354

Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

  • Upload
    others

  • View
    53

  • Download
    6

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,
Page 2: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Os Karas

Page 3: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

MiguelNão tem apelido. Foi elequem decidiu reunir algunsamigos e, por brincadeira,fundar um grupo secreto nocolégio onde é presidentedo Grêmio Estudantil. É elequem lidera os amigos edefine o próximo passo aser dado pelos Karas.

Page 4: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

ChumbinhoAficionado por videogamese computadores, com suaesperteza e valentia, sentede longe o cheiro de novasaventuras. Foi justamenteisso que fez Chumbinhodescobrir o grupo secretoque atuava no Colégio Elite.

MagríMelhor atleta do ColégioElite, é a grande esperançade medalha olímpica para oBrasil. Apesar do jeitinho

Page 5: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

delicado e meigo, se épreciso salvar um dosamigos ou entrar em ação,Magrí vira uma verdadeira“gata”, perigosa e prontapara agir, enfrentandoqualquer risco.

CalúAtor e extramamenteextrovetido e brincalhão,está sempre de bom humor,dando ânimo aos Karas nahora de agir. Apesar de sero garoto mais bonito doColégio Elite, seu coraçãobalança mesmo é por Magrí.

Page 6: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

CrânioÉ o geniozinho da turma.Calado e pensativo, é ocampeão de xadrez e dasnotas da escola, e em nomedos amigos e das aventuras,larga tudo quando o assuntoé Emergência Máxima.Assim como Calú, éapaixonado pela menina dosKaras.

Page 7: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Pedro Bandeira

A Droga do Amor

Page 8: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Mais uma aventura com os Karas!

Page 9: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Este livro é dedicado aVanessa Cristina Haneda, deCuritiba, que, em fevereirode 89, quando estava noprimeiro ano do SegundoGrau, escreveu-me, pedindomais uma aventura com osKaras. Para o enredo, elapropunha o seguinte: "... eusugeriria uma briga. É, umabriga mesmo! Entre o grupodos Karas, por um motivode amor, talvez. Mas,depois, surgiria umasituação com os cincoenvolvidos, todos juntos,sem querer, que os faria verque, separados, eles são

Page 10: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

fracos, sentem falta um dooutro. Sei gue eles sãosuperunidos, mas essapeguena separação, seguidapor uma situação em queprecisassem ficar juntos denovo, para desvendar umoutro crime, por exemplo,daria ao livro uma emoçãoem dobro. "Levei muito tempo, Cristina,mas aqui está o que eu fizcom a sua sugestão.Espero que você goste.

Page 11: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

1. Telegrama em"islandês"

Magrí{1} acordou e espreguiçou-segostosamente, ainda aconchegadinha sobas cobertas do luxuoso hotel. A perfeitacalefação do apartamento amornava oambiente, deixando lá fora o geladoinverno americano.

Entre os seus braços, aquecido portoda uma noite junto ao calor de seucorpo, estava o seu ursinho de pelúcia.Já era um velho ursinho, tão velhoquanto ela, mas a menina sempre dormiacom ele. Era um segredo seu. Imaginemse um dos Karas soubesse disso! Uma

Page 12: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

aluna do primeiro colegial dormindoabraçada a um ursinho, feito um bebê!

Sobre a mesa de cabeceira, o relógiomarcava seis horas. Magrí levantou-se,escondeu o ursinho na mala e abriu ascortinas.

Lá embaixo estava Nova Iorque,nublada, cinzenta, gelada, e a meninapensou no calor que já estaria fazendono Brasil àquela mesma hora.

Sentiu saudades. Do país, da família,do Colégio Elite, de cada um dos Karas.

Os Karas! Os seus Karas! Miguel,Crânio, Calú, Chumbinho e... e ela! Oscinco Karas, aquele grupo secreto dealunos do Colégio Elite que Migueltinha reunido quase por brincadeira,pelo desejo de aventura, mas que

Page 13: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

acabara se envolvendo em investigaçõesperigosíssimas, em riscos tremendos...

Magrí sorriu ao pensar que muitospoliciais aposentam-se sem jamais sedefrontar com algo parecido com osdesafios que aqueles cinco adolescentesjá haviam enfrentado.

Os cinco Karas! Saudades... Umasaudade diferente de cada um. Umadessas saudades era especial. Eraimensa.

* * *

A funcionária da agência do correio

sorriu. Nunca tinha passado umtelegrama em "islandês" antes.

Quando o menino que entregara o

Page 14: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

texto para ser enviado a Nova Iorque iasaindo, a funcionária perguntou:

— Ei, garoto, o que quer dizer"minisgsais"?

Com o olhar mais cândido e inocentepossível, o menino encarou a moça comum lindo sorriso:

— Em islandês? Quer dizer... hum...quer dizer "mamãe"... Balançando acabeça, a balconista releu aquele textotão estranho: MINISGSAISVENTERNPOMBERUFTERSGOMBERLPOMBER.

KINISSINISR OMBERMTOMBERSAISGENTERCHUFTERMBAISLHENTER

"Que língua maluca é esse tal deislandês...", pensava ela, depois que o

Page 15: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

menino já tinha ido embora.

* * * Como um furacão que chega sem

avisar, uma mulher alta e magra entrouno apartamento de Magrí, empurrandoum carrinho com um farto café da manhãamericano que um garçom acabara detrazer.

— Bom dia, bom dia, bom dia,Magrí! O que esses americanos pensam?

Que nós viemos do Brasil para fazerregime de engorda? Se você comer ametade do que tem nessa bandeja, émelhor mudar da ginástica olímpica parao sumô!

— Bom dia, dona Iolanda! —

Page 16: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

cumprimentou Magrí, sorrindo, ainda àjanela.

— Que bom que você já está de pé.Vamos, vamos, vamos! Você tem cincominutos para tomar o seu breakfast. Sóas frutas e o leite, hein? Ginásticaolímpica é como o balé. Meio quilo amais e é desastre na certa! Depois umaducha e vamos direto para o ginásio.Quero que você faça duas horas deaquecimento, antes de ensaiarmos maisuma vez. Lembre-se que a prova final deginástica de solo vai ser depois deamanhã. Vamos, vamos, vamos, menina!

Magrí suspirou. Sua treinadora etambém professora de educação físicado Colégio Elite era mesmo um furacãoexigente, estafante para os atletas.

Page 17: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

— Ainda mais com você, Magrí! —tinha se explicado no avião aprofessora, enquanto as duas viajavampara os Estados Unidos, onde a meninaera a única brasileira inscrita paradisputar o Campeonato Mundial deGinástica Olímpica.

— Nunca tive uma atleta como você.Você vai ganhar essa competição. Vocêtem de ganhar! No ano que vem são asOlimpíadas. E eu tenho certeza que amedalha de ouro também será nossa!Quer dizer, sua... quer dizer, nossamesmo, de todos os brasileiros!

Magrí lembrava-se dessas palavrasde dona Iolanda, mesmo porque aprofessora a pressionava tanto nostreinamentos que ela não podia

Page 18: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

esquecer-se nem por um momento doque viera fazer em Nova Iorque: vencero Campeonato Mundial de GinásticaOlímpica, competindo com as melhoresatletas do mundo.

— Vai ser difícil, dona Iolanda.Como vou poder disputar com aquelasmeninas? Principalmente contra aquelamiudinha da Ucrânia... Ela é uma pluma.Vai voar sobre a quadra!

— Ora, ora, ora, Magrí! — cortou aprofessora, confiante. Você foiarrasadora nas três provas até agora.Sua nota foi nove e noventa e nove nosalto sobre o cavalo, nove e noventa eoito na trave e dez nas barras paralelas!Daqui a dois dias vai ser a últimaprova: a ginástica de solo. Se você

Page 19: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

estiver concentrada, a vitória está nopapo! Vamos lá: café e ducha. Volto emquinze minutos. Vamos, vamos, vamos!

Deixou a bandeja sobre a mesa esaiu. Um furacão.

Magrí tomou apenas dois goles dosuco de laranja. Deixou cair acamisolinha no meio do quarto e correunua para o chuveiro.

Page 20: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

2. A droga doamor

Eram oito horas da manhã quandoMiguel levantou-se da mesa do café.

O ano terminava, mas o rapaz nãoqueria descanso. Tinha de manter-seocupado, preparando a nova vida que, apartir de agora, estava decidido a levar.

Inscrevera-se como monitor de umacolônia de férias para crianças e,naquela manhã, aprontava-se para umareunião em que os monitores receberiamtreinamento para a primeira temporada.

Sobre a mesa, passou os olhos pelasmanchetes do jornal.

Page 21: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

A DROGA DO AMOR VEM AO BRASILDava orgulho: o Brasil tinha sido

escolhido para sediar a parte final domais importante projeto científico domundo. Conhecido laboratóriomultinacional estava às vésperas dedescobrir a cura para a praga do século.O soro já demonstrara ser cem por centoeficiente nos testes in vitro e já foratestado em seres humanos sadios paraque se verificasse se apresentava algumgrau de intolerância no organismohumano. Tudo estava perfeito. Opróximo passo seria o experimento comseres humanos infectados. Dos inúmerospaíses que tinham apresentado grupos depacientes terminais voluntários para aexperimentação, o escolhido tinha sido o

Page 22: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Brasil. O chefe da equípe de cientistasdesembarcaria brevemente em SãoPaulo.

A cura para a praga do século era amelhor notícia que o mundo poderiaesperar. O Brasil estava nas manchetes eum jornalista criativo inventara oapelido "Droga do Amor" para o soroexperimental, porque, se desse certo,aquela droga libertaria realmente o amorda morte.

"Droga do Amor! Amor tem a vercom vida, não pode trazer a mortejunto...", pensou o rapaz. "Que nomebem achado!" Lembrou-se destaspalavras do seu professor de biologia:"Amor é vida, não é morte! Amorproduz vida, traz a felícídade, move o

Page 23: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

mundo, não pode destruí-lo!"Empolgado, esperançoso, ele contara

aos alunos que muitas doenças quevitimavam os amantes no passado játinham sido vencidas pela ciêncía e queessa também seria derrotada.

Mas, ao entrar no chuveiro, o fim dapraga do século não ocupava mais ospensamentos do ex-líder dos Karas.Como um pesadelo do qual o rapazinhonão conseguia desfazer-se, veio-lhe àlembrança a últíma reunião dos Karas ea dolorida lembrança de Magrí.

"Ah, Magrí, Magrí, Magrí... Como euvou conseguir viver sem você ao meulado? Você está em Nova Iorque...Quando voltar, será que vaicompreender o que eu fiz? Vai entender

Page 24: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

por que eu fiz o que fiz?"Ele tivera de agir antes que Magrí

voltasse. Viver perto de Magrí, sem terMagrí, para ele seria o fim. E ele sabiaque o mesmo acontecía com Crânio, omesmo acontecia com Calú.

Miguel lembrou-se de sua decisão.Não poderia ferir seus melhores amigos.

Não poderia suportar a idéia de verCalú e Crânio como rivais. O jeito tinhasido sair da jogada e nunca mais vernenhum deles.

O jeito tinha sido dissolver o grupodos Karas. E nunca mais ver Magrí...

O suave cheiro do sabonete lembrou-lhe o perfume do corpinho da únicagarota do grupo dos Karas.

Page 25: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

* * * Um gostoso perfume de banho, de

sabonete e de xampu envolveu oambiente quando Magrí voltou aoquarto, enxugando-se.

O inverno nova-iorquino não entravano apartamento muito bem aquecido dohotel, e o vapor do banho quente tornavatudo ainda mais aconchegante.

Na frente do espelho, acariciandolentamente os longos cabelos com atoalha felpuda, Magrí examinou-se.

"Bom, eu não engordei, mas já estougrande demais para a ginásticaolímpica... Aquela ucraniana é umaanãzinha! E a azerbaijana? Parece umpássaro!

Page 26: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Tem também a americana que... Ah,mas eu não posso decepcionar donaIolanda..."

Ainda nua, Magrí sentia-se sensual,quentinha do banho, com um pouco depreguiça. Examinou-se. Imaginou-se.Lembrou-se dos Karas. Dos seusqueridos Karas...

Ao lado, estava a bandeja dobreakfast, abandonada. Café, leite,chocolate, ovos fritos e bacon, tudo jáfrio. Havia grapefruit e quatro pequenasbananas, as "chiquitas", muito raras emuito caras nos Estados Unidos. Umadelas muito pequena mesmo.

"Essa é o Chumbinho", pensou,rindo, ao lembrar-se do querido caçulados Karas.

Page 27: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Mas os outros três... Miguel, Calú eCrânio. Ah, os três Karas! Os seus trêsKaras! Que saudades!

A ponta do seu dedinho tocoudelicadamente cada uma das trêsbananas maiores.

"Qual deles? Ai, qual deles? Os trêssão tão... são tão... Eu devo decidir?

Escolher? Como escolher? Crânio,ele é tão. . . Ai, Crânio! Mas Miguel...se não fosse ele, eu... E Calú? Ai, comovocê é lindo, Calú! Todos os três mequerem, eu sei que me querem...Hummmm... eu queria agora sentir pertode mim este aqui...

Magrí escolheu uma das bananas e,devagar, nua no meio do quarto,começou a descascá-la.

Page 28: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

* * *

Calú espremeu o tubo de pasta de

dentes, estendendo a minhoquinhabranca sobre a escova. Levantou asolhos e encarou-se no espelho. A brigaque dissolvera os Karas pesava demais.

"Mas foi melhor assim... Eu nãoagüentava mais." Lembrou-se dareunião. A última reunião, noesconderijo secreto do grupo dos Karas,o forro do vestiário do Colégio Elite.

Tudo deveria estar resolvido depoisda briga. Mas, no fundo de sua alma,Calú sentia que nada estava resolvido.

"Os Karas não existem mais! E eu...ai, Magrí! Eu ainda não agüento..."

Page 29: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Calú fechou os olhos, como se,dentro das próprias pálpebras, estivessevendo aquele rostinho:

"Eu amo você, Magrí...desesperadamente..."

Lá estava ele, no espelho, ouvindosuas próprías confissões. "Como possomanter o equilíbrio perto dela? A gentevive se metendo nas maiores confusões,enfrentando perigos, e ela sempre alí,corajosa, alegre, carinhosa com todosnós, e eu..."

Seu rosto bonito refletia-se noespelho. Aquele rosto que derretia tantasgarotas. Calú era um ator. Teatro,comerciais de televisão... as meninas oreconheciam a toda hora, olhavam paraele como se fosse algum deus do

Page 30: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Olimpo.Não o enxergavam como pessoa,

como gente. Tantas garotas que ocercavam, insinuando-se, cada urnaquerendo ficar com ele, pelo menos umavez...

"Ficar? Ficar! Ficar com Magrí? Ah,com Magrí eu quero ficar, ser, estar,permanecer, parecer, continuar! Vivercom ela! Não dá pra viver sem ela!"

Calú sentia-se só, mesmo sabendoque qualquer garota do Colégío Elitedaria tudo para ficar com ele.

"Ficar com quem? Com o semideusque elas imaginam, que elas idealizam,mas que não sou eu? Ou ficar comigo,com a pessoa que eu sou, um serhumano, alguém de carne, osso e sangue,

Page 31: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

que tem seus momentos de fragilidade,que quer carinho, que tem carinho paradar? Elas só querem o ídolo... MasMagrí é diferente.

Ela sabe quem eu sou. Ela meconhece. Só ela poderia mecompreender... Me acolher, como eusou... Mas ela... Ah, Magrí!"

Uma lágrima quente, doída, escorreupelo rosto do ator dos Karas.

* * *

A gaitinha estava muda. Crânio

soprava-a tão delicadamente, que amúsica só acontecia dentro do seuespírito.

Deitado na cama, não conseguia

Page 32: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

deixar de repassar na memória a últimareunião dos Karas. Crânio tinha chegadobem antes da hora marcada e subira aoforro do vestiário do Colégio Elite,sozinho.

Para pensar. Pensar em Magrí.Pensar na saudade que sentia. E paraconcluir. Concluir que nada mais havia afazer. A sensibilidade do gênio dosKaras lia na expressão de Miguel, naexpressão de Calú, o mesmo fogo queele sentia queimar-lhe por dentro. Eaqueles dois queridos amigos eram asduas últimas pessoas no mundo de quemele gostaria de ter ciúmes.

Mas, como poderia suportar a idéiade Magrí ser de outro? Ainda que fossede um daqueles dois amigos, mais

Page 33: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

queridos do que irmãos. Calú e Miguel!Sorriu amarelo, ao imaginar que pelomenos Chumbinho estaria fora.Chumbinho era ainda muito novo. Paraele, Magrí era apenas uma querida irmãmais velha.

"Magrí'! Você ama a humanidade,ama Miguel, ama Chumbinho, ama Calúe sei que você me ama. Você daria avida por qualquer um de nós. Mas,quanto a mim... Quanto a mim, ah! Vocêdemonstra um carinho que... sei lá! Émuito, mas não parece nem umpouquinho maior do que o carinho quevocê dedica a Miguel, a Calú ou aChumbinho..."

Lembrou-se do que pensara antesdaquela reunião decisiva: "Não agüento!

Page 34: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Não agüento mais! Tenho de acabarcom tudo isso! Com tudo isso!"

Mas, agora, depois da reunião,depois que ele tinha agido para "acabarcom tudo isso", a solução amargava-lhea alma. "Magrí..."

Crânio derramou suas lágrimasinteriores na música muda que seuespírito compunha ao soprarinaudivelmente a gaitinha.

Page 35: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

3. A fuga do piordos bandidos

Miguel montou na bicicleta ecomeçou a pedalar lentamente, saindodo portão da garagem para a rua. Olocal em que seriam feitos os treinospara monitor de acampamento era meiolonge. Talvez meia hora de bicicleta.

"Cuidar da criançada! Ufa! Ummonte de moleques mimados, cheios devontades... Bom, preciso me ocuparnessas férias, senão vou ficar maluco!"

Pedalou sem vontade. Naquelamarchinha, levaria uma hora parachegar.

Page 36: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Pensava na discussão furiosa que otinha levado àquela decisão. A piordecisão de sua vida... Mas a única queele poderia tomar.

Uma decisão que tinha significado ofim do grupo dos Karas. A discussão...

Miguel não se lembrava direito decomo aqueles minutos horríveis tinhamcomeçado. Mas se lembravaperfeitamente de que, na hora, perceberaque aquela era a sua oportunidade deacabar com tudo, de afastar para sempreo problema que o enlouquecia.

"Magrí... Como eu poderia disputarvocê com Calú? O menino mais bonitodo Colégio Elite, o atorzinho paqueradopor todas as meninas... E com Crânio? Oaluno mais inteligente da história do

Page 37: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

colégio? Ah, que os dois briguem porMagrí.

Eu não posso.. "A briga começara com Calú, quase

uma briga mesmo, quase... E Crânio?Entrara na discussão como um

incendiário, botando lenha na fogueira,dizendo coisas que... E Chumbinho! Ah,pobre Chumbinho! Como poderia eleentender o que aconteceu?

* * *

— Detetive Andrade! É com o

senhor...O gordo detetive pegou o fone

estendido pelo guarda.— Quem é?

Page 38: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

— É o diretor da PenitenciáriaEstadual de Segurança Máxima.

Andrade nem pôde iniciar oscumprimentos de praxe que o telefonemade um diretor de penitenciária merecia.Foi interrompido antes de completar"boa tarde".

Apenas ouviu. E o que ouviu deixou-o gelado.

— Ele... ele conseguiu fugir?!

* * * O ano estava no fim. Só

compareciam ao Elite os alunos quetinham provas de recuperação. Nãoeram muitos, pois o Elite era um colégioespecial, para estudantes também muito

Page 39: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

especiais.Convocado para aquela que seria a

última reunião dos Karas, Calúcaminhou apressado para o vestiário.Suas notas já estavam fechadas muitoantes, e quem o encontrasse no colégio overia apenas como o diretor teatral dogrêmio estudantil.

Sumiu no quartinho das vassouras e,ágil como um trapezista, pulou para oalçapão, desaparecendo na vastidão doforro, protegido de todas as vistas e detodos os ouvidos.

Crânio e Chumbinho já estavamsentados no forro, esperando. Magrí nãoviria. Estava nos Estados Unidos, para oCampeonato Mundial de GinásticaOlímpica.

Page 40: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Iluminados apenas pelas poucastelhas de vidro, que deixavam entrar umpouco de luz natural no forro, os trêssentavam-se como budas, à espera deMiguel.

* * *

O detetive Andrade desligou o

telefone, sem acreditar no que acabarade ouvir.

Seria um desastre para a sociedadese qualquer um dos prisioneiros, queeram fechados a sete chaves naPenitenciária de Segurança Máxima,conseguisse fugir. E, de todas aquelasferas humanas, um era o mais perigoso.Porque era o mais inteligente. E o mais

Page 41: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

amoral.Andrade sabia. Tinha prendido

aquele monstro inteligente, educado,culto, frio como uma navalha. Alguémpara quem o crime era a razão de suavida. Alguém que jamais tivera razõessociais, de pobreza ou ignorância, paraescolher o crime.

Aquele homem nascera com o crimeno sangue. Ele era o mal.

Sua ação devastadora pretendiaapenas o poder. Considerava lícito usarjovens como cobaias, seqüestrar eassassinar, no seu sonho louco decontrolar as vontades. O detetive, com aajuda dos seus queridos meninos,conseguira prendê-lo, pondo fim aorumoroso caso da Droga da Obediência.

Page 42: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

E, agora, o Doutor Q.I. desaparecerada Penitenciária de Segurança Máxima!

Ninguém estaria seguro com aquelehomem à solta.

E os seus meninos? Sim, porqueAndrade considerava Magrí,Chumbinho, Miguel, Calú e Crâniocomo os seus meninos. Aquele monstrohaveria de querer vingar-se, pois elestinham sido os verdadeiros responsáveispelo fim de sua carreira de crimes.

O Doutor Q.I.! Maldito! Emliberdade, aquele criminoso nuncadescansaria até vingar-se dos meninos!

Não! Isso ele jamais permitiria. Osseus meninos nem ficariam sabendo dafuga do Doutor Q.I. Andrade o prenderiade novo, antes mesmo que a imprensa

Page 43: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

descobrisse aquele desastre. Nãoimportava o que custasse.

— Eu juro! Eu vou pegar essecanalha de novo! — falava sozinho,enxugando o suor da careca com olenço. — Meus meninos não podemcorrer perigo!

Page 44: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

4. O fim dos KarasEnquanto estacionava a bicicleta em

frente à sede da empresa que organizavaacampamentos de férias, o ex-líder dosKaras repassava a última reuniãosecreta com seus companheiros.

E toda a dor daquele momento voltoua apunhalar-lhe o peito.

* * *

Irrequieto como sempre, com carinha

alegre, excitado, Chumbinho anteviamais uma ação perigosa, masdivertidíssima:

— Ei, Karas, o que será que Miguel

Page 45: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

quer, hein? Por que essa reunião deemergência máxima?

— Não sei, Chumbinho.— Uma emergência máxima sem a

Magrí? Logo agora que ela está nosEstados Unidos!

— É melhor esperar — encerrouCrânio. — Já vamos saber. Peloalçapão, Miguel surgiu naquelemomento.

Chumbinho tremia, antecipando aemoção. Para ele, todas as aventurasarriscadíssimas em que os Karas haviamse envolvido já eram passado. Eleprecisava de mais uma.

Decidido, Miguel sentou-se,fechando a rodinha sob a luz que secoava pelas telhas de vidro.

Page 46: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

— Pessoal — começou ele, sem usara palavra "Karas" -, a junta diretora doElite vai demitir a professora de inglês.Como presidente do grêmio do colégio,vou abrir um abaixo-assinado para pedirque...

Calú interrompeu:— E o que têm os Karas a ver com o

seu maldito abaixo-assinado?Miguel continuou, ignorando a

interrupção:— ...para pedir que a professora não

seja demitida. Os Karas têm umamissão. Precisamos preparar os colegas,para que o abaixo-assinado tenha omaior número de assinaturas possível.

— É assim, é? — perguntou Calú,com deslavada ironia na voz.

Page 47: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

— É assim o quê?— Olhe aqui, Miguel, já estou cheio

dessa sua mania de mandar. A gente nãodevia discutir o assunto primeiro?Descobrir por que a diretoria querdemitir a professora?

— Olhe aqui você, Calú! — Miguelfalou com dureza, sem encarar o amigo.

— O presidente do grêmio doColégio Elite sou eu e pronto. E eu seique a professora de inglês...

— Ah, ah! — cortou Calú. — Vocêsabe tuuuudo mesmo! E nós nãopassamos de cretinos que estamos aquipara fazer o que você manda, comocarneirinhos! Belo grupo o nosso!

Miguel percebeu na hora. Calú vieraà reunião disposto a fazer exatamente o

Page 48: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

que Miguel queria fazer. Sua decisãotinha um adepto.

— Ora, Calú, vê se cala a boca!Crânio pulou:— Que negócio é esse de "cala a

boca"? Eu também já estou cheio desseseu nariz empinado! Cale a boca você!

Calú piorou o clima ainda mais:— Não se meta na conversa, Crânio!

Eu também já estou cheio desse seuarzinho de gênio, metido a saber maisque todo mundo!

— Ah, é? E você, com esse jeito degalãzinho de novela? O que você estápensando? Pensa que pode com umagarota de verdade só porque a mamãeacha você o garotinho mais gostoso domundo?

Page 49: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

— Olha aqui, Crânio! Não bota amãe no meio!

Chumbinho, de boca aberta, nãoconseguia entender o que estavaacontecendo:

— Ei, Karas! Que história é essa?Miguel entrou com tudo:— Karas, ah! Mas que besteira essa

de "Karas"! Não sei onde estava com acabeça quando inventei de criar essamaluquice! Isso é coisa de criança!

Chumbinho pulou:— O quê?! Lutar contra o Doutor

Q.I., contra a Máfia, contra osneonazistas, foi tudo coisa de criança?!Você está querendo me gozar, Miguel?

— Desculpe, Chumbinho, masprocure me entender. — Miguel escolhia

Page 50: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

cada palavra. Não podia ferir aqueleamigo. Aquele fantástico Chumbinho. —A gente tem de crescer um dia. Não dámais para ficar brincando de detetive...

— Brincando?! — Chumbinhoperdeu a calma. — Eu te conheço,Miguel.

O que está acontecendo, hein?Miguel levantou-se.— Já me enchi, Chumbinho. Estou

fora dos Karas.— Fora dos Karas?! O que você está

dizendo, Miguel? Você não pode fazerisso! Ainda mais agora, que Magrí nãoestá no Brasil. O que ela vai pensar?

O nome de Magrí fez Miguel encararum a um os três amigos.

— Se vocês quiserem, que

Page 51: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

continuem com essa brincadeira. Euestou fora!

Calú levantou-se.— Antes de você, caio eu fora dessa

besteira!— Você?! — riu-se Crânio. —

Quem está fora sou eu!Miguel já estava próximo ao

alçapão.— Chega! Não quero mais saber de

nenhum de vocês. Acabou!A boca de Chumbinho abriu-se como

se fosse engolir um ovo, mas, dessa vez,o menino dominou a raiva. Havia muitomais coisas no ar abafado daquele forrode vestiário do que tinha sido dito. E ainteligência aguda do menino queriasaber o que estava acontecendo de

Page 52: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

verdade.— Karas, vocês estão escondendo

alguma coisa de mim. Isso não é leal!Será que já não provei que...Miguel agarrou-lhe o braço.— Chumbinho, você...O menino desvencilhou-se com um

tranco.— Eu não vou chorar, Miguel, pode

ficar descansado! Não sei o que estáacontecendo, mas vou descobrir. Nãovou deixar o grupo dos Karas morrer!

— Mas, Chumbinho...— Ainda tenho Magrí. Quando ela

voltar, nós dois vamos descobrir o queestá acontecendo!

Sem dizer mais nada, Miguellevantou-se e desapareceu pelo alçapão.

Page 53: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Chumbinho olhou suplicante para osdois amigos que restavam. Nenhum dosdois o encarou e, um a um, deixaram oforro do vestiário do Colégio Elite.

Sozinho, Chumbinho cerrou ospunhos e falou para as telhas, para asteias de aranha, para o pó, para o vazio:

— Eu não vou deixar o grupo dosKaras morrer! !

Page 54: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

5. Grupo de umKara só

Chumbinho não sabia o que fazer,depois daquela reunião desastrosa.

O fim dos Karas! Como ele iriaadmitir que o grupo dos Karas pudessedissolver-se?

Se Magrí não estivesse viajando...Saiu do colégio, olhando para o

chão, sem saber o que fazer.

* * * Magrí já estava pronta para o treino

quando bateram na porta do

Page 55: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

apartamento."Não deve ser dona Iolanda", pensou

a menina, pois a professora entrava emseu quarto a qualquer hora, sem a menorcerimônia.

Era um boy do hotel, uniformizado,trazendo um telegrama sobre umabandejinha de prata.

"Aposto que é de papai...", pensou amenina, abrindo o envelope, depois dedar uma gorjeta para o boy e fechar aporta.

* * *

O velho fusquinha de Andrade

encostou na calçada e a voz amiga dodetetive despertou o menino das

Page 56: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

preocupações: — Olá, Chumbinho!Tudo bem?

— Detetive Andrade!Andrade... Aquele sim, era um

amigo. O único adulto que sabia o valordos cinco Karas.

O detetive enxugava a careca comum lenço. Era sinal de preocupação,Chumbinho sabia muito bem. Mas aexpressão do detetive procuravademonstrar tranqüilidade.

— Estava passando por aqui eresolvi ver como vão as coisas...

— As coisas? Que coisas?— O pessoal... Como estão Miguel,

Magrí, Calú e Crânio?— Magrí está nos Estados Unidos,

participando de um campeonato de

Page 57: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

ginástica olímpica. Os outros... bom, osoutros parece que ficaram malucos..

— Ficaram malucos? O que vocêquer dizer com isso?

— Nada, Andrade. Brincadeira...O detetive fez uma pausa, sem saber

como continuar. Chumbinho não ajudouem nada. Olhava o amigo, com suamelhor expressão de ingenuidade.

— Mas está tudo bem mesmo?Andrade que se revelasse. Porque,

que havia alguma coisa no ar, issohavia.

— Está. Por que não haveria deestar?

— Nada, Chumbinho. Só estouperguntando... Não apareceu ninguémpor aqui?

Page 58: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

— Sei lá. Quem deveria aparecer?— Deveria? Ninguém deveria.

Hum... Estou falando assim, de um modogeral, porque vocês vivem se metendoem encrencas. Se alguma coisa estranhaacontecer, eu quero que vocês me façamsaber imediatamente.

Os olhos de Chumbinho passarampor todo o interior do carro, em buscade alguma pista que justificasse oestranho comportamento do amigodetetive. No banco de trás, havia umgrande envelope timbrado daPenitenciária Estadual de SegurançaMáxima. Para completar o quadro, notouque o detetive esquecera de tirar umcrachá da lapela. E lá também estavaescrito o nome da penitenciária. Muito

Page 59: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

bem. Andrade estivera lá, e de lá vieradireto para o Elite. Por quê?

— Está bem, Andrade. Está tudobem por aqui.

Chumbinho disfarçou, riu, mostrou-se "menino", para deixar Andrade maisà vontade e, de repente, com a carinhamais inocente do mundo, perguntou: —Puxa, Andrade! Estou me lembrandoagora do Doutor Q.I. O que será que eleanda pensando lá, na Penitenciária deSegurança Máxima?

— Ué... Quem lhe falou daPenitenciária de Segurança Máxima?

— É lá que está preso o Doutor Q.I.,não é?

— O Doutor Q.I.? Está preso lá?Nem sei...

Page 60: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

— Daquela penitenciária nuncaninguém fugiu, não é?

— Fugir de lá? Ora, essa é boa! Nemas moscas conseguem sair daquelafortaleza de concreto e aço. Tudoeletrificado, computadorizado eautomatizado.

Aquilo é à prova de fuga. Nem penseque o Doutor Q.I. conseguiria fugir delá.

— Ué... você não disse que nãosabia se o Doutor Q.I. estava ou nãopreso lá?

— E não sei mesmo! O que eu quisdizer é que, se ele estivesse, nuncaconseguiria fugir! Aquilo é como umverdadeiro abrigo contra bombaatômica!

Page 61: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Então era isso! O detetive tentavaesconder alguma coisa. Alguma coisaimportante e que tinha que ver com osKaras. Senão, por que teria vindo aoElite ainda com o crachá e com umgrande envelope da penitenciária nobanco de trás do carro? O que conteria oenvelope? A ficha do Doutor Q.I.?

— Se o Doutor Q.I. fugisse daprisão, você nos contaria, não é,Andrade?

O gordo detetive agarrou o volantecom raiva e ligou novamente o carro.

— Chumbinho, não se preocupe. Elenão faria nada contra vocês. Eu juro quenão faria. Eu estou de olho. Ele nãoconseguiria nem se aproximar de vocês!

Andrade estava nervoso demais.

Page 62: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

"Faria", "conseguiria"... O meninoestava certo de que não era paraacreditar naqueles condicionais. Omaldito Doutor Q.I. tinha fugido daprisão, só podia ser isso! Andrade vieradireto ao Elite porque havia perigo.Perigo de vingança contra os Karas.

Quando Chumbinho viu o carro dodetetive distanciar-se, já tinha resolvidoo que fazer.

"Preciso da Magrí. Com o DoutorQ.I. à solta, os Karas estão em perigo."

Em uma folha da sua agenda debolso, rabiscou o telegrama em código ecorreu para a agência do correio.

* * *

Page 63: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

O telegrama não era do pai deMagrí. Era um telegrama estranho, emuma língua mais estranha ainda.

Mas não para Magrí. Estava emcódigo. Um código que só os Karasconheciam. E que só era usado emocasiões de grande urgência.

Com seu olhar treinado, a meninatraduziu o texto de cabeça, na mesmahora. Era só aplicar primeiro o CódigoVermelho, substituindo AIS por A,ENTER por E, INIS por I, OMBER porO e UFTER por U.

MIGSÁVENPO USGOLPO. KISIR OM

TOSAGECHUMBALHEO texto ainda não fazia qualquer

Page 64: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

sentido, mas Magrí sabia que, emseguida, bastava usar o Código Tenis-Polar, colocando a palavra "TENIS"sobre a palavra "POLAR", de modo queo T correspondesse ao P, o E ao O, o Nao L, o I ao A, o S ao R, e vice-versa.

Pronto. Lá estava o texto dotelegrama:

MAGRÍ VOLTE URGENTE.KARAS EM PERIGO

CHUMBINHO

* * * Dona Iolanda estava quase chorando

na hora do embarque. — Que azar,Magrí! Você foi se machucar quandofaltavam só dois dias para a prova final!

Page 65: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Ai, ai, ai! Só pode ser praga. A culpa foiminha. Eu não devia ter forçado tanto ostreinamentos...

— Que nada, dona Iolanda —consolava-a Magrí, enquanto fingiamanquitolar ao lado da professora, nafila de embarque do AeroportoKennedy. — Isso acontece. Já estoumuito grande para o triplo mortal decostas. Caí de mau jeito...

— Sorte da ucraniana! Isso é pragade russo! Eu sabia que não se podeconfiar nessa gente!

Magrí sentou-se na poltrona do aviãoe ajeitou cuidadosamente a pernaenfaixada.

— Está doendo? — perguntou donaIolanda, ajudando-a a afivelar o cinto de

Page 66: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

segurança.— Um pouco... — fingiu Magrí.O enorme jato decolou suavemente.Magrí suspirou. Para ela não tinha

sido fácil fingir a contusão no tornozelo.Ela também estava ansiosa para

ganhar a medalha de ouro doCampeonato Mundial de GinásticaOlímpica dos Estados Unidos.Dedicava-se aos treinamentos há anos,lutando por aquela oportunidade. Mas otelegrama de Chumbinho era maisimportante do que qualquer competição.

"Bom, ainda tenho as Olimpíadas, noano que vem.. "

A urgência declarada no telegramanão poderia esperar os dois dias quefaltavam para a prova final de ginástica

Page 67: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

de solo. Os Karas estavam em perigo. Eos Karas, para Magrí, estavam acima detodas as medalhas de ouro. A ginásticaolímpica era sua realização, mas osKaras eram a sua vida.

Voltou-lhe à lembrança um rapazespecial entre os Karas. "Será quealguma coisa aconteceu a ele? Por ele,eu abandonaria até as Olimpíadas!",pensava a menina, olhando para asnuvens pelo lado de cima, que semprelhe tinham parecido como um camponevado, fofo, onde seria maravilhosomergulhar. "Mergulhar com ele..."

Page 68: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

6. Sobre as nuvensCrânio mergulhou nos estudos.

Física, computação, problemas dexadrez tornaram-se para ele não ummodo de aprender, mas de esquecer.Esquecer os Karas, esquecer Magrí...

Era noite. Tarde. Montou notabuleiro um problema de xadrez. O reinegro leva mate frente à dama branca.Em três lances. "Os três lances já foramjogados, Magri... O reí já caiu. .."

* * *

Dona Iolanda dormia placidamente

na poltrona do avião, depois da refeição

Page 69: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

servida pelas comissárias de bordo.Ao lado da professora, sentada na

poltrona do corredor, Magrí tirou osfones de ouvido e ficou olhando,desinteressada, o filme que era exibidoa bordo do avião.

Um filme agora mudo como umacomédia antiga. Uma comédia triste deChaplin...

Atrás do bigodinho, Magríimaginava uma carinha especial. Um"Karinha" especial. .. O seu Kara. Seu?Como ele poderia ser seu? Como elapoderia ser dele?

E os outros dois? Ai, o que fazer?Levantou-se da poltrona, sentindo os

músculos dormentes pela longapermanência no avião e pelo esforço em

Page 70: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

fingir a contusão no tornozelo.Toda a cabine estava às escuras.

* * * "Preciso relaxar, dormir. Amanhã eu

tenho ensaio... preciso dormir...dormir... Dormir, talvez sonhar... e,nesse sonho, sonhar que tudo estáacabado, tudo resolvido... Magríesquecida... Aaaahhh! Esquecida! Quepiada! Não, não, não! Não é o Hamletque eu vou fazer. Vou fazer o Folial... de'O Escorial'... Michel de Ghelderode...um belga... Ainda não sei as falas doFolial de cor... O rei diz: 'Tantas flores,tantas flores... E eu soluçarei por causadas flores... pela minha querida

Page 71: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

rainhazinha...' Magrí... ãhn, ãhn, ãhn...'Chorarei como tu haverias de chorarpor mim, querida rainhazinha, se a mortese houvesse enganado de quarto... Temgraça!

E ninguém foi testemunha de minhaslágrimas. Ei, Folial! Bufão maldito quenão viste chorar teu rei! Folial, meuscães te devoraram, carne cômica?' Ãhn,ãhn, ãhn...

'Vossos cães são os cães do rei,senhor. Devorariam vossos cortesãos,não vossos valetes...' Ai, e depois? Qualé a próxima fala? Ãhn, ãhn, ãhn...'Blasfemador!

Aquela que agoniza é bela, pura esanta! Morre por causa do silêncio e dastrevas deste palácio, cujas paredes têm

Page 72: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

olhos, e cujos salões de festa ocultamarmadilhas e instrumentos de tortura!Morre porque viveu entre seressinistros, longe do sol, seqüestrada eestranha. Morre, rainha sem povo, de umreino que goteja sangue, onde reinamespiões e inquisidores.' Ãhn, ãhn, ãhn...'Digo-vos que a morte é uma benfeitora,cuja chegada desejei, como vós adesejastes. E ela se apresentouimediatamente, pois nunca anda muitolonge daqui, cujo domínio ela repartecom a loucura!...' Magrí... ãhn, ãhn,ãhn... 'Minha coroa! Eu sou o rei! Arainha morreu...

Anuncio ao rei que a rainhamorreu...' Ai, Magrí, minha rainha...Vem, Magrí... Está escuro, Magrí... Não

Page 73: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

consigo dormir... ãhn, ãhn, ãhn... Ai,Magrííííí..."

* * *

Magrí andou ao longo do corredor

do avião. A maioria dos passageirosdormia.

Perto dos toaletes, dois homensconversavam em inglês.

— I wonder how that country is... —dizia o mais velho.

— It's really hot... — informou ooutro.

— I hate the heat. Oh, how I hate theheat!

— Well, there are beautiful womendown there. And beautiful beaches...

Page 74: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

— I'm a city man. I hate beaches. Idon't like the sand and all those dirtythings. I'd rather see beautiful bitche.s...

— Well, forget all about that. Ourjob is what matter. Are you completelyprepared?

— I think so. But I don't know if werehearsed enough...

— You know all you need to know.Everything will be fine... — encerrou omais moço, encolhendo-se na poltrona,para dormir. Magrí voltou para suapoltrona, sorrindo consigo mesma:"Esses americanos! Por que vêm para oBrasil, se odeiam praia? Se não gostamde calor? Devem ser atores, oumúsicos... Falaram em ensaiar pouco...Ah, músicos de rock é que não são. São

Page 75: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

velhos demais para o rock!"Sentou-se novamente ao lado da

professora, adormecida.O filme era mesmo muito chato.

Acendeu a luzinha individual e tentouler, mas, com o zumbido dos motores ecom a monotonia da viagem, acabouadormecendo. Mais uma vez para sonharcom um Kara especial...

* * *

Chumbinho acordou cedo.A casa ainda dormia quando o

menino saiu. Pegou um táxi especial.— Para Cumbica, por favor. O

motorista sorriu. "Corrida boa..."No bolso de Chumbinho estava o

Page 76: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

telegrama que Magrí enviara em seguidaao recebimento do seu. Dessa vez, nãotinha sido necessário usar nenhumcódigo. O telegrama dizia apenas ohorário do pouso em Cumbica do aviãoem que Magrí voltaria dos EstadosUnidos.

"Vou chegar ao aeroporto antes deMagrí passar pela alfândega...", pensavao menino.

* * *

Acordou com a voz excitada de dona

Iolanda:— Ai, Magrí! Você nem imagina

quem está no avião, junto com a gente!— Hum?

Page 77: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Dona Iolanda estava animadíssima:— Você já ouviu falar na Droga do

Amor? Já ouviu?— S-sim... — respondeu a menina,

esfregando os olhos. — E você sabiaque o teste final da Droga do Amor vaiser feito no Brasil? Hein? No Brasil? —a professora fez uma expressão superior,de quem descobriu algo muitoimportante. — Pois as amostras do soroe os cientistas criadores da Droga doAmor estão voando para o Brasil nesteavião!

— É mesmo? Onde estão eles?— Acabei de saber por uma repórter

que está viajando conosco. São aquelesdois, ali!

Magrí seguiu a direção do dedo

Page 78: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

apontado pela professora. De pé, nocorredor, aceitando com prazer abajulação e o interesse jornalístico datal repórter, estavam os dois americanosque Magrí ouvira conversando naquelanoite.

— Esses são os dois salvadores dahumanidade, Magrí! Venha. Vamos pedirum autógrafo!

— Ah, dona Iolanda! Deixa isso pralá...

Mas a professora já tinha tirado umaagenda e uma caneta da bolsa e corriapelo corredor, em direção aos doiscientistas. Magrí pensou que, se ostestes da Droga do Amor no Brasildessem certo, aqueles dois americanosganhariam o Prêmio Nobel, sem a menor

Page 79: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

dúvida. Daí, o autógrafo conseguido pordona Iolanda valeria uma fortuna...

A professora estendia a agenda e acaneta para o mais velho dos doisamericanos. Surpreso, o homem pegou aagenda e rabiscou algo rapidamente,com um sorriso feliz.

Aquele gesto despertou o avião.Outras pessoas aproximaram-se,estendendo também papéis e canetas emdireção aos cientistas e criando umapequena confusão.

O americano mais jovem, de cabelosnegros e lisos, empurrou o companheirode volta à poltrona da janelinha. Comuma expressão preocupada, sacudiu amão em direção aos passageiros.

— Please, no autographs, please...

Page 80: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

— O quê? — perguntou uma senhoragorda que, pelo jeito, não falava nada deinglês.

— Sem autógrafo, por favor... —traduziu o homem, educadamente.

"Hum... um deles fala português!",pensou Magrí.

* * *

Um instrutor experiente discorria

sobre as obrigações que os monitoresteriam durante o acampamento.

— Todo cuidado é pouco, pessoal.Teremos crianças a partir de quatro anose não queremos nenhum acidente.

Miguel esforçava-se para prestaratenção às instruções. Mas, por dentro,

Page 81: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

sua mente escapava para as aventurasque poderia estar vivendo com osKaras...

"Ah, os Karas não existem mais!Preciso me concentrar. Crânio, Calú eChumbinho são passado. Magrí épassado! Ai, Magrí.. ."

Um intervalo. Os candidatos amonitor espalharam-se pela casa,conversando. Sobre a mesa do instrutor,Miguel encontrou o mesmo jornal quevira naquela manhã. Sem vontade deconversar com ninguém, passou afolheá-lo. A vinda dos cientistasamericanos para o Brasil era o assuntoprincipal. Eles desembarcaríam naquelamanhã em Cumbica.

Olhou o relógio. Os cientistas,

Page 82: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

trazendo a Droga do Amor, deveriamestar desembarcando naquele momento.

Page 83: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

7. Sequestro emCumbica

Em frente das portas de vidro quedavam para o saguão de desembarquedo Aeroporto Internacional de Cumbica,parentes à espera de viajantes efuncionários de empresas portandotabuletinhas com nomes de passageirosformavam um aglomerado ansioso.

Chumbinho estava na primeira linhada multidão, apertado contra osbalaústres que formavam um corredor apartir das portas de vidro.

Na tabuletinha de um grupo deengravatados, Chumbinho leu: "Drug

Page 84: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Enforcement Inc. — Dr. BartholomewFlanagan".

"Que sorte!", pensou o menïno. "Ocriador da Droga do Amor vem justo noavião da Magrí!"

Os primeiros passageiroscomeçavam a despontar.

— Magrí! — gritou Chumbinho, aover a amiga manquitolando apoiada noombro de dona Iolanda, que empurravao carrinho de bagagens.

— Chumbinho! — respondeu Magrí,logo que viu o amigo. Fingindo andarcom dificuldade, Magrí foi sendoultrapassada por outros passageiros.

Chumbinho viu dois homens de ternopassarem pela amiga. O mais novoacenou ao ver o grupo de engravatados e

Page 85: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

puxou o companheiro na direção databuleta em que estava escrito "DrugEnforcement Inc."

Quando Magrí e dona Iolanda jáestavam perto de Chumbinho, aprofessora gritou:

— Ei! O que está acontecendo?Magrí seguiu o olhar espantado de

dona Iolanda.Foi tudo muito rápido, profissional.

Todos os engravatados sacavam armas equatro deles agarravam os dois recém-chegados.

— Parem com isso! — gritou aprofessora.

Um dos homens ergueu o braço euma chama brilhou, enquanto um tiroecoava sinistramente pela imensidão do

Page 86: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

aeroporto.— Dona Iolanda!Magrí deixou cair a bolsa ao sentir a

professora bambear abraçada a ela.Chumbinho pulou sobre as duas,

cobrindo-as com o corpo. Mas aproteção não era mais necessária. Umdos viajantes de terno estava sendoarrastado para longe e o outro já estavacaído, depois de levar violentacoronhada.

Pânico no aeroporto. Gritos,desmaios, bagagens caindo no chão, e amultidão, ao espalhar-se, comprimiu osdois Karas que amparavam donaIolanda.

— Abram! Dêem espaço! — gritouChumbinho. — Tem uma pessoa baleada

Page 87: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

aqui!Gritos e confusão mudaram de rumo,

e os três viram-se repentinamente nomeio de uma roda.

Um Kara treinado nunca deixaescapar nada, mesmo nas situações maisterríveis. E Chumbinho notou que abolsa que Magrí deixara cair, aoamparar a professora, tinhadesaparecido.

Com o corpo largado, dona Iolandasangrava nos braços de Magrí.

* * *

Calú estava saindo do banho quando

ouviu a notícia pelo rádio: "Seqüestroem pleno Aeroporto Internacional de

Page 88: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Cumbica!O famoso cientista americano, doutor

Bartholomew Flanagan, criador daDroga do Amor, foi levado em minutospor um grupo de homens, quandochegava ao saguão do aeroporto, vindode Nova Iorque. Até o momento, não hápistas dos seqüestradores. O doutorHector Morales, presidente para aAmérica Latina da Drug EnforcementInc., que o acompanhava, foi ferido poruma coronhada. Mas o serviço médicodo aeroporto já o atendeu e ele seencontra ainda lá, auxiliando nasinvestigações. Nossa reportagemdescobriu que uma mulher, ainda nãoidentificada, foi ferida a bala durante oseqüestro. Os doutores Flanagan e

Page 89: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Morales chegavam ao Brasil para os tãoesperados testes finais da Droga doAmor, o soro contra a praga do século,que poderá ser a esperança de tantospacientes terminais em todo o mundo. Eatenção: diretamente do AeroportoInternacional de Cumbica, fala a nossarepórter Abigail Cintra. Pode falarBibi!"

"Bom dia, Marcos Antônio.Acabamos de receber a notícia que acaixa com as amostras do soro da Drogado Amor que seriam usadas nos testesno Brasil foi também levada pelosseqüestradores. Acredita-se que se tratade um plano internacional,provavelmente liderado pela Máfia. Nocomando das investigações está o

Page 90: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

detetive Andrade, mas, até o momento,nossa reportagem não teve acesso à salaonde se encontra o doutor HectorMorales, que nesse momento estáconversando com os policiais. Adiretoria da Drug Enforcement vaidistribuir um comunicado à imprensanas próximas horas...

* * *

— Cuidado com ela!Os maqueiros já estavam tomando

todo o cuidado que Magrí exigia, aosberros, enquanto transportavam donaIolanda, desfalecida, para dentro daambulância. Um enfermeiro erguia umfrasco com soro, já ligado à veia de um

Page 91: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

dos braços da professora.Como abutres farejando carniça, os

repórteres, sempre enfiando microfonesem busca de alguma declaração,prejudicavam o trabalho da equipemédica.

— As câmeras! — ardenava um. —Mande vir logo as câmeras. Nãopodemos perder essas imagens!

Próximos ao tumulto, dois homensmuito discretos, de terno escuro, quasegêmeos, conversavam baixinho,observando a cena apenas com o cantodos olhos.

Chumbinho e Magrí não tinhamdesgrudado um segundo de donaIolanda.

Os dois estavam manchados com o

Page 92: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

sangue da professora e os repórteresansiosamente procuravam entrevistá-los.

— Filmem esses meninos sujos desangue! Vamos logo! Vai dar um lindovisual na tevê.

Magrí não largava da mão de donaIolanda, que tinha o tronco totalmenteenfaixado. E a gaze já estava vermelha.

— Afastem esses repórteres! —gritou um policial. — Fechem logo aporta da ambulância!

— Eu vou também! Ela é minhaprofessora. Viajamos juntas!

— Vai nada, menina! — decidiu opolicíal. — Você é testemunha. Você eesse rapazinho!

— Me deixe!— Venha quietinha. Sua professora

Page 93: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

vai ser muito bem cuidada. O estadodela será informado por telefone aochefe das investigações, não sepreocupe. Venha, vamos para a sala daPolícia Federal. Ei, enfaixaram seutornozelo? Você também foi baleada?

— Isso não é nada. Já desembarqueiassim.

Segurando os dois Karas, o policialabriu caminho no meio dos repórteres.

Mantendo uma certa distância, osdois homens de terno escuro seguiramdiscretamente na mesma direção.

A ambulância partiu com a sireneaberta.

Caminhando pelo saguão, Magrípercebeu que estava com a bolsa dedona Iolanda. Onde estava a sua? Bem,

Page 94: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

se tivesse sumido, isso não tinha grandeimportância. Ali só havia dinheiro eprodutos de maquilagem. Seu passaportee outros documentos estavam namochila, junto com as bagagens.

Seus olhos se apertaram, pensandona professora: — Será que ela vai viver,Chumbinho?

Page 95: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

8. Brincando coma morte

Para um caso grave como aquele, oEsquadrão Anti-seqüestro estava sob asordens da Polícia Federal. E todosestavam sob o comando do detetiveAndrade, nacionalmente famoso depoisde tantos casos difíceis brilhantementeresolvidos, como o da Droga daObediência, da Máfia no Pantanal e doressurgimento dos neonazistas.

Quando o policial, trazendo os doisKaras, abriu a porta da sala da PolíciaFederal no Aeroporto de Cumbica, láestava o detetive Andrade, andando de

Page 96: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

um lado para o outro e enxugando comum lenço a careca suada, apesar datemperatura perfeitamente climatizada.O famoso detetive voltou-se, surpreso:— Magrí! Chumbinho! O que vocêsestão fazendo aqui?

— Esses dois são as testemunhas queestavam com a mulher baleada —informou o policial, ainda segurando osdois Karas sujos de sangue. — O senhorjá conhecia esses meninos?

— É claro que sim! Raios! Quemania vocês têm de se meter em tudo! Oque houve? Quanto sangue! Vocês estãoferidos? O que é isso no tornozelo,Magrí?

Como um pai preocupado, abraçouMagrí e Chumbinho e ouviu

Page 97: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

ansiosamente o relato do que os doistinham presenciado.

— Mas por que será que os bandidossó atiraram nessa sua professora, donaIolanda?

— Não sei, Andrade — respondeuMagrí. — Vai ver foi porque elagritou...

Os dois Karas sentaram-se e Magrítratou de tirar as bandagens queenvolviam seu tornozelo, falsamentedestroncado. Agora não havia maisnecessidade de fingir.

Andrade andava novamente a esmo,enxugando a careca.

— Eu não entendo! Por que haveriamde seqüestrar o doutor BartholomewFlanagan? Por que roubar as amostras

Page 98: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

da Droga do Amor? De que vale issopara esses bandidos? No próximo avião,a Drug Enforcement pode enviar outracaixa com novas amostras!

— Um momento, detetive...Sentado em uma cadeira, já com um

belo curativo na testa, quem falou, emum português perfeito, com um levesotaque, foi o americano ferido pelacoronhada.

— Por favor, não estranhe que eufale a sua língua. Sou Hector Morales,presidente para a América Latina daDrug Enforcement Inc. Minha funçãoexige que eu domine perfeitamente oportuguês e o espanhol. Sou americano,de origem portoriquenha e...

— E o quê, doutor Morales? —

Page 99: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Andrade estava impaciente. — Vamoscortar as apresentações. Pode me dizerqual o lucro que esses bandidos esperamter, seqüestrando o doutor BartholomewFlanagan e roubando as amostras daDroga do Amor? O que eles querem?Pedir um resgate pelo cientista?

Hector Morales era um homemextremamente educado. Seus cabelos,apesar do curativo, já estavamnovamente penteados para trás, emperfeita ordem, negros, lisos ebrilhantes, o nó da gravata novamenteimpecável e a tranqüilidade recuperada.

— Detetive...?— Andrade. Detetive Andrade.— Detetive Andrade, o que acaba de

acontecer tem uma gravidade muito

Page 100: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

maior do que o senhor está pensando.— Mais grave? O que pode ser mais

grave do que...— Um momento, deixe-me continuar.

O projeto do soro que vocês, aqui noBrasil, batizaram de "Droga do Amor",aliás um nome muito criativo, éextremamente secreto. A DrugEnforcement teve de adotar todas asprovidências para impedir que empresasconcorrentes tomassem conhecimento doque estávamos pesquisando. O senhorsabe, detetive Andrade, como é sério oproblema de espionagem industrial nosEstados Unidos, não é?

— Continue, doutor Morales.— Nosso esquema de proteção às

pesquisas foi o mais perfeito possível.

Page 101: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Decidimos que, quanto menor onúmero de pessoas que conhecesse afórmula do soro, maior seria nossasegurança na proteção do segredo.Desse modo, mesmo a numerosa equipeque criou a fórmula não a conhecia emsua totalidade. Cada técnicodesenvolveu apenas a sua parte, semconhecimento das outras fases. Só odoutor Bartholomew Flanagan fazia aconexão entre os vários departamentos econhecia a fórmula completa...

— O quê?!— Para agravar o problema,

detetive, a Drug Enforcement não temoutras amostras do soro. Por razões desegurança, só foram produzidas asamostras que estavam naquela caixa...

Page 102: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

— Horror! Então isso quer dizerque.. .

— Que, sem as amostras e sem afórmula que está na memória do doutorBartholomew Flanagan, a Droga doAmor estará perdida!

* * *

O seqüestro do doutor Bartholomew

Flanagan e o roubo da caixa com asamostras da Droga do Amor tinha sido oplano mais sinistro que Andrade jáenfrentara.

— Que horror! Que vergonha! Essesbandidos vão pedir uma fortuna paradevolver a Droga do Amor! Malditos!Como alguém pode jogar assim com a

Page 103: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

vida de milhões de seres humanosdesenganados em todo o mundo? Hámilhões de pacientes terminaisinternados, ansiando por esse soro! Écrueldade demais! Essa gente estábrincando com a vida!

— Eles estão brincando com amorte, Andrade... — corrigiu Magrí.

O doutor Hector Morales balançou acabeça:

— A Drug Enforcement pode reunirtodos os cientistas que trabalharam como soro e tentar refazer a fórmula. Porém,sem o gênio criativo do doutorBartholomew Flanagan, vamos levaranos para chegar ao mesmo resultado.Talvez décadas...

— Bandidos!

Page 104: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

— Décadas perdidas, bilhões dedólares em subvenções que recebemosde todo o mundo para desenvolver osoro também estão perdidos. Comoreunir tudo o que precisamos pararecuperar o que já havíamosdescoberto? Onde conseguir novamentetodo esse dinheiro para retomar aspesquisas? Como recriar tudo o queestava na cabeça do doutorBartholomew Flanagan? Ah, isso é obrade uma organização criminosainternacional, sem dúvida...

— A Drug Enforcementjá recebeualgum pedido de resgate?

— Ainda não. Acabei de falar com adiretoria, há poucos minutos. Vamosaguardar.

Page 105: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

— Os bandidos, pelo jeito —raciocinou Andrade -, sabiam o queestavam fazendo ao seqüestrar o doutorFlanagan e roubar as amostras da Drogado Amor.

Posso concluir então que houveajuda de dentro da Drug Enforcement,não é?

— Sim e não, detetive — respondeuo doutor Hector Morales. — A DrugEnforcement fazia questão de manter emsegredo as pesquisas, mas não faziaquestão de fazer segredo que faziasegredo. É nosso estilo de trabalho.Todo mundo sabe disso. O crime foicoisa de profissionais muito bemorganizados. Só pode ser a Máfia...

— A Máfia? — cortou Andrade. —

Page 106: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Acho que não neste caso. Acho que seiquem está por trás disso tudo...

Da sua cadeira, Chumbinho arriscou:— O Doutor Q.I., sem dúvida.Andrade olhou pálido para o menino.— Chumbinho, você...— Estou certo, não estou, Andrade?

Quando você passou pelo Elite,preocupado com a gente, trazendo umcrachá e um envelope da Penitenciáriade Segurança Máxima, eu só podiadesconfiar de uma fuga do Doutor Q.I.,não é? E você tem razão: um plano comoesse só pode mesmo ser coisa dele...

— Doutor Q.I.? Quem é essapessoa? — perguntou Morales.

— Um gênio do mal, doutor —explicou Andrade, sem desmentir

Page 107: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Chumbinho. — Alguém perfeitamentecapaz de arquitetar uma barbaridadecomo essa, de lucrar com a morte demilhões de inocentes!

Page 108: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

9. Separados nãosomos ninguémO telefone da sala da Polícia Federal

tocou mais uma vez.— É para o senhor, detetive Andrade

— chamou um policial, estendendo-lheo fone.

Era do Ministério das RelaçõesExteriores. O governo americano estavaenviando dois agentes do FBI paraacompanhar as investigações.

— Inferno! — praguejou Andrade,desligando o telefone. Lá vêm essesgringos se meter com a gente! Eu já nãotenho problemas de sobra?

Page 109: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

— Isso é normal, detetive Andrade— tentou explicar o doutor HectorMorales. — O doutor BartholomewFlanagan, um cidadão americano, estáenvolvido no problema. É normal quenosso governo esteja preocupado. Mas osenhor pode estar certo que os agentesdo FBI só vão acompanhar suasinvestigações. Tenho certeza que só vãoajudar. O doutor Bartholomew Flanagané uma personalidade muito importante.Espero que o senhor descubra logo paraonde o levaram. Espero que o senhor eos seus policiais possam salvar suavida. É uma vida importante para toda ahumanidade, detetive Andrade.

— E a vida da minha professora? —interrompeu Magrí.

Page 110: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

O doutor Morales aproximou-se damenina e, paternalmente, acariciou seurosto com uma mão quente e delicada.

— Oh, menina, sua professora vaificar boa! A Drug Enforcement sente-seresponsável por tudo o que aconteceu.Já dei ordens para que uma equipemédica da melhor qualidade assuma otratamento de dona Iolanda. Pode deíxar.Todas as despesas correrão por conta daDrug Enforcement. Sua professora estáem boas mãos...

O diretor da Drug Enforcement eraum homem calmo, seguro, carinhoso.

Não se parecia nada com a imagemfria e impessoal que todo mundo faz dosgrandes executivos. Suas palavrasconfortavam o coração de Magrí. A

Page 111: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

menina aceitou a carícia no rosto, comose o americano fosse um tio.

O detetive Andrade aproximou-sedos três.

— Ah, meninos! Estou aqui falando eenvolvendo vocês ainda mais nessetumulto. Vocês não têm nada com isso.Devem estar exaustos. Ainda mais você,Magrí, depois de uma viagem tão longae de tanta confusão. Vou chamar umaviatura para levá-los para casa, emsegurança. O melhor que têm a fazer étomar um banho e esquecer tudo isso.Podem deixar os problemas comigo.

Enquanto esperavam pela viatura,Magrí, com um olhar, chamouChumbinho para perto da janela da salada Polícia Federal. Debruçados no

Page 112: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

parapeito, falando muito baixo, os doisKaras podiam conversar.

— O Doutor Q.I., Chumbinho!Fomos nós que acabamos com o planosinistro dele, no caso dos seqüestros deestudantes. Estava na cadeia por nossacausa.

Agora, no mínimo, ele vai querernossas cabeças numa bandeja!Precisamos de uma reunião deemergência máxima dos Karas,imediatamente!

Chumbinho falou entre dentes, comraiva e decepção na voz: — Os Karasnão existem mais, Magrí...

— O quê?! O que você está dizendo,Chumbinho?

Com os olhos vermelhos, contendo-

Page 113: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

se para não chorar, Chumbinho relatoutodos os detalhes da reunião maluca dosKaras. Repassou cada uma das palavrasduras trocadas entre Miguel, Calú eCrânio.

— Foi horrível, Magrí. Eles estavamdiferentes, estranhos, furiosos. Ah, comoeu queria que você estivesse lá naquelahora! Mas só resolvi enviar o telegramaquando descobri a fuga do Doutor Q.I.Logo depois da maldita reunião,Andrade apareceu lá no Elite,disfarçando, perguntando se estava tudobem...

Ao longe, além da vidraça fechadada sala, um Boeing levantava vôo comouma garça, sob um sol de maçarico.

Olhando fixamente para a pista do

Page 114: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

aeroporto, Chumbinho falava e Magríouvia, sem interromper. Mas, por suacabeça, um turbilhão de suspeitascrescia.

— Não sei, Magrí. Não sei o quedeu naqueles três para se pegarem numadiscussão besta. Nem posso imaginarpor que os três resolveram acabar com ogrupo dos Karas. Tem alguma coisaestranha, Magrí. Uma coisa que eu tenhode descobrir!

O coração de Magrí apertava-sedentro do peito. Ela conhecia aquelestrês muito bem. Dissolver o grupo dosKaras? Nenhum deles jamais sonhariacom uma coisa dessas. Então, o que teriahavido? Será que...? E uma suspeitadoída ocorreu à menina. Seria ela a

Page 115: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

causa daquilo tudo? Seria ela a culpadado fim daquele grupo maravilhoso?

Chumbinho continuava:— Eu tentei falar com eles mais uma

vez, ainda agorinha, num orelhão,enquanto esperávamos a ambulância, láno aeroporto. Calú estava de saída paraum ensaio idiota. Na voz, pareciapreocupado, mas disse que não tem nadaa ver com cientistas seqüestrados. . .Não consegui falar com Miguel. Lá nacasa dele disseram que ele foi a umtreinamento para monitores de um talacampamento de férias. Coisa decriancinhas!

— E Crânio?— Não quis nem conversa. Na hora,

perguntou ansiosamente por você.

Page 116: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Quando soube que estava tudo emordem, disse que tinha muito queestudar. Nem a fuga do Doutor Q.I.abalou aquele teimoso. Disse que oDoutor Q.I. na certa já fugiu do Brasil,que eu não me preocupasse. E desligouo telefone também.

"O que está acontecendo?",perguntava a menina para si mesma."Isso não é coisa deles! Nem Miguel,nem Calú, nem Crânio jamais recuariamfrente a um desafio como esse. Foi porminha causa que tudo isso aconteceu?Ah, não pode ter sido, não pode!"

Juntos, olhavam o aeroporto sob osol. Sozinhos, sentiam-se desamparados.

— Eu tenho de saber quem baleoudona Iolanda, Chumbinho! Ela está em

Page 117: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

coma, no hospital. E se ela morrer?Chumbinho baixou ainda mais o tom

de voz:— Magrí, a saúde de dona Iolanda

não depende mais de nós. Só podemostorcer. Mas o Doutor Q.I. é nossoproblema. Você sabe que ele nãodescansará, enquanto não se vingar dosKaras. Um por um!

— Eu sei, Chumbinho, eu sei. Mascomo vamos nos defender, separados?

Juntos, já fizemos muita coisa, masseparados não somos ninguém! Comoconvencer Miguel, Calú e Crânio disso?

Apesar da gravidade da situação,Chumbinho estava com aquela expressãogaiata que marcava o caçula dos Karas.Olhou para a amiga com um meio

Page 118: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

sorriso: — Eu tenho uma idéia, Magrí...

* * * O telefone da sala da Polícia

Federal, no Aeroporto de Cumbica, nãoparava de tocar. Policiais ligavam detodas as partes da cidade, comunicandoo que não estavam conseguindo, naexecução das instruções do detetiveAndrade.

— Não há nem pista dosseqüestradores — declarou Andrade,furioso, ao desligar mais um dosinúmeros telefonemas. — Até agora nãoencontraram ninguém que tivesse vistoos carros em que os bandidos devem terfugido. Parece que desapareceram no ar,

Page 119: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

levando o cientista! São profissionais,dos melhores! Quer dizer... dos piores!

O telefone tocou outra vez, e opróprio detetive atendeu.

— É para o senhor, doutor Morales.É da Drug Enforcement...

O americano pegou o telefone e falouem inglês: — Hello... What? For God'ssake!... We should have expectedsomething like that... My God! Onebillion!... Okay, we'll meet later. Don'tdo anything till I get there. All right!

Quando o doutor Morales desligou,seu rosto estava da cor de uma folha depapel. Magrí e Chumbinho, que falavaminglês perfeitamente, já tinham uma boaidéia do significado do telefonema, masAndrade não tinha entendido nada: — O

Page 120: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

que foi, doutor Morales?O americano passou a mão pelo

rosto e suspirou: — Era da DrugEnforcement, detetive. Eles receberamum telefonema dos seqüestradores.

— E então?— Os malditos querem um bilhão de

dólares para devolver o doutor Flanagane a Droga do Amor!

* * *

As roupas ensangüentadas daqueles

dois adolescentes chamavam a atençãode todos.

Escoltados por dois policiais,Chumbinho e Magrí atravessavamrapidamente o saguão do aeroporto, em

Page 121: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

direção à viatura que os levaria paracasa.

Encostados a uma coluna, doishomens muito parecidos conversavamdiscretamente.

Quando a viatura policial fez ocontorno para entrar na Rodovia dosTrabalhadores, um carro escuro seguia-os, a distância.

Page 122: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

10. Seu filho estáem nosso poderO detetive Andrade entrou no seu

velho fusquinha. O diretor daPenitenciária de Segurança Máximaestava esperando por ele. Era pelapenitenciária que ele devia iniciar asinvestigações. Andrade tinha certeza.

"Doutor Q.I. !", pensava ele. "Comoeu vou descobrir onde se escondeu essebandido? Como é que ele pôde, dedentro da cadeia, organizar um planomirabolante como esse de seqüestrar odoutor Bartholomew Flanagan e roubara Droga do Amor? E como foi possível

Page 123: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

passar para a ação horas depois de fugirda cadeia? Ah, eu preciso pôr as mãosem você, Doutor Q.I.! Antes que vocêpossa fazer algum mal aos meusmeninos..."

Não tinha rodado nem cem metrosquando o receptor do rádio do carrochamou:

— Detetive Andrade... Centralchamando detetive Andrade. . .

Pegou o fone e respondeu:— Detetive Andrade na escuta...Do outro lado, a voz estava excitada:— Venha para a Central

imediatamente, detetive Andrade!— O que houve?— Outro seqüestro, detetive

Andrade. Dessa vez é um menino.

Page 124: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

— Que menino?— Ainda não sabemos o nome do

garoto, detetive. Só sabemos o apelido.— E qual é o raio do apelido do

menino? Fale logo!— Um apelido gozado, detetive.

Dizem que o menino é chamado deChumbinho...

* * *

A casa estava cercada por cinco

viaturas da polícia e por tiras deplástico amarelo isolando a área.Policiais em uniforme tentavam afastaros curiosos e as câmeras de tevê.

Uma bicicleta estava caída nogramado.

Page 125: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Andrade encostou o fusquinha ecorreu para a casa. Identificou-se para oguarda da porta e entrou na sala.

A primeira pessoa que viu foi Magrí,sentada em uma poltrona, chorando,desconsolada. Ao lado estava umasenhora estendendo-lhe um copo d'água.Os dois policiais que haviam escoltadoa menina e Chumbinho do aeroportopara casa completavam o quadro,mostrando-se pouco à vontade.

— Magrí! O que aconteceu?A menina jogou-se nos braços do

detetive:— Ah, Andrade! O Chumbinho!

Dessa vez foi o Chumbinho!Andrade, abraçando a menina e

dando tapinhas paternais em suas costas,

Page 126: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

falou irado para os policiais:— Vocês! Eu não disse para

entregarem os meninos em segurança! Oque vocês fizeram?

— Desculpe, detetive Andrade,nós...

Magrí afastou-se um pouco e encarouo detetive. Seu lindo rostinho estavacoberto de lágrimas.

— Não, Andrade. A culpa não édeles. Eles me levaram direitinho paracasa, e depois trouxeram Chumbinho.Eles não têm culpa de nada!

— E a senhora, quem é? —perguntou o detetive, voltando-se para amulher com o copo d'água. — É a mãede Chumbinho?

— Não — respondeu a senhora. —

Page 127: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Sou a governanta da casa. A mãe domenino passou mal, desmaiou, e agoraestá lá em cima com o médico...

A paciência de Andrade estava cadavez menor: — Então alguém pode medizer, por favor, o que aconteceu poraqui?

— O menino chegou direitinho —continuou a governanta. — Tomou umbanho e depois saiu para dar uma voltade bicicleta. Quinze minutos depois, euouvi a campainha. Vim atender, e nãotinha ninguém na porta. Só encontrei obilhete junto da bicicleta caída nogramado...

— O bilhete? Que maldito bilhete éesse?

Um dos policiais estendeu um grande

Page 128: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

envelope plástico, onde estava guardadoum papel.

— Este bilhete, detetive...Andrade pegou o envelope plástico.

Dentro dele havia um papel amarelocoberto por frases recortadas de jornais:

"Seu filho está em nosso poder. Nãochamem a. polícia nem a imprensa docontrário; ele nunca voltará com vida.Esperem contato telefônico".

No fim do bilhete, Andrade tremeu,ao ler estas iniciais: QI — Maldição! ODoutor Q.I.!

Page 129: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

11. Um anãodisforme

Era fim de tarde.O sol, que queimara o asfalto durante

todo o dia, recolhia-se agora tingindo océu sem nuvens de vermelho, laranja eamarelo. Poucos estudantes aindacirculavam pelo Colégio Elite. Aquelesque ainda faziam provas de recuperaçãoou estudavam para elas. Junto à sombrada marquise da entrada, ao lado dasfolhagens do belo jardim do colégio,uma figura ocultava-se.

Se qualquer dos estudantespercebesse aquela presença, na certa se

Page 130: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

assustaria.Era uma figura disforme. Um anão

horrendo. Corpo deformado e recurvo,rosto empelotado, barba rala, olhosmiúdos e argutos. O nariz entortava-sesobre lábios grossos e dentes miúdos,muito brancos. Um pequeno chapéucobria-lhe os cabelos, que não viamágua há muito tempo.

O anão esperava.

* * * Toda a imprensa abria seus espaços

para a cobertura dos crimessurpreendentes do dia. As emissoras detelevisão e de rádio não cansavam deprocurar notícias novas para informar

Page 131: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

seu público, com uma avidez maior quea dos policiais:

"O bilhete dos seqüestradores trazuma estranha assinatura, senhorestelespectadores: as iniciais Q.I. O quesignificaria isso? As iniciais de umnome?

Uma sigla como 'C.V.', do ComandoVermelho? Até agora nossa reportagemainda não conseguiu maioresinformações da polícia..."

"Há uma porção de perguntas aindanão respondidas, senhores ouvintes. Porque seqüestrariam apenas uma dastestemunhas do caso do doutorBartholomew Flanagan, o meninoChumbinho? E por que foi disparadoapenas um tiro, ferindo gravemente uma

Page 132: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

professora, dona Iolanda Negri, queestava justamente ao lado do meninotambém posteriormente seqüestrado?"

"O cônsul americano, na capital, estápreocupadíssimo. O seqüestro de umimportante cidadão de seu paísrepercutiu negativamente na CasaBranca. Soubemos que o presidenteamericano ligou para Brasília e faloudiretamente com nosso presidente,pedindo severas e urgentesprovidências..."

"Nossa reportagem acabou de saberque, nos próximos minutos, pousará umjatinho do FBI, trazendo dois agentesespeciais, encarregados de ajudar apolícia brasileira nas investigações.. ."

"Acabamos de entrevistar um

Page 133: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

especialista em organizaçõescriminosas, senhores ouvintes. Segundoele, 'Q.I.' pode significar 'ComandoInternacional', uma nova facção decriminosos. Ainda de acordo com aopinião desse especialista, os bandidos,semianalfabetos, escreveriam 'Comando'com 'Q' e não com 'C' . . ."

* * *

— Quanta besteira! Besteira,

besteira! — falou Crânio para si mesmo,desligando o rádio. — E é Chumbinho?Ai, Chumbinho! Preciso...

Correu para o telefone, mas acampainha do aparelho tocou antes queele pegasse o fone.

Page 134: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Crânio tremeu. Era Magrí. Já sabiada volta da menina pelo telefonema deChumbinho, no aeroporto, mas ouviraquela voz deixou-o sem fala.

— Emergência máxima. Em meiahora.

Não havia o que discutir.— C-certo, Magrí...Crânio desligou o telefone e saiu

apressado para o Colégio Elite.

* * * Depois do telefonema de

Chumbinho, Calú não pudera ir aoensaio do "Escorial", do belga Michelde Ghelderode. O diretor da peçacompreenderia.

Page 135: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Também, se não compreendesse,problema dele. As preocupações deCalú eram maiores do que seu amorpelo teatro.

Precisava pensar, pensar... decidir...Chumbinho o convocara por telefonepara uma emergência máxima e elerespondera que não tinha mais nada comisso.

Seu sangue, o sangue de um Kara,fervia nas veias.

Suas dúvidas foram interrompidaspela televisão, com a notícia doseqüestro de Chumbinho.

— O quê?? Chumbinhoseqüestrado?? Dane-se nossa briga! Euvou...

Sua decisão já estava tomada quando

Page 136: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Magrí telefonou.— Em meia hora, Calú.— Certo.

* * * Miguel acabava de chegar em casa,

depois do treinamento dos monitores deacampamento. Não sabia dosdesdobramentos do caso da Droga doAmor. Não sabia do seqüestro deChumbinho.

Atendeu o telefonema de Magrí.— Emergência máxima. Em meia

hora, Kara.A segurança do ex-líder dos Karas

abalou-se.— Ma-Magrí! Você está ligando dos

Page 137: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Estados Unidos?— Não. Estou de volta.— Mas o que houve? O Campeonato

de Ginástica Olímpica ainda não...— Não temos tempo para

explicações, Miguel. Emergênciamáxima.

Aquela voz, aquela convocação...Miguel esforçou-se para recuperar ocontrole. Chegara ao momento maisdifícil de sua encenação. Era precisomanter-se firme:

— Escute, Magrí, desculpe. Não seise você já falou com Chumbinho, mas euestou fora diss...

— Cale-se. Chumbinho foiseqüestrado.

— Estou indo.

Page 138: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

* * *

Magrí tinha sido a primeira a chegar.

Com diferença de minutos, um a um, osoutros três Karas surgiram pelo alçapãodo vestiário do Colégio Elite.

Miguel fechou a rodinha formadapelos amigos ajoelhados no forro.

O sol, descendo no horizonte, jogavaseus raios horizontalmente através daspoucas telhas de vidro e já não osiluminava. No escuro, Miguel falou, comsegurança:

— Não temos tempo a perder.Magrí, diga tudo o que sabe.

Magrí sentiu que aquele rapaz eranovamente o comandante dos Karas.

Page 139: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

* * ** * *

Uma sombra disforme e torta galgava

silenciosamente o telhado do vestiáriodo Colégio Elite.

Arrastou-se sem ruído até bem pertodas telhas de vidro e tirou do bolso umestetoscópio.

Com as hastes nos ouvidos, colou oestetoscópio na fresta de duas telhas.

Enquanto o anão ouvia, seus lábioscontorciam-se em um sorriso torto.

* * *

Magrí usava sua incrível capacidade

Page 140: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

de síntese. Sem omitir nenhum detalhe,narrou todos os lances de sua chegadaao aeroporto, do seqüestro do doutorBartholomew Flanagan, do tiro queatingira dona Iolanda, das conversasentre Andrade e o doutor HectorMorales, da fuga do Doutor Q.I. dapenitenciária e, por fim, do misteriososeqüestro de Chumbinho e do bilheteencontrado ao lado da bicicleta domenino.

— Por que o Doutor Q.I. assinaria obilhete?

— Acho que é uma forma direta denos ameaçar, Crânio — raciocinouMagrí. — Ele quer que nós saibamos desua fuga. Que ele está atrás de nós...

— E um dos Karas já está em poder

Page 141: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

dele. . . — concluiu Calú, com um tomdesolado na voz.

Uma imensa pausa silenciou osquatro Karas.

O desafio era de arrasar. Nenhumdeles ousava falar, mas cada umpensava que, se o Doutor Q.I. achavaChumbinho uma testemunha importante,não seria um resgate que ele pediria.Cada um deles procurava afastar dopensamento a dolorosa idéia de que ocaçula dos Karas, àquela hora, já podiaestar morto...

Miguel levantou a cabeça:— Vamos agir. Nem a vida de

Chumbinho nem a nossa valem nadaenquanto o Doutor Q.I. estiver fora dacadeia. Precisamos do Andrade. Ele tem

Page 142: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

de nos ajudar.— Andrade? — riu-se Calú. — Ora,

ele parece um pai! Ou uma mãe... Vivedizendo que a gente não deve correrriscos, que tudo deve ficar somente aseu cargo...

Miguel cortou:— Ele vai ter de mudar de idéia.

Ligue para ele, Magrí. Diga que tem umainformação importante que só pode serpassada para ele, sem testemunhas. NoParque do Ibirapuera, na primeira horada manhã!

Ali estava de novo o líder dosKaras.

Levantaram-se, prontos para sair doesconderijo secreto, e hesitaram por ummomento, fitando um ao outro, na

Page 143: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

escuridão.Miguel olhou fundo nos olhos de

Magrí, como se pudesse enxergar sua luzna escuridão:

— A última prova do CampeonatoMundial de Ginástica Olímpica vai seramanhã, Magrí. Por que você voltouantes?

Magrí nada respondeu. Seu rostinhogirou, encarando as sombras daquelestrês garotos que ela adorava. E que elasabia que a adoravam. Seus três Karas...Suas três "Chiquitas"... Juntos, cada umpodia sentir o calor excitado do outro.Cada um podia sentir pulsar o coraçãodos outros. Três corações pulsando porMagrí. O coraçãozinho de Magrípulsando forte pelos três. Porém, mais

Page 144: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

forte ainda por um dos três...De repente, como se tivessem

combinado, os quatro abraçaram-se comforça, misturando suas vontades, suaamizade, sua coragem, seu amor...

Ali estavam de novo os Karas,reunidos. Nada poderia jamais separá-los.

Page 145: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

12. Por todos ossofrimentos do

mundoA noite já estava avançada e a sala

da Central de Polícia cheia da fumaçados muitos cigarros consumidos nareunião.

Andrade não fumava. O que elesentia, naquele momento, era a gargantae os olhos ardentes da fumaça dosoutros. E uma fome desesperada.

Um guarda saiu para buscarsanduíches. Três para Andrade e umpara cada participante da reunião: o

Page 146: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

doutor Hector Morales, o diretor daPenitenciária de Segurança Máxima,dois homenzarrões altos e corpulentos euma senhora magrinha que estava lácomo intérprete, já que os doisgrandalhões não entendiam uma palavrade português.

Os dois tinham chegado aoentardecer, e Andrade estranhou quandofoi apresentado a eles pelo cônsul dosEstados Unidos: — Estes são nossosespecialistas em seqüestros do FederalBureau of Investigation, o FBI, como osenhor sabe, detetive Andrade. Este é oagente Patrick Lockwood...

— Parece nome de tira de seriado!— resmungou Andrade, sabendo que osagentes não entendiam português.

Page 147: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

— Ah, ah, boa piada, detetiveAndrade! E este outro é o agente IúriMikhailevich...

— Iúri o quê?! — perguntou o gordodetetive, já meio incomodado pelainterferência estrangeira na suainvestigação. — Isso não é nome russo?

— Bem... quer dizer... — gaguejou ocônsul. — É que Iúri era da KGB, apolícia secreta dos soviéticos. Mas,como a União Soviética não existe mais,ele veio procurar emprego nos EstadosUnidos. O pessoal da CIA, a nossapolícia secreta, recomendou-o muitobem. Daí, resolvemos aproveitá-lo noFBI...

"Esses americanos são unsmalucos!", pensou Andrade, no início da

Page 148: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

reunião.— Até agora não conseguimos

descobrir como o Doutor Q.I. fugiu danossa prisão — começou o diretor daPeninteciária de Segurança Máxima. —Ele não deixou pista alguma. Não háportas arrombadas, não há gradescerradas, os computadores quecontrolam as celas e as saídas estãointactos, ninguém parece ter sequer seaproximado das cercas e das portaseletrificadas. Só o que sei é que ohomem não está mais lá dentro. Sumiucomo um fantasma!

A mulher magrinha traduziurapidamente para o inglês. O agentePatrick Lockwood fez uma expressãoforçadamente inteligente e balançou a

Page 149: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

cabeça.— Well... that's our incumber one

suspect...Iúri Mikhailevich perguntou:— Shtó?... Oh, izvinítie... Me sorry...

lá nitchevó nhe partimáiu... Me notunderrrstand verry well...

O russo ainda não havia aprendidoinglês direito, e a mulher magrinha tevede repetir tudo, bem lentamente, até queIúri Mikhailevich demonstrasse terentendido.

— Pelo jeito, a segurança da suapenitenciária não é tão máxima assim,não é, diretor? — provocou Andrade.

O diretor mexeu-se na cadeira,ofendido:

— Detetive Andrade, eu lhe garanto

Page 150: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

que o modo de sair da penitenciária queeu dirijo é pela porta da frente, com umalvará de soltura. Só que nenhum dossentenciados que estão lá poderá sersolto antes de cinqüenta anos. Assim, aúnica maneira de sair da Penitenciáriade Segurança Máxima é através de umalvará de transferência para outropresídio. Não conheço outro modo!

Andrade levantou-se e caminhoupela sala, praguejando: — Diabo! Ojeito vai ser interrogar todos os guardas,todos os prisioneiros...

— Meus guardas e carcereiros estãoàs suas ordens, detetive — ofereceu odiretor. — Mas duvido que osprisioneiros informem qualquer coisa aosenhor. Lá dentro estão as maiores feras

Page 151: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

do nosso Estado. Se somarmos todas aspenas que cada um deles tem a cumprir,vai dar mais de dez vezes toda a EraCristã...

— Precisamos descobrir como oDoutor Q.I. fugiu — insistia Andrade.— Precisamos de pistas! Precisamospelo menos de uma ponta da meada,para que eu possa começar a puxar. ..

A conversa emperrou mais umpouco, até que a intérprete traduzisse oque estava sendo dito e até que o russoentendesse pelo menos por alto.

— Shtó? Vhat? Shtó on skazal?

* * * A porta se abriu e Andrade olhou

Page 152: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

ansiosamente. Na certa eram ossanduíches...

Não eram. Era um outro guarda.— Telefone para o senhor, detetive

Andrade.— Eu já não disse que não podemos

ser interrompidos?— Desculpe, detetive... Ela disse

que é sua sobrinha. E que é urgente... Nalinha dois...

"Magrí, só pode ser Magrí!", pensouAndrade, pedindo licença para atenderna outra sala. Não queria falar comMagrí na frente daquelas pessoas.

Pegou o fone e apertou a tecla dalinha dois. Era Magrí.

— O que você quer, minha querida?Estou numa reunião muito importante e...

Page 153: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

— Andrade, precisamos falar comvocê!

— É sobre o Chumbinho? É claroque é sobre o Chumbinho! Não sepreocupe, minha querida, estamostomando todas as providências e...

O detetive argumentou de todas asmaneiras, mas era impossível vencer ateimosia e a argumentação de Magrí.Principalmente a teimosia.

Acabou concordando. Na manhãseguinte, cedinho, no Parque doIbirapuera. Ele estaria lá.

"Ah, esses meninos!", pensava ele,ao desligar.

* * *

* * *

Page 154: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Quando voltou para a sala, os

sanduíches e algumas garrafas derefrigerante já estavam sobre a mesa.

O calor e a fome eram grandes, etodos interromperam a reunião comprazer.

Depois de devorar seus trêssanduíches, no mesmo tempo que HectorMorales levou para comer apenas um,Andrade perguntou: — E o doutorBartholomew Flanagan? Como é ele,doutor Morales?

Quando os seqüestradorestelefonarem novamente, vamos pediruma prova de que o cientista ainda estávivo. Para isso, preciso saber dedetalhes da vida e da personalidade

Page 155: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

dele, para que a gente possa criaralgumas perguntas que só ele possaresponder...

— O doutor Bartholomew Flanagan?— começou Morales. — Oh, eu oconheço muito bem! Ele...

A senhora magrinha acabava detraduzir para os agentes do FBI o queAndrade e Morales conversavamquando o agente Patrick Lockwoodlevantou seu corpanzil e veio de lá comum envelope na mão: — Here you are,detective. We brought everything weneed to know about DoctorBartholomew Flanagan. Here's somephotos and here is a paper with abriefing about hi.s life...

Dessa vez foi Andrade que não

Page 156: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

entendeu nada:— O que ele disse?A intérprete traduziu:— Ele disse que o FBI tem toda a

ficha do doutor Bartholomew Flanagan.Trouxe algumas fotos e um resumo

da vida dele...Andrade pegou o envelope. Havia

várias fotos. Em várias delas, o cientistaaparecia sorridente, de bermudas eóculos escuros. Andrade leu atrás dasfotos.

Algumas eram da Praia de Tampa, naFlórida, outras de Acapulco, no México,e as mais bonitas eram de Honolulu, noHavaí.

Olhou as duas folhas de computadorque acompanhavam as fotos e estendeu-

Page 157: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

as para a senhora magrinha.— Traduza, por favor.A mulher ajeitou os óculos e

traduziu.— Bartholomew Sayre Flanagan.

Nascido em 1939, em Augusta, naGeórgia. Apelido de infância: Bímbow.Doutorado em ciências biomédicas porHarvard. Principal cientista da DrugEnforcement. Casado com MildredWinterland Flanagan em 1963. Enviuvouem 82. Sem filhos. Mora na Praia deMalíbu, na costa oeste. Costuma passarsuas férias nas praias da Flórida, noMéxico ou no Havaí. Foi surfista quandojovem...

— Shtó? Vhat? — perguntava orusso. — Izvinítie... lá nitchevó nhe

Page 158: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

panifnáiu... Me not underrstand...Depois que a intérprete terminou de

traduzir os registros do FBI sobre ocientista seqüestrado, e de tentaresclarecer alguma coísa para o agenterusso, Andrade voltou-se para HectorMorales:

— Um folgadão, esse doutorFlanagan! Que vidão esses cientistasamericanos levam! Malibu, Havaí,Acapulco, Flórida!

Hector Morales concordou:— É verdade. Flanagan sabia levar a

vida, quando conseguia tirar férias.Mas, no trabalho, era o mais

compenetrado e competente de todos oscientistas da Drug Enforcement.Encontre-o, detetive Andrade. Ele tem

Page 159: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

de estar inteiro, para ganhar o PrêmioNobel pela descoberta da cura para apraga do século!

— A Droga do Amor...— Shtó? Shtó? Vhat? Vhat? —

perguntava o russo, que não entendiauma vírgula de tudo o que estavaacontecendo.

* * *

Antes de ir para casa, Magrí tomou

um táxi e rumou para o hospital.Precisava de notícias de dona

Iolanda.Era um hospital particular, pequeno,

um dos mais bem equipados da cidade.Um carro negro estava discretamente

Page 160: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

estacionado em frente. Encostados nocapô, dois homens conversavam.

Magrí empurrou a porta de vidro eentrou no saguão do hospital. Umarecepcionista estava meio oculta atrásde um balcão.

— Boa noite — cumprimentouMagrí. — Eu queria visitar IolandaNegri.

A mulher levantou a vista. Pelo jeito,estava de muito mau humor por ter decumprir aquele plantão noturno.Respondeu, carrancuda: — A pacienteestá na Unidade de Terapia Intensiva.Visitas proibidas.

— Mas a senhora nem olhou na lista.Como sabe que...

— Não insista, mocinha. Boa noite.

Page 161: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Magrí não desistia.— Olhe, moça. Então eu queria falar

com algum dos médicos encarregados decuidar dela...

A mulher olhou para Magrí de novo.— Um momento.Sua mão desapareceu sob o balcão.

Devia ter acionado uma campainha oualgo assim, pois logo apareceu umhomem sorridente, todo de branco,estetoscópio pendurado no pescoço.

— Pois não?— Esta mocinha quer saber notícias

da paciente baleada que está na UTI —informou a recepcionista, de mausmodos.

O médico sorriu:— Sim? A senhorita é filha da

Page 162: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

paciente?— Não. Sou aluna dela. Ela é minha

amiga. ..O médico aproximou-se de Magrí,

afavelmente. No entanto, sua expressãoera séria.

— Olhe, mocinha, sua professora foibaleada seriamente. Ela se encontra emcoma profundo. Mas ela está sob oscuidados da melhor equipe médica.Estamos fazendo de tudo. Talvez, emvinte e quatro horas, ela comece areagir. Confie em nós.

No táxi, de volta para casa, Magrídeixou-se chorar. Por dona Iolanda, porChumbinho, pelo amor dos Karas, portodos os sofrimentos do mundo...

Page 163: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

* * * O jardim da casa de Magrí estava

escuro. Árvores altas sacudiamdocemente os ramos sob a brisa da noitede verão.

Nas sombras, um vulto. Um vultopequeno, recurvado. Como um felinonoturno, o vulto arrastou-secuidadosamente na direção da janelailuminada.

Dentro do retângulo de luz que vinhada janela aberta, Magrí entrava noquarto e jogava-se na cama, sem apagara luz. Pelo jeito, ainda chorava.

Apoiando suas pequenas mãosdeformadas no parapeito da janela, ovulto ergueu a cabeça.

Page 164: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Os olhos argutos do anão invadiramo quarto.

Page 165: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

13. Coitadinha!Quase uma

criança!As cores da manhã ainda

procuravam firmar-se. No Parque doIbirapuera, a temperatura estava umadelícia.

Sob uma árvore, meio aglomeradasem um banco, cinco pessoasconversavam, alheias aos praticantesmadrugadores de cooper que de vez emquando passavam bufando.

Andrade sentia-se incomodado,informando àqueles quatro adolescentes

Page 166: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

uma série de detalhes do inquérito quedeveria permanecer em sigilo. Mas,como resistir aos seus meninos? E odetetive sabia que eles eram realmenteespeciais e que corriam perigo de vidacom o Doutor Q.I. à solta. Como nãopreveni-los?

Tirou do bolso o envelope querecebera do agente Patrick Lockwood.Magrí abriu-o e folheou as fotos.

— É... é esse homem mesmo. Era eleque estava junto com o doutor Morales,no avião. Foi ele que os bandidoslevaram à força, no saguão doaeroporto.

— O criador da Droga do Amor! —admirou-se Calú.

Os Karas já tinham extraído tudo o

Page 167: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

que o detetive sabia. Tudo o que relatarao diretor da Penitenciária de SegurançaMáxima, tudo o que informara o doutorHector Morales e o nada que osinvestigadores sob o comando deAndrade tinham conseguido no diaanterior.

— É preciso agora encantrar umponto de partida — começou Crânio. —Vamos pensar de novo em tudo eprocurar a linha lógica. Ontem, no rádio,eu ouvi um comentarista que era menosidiota do que a média. Ele apontou umasérie de perguntas sem respostas. Emprimeiro lugar, por que o seqüestro deChumbinho? O que Chumbinho teria aver com o doutor BartholomewFlanagan? O que Chumbinho teria a ver

Page 168: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

com a Droga do Amor?Magrí levantou os braços, criticando

o amigo: — Ora, Crânio! Você está seesquecendo que quem está por trás detudo é o Doutor Q.I.? Quando ele soubeque eu e Chumbinho estávamos noaeroporto e que eu vim no mesmo aviãoque o cientista, resolveu tornar umaprovidência para nos assustar...

— Humm... — fez Calú. — Não meparece muito lógico...

— É claro que é lógico! — insístiu amenina. — Ele quer vingar-se da gente,não quer? Então vai pegar todos nós, uma um!

— Bem, isso é bastante lógico —concordou Andrade.

— Outro ponto que parece

Page 169: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

coincidência demais é o furto da bolsada Magrí — continuou Crânio. — Terásido algum espertinho que se aproveitouda confusão?

Mas como pode um ladrãozínho agirenquanto está acontecendo um tiroteio?

— Ora, Crânio! — riu-se Andrade.— No aeroporto, ocorrem pequenosfurtos o tempo todo! Todos os dias háalgumas ocorrências. Bagagensperdidas, coisas assim...

— Bom, gente — decidiu Míguel. —O seqüestro do doutor Flanagan é umacontecimento mundialmente grave. Meumedo é que todos os esforços seconcentrem nele, e Chumbinho acabeesquecido. Chumbinho é nossoproblema.

Page 170: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Temos de agir, depressa!— Espere aí, Miguel! —

interrompeu Magrí. — Tudo é obra domesmo Doutor Q.I. Se conseguirmossalvar o peixe grande, que é o doutorBartholomew Flanagan, salvaremostambém o nosso peixinho. Vamos nosconcentrar no cientista!

— O que é isso, Magrí? —espantou-se Calú. — Você propõe que agente só pense no cientista? Que históriaé essa? É do Chumbinho que nósestamos falando!

— Escute aqui, Calú: ninguém gostamais do Chumbinho do que eu!

— Calma, pessoal ! — pediu Crânio.— Não se trata aqui de disputar quemgosta mais de quem...

Page 171: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Sem conseguir conter o impulso,Calú encarou Miguel. Magrí olhou paralonge.

— Voltemos aos pontos obscuros —continuou o geninho dos Karas. — Porque deram apenas um tiro no aeroporto?Por que balearam só a dona Iolanda? Sepelo menos tivesse havido um tiroteio, eela recebesse uma bala perdida, aindadaria para aceitar, mas...

— Eu também não consigo entenderesse ponto — reforçou Magrí. — Queligação especial poderia ter donaIolanda com o caso? Com o doutorBartholomew Flanagan? Ela, como eu eoutras centenas de passageiros, viemosno mesmo vôo.

Por que só ela?

Page 172: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

— Porque ela foi a primeira a gritar— palpitou Andrade. Não foi isso o quevocê supôs, Magrí?

— Pode ser, Andrade, pode ser...

* * * Por trás do banco, uma moita de

azaléias erguia-se alta, começando asombrear os cinco.

No meio da moita, escondia-se oanão.

Destacando-se na cara empelotada,ainda mais sinistra sob a luz do sol, osolhos argutos do anão apertavam-se,ouvindo a conversa.

* * *

Page 173: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

* * ** * *

— Se dona Iolanda não foi baleada

acidentalmente — continuava Crânio -,se o tiro foi proposital, qual teria sido arazão? Será que ela reconheceu algumdos bandidos, alguém que estivessedentro do avião, por exemplo?

— Acho que não, Crânio —respondeu Magrí. — O grupo deseqüestradores estava esperando ospassageiros no saguão.

— E se dona Iolanda, por acaso,reconheceu alguém desse grupo?Alguém que ela já conheciaanteriormente?

— Pode ser. Como vamos saber?

Page 174: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

— Perguntando para ela, ora!Magrí encolheu os ombros.— Tentei falar com dona Iolanda

ontem à noite. Ela não pode recebervisitas. Falei com um médico que estátratando dela.

— Então temos de entrar lá usando acabeça, gente! — decidiu Miguel. — Eutenho um plano. ..

Andrade, sem querer, deixava-seenvolver pelo entusiasmo e peloraciocínio dos seus meninos. Sorrindo,olhava para cada um e apenas ouvia.Com orgulho, ouviu Miguel apresentardetalhadamente seu plano de invasão dohospital, até o momento em que orapazinho estava quase terminando: —... e aí, Andrade espera Magrí com o

Page 175: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

fusquinha perto do hospital e...Nesse momento, Andrade despertou

para o absurdo da situação em queestava se deixando enredar:

— Ei! Pare aí! Que negócio é esse?Vocês não passam de crianças! Achammesmo que eu vou deixar que vocês searrisquem desse jeito? Estão muitíssimoenganados! Nem por cima do meucadáver!

* * *

O fusquinha entrou na curva cantando

os pneus e brecou em frente ao hospital.De dentro do carro, dirigido por um

homem gordo, suado, saiu umcasalzinho. A mocinha gemia e andava

Page 176: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

com dificuldade, apoiada num rapaz queteria no máximo a mesma idade dela. Ohomem gordo saiu apressado, deixandoa porta aberta, e pegou a mão da moça,com uma expressão compungidíssima.

— Ai, ai... acho que não vouagüentar, papai...

Sua barriga estava enorme. Ovestidinho erguia-se na frente, apertado,quase rasgando.

— Depressa! — pediu o homemgordo para o primeiro atendente queencontrou no saguão do hospital. —Minha filha! Está em trabalho de parto!

Depressa, por favor!A mocinha, gemendo, foi colocada

em uma cadeira de rodas e levada àspressas para dentro.

Page 177: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

— Pode deixar conosco, senhor —disse a recepcionista, por trás dobalcão.

— Vamos já chamar o obstetra. Suafilha está em boas mãos. Quer preenchera ficha?

Uma senhora, à espera no saguão,balançou a cabeça: — Coitadinha...Quase uma criança... Deve ser mãesolteira... E olhou com cara feia para orapaz que, ao lado do pai da moça,demonstrava-se sem jeito, com cara deculpado.

— Esses homens... — rosnou asenhora. — Desde jovens só querem seaproveitar das moças... Depois, olha aí!

* * *

Page 178: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Atrás do hospital, o anão arrastava-se por uma viela. Torto como umaaranha, escondeu-se atrás de uma pilhade caixas de papelão que provavelmenteaguardavam a chegada do lixeiro.Imóvel, parecia esperar.

* * *

Magrí foi deixada em uma sala no

andar térreo. Deitaram a menina numacama.

— Tenha calma, minha filha — umaenfermeira passou-lhe a mão pela testa.

— Respire fundo. O médico já vemaí . . .

— Ai, ai... está bem...A porta da sala ficou aberta. Magrí

Page 179: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

viu uma maca sendo arrastada nocorredor.

— Pode deixar aqui a maca — disseuma voz. — Esta paciente já estásedada. A Matilde vai levá-la para asala de operação. É apendicite...

Magrí levantou-se sorrateiramenteda cama. Tirou um grande travesseiro debaixo do vestido e, agachadinha, foi atéo corredor, ocultando-se atrás da macacom a mulher que ia ser operada deapendicite.

Rapidamente, levantou a camisola damulher e pôs o travesseiro sobre abarriga da anestesiada.

"Pronto! Eles vão tomar um sustinholá na sala de operações. Ah, eu queriaver a cara deles quando alguém tiver a

Page 180: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

idéia de levantar a camisola dessacoitada..."

Havia uma escadinha, dando para osubsolo. Magrí desceu. Era um depósitoe também uma espécie de vestiário dasserventes do hospital.

Vestiu rapidamente um uniformeamarelo, amarrou um lenço na cabeça,ocultando o rosto ao máximo, pegou umavassoura e subiu de novo as escadinhas.

"Muito bem. A hora da faxina deveser mais cedo. Mesmo assim, acho queninguém desconfiará de uma serventeandando pelos corredores."

Ao entrar no hospital, enquantogemia, a menina teve tempo de descobrirqual era o andar da UTI, ao examinar oquadro dos setores do hospital,

Page 181: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

pendurado na parede atrás darecepcionista.

"Ainda bem que essa é outra. Se euencontrasse a mesma recepcionista deontem à noite, na certa ela mereconheceria..." Evitou os elevadores.Era mais seguro pelas escadas.

Page 182: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

14. Você precisaviver, meuamorzinho!

A UTI ficava no último andar.Magrí entrou no longo corredor de

cabeça baixa, varrendo os cantos, demodo que seu rosto ficasse protegido dequalquer olhar.

Com o canto dos olhos, viu, emfrente a uma porta, dois homens em pé,apoiados na parede. Dois gorilões.

Por que dois homens estariam ali,guardando apenas uma das portas?Seriam seguranças protegendo algum

Page 183: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

político internado? Magrí duvidou:"Aposto que aquele é o quarto onde estádona Iolanda... E esses só podem serhomens do Doutor Q.I.! O que queremcom a minha professora?"

Precisava pensar no que fazer. Abriua primeira porta e entrou.

Era um quarto grande, e as luzesestavam apagadas. As cortinas filtravamum pouco da claridade da manhã.

A menina olhou para o retângulo devidro da porta que fechara atrás de si. E,pelo lado contrário, leu o que estavaescrito: Isolamento Infantil Logo abaixo,lá estava a sinistra sigla da praga doséculo... Magrí sentiu o coração apertar-se.

Aproximou-se de um dos berços.

Page 184: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Um bebê dormia. Pouco mais de umano de idade, talvez dois... Umesqueletinho, coberto por manchasvermelho-escuras. Respirava comdificuldade.

Tubos espetavam-se em seus braços."Essa criança nunca mais vai

brincar... Perdeu a chance de descobriro mundo, de fazer parte dele... Ai! Porquê? Por que ela foi amaldiçoada? Porque a morte tem de levar esse bebê? Oque essa criança fez para merecer isso?"

Esquecendo-se por um momento doque viera fazer ali, a menina debruçou-se sobre o berço e beijou ternamente orostinho magro, adormecido.

"Meu amorzinho... Viva, por favor!Como alguém pode roubar o soro que

Page 185: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

poderia fazer você sorrir de novo? Quepoderia fazer você brincar novamentecom as outras crianças? Como podealguém ser tão cruel? Como podealguém pensar em lucrar com a suamorte? Por que, queridinho? Por quê?"

Magrí chorou sobre o bebê, como seo sal de suas lágrimas pudesse arrancaraquela praga que destruía uma vidacomo aquela, tão tenra, tão inocente...

"Ah, meu queridinho! Eu tenho delutar! Eu não posso deixar você morrer!

Você precisa da Droga do Amor,porque esse mundo precisa do seu amor,da sua vida! Esse mundo será pior, maisfeio, mais vazio se você morrer... Eunem sei como é o seu nome. Talvez eununca pudesse ver você crescer, tornar-

Page 186: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

se adulto, mas eu preciso que vocêviva!"

Levantou-se, decidida.

* * * Magrí afastou ligeiramente as

cortinas de uma das janelas da sala deisolamento infantil. Abriu a vidraça eolhou.

"Pelo meu cálculo, a janela doquarto onde deve estar dona Iolanda é adécima, a partir desta..."

Uns quinze metros separavam ajanela da rua, lá embaixo. Examinou aparede. Uma saliência de uns cincocentímetros percorria toda a fachada, ummetro abaixo da linha das janelas.

Page 187: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

"Muito bem. Se eu imaginar queestou no Campeonato Mundial deGinástica Olímpica, apoiar os pés nasaliência e agarrar-me aos parapeitosdas janelas, acho que vai dar.. ."

No campeonato, Magrí adoravaplatéias cheias, aplaudindo suasperformances. Mas, naquele caso,qualquer espectador lá embaixo achariamuito estranha uma demonstração deginástica olímpica nas paredes de umhospital.

Do outro lado da rua, dois homensde terno estavam encostados em umcarro escuro. Pareciam parentes dosdois gorilões que guardavam a porta doquarto.

O sol abrasava, batendo em cheio

Page 188: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

naquela parede do hospital. Qualquerum dos dois homens, ou algum passante,se levantasse os olhos, iria assistir atoda a acrobacia que a menina pretendiafazer para chegar até o quarto de donaIolanda.

Um pouco mais longe, na esquina, ofusquinha de Andrade estavaestacionado, esperando.

Magrí pegou um abajur de cabeceira,acendeu-o e tapou sua luz com umpequeno travesseiro.

Pela cortina entreaberta, mostrou aluz acesa. Tapou-a de novo, destapou-a,tapou-a, destapou-a...

* * *

Page 189: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Dentro do fusquinha, Miguel chamoua atenção dos outros: — Vejam!Naquela janela!

Andrade, Crânio e Calú olharam.Uma luzinha piscava intermitentementeatrás das cortinas.

— É Magrí — sorriu Crânio. — Quedanada! Está transmitindo em CódigoMorse!

— Fique quieto! Estou tentandotraduzir!

— Vocês conhecem o CódigoMorse? — espantou-se Andrade, comose ainda houvesse alguma coisanaqueles garotos que pudessesurpreendê-lo.

— Um curto, dois longos...— Peguei! — disse Crânio. — "Não

Page 190: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

deixem ninguém olhar para cima." Ah,ah! Ela está dizendo para a gente dar umjeito de distrair as pessoas da rua! Vaiaprontar uma das boas!

— Calú — comandou Miguel. —Você é o ator. Esse é um trabalho paravocê.

— Certo, Miguel.Andrade não estava entendendo

nada:— Ué... Que besteira é essa? Que

negócio é esse de não olhar para cima?O que é que tem a ver as pessoas na rua?O que é que o Calú vai fazer?

Crânio pôs a mão no ombro dodetetive.

— Andrade, acho que é melhor vocêtambém não olhar para cima nos

Page 191: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

próximos dez minutos...— Ai, esses meninos estão todos

malucos! Onde é que eu estava com acabeça quando deixei eles seenvolverem nisso? Malucos! Sãomalucos!

* * *

Crânio e Miguel saíram do carro e

começaram a andar pela calçada opostaao hospital. Conversavamdespreocupadamente e deram umaparadinha quando chegaram ao lado dosdois homens do carro escuro.

Os homens nunca tinham vistoaqueles rapazes e não se incomodaramcom eles.

Page 192: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Nesse momento, vindo do outro ladoda calçada, depois de dar a volta noquarteirão, surgiu Calú.

Parou e fez uma expressão furiosa,apontando o dedo para Crânio: —Vinícius, seu desgraçado! Ainda bemque te encontrei!

Crânio mostrou-se surpreso.— Oh, Zé Luiz...— Que Zé Luiz nem meio Zé Luiz!

Você tem de largar do pé da Vanessa!Ela é minha namorada!Crânio parecia sem jeito e tentava

explicar-se: — Eu? Ora, o que é isso?Eu não tenho nada com a Vanessa...

— Mentiroso! Eu vou...

* * *

Page 193: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

* * * Mesmo sem entender a razão da

cena, o detetive Andrade, sentado nofusquinha, divertia-se com aquilo, comoum pai orgulhoso assistindo às gracinhasdos filhos..

Mas, naquele momento, o coração dodetetive gelou.

Uma das janelas do quinto andar dohospital abria-se, e uma menina esbelta,com um uniforme amarelo sobre ovestido, punha as pernas para fora,dependurando-se no parapeito.

"Magrí! Não!"O pobre Andrade não sabia o que

fazer. De boca aberta, coração na mão,via a menina grudar-se na parede e

Page 194: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

arrastar-se lentamente para os lados, sócom as pontinhas dos tênis apoiadasnuma saliência minúscula. Um númerode circo, a quinze metros do chão. E semrede!

"Ai, não! Você vai morrer, Magrí!Não, não me mate do coração!"

Da segunda janela, Magrí repetia aoperação, passando para a terceira...

* * *

Os dois homens pareciam divertir-secom a discussão dos três rapazes. Duasmulheres, carregando sacolas decompras, pararam e ficaram tambémobservando.

Enquanto dois discutiam, o terceiro

Page 195: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

tentava conciliar, apartar o que já estavaquase se tornando uma briga.

— Que é isso, gente? Deixa pra lá!Vamos conversar!

— Conversar coisa nenhuma! O queesse cara pensa, vindo aqui me tirarsatisfações?

— A Vanessa é minha! É minha!— Deixa de ser besta! A Vanessa

não está nem aí pra você!— O quê?!O rapaz, furioso, tentou agarrar o

outro pela camisa. Este desvencilhou-see socou o agressor.

Calú caiu para trás e começou a cenaprincipal. Contorcendo-se, seus olhosviravam nas órbitas e uma espuma desaliva começou a escorrer pelos cantos

Page 196: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

da boca do agredido.— O que você foi fazer, Vinícius?

Você não sabe que o Zé Luiz sofre deataques? E agora?

— Oh, eu não sabia. ..Calú contorcia-se magistralmente, e

um ronco surdo saía de sua garganta...

* * * Lá em cima, como uma macaquinha,

Magrí passava de janela em janela.Depois de atravessar quase toda a

fachada do hospital, a menina agarrou-seno parapeito onde chegara e alçou ocorpo para cima. Em um segundo,desapareceu pela janela.

Andrade não conseguia mover-se.

Page 197: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

* * ** * *

Uma das senhoras com sacola

aproximou-se, preocupada: — O quehouve com o garoto? Vamos levá-lopara o hospital aqui em frente!

Os olhos de Calú, revirando-se,viram Magrí terminar seu númerocircense.

Na mesma hora, parou de contorcer-se. Sacudiu a cabeça e sentou-se nacalçada.

— Pode deixar, minha senhora —acalmou Miguel. — Ele já estámelhorando.

"Vinícius" abaixou-se para ajudar

Page 198: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

"Zé Luiz" a levantar-se: — Oh,desculpe, Zé Luiz... Está melhor?

— Hum... estou, pode deixar.Os dois ajudaram "Zé Luiz" a

levantar-se e caminharam para aesquina. Em pouco tempo, já tinhamdesaparecido.

* * *

Calú esfregava o queixo:— Você precisava bater tão forte,

Crânio?— Realismo, Kara, isso é realismo!— E aonde é que você foi buscar

esse "Zé Luiz"?— No mesmo lugar em que você

achou esse tal "Vinícius" ora! Vinícius...

Page 199: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Que idéia!Depois de dar a volta no quarteirão,

os três Karas foram encontrar o detetiveAndrade.

Dentro do fusquinha, havia um gordohomem-estátua, agarrado ao volante, deboca aberta, e branco como se tivessevisto a mula-sem-cabeça.

Esgazeados, fixos na fachada dohospital, os olhos do detetive nãoconseguiam nem piscar.

Page 200: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

15. Eu te amo,desesperadamente...

Magrí entrou como um gato pelajanela do quarto.

Aos poucos, enquanto seus olhosacostumavam-se com a diferença deiluminação, a menina foi percebendo acama a sua frente. E o vulto adormecido.

Aproximou-se. Lá estava donaIolanda.

A menina examinou superficialmenteo corpo da professora. Abaixo da axilaesquerda, perto do seio, um curativogrande.

Não havia nenhum aparelho a que a

Page 201: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

professora estivesse ligada. Nemmonitores para o coração, nemrespiradores artificiais, nada. Apenasum tubo estava espetado na veia dobraço, pingando gota a gota o líquido deum frasco pendurado em um suporte aolado da cama.

"Não parece tão grave, esseferimento... Como é que ela pode estarem coma? O que é isso? Aqui temalguma coisa muito estranha... Nãopreciso ser médica para saber que estarem coma não é isso .."

Desprendeu com cuidado um lado doesparadrapo e levantou uma ponta docurativo.

Ali estava. Um corte meio fundo,lateral. A bala não tinha penetrado no

Page 202: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

corpo da professora."Que história de coma é essa? Ah,

preciso agir!"Era um risco grande, mas a intuição

e a inteligência da menina diziam-lheque se alguma coisa estava errada comdona Iolanda, só poderia ser o que vinhadaquele frasco e pingava-lhe na veia.

Suspirou, respirou fundo e decidiu-se.

"Uma decisão grave. Tenho de tomá-la. Vou tomá-la!" Olhou em volta.

Sobre uma mesinha de serviço, haviavários frascos. Em um deles, estavaescrito "soro fisiológico".

"Um soro inofensivo. Igual aoslíquidos naturais do corpo humano. Édisso que eu preciso!"

Page 203: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Magrï retirou do suporte o frascoque estava dependurado, com o maiorcuidado. Despejou o conteúdo na pia.Lavou-o muito bem e reencheu-o com osoro fisiológico.

Pronto. Tinha sido ousada demais.Mas Magrí era um Kara. Sentou-se aolado da professora e tomou-lhe a mão.

Dona Iólanda respirava bem,calmamente. O tempo passava, pareciauma eternidade.

Até que a adormecida suspirou.Mexeu-se um pouco. Balançou a cabeça.

Era isso. Magrí estava certa. Eraaquele líquido que fazia com que elaficasse adormecida. Um coma induzido!

"Mais um crime..."Magrí colou a boca ao ouvido de

Page 204: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

dona Iolanda: — Dona Iolanda, sou eu,Magrí.

Com um fio de voz, a professorafalou:

— Magrí...— Fique quieta, dona Iolanda. Por

favor, fique quieta. Você está rneentendendo?

— ... sim...— Ouça: você foi anestesiada, mas

está bem. Seu ferimento é superficial.Tem de ficar quieta, como se ainda

estivesse sem sentidos. Isso éfundamental. Você está correndo perigomas, em meia hora, eu vou tirar vocêdaqui. Está me entendendo? Se alguémentrar nesse quarto, finja que ainda estádesacordada!

Page 205: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

A mão da professora apertou umpouco mais a mãozinha de Magrí: —Magrí... Ele... ele apontou para mim...ele mandou atirar... Em mim...

— Ele? Quem é ele?— No aeroporto... ele é... Um ruído.Alguém começara a girar a maçaneta

da porta do quarto de dona Iolanda.

* * * Aos poucos, o detetive Andrade foi

recuperando a cor do rosto. Queixava-se, quase choramingando.

— Vocês são loucos! Malucos! Oque aquela menina foi fazer? E se elacaísse lá de cima? Vocês estãocompletamente alucinados... Querem me

Page 206: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

matar do coração...— Não se preocupe, Andrade —

acalmava Calú. — Magrí é campeã deginástica olímpica. Ela sabe o que faz.Você pode não acreditar, mas ela nãocorria nenhum perigo, andando pelafachada do prédio.

— Loucos... todos loucos...— Está na hora — lembrou Miguel.

— Crânio, de acordo com o plano, vocêtem de estar atrás do hospital, na viela,em cinco minutos. Fique lá e, se houveralguma coisa errada, avise Magrí comos dois assobios combinados. Calú,fique na entrada da viela. Não percatempo avaliando nada: se alguma coisaparecer suspeita, avise com os assobiospara dentro da viela.

Page 207: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

— Certo.— Certo, Miguel.— São loucos... completamente

loucos...

* * * Magrí percebeu que havia outra

porta na parede lateral do quarto dedona Iolanda. Uma ligação com oaposento ao lado.

Aquele aposento tinha de estarvazio!

* * *

O anão sabia que não poderia ser

encontrado na viela. Abriu uma das

Page 208: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

caixas de papelão e enfiou-se dentrodela.

Com um canivete afiadíssimo, abriuum buraco no papelão. Todo o seu corpohorrendo estava escondido. Pelo buraco,o olho arguto do anão vigiava.

* * *

O aposento não estava vazio.Mas quem ocupava o quarto não

poderia denunciar a menina. Era umvelho.

Um paciente deitado. Ou não era nemmais isso. Estava morto. Provavelmenteaguardando remoção para o necrotério.

Magrí tomou fôlego e percebeu queestava agora sem a vassoura. Como iria

Page 209: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

sair disfarçando, logo da porta ao ladode onde estavam de guarda os doisgorilas?

— Desculpe, senhor cadavér, mas,agora, acho que o senhor não se importa,não é? É para uma boa causa...

Com cuidado, tirou os lençóis dacama do falecido, fez uma trouxa,usando também os travesseiros e astoalhas, tomou fôlego e abriu a porta.

Os dois gorilas nem desconfiaramdaquela faxineira que, do quarto aolado, saía carregando uma trouxa deroupas sujas.

* * *

Crânio veio andando normalmente,

Page 210: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

pelo lado do hospital, até chegar à viela.Depois, entrou rapidamente,

colocando-se meio na sombra, ao ladode um monte de caixas de papelão.

Dentro de uma delas, o anãoencolheu-se o mais que pôde.

* * *

Magrí desceu as escadas, carregando

a trouxa de roupas, e chegou ao subsolo,onde tinha conseguido o uniforme defaxineira.

No fundo, havia uma porta. Pelo seusenso de orientação, Magri percebeuque aquela porta dava para os fundos dohospital. "Ótimo!"

Page 211: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

* * * Calú encostou-se displicentemente a

um poste em frente à viela.Nesse momento, os dois homens de

terno aproximavam-se pela rua lateral,em direção à mesma viela.

* * *

Magrí saiu sorrateiramente pela

porta e olhou.A cabeça de Crânio aparecia ao lado

de uma pilha de caixas de papelão.O amigo fez um gesto com a cabeça.Tudo estava bem.Mas, nesse momento, dois assobios

curtos, fortíssimos, foram ouvidos.

Page 212: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Os dois homens, já entrando naviela, deram apenas uma olhada paratrás.

Não viram nada de mais. Não deviaser nada de mais.

* * *

Sem perder um segundo, Magrí

mergulhou com Crânio no meio dascaixas de papelão.

Quando os dois homens chegarambem perto das caixas, não era possívelperceber nada.

Crânio e Magrí encolheram-se.Apenas uma folha grossa de papelão

sujo separava os dois Karas do anão.

Page 213: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

* * * Os homens conversavam. Parecia ser

sobre futebol.Olharam em volta. Quando viram

que não havia ninguém à vista, abriram ozíper da calça e aliviaram-setranqüilamente.

Os dois Karas ouviram o ruído deduas "torneirinhas" regando a parede dohospital. Crânio olhou para Magrí. Amenina sorria. A situação era mesmoengraçada, depois de tanta tensão.

Magrí estava suada, excitada, depoisde uma aventura tão incrível.

O rapaz continuava olhando para amenina. Ele tinha acompanhado aloucura de Magrí, ao atravessar quase

Page 214: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

toda a fachada do hospital, a quinzemetros do chão. Seu olhar era deverdadeira adoração. De admiração. Deum amor intenso, imenso, eterno...

* * *

Os homens, depois de urinarem,

encostaram-se na parede e acenderamcigarros.

— Está um calor danado na frente dohospital... Vamos dar um tempo. Aqui ébem mais fresco. Ninguém vai aparecerpor lá, nos próximos dez minutos...

* * *

Encolhidos no meio das caixas,

Page 215: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Crânio e Magrí não podiam fazerqualquer ruído.

Estavam juntos, colados.Protetoramente, o braço de Crânioenlaçava Magrí.

Seus rostos estavam quase colados.Seus hálitos se misturavam. Respiravamo mesmo ar.

Não era possível falar, mas eraperfeitamente permitido pensar o que sequisesse. E os dois bebiam-se, olhavam-se, aspiravam-se, ambos felizes peloimprevisto que os jogara nos braços umdo outro.

"Magrí... minha Magrí...""Crânio... meu... por um momento, ao

menos, você é meu..."Os olhinhos de Magrí fecharam-se.

Page 216: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Os lábios de Crânio aproximavam-se,úmidos, ansiosos...

O corpo da menina relaxou-se nosbraços sonhados de Crânio. Aquelaverdadeira fortaleza de jovem mulher,que fora capaz de uma proeza tãoincrível, como a que acabara derealizar, estava agora lânguida, entregue,mole e frágil como uma gatinha.

"Por um momento, pelo menos... ah,eu quero este momento; pelo menos..."

Delicados, os lábios daqueles doisadolescentes colaram-se, intensamente,apaixonadamente...

Separado apenas por uma folha depapelão, mais mudo do que os dois, oanão ouviu sussurros. E, se aquelacarantonha horrenda pudesse sorrir, era

Page 217: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

o que o anão faria...— Eu te amo, Magrí. ..

desesperadamente...— Eu te amo, meu querido... eu

sempre te amei... Dessa vez o beijo foiardente, agarrado, mágico, total...

Page 218: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

16. Esses malditosnão perdem

tempo!Mal Andrade e Miguel viram os dois

homens voltarem da viela e colocarem-se novamente junto ao carro escuro, odetetive ligou a ignição e deslizou atéuma rua paralela ao quarteirão dohospital, onde o encontro de todos tinhasido marcado.

Da viela, Magrí e Crânio saíramrapidamente. Calú os esperava.Correram para a rua combinada.

Apressados, nenhum dos três olhou

Page 219: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

para trás.E nenhum deles viu uma figurinha

disforme, torta, saindo da viela atrásdeles.

Como uma aranha, feia,assustadora...

Quando chegaram no fusquinha, orosto de Magrí estava vermelho, embrasa. Ela pediu excitada:

— Por favor, rode, Andrade. Rode aesmo por aí. Vocês não imaginam o queeu descobri...

Em marcha lenta, Andrade procurouruas de pouco movimento.

— Dona Iolanda é prisioneiradaquele hospital. Não está em comacoisa nenhuma! O ferimento dela ésuperficial. Um corte queimado de bala

Page 220: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

sob a axila, perto do seio esquerdo.— Mas ela não perdeu os sentidos,

quando foi ferida, lá no aeroporto?— Deve ter desmaiado apenas pela

dor e pelo susto, Calú. Mas o malditoDoutor Q.I. não quer que ela fale. Estãomantendo dona Iolanda dopada, semi-anestesiada, inconsciente, com doisgorilões guardando a porta do quarto. Eudei um jeito de jogar fora o anestésicoque estava ligado à veia dela e coloqueisoro fisiológico no lugar.

— Boa, Magrí!— Eu não sou médica, mas qualquer

pessoa sabe que soro fisiológico não fazmal a ninguém. Só que a gente não podeperder tempo. Logo que elesdescobrirem que a tal "menininha"

Page 221: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

grávida desapareceu, vão desconfiar quealguma coisa anormal está acontecendo.E eles não são de brincadeira.Precisamos agir depressa!

— Isso é comigo! — encerrouAndrade. — Não posso invadir ohospital sem uma ordem judicial. Masposso alegar que dona Iolanda é umatestemunha importante no caso doseqüestro do doutor BartholomewFlanagan e que precisa de proteçãopolicial.

Pelo radiotransmissor do carro,ligou para a central e pediu uma viatura,urgente.

— Vou deixar dois guardas o tempotodo na porta do quarto da professora.

Os bandidos não vão poder fazer

Page 222: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

mais nada contra ela. Só que eu não vouesperar até a chegada da viatura. Magríe Crânio, vocês já fizeram muito, porhoje. Fiquem aqui no carro, de olho nasaída do hospital. Calú e Miguel,venham comigo!

Os três saíram apressados.Nem os dois homens de terno, nem o

carro escuro estavam mais em frente aohospital.

* * *

Os três entraram no saguão.Um médico discutia com a

recepcionista. Ao ver o gordo "pai", quehá pouco tempo entrara com a filhagrávida, a recepcionista ficou sem jeito:

Page 223: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

— Oh, é o senhor? Desculpe, mas a suafilha desapareceu. Não foi culpa nossa,porque...

O detetive interrompeu-a com umgesto e mostrou sua identificação depolicial.

— Sou o detetive Andrade. Precisogarantir a segurança de uma paciente,que é testemunha-chave de um casopolicial.

— Sua filha? — a recepcionistaestava desorientada. — Mas eladesapareceu. Como é que...

— Não é a minha filha. É donaIolanda Negri.

— Desculpe, mas o senhor não podeinterferir no trat... — começou a falar omédico.

Page 224: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

— Não vou interferir em nada. Sóquero garantir a proteção dessatestemunha...

* * *

Magrí e Crânio, ansiosos, estavam

sozinhos no fusca, aguardando osacontecimentos.

Sozinhos... Magrí olhou para ogaroto como se olhasse o mar eprocurasse enxergar os peixes quenadam nas profundidades abissais.

O rapaz aproximou-se dela.— Oh, Magrí...Com delicadeza, Magrí encostou a

mão no peito do rapaz, detendo-o.— Crânio, precisamos conversar. . .

Page 225: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

* * *

Acompanhados pelo médico,

Andrade e os dois Karas pegaram oelevador para o quinto andar.

Apressado, Miguel passou em frenteaos outros.

— Onde é o quarto dela?— O quinhentos e doze...O comandante dos Karas correu para

lá.Em frente ao quarto da UTI, não

havia mais nenhum gorila de guarda.Abriu a porta.Dentro do quinhentos e doze, só

havia uma cama vazia.

Page 226: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

* * * Depois da conversa, Crânio tinha

uma expressão distante, como se nãoestivesse ali.

Os dois nada mais falavam.Nesse momento, Crânio apontou:— Olhe, Magrí! Acho que estão nos

espionando!— Onde?— Já sumiu. Que coisa horrível!— Horrível? O que é que você viu?— Você não vai acreditar, Magrí.

Era um anão horrendo!— Um anão?!

* * *

Page 227: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Miguel e Calú corriam para o carro.— Magrí! Crânio! Vocês não

imaginam! Dona Iolanda desapareceu!Crânio deu um soco no painel do

carro:— Malditos! Esses malditos não

perdem tempo!

Page 228: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

17. Na pista doDoutor Q.I.

Andrade ficou no hospital,comandando as investigações. Estavafurioso, procurando pistas, interrogandotodos os funcionários, enfermeiras ecorpo médico.

De que modo uma paciente poderiadesaparecer assim, durante apenas ospoucos minutos que Magrí levara paracontar o que tinha descoberto nohospital?

— Para o esconderijo, Karas! —decidiu Miguel, quando ficaramsozinhos.

Page 229: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

— Vamos em táxis separados. Nãoquero que ninguém no Elite nos vejachegando juntos.

Magrí, exausta, com o vestido sujode arrastar-se pelas paredes do hospital,deu uma rápida passada em casa paraum banho e roupas limpas.

* * *

Numa esquina, na periferia da

cidade, uma mulher esperava que umorelhão fosse desocupado. Tinha deligar para o marido e estava com pressa.

Quando viu quem estava ao telefonepúblico, fez uma expressão de nojo:"Nossa! Que anão horroroso!"

Page 230: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

* * * Reunidos no esconderijo secreto, os

Karas estavam desolados.— Nada! Não conseguimos nada! —

lamentava-se Calú. — E aindaperdemos dona Iolanda...

Magrí sentia-se ainda pior do que osoutros.

— A culpa é minha, Crânio. Se eunão tivesse me metido lá no quarto delae trocado os soros, ela ainda estaria lá.E Andrade poderia protegê-la...

— Ora, Magrí... O que é isso? Sevocê não tivesse entrado lá, nós nemsaberíamos que dona Iolanda precisavade proteção especial. Você não temculpa nenhuma. Nós já sabemos que..

Page 231: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

— O que sabemos é uma verdadeirabagunça! — reclamou Calú. — Cadacoisa que acontece! Tenho certeza queaqueles dois que ficavam o tempo todode pé, ao lado daquele carro escuro, sãoda quadrilha.

— Pareciam até sentinelas! —reforçou Miguel. — E tem também o talanão... — lembrou Crânio.

— Que anão? — perguntou Miguel.— Um sujeitinho horroroso, que eu

vi de relance, perto do hospital.Sinistro, suspeito demais. Desapareceude repente, como se não quisesse servisto. Não sei por quê, mas garanto queele é o chefe de todo o esquema...

— Ora, Crânio! Quer dizer que oDoutor Q.I. encolheu? brincou Magrí. —

Page 232: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

O chefe de todo o esquema só pode sero Doutor Q.I. !

Calú não queria saber de anões. Alifaltava um dos Karas e ele não podiaconformar-se com isso:

— E Chumbinho, então? Até agoranão encontramos nem um traço deChumbinho...

Miguel, sério, interrompeu:— Não temos tempo para

choradeiras, Karas. Cabeça erguida.Conseguimos alguma coisa sim. Evamos nos agarrar ao que conseguimos.Magrí, repita o que ouviu de donaIolanda.

— Ela disse claramente: "Eleapontou para mim. Ele mandou atirar emmim. No aeroporto..."

Page 233: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

— Ele! — por um triz, Calú quaselevantou a voz, esquecendo-se dasegurança do esconderijo secreto. —Quem é esse "ele"? Será que o DoutorQ.I. estava no aeroporto e mandou atirarna professora? Mas por que ele fariaisso?

— Não vamos perder o fio dameada, Karas — retomou Miguel. —Vamos voltar ao que informou Andrade.Tem uma coisa que me intriga. Ele disseque, por mais que procurassem, não foipossível descobrir como o Doutor Q.I.fugiu da Penitenciária de SegurançaMáxima. Só sabem que ele não está lá.Isso não é estranho? Aquelapenitenciária tem esquemas contra fugastão sofisticados que, se alguém

Page 234: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

conseguisse neutralizá-los, na certaficariam traços óbvios dessa fuga, comoportas serradas, fios cortados e coisasassim!

Calú seguia o raciocínio de Miguel:— Lembro perfeitamente das

palavras de Andrade, repetindo odiretor da penitenciária: "Daquelaprisão só se sai pela porta da frente,com um mandado de soltura". Comonenhum dos homens que está lá poderáser solto antes de mais ou menoscinqüenta anos, a única maneira de sairé através de um ofício de transferênciapara outra penitenciária.

— Bem, pelo menos podemos estarcertos de que o Doutor Q.I. nem foi soltonem transferido — disse Magrí.

Page 235: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Crânio sorriu:— Assim, Karas, o problema fica

mais fácil...— Mais fácil? Como?— Até agora só temos pistas

mostrando que o Doutor Q.I. não fugiuda penitenciária, não é? Então, se alógica vale alguma coisa, a conclusão éuma só.

— Qual?— O Doutor Q.I. não fugiu da

penitenciária, ora essa!Os outros Karas entreolharam-se.— Crânio, ficou maluco? O que você

quer dizer com isso?— Acho que já entendi aonde Crânio

quer chegar: o Doutor Q.I. está fazendoa gente de idiotas — concluiu Miguel.

Page 236: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

— Não sei como, mas está. Não adiantaespecular agora. Precisamos novamentedo Andrade. Ele vai ter de dar um jeitode nos levar até a Penitenciária Estadualde Segurança Máxima!

— Qual é o seu plano, Miguel?— É possível que naquela

penitenciária haja algum prisioneiroque, por influência do Doutor Q.I.,conheça a nossa cara.

— E daí?— Daí, Calú, precisamos dos seus

serviços de maquilagem.. .

* * *O furor informativo da imprensa foi

realimentado pelo desaparecimento dedona Iolanda. Agora, eram três os

Page 237: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

desaparecidos. — Um bilhão de dólares! —

berravam as manchetes. — Os bandidosquerem um bilhão de dólares paradevolver a Droga do Amor e o doutorBartholomew Flanagan. E quanto aosoutros dois? Será que os seqüestradorestambém vão pedir resgate pelaprofessora ferida e pelo meninoChumbinho? Ou vão simplesmentelivrar-se deles? A polícia, até agora,nada conseguiu apurar de concreto...

* * *

Magrí estava pronta para a visita à

Penitenciária de Segurança Máxima.

Page 238: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Numa mochila, colocou o vestidovelho e os enchimentos que Calú pedira,para completar o disfarce que eleplanejava para ela.

Ao mexer no armário, lá estava abolsa de dona Iolanda, que ela trouxerapara casa, no dia do seqüestro docientista americano. "A bolsa...",pensava a menina. "Será que..."

Uma idéia começava a nascer. Aindanão estava clara mas. . . Magrí levou abolsa na mochila.

* * *

Na direção do fusquinha, novamente

lotado pelos quatro adolescentes,Andrade estava quase fora de si:

Page 239: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

— Levar esses garotos àPenitenciária de Segurança Máxima!Não sei onde eu ando com a cabeça paraaceitar as maluquices de vocês...

Um carro da polícia osacompanhava, trazendo também os doisagentes do FBI, o doutor HectorMorales e a intérprete. O presidentepara a América Latina da DrugEnforcement tinha sido chamado aparticipar daquela fase da investigação.Ele era o único que poderia ajudar comos detalhes técnicos da Droga do Amore com o conhecimento que possuía dodoutor Bartholomew Flanagan.

No fusquinha, os quatro Karasestavam irreconhecíveis. Com pequenostoques, Calú tinha conseguido alterar a

Page 240: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

aparência de todos eles. Cores decabelos mudadas, lentes de contatocoloridas, um bigodinho ralo, unsóculos, um boné, um enchimento aqui eali, tudo isso transformara os Karas emum grupo irreconhecível para quem nãofosse íntimo de nenhum deles.

— Ainda não entendi por que vocêsquerem se apresentar como parentes dedetentos! O que isso tem a ver com ocaso?

— Confie em nós, Andrade, porfavor. Jovens como a gente dão menosna vista. Se você levasse policiaisdisfarçados, para fazer esse serviço, nacerta os prisioneiros desconfiariam.

— Mas que serviço é esse, afinal decontas`?

Page 241: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

— Crânio tem um palpite que asinformações que precisamos estão comalguns prisioneiros — esclareceuMiguel. Precisamos falar com eles não-oficialmente. Precisamos saber o queeles sabem. Se eles nos aceitarern comoparentes distantes, de quem eles não selembram por que estão na cadeia háanos, talvez a gente descubra algumacoisa. Confie na gente, Andrade.

O detetive calou-se. Realmentenunca tinha havido uma ocasião que elelembrasse de ter se arrependido deconfiar naqueles garotos.

* * *

O diretor da Penitenciária Estadual

Page 242: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

de Segurança Máxima estranhou a visitado detetive Andrade acompanhado poraqueles quatro adolescentes, pelos trêsgringos e pela intérprete, mas nadadisse. Ele sentia-se sem jeito por causada fuga de um dos mais perigosossentenciados que estavam sob suacustódia. Além disso, a autoridade dodetetive, naquele caso, não era para serdiscutida.

— What the hell are we doing here,Doctor Morales? perguntava o agentePatrick Lockwood. — What do weintend to find in this prison? The suspecthas escaped! We must look for himsomewhere else. We're loosing precioustime!

— Don't worry, agent Lockwood —

Page 243: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

acalmava o doutor Morales. —Detective Andrade is a fine policeman,our consul said. He knows what he'sdoing.

We're here only to watch. Let's waitand see what he intends to do...

— Vhat? Shtó? — perguntava IúriMikhailevich para a intérprete. — Shtóon skazal? Me not underrrstand...

O que a pobre da intérprete poderiafazer? Ela só falava inglês e português.

Poderia traduzir uma língua para aoutra e vice-versa. O que fazer, já que orusso não entendia nenhuma das duas?

Quando o detetive Andrade quissaber o que conversavam Lockwood eMorales, a intérprete sentiu-se mais útil:

— O agente Lockwood perguntou o

Page 244: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

que estamos fazendo aqui. E o doutorMorales elogiou o senhor. Disse que osenhor é um ótimo detetive, e que oagente Lockwood pode confiar...

Andrade estava gostando daqueledoutor Hector Morales. Pelo jeito, opresidente da Drug Enforcement sabiareconhecer o valor de um policial comoele.

O diretor da penitenciária repetiacom todos os detalhes as circunstânciasda fuga do Doutor Q.I.:

— Não encontramos nenhuma pista,mesmo. Só o que sabemos é que, nachamada da manhã, há três dias, oprisioneiro não apareceu. Simplesmentesumiu!

O detetive perguntou:

Page 245: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

— Diretor, o senhor me dísse que aúnica maneira de um sentenciado sairdaqui é com um alvará de um juiz,libertando-o ou transferindo-o paraoutro presídio, não é?

— Isso mesmo, detetive Andrade.Alguns prisioneiros, depois de longotempo de pena, quando apresentamótimo comportamento, às vezesconseguem transferência para outrapenitenciária. ..

— Outra penitenciária? — sussurrouCrânio para Calú. Uma de onde é maisfácil fugir?

— Como? — perguntou o diretor.— Nada, desculpe — disse Crânio.— Desculpa! Izvinítie! — sorriu o

russo, que já andava pescando alguma

Page 246: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

coisa de português. — Me underrstand!lá panimáiu! Me inténdó!

Andrade continuou:— Desde a fuga, ou o

desaparecimento do Doutor Q.I., quantosprisioneiros saíram daqui com alvarásdesse tipo?

— Nenhum, detetive. Quandosoubemos da fuga do prisioneiro,mandei suspender o cumprimento dosquatro alvarás de transferência quetínhamos recebido...

— Quatro alvarás, senhor diretor?Pois é isso mesmo que eu peço que osenhor faça. Gostaria que o senhoranunciasse, a esses quatro prisioneiros,que foi permitido, excepcionalmente,que eles recebessem visitas, antes de

Page 247: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

serem transferidos...— Visitas? Que visitas?— Esses quatro jovens aqui. Eu

gostaria que eles fossem anunciadoscomo visitas a esses quatro detentos. Umde cada vez, por favor.. .

O diretor estava achando aquilomuito irregular. Mas ele já andavarecebendo pressões de todos os lados,até do Ministério das RelaçõesExteriores, para ajudar em tudo quetivesse qualquer ligação com oseqüestro do doutor BartholomewFlanagan e com o roubo da Droga doAmor.

— Como quiser, detetive Andrade.

* * *

Page 248: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Além dos limites da cidade, os olhos

de dona Iolanda examinavam cada cantodo pequeno galpão onde se encontrava.Olhava apenas, pois sua boca estavaamordaçada e seus pulsos amarradosatrás de uma cadeira.

Ainda sentia tontura da anestesiaforçada, e seu ferimento doía um pouco.

Estava lúcida. Era uma mulhervalente. Solteira, sem parentes, sua vidaeram seus alunos. Por eles, ela resistia.

A porta do galpão abriu-selentamente. Dona Iolanda voltou acabeça.

Nesse momento, se não estivesseamordaçada, a professora teria dado omaior berro de sua vida.

Page 249: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Recortada contra a luz que entravapela porta aberta, estava uma visão depesadelo: o anão mais medonho que aimaginação de dona Iolanda poderiaconceber!

A lâmina de um canivete brilhou aoabrir-se.

Page 250: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

18. Quatro séculosde cadeia

O diretor da Penitenciária Estadualde Segurança Máxima levou os quatroKaras e o detetive Andrade para umasala escura. Em uma das paredes, umvidro grande permitia que se visseperfeitamente outra sala, muito bemiluminada, com uma mesa e duascadeiras. Era um vidro, quando visto dasala escura; mas, quando visto da salailuminada, aquilo era apenas um grandeespelho.

— Deste lado, podemos ver tudo oque acontece do lado de lá — explicou

Page 251: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

o diretor, apontando para a salailuminada que se via através do vidro.— Mas, do outro lado, o prisioneiro sóverá um espelho. Podemos tambémouvir tudo, pois a sala tem microfonesembutidos.

— Já conheço tudo isso, diretor... —resmungou Andrade, de mau humor.

— Eta zdiêss ani mútchaiútarestovanej? — perguntou IúriMikhailevich.

Mas, como foi em russo, não houveresposta porque ninguém entendeu nada.O pobre Iúri sentia-se perdido...

— Muito bem, detetive — continuouo diretor. — Já mandei chamar os quatrosentenciados que aguardam transferênciadaqui. Juntos, eles ainda têm a cumprir

Page 252: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

mais de quatro séculos de cadeia. Pelojeito, a periculosidade deles diminuiumuito. Apresentam bom comportamentohá anos. Por isso estão sendotransferidos para outras penitenciárias.A junta de conselheiros decidiu que elesjá podem cumprir suas penas em regimemenos rígido do que o daqui.

— Vamos logo, diretor, vamos logo!— apressou Andrade.

— Certo, detetive Andrade.Separadamente, mandei avisar a cadaum dos prisioneiros que um sobrinhoveio visitá-lo. Qual de vocês vai ser oprimeiro "sobrinho"?

— Eu — apresentou-se Miguel.O diretor abriu a porta de

comunicação entre as duas salas e

Page 253: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Miguel ficou na sala iluminada, sozinho,sentado em uma das cadeiras.

O diretor deu uma ordem pelotelefone.

* * *

A porta da sala iluminada abriu-se e

um negro enorme entrou algemado, comdois guardas como escolta.

Miguel, meio sem jeito,cumprimentou:

— Olá, tio...O prisioneiro nem se sentou na

cadeira que um dos guardas lheapontava.

Parou e olhou espantado para orapazinho.

Page 254: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

— Tio? Que negócio é esse de tio?Como é que eu posso ser seu tio? Quehistória é essa? Isso é uma armação?Uma armadilha para pegar aqui opássaro preto? Quem te mandou,moleque? Foi o Nego Cão? Pois podedizer pra ele que eu agora estou fora.Estou fora, está me ouvindo? Guarda,me leva daqui! Me leva daqui! Nãoquero mais negócios com o Nego Cão!Me leva daqui!

* * *

Na sala escura, depois que oprisioneiro foi levado pelos guardas, odiretor não estava nem um poucoanimado.

Page 255: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

— Isso não vai dar certo. O que osenhor pretende, detetive Andrade?

— Não se preocupe. Espere e verá.Mande entrar o próximo prisioneiro.O senhor já vai ver. . .

Andrade, porém, não tinha a menoridéia de onde aquilo tudo ia chegar.

A intérprete parecia cada vez maisexcitada ao traduzir tudo o que ouviapara o agente Lockwood.

O agente Mikhailevich tentavapescar aqui e ali alguma coisa queconseguisse entender.

* * *

Magrí foi a segunda a ocupar a

cadeira de visitante. E o segundo

Page 256: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

sentenciado a comparecer algemado eraum sujeito baixinho, de cara encovada.

— Você é que é a minha sobrinha, é?— perguntou o homem, com cinismo.

— Não me diga!— Sou sim... não se lembra de mim,

tio?— Posso me lembrar, sobrinha. Mas

você precisa me ajudar. Eu estou nacadeia há tanto tempo que nem fiqueisabendo que a minha velha teve maisfilhos.

Afinal, eu era filho único! Da partedo meu pai não pode ser, porque eununca soube quem era ele. Mas oimpressionante, sobrinha, é que a minhavelha já morreu há vinte e cinco anos.Como é que ela, depois de morta,

Page 257: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

conseguiu ter mais filhos, para euarranjar uma sobrinha?

* * *

Do outro lado do espelho, na sala

escura, o diretor informou: — É. . . comesse eu sabia que ia ser difícil. É o reido cinismo.

Acho que foi isso que o ajudou asobreviver à cadeia até agora...

* * *

Calú já estava sentado na sala

iluminada, quando entrou o terceiroprisioneiro.

Ao ser apresentado ao seu

Page 258: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

"sobrinho", o homem imobilizou-se. Suaexpressão nada demonstrava.

Calú tentou ajudar:— Oi, tio... o senhor não se lembra

de mim, eu sei. Mas a gente soube que osenhor afinal conseguiu transferênciapara outro lugar, melhor do que este e...

— O que é isso? — perguntou osentenciado, com uma voz muito baixa.

— Isso o quê? — devolveu Calú,com cara de ingênuo.

— É uma arapuca dos tiras, eu jápercebi. Vocês querem me sujar, queremme impedir de sair daqui! Mas não mepegam, não! Eu luto há dezessete anospara conseguir esse alvará detransferência! Vocês não me pegam! Vãoter de cumprir direitinho o meu alvará.

Page 259: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Vocês vão ter de me tirar daqui! Vocêsnão me pegam! Não me pegam!

* * *

Na sala escura, assistindo e ouvindo

tudo, nem o diretor, nem Andradeconseguiam perceber onde aquelabobagem ia dar. O que os garotosesperavam conseguir com aquelasentrevistas idiotas? Nenhuma davacerto! Nem uma pergunta até agora elestinham conseguido fazer para osprisioneiros!

Andrade estava de cabeça baixa,tentando imaginar uma desculpa para odiretor da penitenciária. Uma desculpaque pudesse amenizar a vergonha que

Page 260: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

ele estava passando por sugerir umaencenação tão sem sentido, tão inútil...

— Sua vez, Crânio — disse Miguel.

* * * O quarto prisioneiro entrou na sala

iluminada, andando com dificuldade.Era um velho. Magro como uma

sombra. Devia estar na cadeia há umtempão, mais tempo talvez do que aprópria idade dos pais de Crânio.

* * *

Na sala escura, vendo o pobre

sentenciado do outro lado do vidro, odiretor comentou:

Page 261: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

— Esse já está velho e doente.Vamos tirá-lo daqui, mas acho que elenão vai sobreviver muito mais tempo...

— Shhh... — fez Miguel. — Vamosouvir o que acontece.

* * *

Crânio levantava-se da cadeira, com

um ar tímido.— Boa tarde, tio.. .O velho andou com esforço até a

cadeira. Sentou-se, apertando os olhos.Como enxergava mal, não conseguia

distinguir a fisionomia de quem estava asua frente.

Tossiu.— Ahn? Que... quem é você?

Page 262: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

— Não se lembra, não é, tio? É quequando eu nasci você já estava preso...

Sou seu sobrinho-neto. Vim ver se osenhor precisa de alguma coisa, antes datransferência...

— Oh, obrigado... — disse o velho,meio alheado. — Obrigado... que bomque você veio!

— Sua irmã Benevinda não pôde vir,tio. Mas eu estou aqui. Lembra-se dela,tio? Ela escreveu para o senhor, lembra?Ela sempre escreve para o senhor. Eladisse que tem lhe mandado fotos dascrianças. Ela disse que mandou até aminha fotografia...

O velho sorriu de leve, como se umaluz lhe iluminasse a lembrança: — Ah,sim, é claro. Agora me lembro. Foi

Page 263: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

muito bom você ter vindo me visitar,sobrinho. Muito bom mesmo...

— O senhor se lembra de mim,então? Sou o Leovegildo, neto da suairmã Benevinda. Sou filho da Clovildes,filha da vó Benevinda...

— Ora, é claro! Da Clovildes, filhada Benevinda...

* * *

Nesse momento, o susto do diretor e

de Andrade só não foi maior do que odo prisioneiro:

Crânio levantava-se e estendia a mãopara o velho, com um sorriso triunfante!

— Doutor Q.I., eu presumo!

Page 264: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

* * * O velho levantou-se de repente,

abandonando o porte encurvado. Pareciavinte anos mais moço:

— O quê?!Com um gesto rápido, Crânio

estendeu a mão para o velho e agarrou-lhe o rosto. Algemado, o homem deu umtranco para trás.

Na mão do garoto ficou um pedaçoarrancado da cara do velho, como sepele e carne se desgrudassem dacaveira.

Mas não era carne nem pele. Era umpedaço de uma máscara plástica!

— Ãhn? Me largue!Recuando, Crânio arrancou o bigode

Page 265: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

nascente que Calú havia cuidadosamentelhe colado sob o nariz, tirou o velhopaletó com enchimentos, o boné, esorriu:

— Lembra-se de mim, Doutor Q.I.?— Você! Maldito!Ainda com pedaços da máscara

colados na cara, o aspecto do homemera assustador. Mas sua expressão deódio era pior ainda.

— Maldito!— Que decepção, Doutor Q.I.! —

ria-se Crânio. — Eu acabei de inventaresses nomes todos! E o senhor caiucomo um patinho... se fosse quem estárepresentando ser, o senhor tinha deestranhar o que eu estava dizendo, tinhade negar conhecer qualquer Leovegildo,

Page 266: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

qualquer Benevinda e qualquerClovildes!

Da porta de comunicação com a salaescura ao lado, surgiram Magrí, Miguel,Calú, o diretor, Andrade, a intérprete eos dois agentes do FBI, enquanto os doisguardas que haviam trazido o velhotratavam de segurá-lo pelos braços.

— Vocês!! Ah, não! Vocês todos denovo! Não! Não!

Enquanto os guardas o levavam,podia-se ainda ouvir os gritos do DoutorQ.I.:

— Eu vou conseguir sair daqui!Vocês não perdem por esperar! Eu aindavou me vingar! Vou me vingar!

Page 267: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

19. Horror!Foi um pandemônio na Penitenciária

de Segurança Máxima. O diretor estavasatisfeito pela solução da fuga doDoutor Q.I., que afinal nunca acontecera.

Mas estava também envergonhadopelo problema ter sido resolvido pelosgarotos.

Sorriu, desculpou-se algumas vezese saiu, tomando providências paraesclarecer os detalhes que faltavam.

Andrade, Hector Morales, PatrickLockwood, Iúri Mikhailevich, aintérprete e os quatro Karas foramlevados para o refeitório dos guardas,enquanto os carcereiros e funcionários

Page 268: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

da prisão inteira corriam de um ladopara o outro no cumprimento das ordensdo diretor.

Vieram onze sanduíches"americanos" e nove sucos de laranja,porque Andrade pedira três sanduíches.

— Uma brilhante encenação,detetive Andrade! — cumprimentava odoutor Hector Morales. — Umabrilhante conclusão!

— Não tão brilhante assim, doutorMorales — contradisse Miguel. — Oque nós conseguimos? Desmascaramos oesquema de fuga do Doutor Q.I. Edepois?

Aonde isso nos leva? O que tem issoa ver com o seqüestro do doutorBartholomew Flanagan, do meu amigo

Page 269: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Chumbinho e de dona Iolanda Negri? Oque isso tem a ver com o roubo daDroga do Amor?

— Ora, mas vocês solucionaram ocaso!

Magrí deu um sorriso amargo:— Solução, doutor Morales? Que

solução nós encontramos? Tudo o queconseguimos foi eliminar nosso únicosuspeito! Se o seqüestro do doutorBartholomew Flanagan e o roubo daDroga do Amor não foi um plano doDoutor Q.I., de quem foi então?

— E o Chumbinho, Magrí? Você estáse esquecendo do Chumbinho?

— Não, Miguel. É claro que não!Calú estava desanimadíssimo.— Ah, estamos na estaca zero!

Page 270: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

— Ora, rapaz! — sorriu Morales. —Vocês foram brilhantes! É claro queestamos na pista certa. Esse Doutor Q.I.,de dentro da penitenciária, é a cabeçaque está comandando todo o esquema! Ésó vocês conseguirem que ele fale, etudo estará resolvido! A maior prova doenvolvimento dele é a assinatura "Q.I."no bilhete que foi deixado depois doseqüestro do menino!

Magrí estava nervosa:— Ah, essa assinatura não tem nada

a ver!— É claro que tem a ver, menina! —

discordou o doutor Morales. —Apertem o homem. Ele vai confessar!

Andrade, às voltas com seussanduíches, balançou a cabeça: —

Page 271: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Talvez, doutor Morales, mas eu nãoconfiaria tanto numa confissão. Essehomem não falará nada. Por enquanto, sósabemos que ele tentou fugir. Não temosnenhum indício que o ligue com o casoda Droga do Amor, além da assinaturano bilhete. Mas isso é muito pouco.Precisamos de provas mais concretas...

Depois que a intérprete, de bocacheia, traduziu o que estava sendo dito,Patrick Lockwood deu seu palpite,sorrindo, e a mulher traduzïu de volta:— O agente diz que vocês, policiaisbrasileiros, demonstraram grandecapacidade de dedução. Ele diz queagora é só continuar na mesma linha deraciocínio.

Hector Morales aproveitou a

Page 272: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

pergunta do agente e acrescentou a sua:— Por falar nisso, como é que vocêsdescobriram que esse Doutor Q.I. estavapreparando um esquema de fuga tãooriginal?

Andrade apontou Crânio com acabeça.

— Foi uma idéia deste garoto aqui. ..Os olhares voltaram-se todos para

Crânio, menos o do russo, que nãoestava entendendo nada. O rapazexplicou:

— Bem, a pista principal erajustamente a falta de indícios quedemonstrassem como o Doutor Q.I. tinhaconseguído fugir. Ele haviadesaparecido simplesmente porque nãoestava mais entre os detentos, mas nada

Page 273: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

havia que caracterizasse uma fuga. Ora,nem mesmo ele, com as suas manhas,conseguiria evaporar como água. E eume coloquei no lugar dele. Se euquisesse sair daqui, naturalmentetentaria a única maneira possível:conseguir ser transferido para umapenitenciária menos fechada, de onde, aísim, eu poderia tentar escapar com maischances de sucesso.

— Mas essa transferência aindapoderia demorar uns vinte anos para umcriminoso como o Doutor Q.I., mesmoque ele se comportasse como umanjinho...

— observou Andrade.— É verdade. Como então apressar

a transferência? É claro que só tomando

Page 274: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

o lugar de algum outro detento queestivesse para sair!

Andrade não escondia o orgulhopelo raciocínio de Crânio, um dos seusgarotos.

— Só mesmo a cabeça do DoutorQ.I. para imaginar uma coisa dessas!

Hector Morales brincou:— Como só a cabeça do Doutor

Q.I.? E este rapaz? Não pensouexatamente a mesma coisa?

Andrade acariciou os cabelos deCrânio:

— Ah, meu querido menino! Aindabem que você está do meu lado!

Crânio não estranhou quandoAndrade deu-lhe um beijo estalado nabochecha. Só não gostou muito porque o

Page 275: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

beijo estava sujo de mostarda...Iúri Mikhailevich adorou aquela

história de beijo, porque beijo é coisade russo:

— Potselúi! Potselúi! Meh russkieotchen liubin tselavátsa! We russian likekisses vééérry much!

E pespegou o maior beijo no rostosurpreso de Patrick Lockwood.

* * *

Um guarda veio chamá-los no

refeitório. O diretor queria falar comeles.

Quando aquele grupo de novepessoas entrou na sala, o diretor estavasentado atrás de sua ampla mesa, com

Page 276: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

uma expressão horrorizada. Parecia teracabado de ver um filme do Drácula.

— Sentem-se, por favor. Obrigado,detetive Andrade, por ter nos ajudado aresolver esse problema.

— Às ordens, diretor...— Depois que o Doutor Q.I. foi

desmascarado, os outros presosresolveram falar e não foi difícillevantar a história toda...

— Ele se fez passar por um dosdetentos que iam ser transferidos, não é?— adiantou o doutor Hector Morales. —Mas como conseguiu isso? É umaloucura!

Parece impossível...— Para qualquer sentenciado, talvez,

mas não para o Doutor Q.I. Ele é o

Page 277: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

prisioneiro mais inteligente que eujamais conheci. Se conseguisse sertransferido para uma prisão com menorsegurança, seus contatos externostornariam muito mais fácil sua fuga.Principalmente se fugisse fazendo-sepassar pelo velho e não com sua própriaidentidade...

— Tem razão. Em outra prisãoqualquer, ele acabaria arranjando ummeio de escapar — concordou Andrade.

— Com isso em mente, o Doutor Q.I.elaborou um plano ousadíssimo. Osprisioneiros acabaram de contar que eledecidiu tomar o lugar do velho e fez umregime brutal, até tornar-se tão magrocomo ele. Aos poucos, estudando ovelho, aprendeu a andar como ele, a

Page 278: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

falar como ele, a ser o velho. Fabricoucom plástico uma máscara perfeitamenteadaptável ao rosto e uma cabeleira. E oDoutor Q.I. transformou-se em umacópia do velho...

Andrade ainda estava comendo umsanduíche que trouxera do refeitório.

Interrompeu a refeição e a fala dodiretor:

— Espere aí, diretor. Mas esseplano tem uma falha. Vocês pensaramque ele tinha fugido porque faltava umprisioneiro na hora da chamada. Comoisso aconteceu? O Doutor Q.I. tomou olugar do velho, mas o número deprisioneiros continuou o mesmo. E ovelho? Onde está o velho?

A expressão de horror do diretor

Page 279: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

aumentava:— O Doutor Q.I. assassinou o

velho...Andrade fixava-se na falha que tinha

descoberto.— Ah! Mas como ele conseguiu

fazer sumir o cadáver dentro de umapenitenciária como esta?

Ao horror da expressão do diretoracrescentou-se o nojo: — O malditomandou esquartejá-lo e...

— E. . . ? O que ele fez com ospedaços?

— Ele subornou os detentos quetrabalham na cozinha dos prisíoneíros!Eles misturaram os pedaços na carnemoída!!

O sanduíche voou das mãos do

Page 280: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

detetive Andrade.Tapando desesperadamente a boca

com as mãos, o pobre detetive correupara o banheiro da diretoria daPenitenciária de Segurança Máxima.

* * *

O diretor, preocupadíssimo, falava

através da porta do banheiro: —Detetíve Andrade! Não se assuste! Osenhor só comeu sanduíches de ovofrito, com presunto, queijo e alface! Osmeninos e os outros também. Não sepreocupe, detetive!

Page 281: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

20. A vez de MagríSentado no sofá da diretoria da

penitenciária, enxugando a boca com olenço, o detetive Andrade estava pálido.O susto fora de amargar!

A intérprete, de olhos vermelhos,tinha se acalmado um pouco, depois detomar água com açúcar.

O agente Patrick Lockwood,enquanto Hector Morales traduzia paraele a causa de todo o tumulto, balançavaa cabeça e repetia: — My God! MyGod! It's awfull...

Somente o russo não pareciachocado. Só tinha entendido umpouquinho daquela história toda. E esse

Page 282: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

pouquinho não era suficiente para queele entendesse por que todo mundoestava tão fora de si.

Hector Morales perdera o ar desegurança absoluta. Até seus cabelosnão estavam mais irrepreensivelmentepenteados, de tanto que ele passava amão por eles, chocado com o planomacabro do Doutor Q.I.

— Que horror! O velho foi comidopelos prisioneiros!

— Demônio! — praguejavaAndrade. — O Doutor Q.I. é o demônio!Nunca na minha vida de policial ouvifalar em uma barbaridade como essa!

Miguel concordou:— Só mesmo uma mente doentia

como a do Doutor Q.I. poderia pedir

Page 283: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

resgate pela Droga do Amor. Somenteum homem cruel como ele poderiaquerer ganhar um bilhão de dólaresespeculando com a vida de milhões deseres humanos que agonizam em todo omundo, vitimados pela praga do século!

— Até parece impossível que elepossa ter liderado esse plano todo daquide dentro, da penitenciária mais fechadado país! — observou Calú. — Sómesmo um criminoso com a inteligênciamaligna dele poderia encontrar um meiode dirigir, daqui de dentro, umaoperação como essa!

Miguel não era de deixar que aquelechoque perturbasse sua capacidade deação:

— Pessoal, não temos tempo a

Page 284: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

perder. Talvez a vida do doutorBartholomew Flanagan não corra perigoimediato, pois os bandidos esperamganhar dinheiro com ele. Mas, para queprecisam manter dona Iolanda viva?Para que manter vivo o Chumbinho? Otempo está contra nós!

As palavras de Miguel despertaramAndrade:

— Muito bem, precisamos fazer comque esse monstro confesse onde estão odoutor Bartholomew Flanagan, donaIolanda Negri, Chumbinho e as amostrasda Droga do Amor. Senhor diretor, peçoque traga o Doutor Q.I., agora, para asala de interrogatório. Cada minuto éprecioso, daqui para a frente!

Page 285: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

* * * O Doutor Q.I. entrou algemado na

mesma sala onde fora desmascarado porCrânio. Parecia já estar refeito. Vestiaum uniforme limpo e em seu rosto nãohavia mais sinais da máscara plástica.Tinha recuperado a frieza e aautoconfiança.

Dez outras pessoas abarrotavam asala. Mas tinha ficado decidido quesomente Andrade faria as perguntas.

— Muito bem, Doutor Q.I., jádescobrimos todo o seu joguinho...

Os músculos do rosto do prisioneironão se moveram.

— Mais algumas décadas decondenação esperam o senhor pelo

Page 286: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

bárbaro assassinato de um companheirode prisão, Doutor Q.I. Não queiracomplicar mais as coisas para o seulado. Queremos saber, já, onde estão odoutor Bartholomew Flanagan, donaIolanda Negri, o menino Chumbinho e asamostras da Droga do Amor!

As sobrancelhas do prisioneirofranziram-se.

— Não me venha dar uma deinocente, Doutor Q.I. Nós jádescobrimos todo o seu joguinho. Podecomeçar a falar.

— A falar o quê? — perguntou ohomem, com um meio sorriso.

— Você sabe muito bem do que euestou falando, miserável!

— Da Droga do Amor? Dos

Page 287: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

seqüestros? É claro que já ouvi falardisso. Até aqui dentro dá para se saber oque se passa lá fora. Mas por que osenhor pensa que eu tenho alguma coisaa ver com tudo isso?

— Ora, não me venha bancar oinocente! O senhor não conseguiu contersua vaidade criminosa, não é? E assinouo bilhete do seqüestro de Chumbinho!

— Eu fiz o quê?— O bilhete que a empregada

encontrou ao lado da bicicleta deChumbinho estava assinado "Q.I.". Vocêsabe muito bem disso!

— Não. Isso eu não sabia. E tambémnão sabia que o senhor, detetiveAndrade, seria tão burro a ponto deimaginar que eu assinaria um bilhete de

Page 288: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

seqüestro. O senhor me subestima,detetive Andrade. O senhor estáacostumado a prender criminososanalfabetos e ignorantes e até hoje nãopôde compreender a profundidade daminha mente...

— Ora, seu...— É do meu raciocínio que o senhor

precisa? Pois estou às suas ordens. Nãogosto de criminosos que usam meunome.

A segurança daquele criminoso eraimpressionante. Sua personalidade erarara, dominadora.

— Vocês estão farejando a pistaerrada! — declarou com ironia o DoutorQ.I. — O seqüestro desse cientista não écoisa planejada aqui. Vocês não

Page 289: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

percebem?Como eu sei? Eu não sei. Eu penso.O olhar de Magrí, durante todo

aquele interrogatório, permanecia meiodistante. A menina pensava. Colocadano fundo da sala, fora dos olhares dosoutros, abriu a mochila e, discretamente,examinou o conteúdo da bolsa de donaIolanda.

Fechou-a novamente.Um silêncio constrangido tomava

conta da sala de interrogatório.Quem o rompeu foi Magrí.— Andrade, posso falar?O gordo detetive, meio zonzo, sem

saber como sobrepôr-se à fortepersonalidade do Doutor Q.I., voltou acabeça para a menina: — Claro, Magrí.

Page 290: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

— Peço que o Doutor Q.I. sejadispensado.

— Como?— Por favor, Andrade. Confie em

mim. Por favor!

* * * Depois que o prisioneiro foi levado

pelos guardas, Magrí levantou-se: — ODoutor Q.I. tem razão. Estamos na pistaerrada.

O diretor sorriu, comcondescendência:

— Ora, desculpe, detetive Andrade,mas não vamos ficar aqui perdendotempo com opiniões de crianças...

O olhar de Magrí fuzilou o diretor, e

Page 291: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Andrade veio em seu socorro.— O senhor é que deve me

desculpar, diretor, mas eu estou nocomando das investigações deste caso.Peço sua paciência. O senhor já viu doque estes meninos são capazes. Vamosouvir o que Magrí tem a dizer.

Dessa vez a segurança dapersonalidade do Doutor Q.I. estavasendo substituída pela força de Magrí.Era de impressionar.

— Andrade, deixe-me ver de novoas fotos do doutor BartholomewFlanagan e o resumo de sua biografia,por favor. Andrade tirou o envelope dobolso.

— Aqui estão, Magrí.A menina folheou as fotos e passou

Page 292: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

os olhos pelo conteúdo da biografia.— Vou começar com um pedido —

disse ela, voltando-se para PatrickLockwood. — Please, misterLockwood, I need your help. Would youcall the FBI immediately?

— Of course... but what for?— Please, ask for a sample of

Doctor Flanagan's signature. Would youdo that? Would you ask them to send afax right away with that sample?

— O que ela está dizendo? —perguntou Andrade.

Antes que a intérprete começasse atraduzir, Magrí interrompeu-a com umgesto.

— Andrade, eu pedi ao agenteLockwood uma amostra da assinatura do

Page 293: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

doutor Bartholomew Flanagan que o FBIdeve ter. Pedi que mandassem essaamostra por fax para cá, o mais rápidopossível.

Patrick Lockwood olhava em volta,sem saber se cumpria ou não o quepedira a menina.

O doutor Hector Morales riu-se.— Ora, isso é uma brincadeira?

Vamos ficar aqui perdendo tempo,enquanto...

Andrade cortou.— Por favor, doutor Morales. Como

eu já disse, quem comanda estainvestigação sou eu.

Com um movimento de cabeça,autorizou o agente do FBI a atender opedido de Magrí.

Page 294: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Depois de instruções do diretor dapenitenciária, um guarda saiu comPatrick Lockwood da sala deinterrogatório.

— Continue, Magrí.— A polícia podia tentar encontrar

os quatro homens que na certa são daquadrilha. Aqueles dois que estavam nafrente do hospital e os outros doisgorilas que guardavam a porta do quartode dona Iolanda, mas isso seria inútil...

— Você viu a cara deles, Magrí —lembrou Andrade. Podemos mostrar-lheos arquivos de fotos de criminososprocurados. Se eles já tiverem sidofichados...

— Ora, Andrade, vai levar umtempão! Não temos tempo para isso! —

Page 295: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

exclamou Magrí.Crânio interrompeu:— Mas tem um da quadrilha que só

eu vi. E esse não é difícil de identificar.É um anão!— Um anão?— Shtó? — perguntou o russo.— A dwarf, he saïd — tentava

explicar a intérprete para IúriMikhailevich.

— Do you understand? Oh, my! Howdo you say "dwarf" in Russian?

Andrade também não estavaentendendo:

— Que novidade é essa, Crânio?— Um anão disforme, Andrade. Um

homenzinho horrível, sinistro, queestava rondando nossas ações lá no

Page 296: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

hospital. Ele se escondeu e desapareceu,logo que eu o vi. Pela cara dele, achoque é um bandido capaz das pioresbarbaridades! É um sujeito perigoso,sem dúvida nenhuma. Acho que eraquem estava coordenando a quadrilha, láno hospital. Na certa foi ele quemmandou seqüestrar dona Iolanda, quandoviu que nós estávamos na pista deles!

Magrí cortou a fala de Crânio comum gesto:

— Crânio, quer ficar quieto? Queresquecer essa bobagem de anão?

— Mas, Magrí, você não diria queestou falando bobagem se visse a carado anão. Ele é o sujeito mais assustador,mais suspeito que eu já vi!

Magrí foi dura, dessa vez:

Page 297: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

— Por favor, Crânio! Eu sei o queestou fazendo!

Crânio calou-se e Magrí retomou seuraciocínio.

— Tem alguns detalhes dessahistória que só eu testemunhei.Lembram-se de eu ter contado que, ànoite, no avião, ouvi uma conversa entreo doutor Hector Morales e o doutorBartholomew Flanagan?

Os olhos de Hector Moralesarregalaram-se:

— Uma conversa entre mim e odoutor Flanagan, menina? Não diga! Oque você ouviu?

— Uma conversa corriqueira, doutorMorales. Mas, agora, pensando nela,eu...

Page 298: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Foi interrompida pelo telefone, quetocava na sala ao lado. Um funcionário oatendeu e chamou pelo diretor.

— Tem um sujeito esquisito lá noportão, diretor. Diz que tem de falar comurgência com o detetive Andrade.Tentaram mandá-lo embora, mas eleinsíste que tem informações importantessobre o seqüestro da professora. Ele éum...

Andrade interrompeu o funcionário:— Como esse sujeito pode saber que

eu estou aqui?Magrí tocou no braço do diretor,

pedindo, com suavidade: — Deixe-osubir, diretor. Não podemos abrir mãode nenhum depoimento.

Se esse tal sujeito esquisito sabe que

Page 299: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

o detetive Andrade está aqui,precisamos descobrir quem é ele e o quequer.

O diretor olhou para Andrade.Andrade olhou intrigado para Magrí.Magrí insistiu:

— Por favor, Andrade. Por favor!Andrade fez um gesto com a cabeça

em direção ao diretor, autorizando maisaquela irregularidade na rotina dapenitenciária.

— Mande trazer o visitantemisterioso até aqui, diretor.

O diretor estava dando as ordenspara que revistassem direitinho o talsujeito, antes de deixá-lo entrar, quandoo agente Patrick Lockwood voltou à salade interrogatórios. Trazia um papel de

Page 300: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

fax nas mãos. Estendeu-o para Andrade.— Here you are, detective. There are

some samples of Doctor Flanagan'ssignature...

Andrade pegou o papel, passou-lheos olhos e entregou-o para Magrí.

A menina olhou detidamente o papelde fax. Abriu a mochila e tirou de lá umaagenda. Abriu-a e colocou o papel defax ao lado, comparando alguma coisa.

Sua carinha iluminou-se. E foi com osorriso mais lindo do mundo que amenina levantou o rosto e encarou atodos:

— Gente, acho que resolvi o caso!

Page 301: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

21 . Um desfechocom sol e praia

Aquilo era demais para os agentesdo FBI e para o diretor da Penitenciáriade Segurança Máxima.

Para a intérprete, a história estava setornando fascinante e a mulher assistia atudo como se estivesse diante da tevê.Normalmente, ela só traduzia encontroschatos entre executivos. Era a primeiravez que ela estava participando de umareunião tão emocionante.

Para Andrade, porém, a surpresa eramenor. Ele sabia do que era capazaquela menina magrinha, de rosto lindo.

Page 302: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Com a folha de fax sobre a agendaaberta, Magrí sacudia o braço.

— Era disso que eu precisava.Desde hoje à tarde tinha uma coisa naminha cabeça que me incomodava. Eume lembrei da conversa que ouvi noavião entre os dois cientistas da DrugEnforcement. Lembro-me que o doutorBartholomew Flanagan falava para odoutor Hector Morales que odiava praiae calor, não gostava de sol, nem deareia. Era um homem da cidade grande,que detestava sujeira.

Lembra-se dessa conversa, doutorMorales?

O porto-riquenho americano sorriu:— Não, acho que não. Num vôo,

conversa-se de tudo. Como é que eu vou

Page 303: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

me lembrar de pequenos detalhes?— Eu tenho mania por detalhes,

doutor Morales — continuou Magrí. —Mas não pensei nessa conversa quandovi as fotos do doutor BartholomewFlanagan que os agentes do FBItrouxeram.

Foi até a mesa, onde tinha deixado oenvelope, e exibiu as fotos para todos.

— Vejam. O que está nestasfotografias? O que vocês vêem nelas?Um homem sorridente, de bermudas ecamisa colorida, sempre em praias,sempre procurando o verão, não é? Umex-surfista, que mora em Malibu, epassa as férias em Acapulco, na Flóridae no Havaí. Estão vendo? Estas fotospoderiam ser de um homem "da cidade",

Page 304: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

que detesta praia, sol, calor e areia?O emudecimento foi geral. O que

Magrí mostrara parecia incontestável,mas o doutor Hector Morales sorriu,condescendente, com carinho.

— Muito bem, menina. Tudo issopareceria perfeito se a realidade nãofosse como ela é. Eu conheço o doutorBartholomew Flanagan há muitos anos.Eu sei e todo mundo sabe que ele detestaas cidades grandes, odeia andar degravata. O que ele gosta é da natureza,do sol e das praias. Assim é o doutorFlanagan. Essa história de que eledetesta praia e sol não faz o menorsentido!

— Eu o ouvi conversando com osenhor, doutor Morales. E ele falava

Page 305: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

exatamente o que eu disse: que odiavapraia, sol e calor — confirmou Magrí.

— Ora, menina! Havia dezenas deamericanos naquele vôo! Como pode tercerteza de que éramos nós dois?

— Eu tenho certeza, doutor Morales.O doutor Hector Morales parecia

possuidor da maior das paciências. Nãoqueria ofender a menina e argumentavacom grande delicadeza.

— Está bem, eu sei que você nãoinventaria uma coisa dessas. Mas pensebem. Quem acreditaria em você? Aconversa que você ouviu poderia teracontecido com qualquer outro par deamericanos!

— Temos mais um pequeno ponto adiscutir, Doutor Morales — Magrí não

Page 306: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

perdia a convicção. — Quandoamanheceu, no avião, dona Iolandaacordou-me dizendo que uma jornalistahavia reconhecido o famoso doutorFlanagan naquele vôo. Ela pegou suaagenda e correu para pedir umautógrafo. Esta é a agenda.

Seu braço levantado exibia a agendada professora junto com o papel de fax.

— Agora eu quero que os senhorescomparem a assinatura desta agendacom a assinatura do doutorBartholomew Flanagan, que veio nestefax. Vejam! São duas assinaturascompletamente diferentes!

Andrade, o diretor e PatrickLockwood fizeram a comparação.

— Verdade, Magrí! — concordou

Page 307: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Andrade. — Uma nada tem a ver com aoutra!

Miguel levantou-se:— Magrí, o que você quer dizer com

isso?— Quero dizer que o homem que

veio naquele vôo, e que foi seqüestradono aeroporto, não era o doutorBartholomew Flanagan!

Hector Morales pulou da cadeira:— Quer dizer... quer dizer que os

seqüestradores levaram o homemerrado?

— O senhor devia saber, doutorMorales — respondeu Magrí. — Osenhor não disse que conhecia o doutorFlanagan há anos?

— Bem, eu falei com ele por

Page 308: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

telefone, fax e telex durante quase dezanos.

Pessoalmente, eu nunca o vi, mas oconhecia muito bem por fotografias.Acho que eu não poderia me enganar...

O diretor deu sua opinião:— Bem, se a pessoa que estava no

lugar do doutor Flanagan fosse muitoparecida com ele, talvez qualquer umpudesse se enganar. Mas a questão é:por que alguém ia fazer-se passar pelodoutor Bartholomew Flanagan?

— Isso eu não sei — retomou Magrí.— Mas agora tenho certeza de quealguém veio dos Estados Unidos nolugar do verdadeiro doutor Flanagan. Eacho que essa pessoa veio sabendo queia ser seqüestrada. Veio para fazer parte

Page 309: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

de uma encenação!Andrade não acreditava no que

estava ouvindo: — Que absurdo é esse,Magrí?

— Meu palpite, Andrade, é que esseseqüestro foi uma armação. Mas eu nãotenho nada para provar essa tese, nemum palpite sobre o motivo de alguémpensar em encenar o seqüestro do doutorBartholomew Flanagan. Mas, agora, eujá sei por que dona Iolanda foi baleada.E, sabendo disso, descobri quem é ochefe da trama toda...

Durante o silêncio que se seguiu,Magrí passeou os olhos calmamente emtorno da sala, até parar no rosto dodoutor Hector Morales.

— Quem encenou esse seqüestro e

Page 310: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

quem mandou atirar na minha professorafoi o senhor, não foi, doutor HectorMorales?

O americano de cabelo liso sorria ebalançava a cabeça.

— My God! Eu não sabia que osjovens brasileiros tinham tantaimaginação!

— Imaginação, doutor Morales? —continuava Magrí. Por que somente donaIolanda foi baleada no aeroporto? Porque roubaram a minha bolsa naconfusão? Eu consegui ver a minhaprofessora no hospital, antes de aseqüestrarem.

Ela estava lá, superficialmenteferida, mas dopada. Por ordem de quema doparam?

Page 311: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

O senhor não me disse, lá na sala daPolícia Federal, no aeroporto, que eupodia ficar tranqüila, que a DrugEnforcement cuidaria de dona Iolanda?Pois vocês cuidaram mesmo, não é?Mandaram uma falsa equipe médica queassumiu o tratamento dela e a mantevesob anestésicos sem que ninguém dohospital pudesse entrar no quarto!

— Bullshit! Garanto que... Magrí nãoo deixou continuar.

— Eu tirei o anestésico do braçodela e consegui fazê-la voltar a si. E elaainda pôde dizer: "Ele. . . ele mandouatirar em mim!" Foi o senhor quemmandou atirar na minha professora,doutor Morales!

— Nonsense! Por que eu quereria

Page 312: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

matá-la?— Por causa do autógrafo. O senhor

sabia que o sósia que veio no lugar dodoutor Bartholomew Flanagan, um idiotaprovavelmente, assinara qualquer coisana agenda de dona Iolanda. O senhormandou baleá-la, doutor Morales, emandou roubar-lhe a bolsa com aagenda, para que ninguém viesse adescobrir que aquela não era aassinatura do verdadeiro doutorFlanagan. Felizmente seus capangasconfundiram as bolsas e levaram aminha, no lugar da dela!

A intérprete, como umametralhadora, traduzia tudo para PatrickLockwood.

O agente americano, ao ouvir a

Page 313: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

tradução, apontou para a menina eperguntou: — Who's that little woman?Supergirl?

Crânio respondeu, com orgulho:— She's our Wonderwoman, mister

Lockwood!Iúri Mikhailevich já tinha desistido

de tentar entender qualquer coisa.Hector Morales continuava

controlado, com um sorriso superior: —Ora, ora, menina! Mais uma vez sótemos a sua palavra. Quem mais ouviuessa acusação de sua professora? Sóvocê? Quem pode confirmar essasuposta declaração?

Nesse momento, a porta da sala deinterrogatórios abriu-se num tranco.

— Eu posso! — disse o anão, de pé,

Page 314: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

na soleira da porta. A intérprete deu umgrito.

Aquela era a aparição mais horrendadaquela noite, desde que tinhamdescoberto o plano antropofágico doDoutor Q.I.

Um anão horrendo mesmo. Sua facedeformada torcia-se num sorriso queescancarava lábios grossos e maus.

— O anão! — gritou Crânio. — Foiele que eu vi! Ele está envolvido nissoaté o pescoço! Prenda esse anão,detetive Andrade!

— Deixe de besteira, Crânio!Quem falara fora o anão.Ante a surpresa de todos, a feia

criatura levou a mão ao pescoço.Cuidadosamente, começou a arrancar

Page 315: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

a pele, a puxar, até que toda acarantonha horrível saiu por cima dacabeça, levando junto o chapéu e ocabelo ensebado!

— Chumbinho! — gritou Andrade.— Eu mesmo! — riu-se o menino,

com a cara mais marota do mundo. —Eu mesmo, Crânio. Ah, ah! Te enganei,geninho! Eu acompanhei vocês essetempo todo, sem que ninguém notasse!Está vendo, Calú? Aprendí esse truquecom você.

Gostou da maquilagem?— Chumbinho, mas... — Andrade

estava zonzo. — O que estáacontecendo? Você não tinha sidoseqüestrado?

Magrí levantou os braços, pedindo

Page 316: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

um pouco de ordem na balbúrdiaprovocada pelo aparecimento daquele"anão".

— Esperem um pouco! Acho queaprendi com o doutor Morales a simularseqüestros. Desculpe, Miguel. Desculpe,Crânio. Desculpe, Calú. Mas foi a únicamaneira que eu e Chumbinhoencontramos para fazer vocês trêsmudarem de idéia...

— Mudar de idéia? — Andradeentendia cada vez menos. — Que idéia?

Miguel sorria, surpreso e orgulhosoda iniciativa daqueles dois Karas: —Não ligue, Andrade. É uma coisa entrenós. Muito bem, Magrí. Parabéns,Chumbinho. Vocês fizeram a coisa certa!

Chumbinho exultava:

Page 317: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

— Eu estava ótimo de anão, nãoestava? Eu tinha de me disfarçar, paracontinuar na brincadeira!

— Brincadeira?! — espantou-se odiretor da penitenciária. — Você chamaisso de brincadeira?

— Que graça teria eu ficar"seqüestrado" e escondido como umbobo o tempo todo? Ah, eu precisavaacompanhar vocês, ficar sabendo detudo o que acontecia. Só mesmodisfarçado, né?

Magrí erguia novamente o braço eexigia que a discussão voltasse ao pontoem que tinha sido interrompida.

— Um momento! Falta aindaresolver dois seqüestros. O de donaIolanda e o do doutor Bartholomew

Page 318: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Flanagan!Chumbinho ria-se, feliz:— Só o do doutor Flanagan, Magrí.

O da professora já está resolvido.— Resolvido? — perguntou Hector

Morales. — E onde está ela?— Está lá em casa. Muito bem de

saúde, aliás... — informou Chumbinho,fazendo uma cara de quem fala a coisamais natural do mundo.

— Na sua casa?! — berrou Andrade.— Mas o que aconteceu? Vocês tambémsimularam o seqüestro da professora?

— Esse não — continuouChumbinho. — Eu estava escondido naviela, atrás do hospital, quando Magrísaiu para encontrar-se com Crânio.Estava muito quietinho dentro de uma

Page 319: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

caixa de papelão..."Ai, ele estava lá! Então ele ouviu

tudo! Eu e Crânio! Chumbinho sabe denós dois!", pensou a menina, olhandodisfarçadamente para o geninho dosKaras.

Crânio estava vermelho como umtomate.

— Vocês saíram no fusquinha e eu vique alguma coisa estranha estavaacontecendo no hospital. Os bandidosdevem ter descoberto que Magrí tinhatrocado o frasco que mantinha donaIolanda desacordada, e eu ouvi que elesiam levá-la dali.

Não perdi tempo e me meti no porta-malas do carro. Antes, é claro, dei umjeito de amarrar o fecho com um pano,

Page 320: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

para poder sair dali quando euquisesse..

— Boa, Chumbinho! — aplaudiuMagrí.

— O carro rodou bastante e foi pararem um galpão, na periferia da cidade.

Eu saí do porta-malas e telefoneipara Magrí, de um orelhão. Depois, foisó voltar para lá e esperar. Deixaram sóum gorila tomando conta da professora.Bom, eu já tinha visto ele fazer xixi lá naviela. Mas, como ele tinha mais coisaspara fazer, acabou saindo para umbanheiro externo. Eu aproveitei e fui ládentro, com o meu canivetinho, cortar ascordas que prendiam dona Iolanda...

— Que coragem, Chumbinho! —admirava-se Andrade. Mas como vocês

Page 321: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

fugiram de lá?— De táxi, é claro!Hector Morales estava de pé. Toda

sua segurança e autoconfiança pareciamter desaparecido.

Chumbinho, sorrindo como seestivesse contando uma travessura,olhou o presidente para a AméricaLatina da Drug Enforcement Inc.

— Por isso eu posso confirmar o queMagrí estava dizendo agora mesmo.

Dona Iolanda me contou que, noaeroporto, quem apontou para elaordenando que o capanga atirasse foi osenhor! Doutor Hector Morales Andradelevantou-se e olhou aliviado para odiretor da penitenciária: — Que sorte,diretor. Não precisamos levar esse

Page 322: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

sujeito para a cadeia. Ele já está nacadeia!

Page 323: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

22. O amor podemudar o mundoAo entardecer do dia seguinte,

Andrade foi encontrar os cinco Karas noParque do Ibirapuera. Sentaram-se nomesmo banco em frente à moita deazaléias.

O sol queimava, e o detetivecomprou sorvetes para todos.

— Bem, meninos, o dia de hojebastou para resolvermos todos osdetalhes desse caso. Nós, aqui noBrasil, e o FBI, nos Estados Unidos,conseguimos descobrir tudo o queaconteceu...

Page 324: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

— Ótimo! — aplaudiu Chumbinho.— Tudo resolvido? Encontraramtambém as amostras da Droga do Amor?

Andrade olhou para o menino.Aquele menino brilhante, que tirarasozinho dona Iolanda das mãos dosseqüestradores. Mas não conseguiusorrir.

— O que houve, Andrade? —perguntou Calú. — Você não parecemuito feliz com a solução do caso daDroga do Amor... O detetive tomoufôlego e disse depressa a pior parte dasrevelações que tinha a fazer: — ADroga do Amor nunca existiu, meninos!

— O quê?! O que você está dizendo?— Espere um pouco, Magrí. Deixe

eu contar tudo desde o começo. O doutor

Page 325: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Bartholomew Flanagan, chefiando aequipe de pesquisadores da DrugEnforcement, acreditava realmente estarnuma pista muito segura para a criaçãode um soro que curasse a maldita pragaque faz com que o amor entre as pessoastransforme-se em morte. Mas aspesquisas eram muito caras, envolvendoengenharia genética e tudo o mais. Comos primeiros estudos do doutorFlanagan, a Drug Enformecent conseguiuenormes financiamentos de todo omundo... bilhões e bilhões de dólares...Só que, no fim, o soro falhou.

— A Droga do Amor falhou?!— Não deu certo. Os testes in vitro,

em laboratório, estavam apresentandobons resultados, mas não provocaram

Page 326: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

nenhuma imunidade quando aplicadosem seres humanos. E a DrugEnforcement estava atolada até opescoço em dívidas. O que ia dizer aosacionistas? Como justificar esse imensofracasso aos financiadores de todo omundo?

— O que era um problema de amortornou-se um problema financeiro... —observou Miguel.

— A diretoria então tentouconvencer o doutor BartholomewFlanagan a continuar defendendo o soronas revistas médicas, alegando suavalidade. A Drug Enforcement estariafalida se ele confessasse o fracasso.Mas o doutor Flanagan não concordoucom essa farsa e ameaçou convocar a

Page 327: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

imprensa e falar a verdade.— Que verdade horrível! —

lamentou Magrí.— Os diretores da Drug Enforcement

decidiram então organizar a farsacompleta. Escolheram o Brasil para ossupostos testes finais da Droga do Amore desembarcaram aqui um sósia dodoutor Flanagan e uma caixa de frascoscheios de água!

Dos olhos de Magrí, duas lágrimasescorreram, queimando-lhe o rosto.

Naquele momento, ela lembrou-se dacriancinha que vira no hospital...

— O plano era simular o seqüestrodo falso cientista e o roubo das falsasamostras. Se tudo desse certo, o talsósia do cientista nunca mais apareceria

Page 328: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

e nunca mais se saberia da caixaroubada. Assim, eles teriam uma ótimadesculpa para o desperdício dos bilhõesde dólares. E esperavam até mesmoconseguir novos financiamentos, paratentar retomar os estudos do doutorBartholomew Flanagan.

Escolheram o Brasil, por pensar queaqui seria mais fácil realizar um crime.Não acreditavam em nossa polícia, nemem nossa capacidade de organização.Mas eles não contavam que houvesseuina pessoa no avião que pediria umautógrafo ao falso cientista e estragariatudo. Não contavam também, é claro,com a esperteza e a teimosia da Magrí. ..

O elogio não mudou a expressão da

Page 329: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

menina. Aquela mentira a deixaraarrasada.

— Hector Morales era oencarregado de fazer funcionar oesquema aqui no Brasil — continuouAndrade. — Quando desembarcou,mandou um dos capangas atirar em donaIolanda e mandou que alguém lheroubasse a bolsa que continha a agendacom o autógrafo do farsante. Moralesestá agora preso, e vai responder peloseqüestro de dona Iolanda e pelo falsoseqüestro do cientista. Já capturamostambém o tal sósia, que estava tentandofugir pelo Paraguai com nome falso...

— E o que houve com o verdadeirodoutor Flanagan?

— Ele não quis colaborar, Miguel.

Page 330: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Por isso, foi assassinado um dia antes deembarcar... Já descobriram o corpo deleno fundo do mar, em Tampa Bay, com ospés presos em um bloco de concreto...

— Que horror!— O FBI está trabalhando nos

Estados Unidos para punir os culpadospor essa barbaridade. Mas, quem sãoesses culpados? Somente os diretoresdessa multinacional? Mas quem érealmente culpado pelos crimespraticados por uma grande empresa?Será que não somos todos culpados,quando colocamos a ânsia pelo lucro àfrente das necessidades das pessoas? Aquem podemos responsabilizarrealmente pelo crime? Por todos oscrimes do mundo?

Page 331: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

No dia seguinte, quando o mundointeiro ficasse sabendo que a Droga doAmor era uma farsa, a tristeza e adecepção tomariam conta de todos. Mas,naquele momento, só aqueles seisamigos sentiam a dor que haveria detomar conta do planeta...

Magrí não se conformava:— Ah, Andrade, todo esse esforço

para nada! Eu não queria só vingarminha professora baleada. Eu não queriasó brincar de detetive, descobrindoseqüestradores! Eu queria realmente quetodo esse trabalho tivesse sentido! Euqueria a Droga do Amor! Para salvar avida da criancinha que eu vi no hospital!Eu queria salvar a vida das pessoascondenadas somente porque confiaram

Page 332: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

no amor!Andrade também chorava. Abraçou

Magrí apertado, beijando-lhe o rostovárias vezes, bebendo as lágrimasdaquela pequena heroína.

— Ah, Magrí, o seu trabalho teve omaior sentido, minha querida! Vocêlutou por amor! Por amor a suaprofessora, por amor a todas as pessoasdo mundo. É isso que faz com que essemundo valha a pena, querida! Sãopessoas como você que fazem a gentecontinuar em frente, com confiança. Aciência encontrará a verdadeira Drogado Amor, mais dia menos dia. E o seuamor pela humanidade fará parte dafórmula. O seu amor pode mudar omundo, Magrí, minha menina!

Page 333: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Durante longo tempo, os ânimosdaqueles seis amigos calaram-se,tentando recuperar-se. E foi a força daamizade que os unia que, pouco a pouco,os acalmou.

Calú quebrou o silêncio:— Temos de confiar! A praga do

século será vencida!Andrade acariciou os cabelos lindos

de Calú.— A praga do nosso século não é

uma só, meninos. Nosso século,infelizmente, tem muitas pragas. A fome,a miséria, a ignorância... Mas tudo issoé causado pela cobiça, pela avidez quecria monstros como esses, da DrugEnforcement, ou como o Doutor Q.I.,para quem a conquista do poder e do

Page 334: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

dinheiro justificam tudo. Eu vivoprendendo criminosos pobres,ignorantes, que matam uma, duas, trêspessoas. Mas jamais consigo pôr asmãos nesses verdadeiros criminosos,que matam milhares, que condenammilhões à fome e à morte semesperanças...

* * *

Antes de ir para o Colégio Elite,

Magrí passou pelo hospital ondeestivera dona Iolanda.

Pediu para fazer uma visita à ala deisolamento infantil. Subiu para o quintoandar, dessa vez de elevador, e entrouno quarto onde se escondera dois dias

Page 335: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

atrás.Lá estava o bercinho. Lá estava a

criança que ela vira adormecida.Cuidada por uma enfermeira sorridente.

— Ele está melhorzinho... —comunicou a enfermeira. O bebê estavasentado no berço, sorrindo para Magrí.

A menina aproximou-se, beijou-oternamente e entregou-lhe o seu queridoursinho de pelúcia. Era o presente maispessoal que ela poderia ter trazido.

A criança sorriu mais ainda eabraçou-se ao ursinho.

— Você vai ficar bom, meuqueridinho! Eu sei que vai! Você tem deviver!

O amor vai vencer o ódio, meuamorzinho. Nós vamos vencer a morte!

Page 336: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

* * *

Magrí foi a última a subir para o

esconderijo secreto. Os outros quatroKaras já estavam lá, sentados, emsilêncio.

Miguel, que já telefonara para a sededo tal acampamento, desistindo da vagade monitor, perguntou, com um sorriso:

— Por que vocês inventaram deassinar o tal bilhete de resgate comaquele "Q.I."? Isso fez com que eu,Crânio e Calú ficássemos com a certezade que ele era o culpado de tudo!

— Naquela hora, eu e Chumbinhotambém achávamos que o Doutor Q.I.estava por trás de tudo. Desculpem... A

Page 337: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

gente errou... Aquela menina,responsável por desvendar uma tramacruel como aquela, admitia que estiveraerrada. Em apenas um ponto que fosse.Ela era um Kara.

O silêncio ocupou novamente o forrodo vestiário. Magrí olhou um por um.

Os seus Karas!Ela havia convocado a reunião. Ela

teria de começar a falar.— Eu pensei muito, Karas, depois

que Chumbinho me contou que vocêstrês queriam dissolver o nosso grupo.Chumbinho não entendia por quê, mas euentendi...

Ninguém falou. Só Chumbinhoolhava para Magrí. Os outros trêsconcentravam-se no pó que recobria o

Page 338: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

forro do vestiário do Colégio Elite.— Nós chegamos a um beco sem

saída, não é? Pois bem, vamos resolverlogo isso.

Olhava fixamente para cada urn dosseus queridos Calú, Crânio e Miguel.

Seu olhar encontrou o de Chumbinho.O menino agora era dono de um segredoseu. O seu maior segredo. Mas Magrísabia que Chumbinho nunca, nuncafalaria.

Como era bom, como era gostosoviver gostando daqueles amigos! Apesarda dificuldade da situação, apesar detudo o que tinha de dizer, Magrí sentia-se bem, aquecida, confortável, pelaproximidade daqueles garotosmaravilhosos.

Page 339: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

— Pensei muito, queridos, choreimuito pensando. O que seria umasolução final para o nosso problema?Seria uma escolha minha? Uma decisão?

A emoção enchia-lhe os olhos delágrimas. Ninguém movia um músculo eMagrí pediu:

— Olhem para mim, por favor,olhem para mim!

Um a um, aqueles rostos foram selevantando. Todos aqueles olhosestavam vermelhos. Todos estavam aponto de chorar também. Magrí leunaqueles olhos um pouco de esperança,mas leu também um pouco de medo.

— Como eu posso escolher,queridos? Eu coloquei na balança dosmeus pensamentos, de um lado, a

Page 340: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

escolha que eu tinha de fazer. Do outro,essa incrível amizade que une a gente.Agora me digam, qual de vocês achariajusto ferir os outros dois se euescolhesse um de vocés? Qual de vocês,por uma namorada, acharia justo destruiro grupo dos Karas?

Nesse momento, as lágrimas jácorriam por todos os rostos. Molhados,os rostos de Miguel, de Calú e deCrânio iluminavam-se aos poucos. Elescomeçavam a entender.

— Será que o meu amor de mulherpor um de vocês pode ser maior do queo amor de ser humano que eu tenho portodos vocês? Por você Miguel, por vocêChumbinho, por você Calú, por você,Crânio? O que pode haver de maior do

Page 341: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

que nós cinco?A excitação era imensa. Os cinco

Karas olhavam-se sem falar, respirandoruidosamente, arfando, como setivessem acabado de disputar umamaratona.

Num repente, jogaram-se nos braçosuns dos outros, soluçando e formandouma montanha de afeto, de carinho, depaixão! Magrí sentia aqueles corposespremidos contra o seu.

De olhinhos fechados, sabiadistinguir o calor do seu escolhido. Masaquela amizade era demais. Os Karaseram demais! Não seria uma escolhadela que haveria de dissolver a amizadedos Karas. O amor que unia aquelescinco era maior do que o amor daqueles

Page 342: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

três garotos maravilhados por ela. Eramaior do que o seu amor pelo garoto quea fazia tremer como mulher.

Ela já tinha escolhido. Para sempre,seu coração guardaria aquele segredo. Aamizade vencera o amor.

Os Karas nunca, nunca seseparariam...

Tradução das falas em inglês e emrusso — Eu imagino como esse país é...

— É realmente quente...— Eu odeio o calor. Oh, como eu

odeio o calor!— Bem, há lindas mulheres lá. E

lindas praias...— Eu sou um homem da cidade.

Odeio praias. Não gosto de areia e todasaquelas coisas sujas. Prefiro ver lindas

Page 343: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

prostitutas...— Bem, esqueça tudo isso. Nossa

tarefa é o que interessa. Você estáperfeitamente preparado?

— Acho que sim. Mas não sei seensaiamos o suficiente...

— Você sabe tudo o que precisasaber. Tudo vai dar certo...

— Alô... O quê? Por Deus!...Deveríamos ter esperado por algoassim... Meu Deus! Um bilhão!... OK,nos encontraremos mais tarde. Não façanada até eu chegar aí. Certo!

— Bem... Esse é o nosso suspeitonúmero um...

— O quê?... Oh, desculpe...Desculparr mim... Eu não estouentendendo muito bem... Mim não estarr

Page 344: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

entendendo dirreito.— O quê? O quê? O que ele disse?— Aqui está, detetive. Nós

trouxemos tudo o que precisamos sabersobre o doutor Bartholomew Flanagan.Aqui estão algumas fotos e uma fichacom um resumo sobre sua vida.

— O quê? O quê? Desculpe... Eu nãoestou entendendo direito... Mim nãoentender. ..

— Que diabo estamos fazendo aqui,doutor Morales? (...) — O quepretendemos encontrar nesta prisão? Osuspeito fugiu! Devemos procurar porele em outro lugar. Estamos perdendotempo precioso!

— Não se preocupe, agenteLockwood (...) — Detetive Andrade é

Page 345: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

um ótimo policial; foi o que disse nossocônsul. Ele sabe o que está fazendo.Estamos aqui só para observar. Vamosesperar e ver o que ele pretende fazer.

— O quê? O quê? O que ele estáfalando? Mim não entender... ''

— Mim entenderr! Eu estouentendendo! Mim entende.

— É aqui que eles torturam ospresos?

— Beijo! Beijo! Nós os russosgostamos muito de nos beijar!

— Meu Deus! Meu Deus! Éhorrível...

— Por favor, senhor Lockwood.Preciso de sua ajuda. O senhor poderiatelefonar para o FBI, imediatamente?

— Claro... mas para quê?

Page 346: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

— Por favor, peça uma amostra daassinatura do doutor Flanagan. O senhorpode fazer isso? Peça para elesenviarem um fax, a seguir, com essaamostra.

— Um anão, ele disse... Vocêentende? Oh! Como se diz "anão" emrusso?

— Aqui estão, detetive. Algumasamostras da assinatura do doutorFlanagan... — Quem é essagjovem?Supergirl?

— Ela é nossa Mulher Maravilha,senhor Lockwood!

Fim

Page 347: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

{1} Chamamos a atenção para a grafiados nomes Magrí e Calú. Emboragramaticalmente incorreta, a acentuaçãodesses nomes visa evitar pronúnciadiferente daquela pretendida pelo autor.

Page 348: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Autor e obra

Page 349: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Nasci em Santos, em 1942, e soupaulistano desde 1961. Estudei CiênciasSociais, fui uma porção de coisas: deator a publicitário, de jornalista a editor,até transformar-me, desde 1983, em umescritor para jovens. Talvez você jáconheça alguns dos meus livros, como ADroga da Obediência, Pântano de sanguee Anjo da morte, as outras três aventurascom os Karas, ou talvez já tenha lidotambém A marca de uma lágrima, Agoraestou .sozinha..., Na colméia do inférno,Minha primeira paixão, O fantásticomistério de Feiurinha ou O mistério dafábrica de livros.

Já me perguntaram por que os meus"Karas", Miguel, Magrí, Calú, Crânio eChumbinho são jovens sem problemas

Page 350: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

financeiros ou sociais, por que são tãoperfeitos. A minha resposta é sempreesta: porque eles são o meu sonho. Éassim que eu sonho que todos os jovensdeveriam ser, em todo o mundo. Semproblemas financeiros, inteligentes,sadios, honestos, conscientes, corajosos,estudando em boas escolas, tendorecursos e oportunidades para lazer,esportes, cultura e, principalmente,ligados ao mundo, sempre prontos adefender a verdade, o amor, a justiça e aigualdade. Os Karas são o meu projetode vida para vocês, jovens leitoresbrasileiros, que demonstram tantocarinho para comigo e para com essegrupo de jovens maravilhosos comovocês.

Page 351: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

O texto de A Droga do Amor foiescrito quase dez anos depois daprimeira aventura dos Karas, A Drogada Obediência. Muitas, muitas cartas deleitores pediam-me mais uma históriacom eles. Demorei, mas aqui está ela,cujo conteúdo é, para mim, muitoimportante: a amizade entre vocês, queadoram suas "patotas", que se apóiam noamor mútuo para, juntos, enfrentar omundo adulto. Ao longo de suas vidas,por favor, nunca se esqueçam do valordessa amizade da adolescência. A força,a confiança, a honestidade e oentusiasmo que hoje moram no coraçãode vocês são combustível suficientepara durar toda a vida. Não deixemjamais que essa chama se apague.

Page 352: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

O segundo ponto do enredo é atremenda doença de transmissão sexualque ameaça a humanidade. Em nenhumponto do texto, nem agora, eu citei suadenominação. Há um propósito nessaomissão. No século passado, odramaturgo Kenrik Ibsen escreveu Osespectros, uma peça que discute asconseqüências da sífilis, sem citar essenome. Em 1936, Luigi Pirandelloescreveu O homem de flor na boca, ondemostra os problemas de um homem comcâncer, sem citar o nome da doença.Com isso, essas duas peças tornaram-sesem data. Atualmente elas sãoremontadas e prestam-se perfeitamente àdiscussão do problema da atual "pragado século". O que fiz foi apenas seguir o

Page 353: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

caminho de Ibsen e Pirandello. Pedro Bandeira

Page 354: Os Karas 04 - A Droga do Amor€¦ · Eram oito horas da manhã quando Miguel levantou-se da mesa do café. O ano terminava, mas o rapaz não queria descanso. Tinha de manter-se ocupado,

Este ePub foi criado em Fevereiro de2014 porLeYtor

Tendo como base texto enviado atravésde doação anônima