Constituição e dos textos legais – por caracterizar atividade típica dos Juízes e Tribunais – não importa em usurpação das atribuições normativas dos demais Poderes da República. Precedente”. (grifo nosso) (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, Agravo Regimental n.º 258049, DJU 04/05/2001, Rel. Min. Celso de Mello).

62

O reconhecimento do tributo, repisamos, não será efetivado pelo jurista,

como quis Geraldo Ataliba, nem pela Administração Pública, nem por qualquer

outra pessoa que não o Judiciário.

A partir do momento em que o gravame for levado ao conhecimento do

Judiciário, com os recursos inerentes ao processo judicial, a natureza tributária

poderá ser definida, de tal arte que a evolução criadora da relação jurídico-

tributária virá à lume. Se a matéria foi pacificada ou não ulteriormente, o processo

criativo do juiz não será prejudicado porquanto já fora externado, forte no cânone

da universalidade da tutela jurisdicional.

Poderá o contribuinte, frise-se, nunca levar a exigência fiscal ao Judiciário,

fato que não impedirá a cobrança, no entanto jamais se saberá se constitucional

eram os supedâneos que a ensejaram ou, a que título fora expendida. Ou seja, o

conhecimento do caso concreto reconhecerá ou não a natureza tributária daquilo

que só se presumia, sendo irrelevante se existem casos semelhantes já decididos,

porquanto os valores de nosso sistema constitucional tributário nortearam o ato

decisório no deslinde do caso concreto, para compor a singular relação jurídico-

tributária (ou não reconhecê-la), em consonância com a Constituição Federal.

Melhor dizendo, com apoio em Müller, as orientações preexistentes serão

transformadas (recriadas) diante do caso sempre novo.

Afigura-se-nos, outrossim, que o controle concentrado de

constitucionalidade não atingirá a definição final da entidade tributária para o

contribuinte. O tributo, qualquer que ele seja, será definido na análise do caso

concreto, porquanto o controle abstrato de constitucionalidade não terá em mira

tributos, mas sim leis (lato sensu). O tributo não é a Lei. Ele é formado pela Lei.

Muito bem. O âmbito da norma, ante a norma de decisão que criará ou não

a relação jurídico-tributária entre as partes, justifica a nossa preferência pela

doutrina de Müller, por consagrar a singularidade do caso concreto, forte no

“reconhecimento de que na interpretação judiciária do direito legislativo está ínsito

certo grau de criatividade”.160

160 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores?. 1993, p. 20.

63

Parece-nos que após estes comentários, existirá uma linha tênue que

separará a análise lingüística da substancial, quando temos em mira a expressão

“os juízes criam tributos”. Em realidade, ambas as investigações acabam se

escorando na força (criativa) da tutela jurisdicional. Nada impede, é bom dizer,

que as separaremos em dois grupos.

Aproveitamos para lembrar, como o fizeram Sacha Calmon, José Vieira e

Paulo de Barros, que tributo é norma. Não será, porém, uma norma abstrata,

presente num enunciado positivado, mas sim uma norma de decisão, em sua

existência singular, externada por um juiz diante do sempre novo caso concreto.

64

5. CONCLUSÕES Diante de todo procedimento investigativo feito até agora, algumas ilações

se mostram decisivas na busca pela coerência científica:

A norma jurídica não pode ser confundida com o texto que participa de sua

criação. Sendo o resultado da experiência hermenêutica, a norma jurídica deve

ser construída pelo intérprete e nunca será dada de antemão pelo emaranhado

imenso de enunciados positivados.

Friedrich Müller segue esta corrente doutrinária que pugna pela não-

identidade entre norma e texto de norma. O mestre de Heidelberg, no entanto, vai

além, propondo uma tese que inclui na estrutura da norma elementos da realidade

social, do seu âmbito normativo. Inovando neste particular, Müller sofre críticas

daqueles que diminuem o conceito de normativamente relevante, como sói ocorrer

com Robert Alexy, professor alemão de escol, que desconsidera as fontes do

direito erigidas por Müller, utilizadas para compor a norma jurídica, notadamente o

âmbito normativo.

O âmbito normativo estará, para Müller, em nível hierárquico igual ao co-

fundador da norma, o programa normativo, o qual amálgama em seu conteúdo

texto da norma e os métodos auxiliares de interpretação. O programa da norma

escolhe ou cria o seu âmbito de regulamentação, em face do âmbito da norma

enquanto recorte da realidade, vale dizer, o âmbito normativo poderá ser criado ou

não pelo programa normativo. Após criada, a norma jurídica transformar-se-á em

norma de decisão quando efetivamente solucionar um caso concreto. Desta

norma de decisão emanarão efeitos, razão pela qual toda e qualquer decisão deve

ser fundamentada e publicada, para ser analisada por todos os cientistas do

Direito.

Paulo de Barros Carvalho, a seu turno, com a cientificidade que lhe é

peculiar, desenvolveu o processo gerativo de sentido, modelo que pode ser

aplicado ao Direito Tributário a partir da análise do discurso. Compreendido em

65

três subsistemas, seguindo-se o caminho entre o conjunto de enunciados tomados

no plano da expressão, passando pelo conjunto de conteúdos de significação dos

enunciados prescritivos, até alcançar o domínio articulado de significações

normativas, o processo gerativo de sentido mostrou-se um importante veículo de

captação da mensagem deôntica.

Verificamos, no entanto, que algumas limitações ocorrem no processo

hermenêutico quando vislumbrado unicamente como significação de enunciados

prescritivos, mormente dentro de uma proposta de máxima efetividade da

Constituição. O processo de construção (gerativo) de sentido mostrou

insuficiência, ocorrendo em sua hermenêutica, restrições que impediam uma

efetiva afetação constitucional. A proposta de Müller se apresentou como uma

saída, vencendo o positivismo legalista que se impunha, o qual desconsidera as

peculiaridades do caso concreto.

Percebeu-se, neste ínterim, que Paulo de Barros Carvalho e Friedrich

Müller têm na pré-compreensão o elo entre suas doutrinas, ligação promissora e

factível, capaz de desdobrar a hermenêutica carvalhiana ulteriormente.

Com olhos postos na teoria estruturante pós-positivista da norma jurídica de

Friedrich Müller, buscamos justificar a asserção posta no título do trabalho. Um

possível deslinde lingüístico foi-nos ofertado por Genaro Carrió, o qual valia-se da

polissemia tão cara às palavras quando usadas no âmbito do Direito, para

justificar a expressão “los jueces crean derecho”. Apesar de aproximar-se do

desfecho substancial, a análise lingüística não atendia a todos os requisitos

necessários à aceitação da frase “os juízes criam tributos”. Portanto, caminhamos

à uma investigação dos pormenores jurídicos da definição de uma figura tributária.

Ficou patente, desde o início, que o produto legislado é dotado de

prerrogativas tais como imperatividade, calibração e presunção de

constitucionalidade, que permitem a normatização do Estado de Direito. A

Administração Fazendária, valendo-se destas características da legislação, impõe

ao cidadão o cumprimento de obrigações tidas como tributárias. Maneja-se o

emaranhado de enunciados positivados no escopo arrecadatório.

66

No entanto, se o que a Administração Pública diz ser tributo, realmente o é,

não será ela quem dirá; o Judiciário, verdadeiro guardião da Constituição, terá o

condão de analisar a exigência dita tributária. Noutra banda, se se exige certa

obrigação do cidadão, sob outro rótulo que não seja o tributário, o Judiciário é

quem declarará a natureza tributária da exação. Nesse ponto o trabalho fulcra sua

principal ilação.

O juiz, dessa forma, ao conjugar as peculiaridades do caso concreto

(âmbito da norma), bem como formar a regra-matriz de incidência (programa da

norma), apegado à sua pré-compreensão, externará uma sentença (norma de

decisão), a qual irradia sua força sobre a relação jurídica havida entre as partes

(normatividade). Ao exarar a norma de decisão, após transitar sobre o sistema

constitucional tributário, o juiz terá uma visão constitucional da exigência fiscal,

criando efetivamente uma relação jurídica constitucionalmente pretendida, ou

melhor, o tributo com a chancela da Constituição.

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