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ANA PAULA ANDRADE BORGES DE FARIA Procuradora do Estado de São Paulo OS LIMITES DA ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO NA TUTELA DO DIREITO À SAÚDE Tese submetida à Comissão do XXXV Congresso Nacional de Procuradores do Estado que terá lugar entre 19 e 23 de outubro de 2009 em Fortaleza/CE. Fortaleza (Ceará) 2009

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ANA PAULA ANDRADE BORGES DE FARIA Procuradora do Estado de São Paulo

OS LIMITES DA ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO NA TUTELA DO DIREITO À SAÚDE

Tese submetida à Comissão do XXXV Congresso

Nacional de Procuradores do Estado que terá lugar

entre 19 e 23 de outubro de 2009 em Fortaleza/CE.

Fortaleza (Ceará)

2009

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INTRODUÇÃO

É notória a multiplicação de demandas individuais em que se postula ao Poder

Judiciário que determine ao Poder Público a entrega de medicamentos, tratamentos e insumos

não previstos por programas oficiais de assistência à saúde, ou que, embora sejam

contemplados por tais programas, não são indicados pelos protocolos clínicos e por diretrizes

terapêuticas para o tratamento da patologia que acomete o postulante da tutela judicial.

E os órgãos jurisdicionais têm acatado as pretensões deduzidas individualmente,

determinando ao Poder Público que forneça os bens e prestações requeridos, a partir de uma

cognição sumária, e muitas vezes sem observância do princípio da razoabilidade. E o Estado,

instado a dar cumprimento às ordens judiciais, é obrigado alterar a alocação de receitas

orçamentárias provocando distorções no funcionamento do Sistema Único de Saúde – SUS.

O objetivo desse trabalho é analisar tal fenômeno à luz das normas constitucionais e

da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, e propor soluções que compatibilizem o

atendimento do interesse público de preservação da vida e da saúde dos demandantes, que

vem sendo amplamente reconhecido pelo Poder Judiciário na perspectiva da micro-justiça,

com as políticas públicas de assistência à saúde, formuladas pelo Estado segundo critérios de

macro-justiça.

1 EFICÁCIA DA NORMA VEICULADORA DO DIREITO À SAÚDE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

A Constituição contém duas espécies de normas jurídicas: as regras e os princípios1.

As regras possuem um grau de abstração reduzido e aptidão para aplicação direta,

porque contêm comandos imperativos, proibindo, permitindo ou impondo determinados

comportamentos, concretizando-se mediante subsunção, sob a lógica do tudo ou nada, uma

vez que o legislador define a hipótese de incidência e a conseqüência jurídica respectiva, de

modo que, sempre que a previsão normativa da regra realizar-se no mundo dos fatos incidirá a

conseqüência jurídica por ela estipulada para reger a situação concreta. Havendo conflito

aparente entre regras jurídicas, este há de ser solucionado pelos critérios cronológico, da

especialidade e da hierarquia2.

Diversamente, os princípios são dotados de elevado grau de abstração, com conteúdo

vago e indeterminado, encerrando verdadeiros “standards” fundados na noção de Justiça e na

1 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998, p. 1033 et seq. 2 Ibidem, p. 1033 et seq.

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idéia de Direito. Por isso, têm papel fundamental no sistema normativo, ocupando posição

hierárquica privilegiada no sistema de fontes, e, em certas hipóteses, desempenhando função

estrutural do ordenamento jurídico3.

Daí a conclusão de que os princípios são normas jurídicas impositivas de uma

otimização, concretizável em variados graus, segundo condicionamentos fáticos e jurídicos4.

Sob diverso enfoque, e com apoio no ensinamento de JORGE MIRANDA, as normas

constitucionais, segundo o critério da eficácia, podem ser: (1) preceptivas, possuindo eficácia

incondicionada ou não dependente de condições institucionais ou de fato; e (2) programáticas

que são aquelas que se voltam à transformação “[...] não só da ordem jurídica, mas também

das estruturas sociais ou da realidade constitucional (daí o nome), implicam a verificação pelo

legislador, no exercício de um verdadeiro poder discricionário, da possibilidade de as

concretizar”. 5

Ainda JORGE MIRANDA demonstra que as normas programáticas possuem conteúdo

essencial valorativo vertido através de conceitos jurídicos indeterminados, imprimindo

elasticidade ao sistema constitucional, e têm por destinatário principal o legislador, ao qual

atribuem competência discricionária para definir qual a oportunidade e os meios adequados

para lhes dar exeqüibilidade, e finalmente, as normas programáticas: [...] não consentem que os cidadãos ou quaisquer cidadãos as invoquem já (ou imediatamente após a entrada em vigor da Constituição), pedindo aos Tribunais o seu cumprimento só por si, pelo que pode haver quem afirme que os direitos que delas constam, máxime os direitos sociais, têm mais natureza de expectativas que de verdadeiros direitos subjectivos. 6 (grifo nosso)

Nada obstante, em que pese o deficiente grau de eficácia das normas programáticas,

elas possuem inegável juridicidade na medida em que funcionam como critérios de

interpretação dos demais dispositivos da Lei Maior, podendo, inclusive, contribuir para

integração de lacunas. Ademais, as normas programáticas impedem a edição de normas legais

que contrariem seus preceitos, além de fixarem parâmetros ou diretrizes ao legislador

infraconstitucional na matéria que disciplinam e, tendo seus comandos concretizados através

de leis e regulamentos, estes não podem ser simplesmente revogados sem a edição de

3 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998, p. 1033 et seq. 4 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 90. 5 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Coimbra: Coimbra Ed., 1996, t. 2, p. 242. 6 Ibidem, p. 244.

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regulamentação substitutiva razoável, pois, é inadmissível tolher a exeqüibilidade já adquirida

por uma norma constitucional programática (vedação do retrocesso)7.

Como se denota, as normas programáticas têm sua efetividade dependente de fatores

socioeconômicos competindo aos Poderes Legislativo e Executivo avaliarem a presença dos

pressupostos fáticos necessários à sua concretização, que se dá de forma gradual, segundo a

evolução da própria comunidade conformada pelo ordenamento jurídico constitucional

vigente em certo Estado e em determinado momento histórico. Logo, as normas

programáticas não conferem aos indivíduos a prerrogativa de exigirem prestações positivas

em face do Estado que só estará obrigado a abster-se de condutas contrárias aos objetivos

definidos pelo legislador constituinte8.

Por outras palavras, a efetividade das normas programáticas é condicionada pela

reserva do possível, em sua dupla dimensão: (1) fática (existência material de recursos) –

considerando que as necessidades públicas são infinitas e que os recursos orçamentários são

limitados, há que se reconhecer que o Estado não tem condições financeiras de conferir

gratuitamente a todos os indivíduos condições ótimas de existência material (moradia, lazer,

saúde, educação, etc.); e (2) jurídica (poder de dispor dos recursos) - os recursos públicos

só podem ser movimentados e aplicados em necessidades previamente definidas nas leis

orçamentárias, não bastando, assim, a existência material das verbas, mas, também, que estas

estejam destinadas a atender a necessidade eleita.

No ordenamento jurídico pátrio, o direito à saúde é direito social que, sob o aspecto

funcional, é classificado por alguns doutrinadores como modalidade de direito à prestações

estatais positivas, vinculado à realização progressiva dos fins e tarefas do Estado Social de

Direito que, para eliminar gradualmente as desigualdades sociais, deve valer-se das políticas

públicas dirigidas à implementação da igualdade material9. Segundo ROBERT ALEXY o

direito à assistência à saúde é espécie de direito a prestação em sentido estrito, i.e., direito

“[...] a algo que o indivíduo, se dispusesse de meios financeiros suficientes e se houvesse uma

oferta suficiente no mercado, poderia também obter de particulares.”10

Dada a sua característica de direito social à prestação positiva ou em sentido estrito, a

concretização direito à saúde pressupõe a existência de recursos públicos destinados

normativamente à implementar políticas sociais e econômicas tendentes à efetivar ações e 7 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Coimbra: Coimbra Ed., 1996, t. 2, p. 250/1. 8 BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 256. 9 SARLET, Ingo Wolfang A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 8ª Edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 228/30. 10 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 499.

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serviços de saúde, o que leva à conclusão de que a norma do artigo 196 da Constituição

Federal tem natureza de norma-princípio programática.

A indeterminação do termo “saúde” empregado no enunciado normativo do artigo 196

da Lei Maior indica tratar-se de norma semanticamente aberta que impõe ao intérprete um

trabalho de integração normativa para definir em que medida um indivíduo poderá exigir do

Estado a entrega de um bem ou utilidade para preservação de sua sadia qualidade de vida. A

norma em destaque caracteriza-se, também, por sua abertura estrutural, pois, os objetivos

definidos pelo comando normativo (redução do risco de doença e outros agravos e a

promoção, proteção e recuperação da saúde) devem ser atingidos através de políticas sociais e

econômicas, cujos contornos não são previamente definidos pelo legislador constituinte11.

Tais características da norma veiculada pelo artigo 196 da Lei Maior impedem a sua

aplicação direta pelo Poder Judiciário que claramente estará invadindo o campo de atuação

institucional do Poder Executivo se, sob o argumento de sanar uma suposta omissão

inconstitucional do Estado, determinar que este entregue bens e prestações positivas aos

postulantes da tutela jurisdicional, como medicamentos, tratamentos e insumos, nas hipóteses

em que não exista política de saúde pública que contemple o direito afirmado.

Deveras, conforme observa MARCOS MASSELI GOUVÊA: O art. 196 é um daqueles dispositivos da Constituição que, tradicionalmente, seriam considerados meramente programáticos, a despeito de qualificar a saúde como “direito de todos e dever do Estado”. Isto porque o termo saúde, à vista de seu caráter genérico, dificulta a definição de um campo preciso de sindicação. Em tese, seria possível aventar uma infinidade de medidas que contribuiriam para a melhoria das condições de saúde da população, decorrendo daí a necessidade de se precisar que meios de valorização da saúde poderiam ser postulados judicialmente. Um grupo de cidadãos poderia advogar que a ação do Estado, na área de saúde, fosse máxima, fornecendo tudo o quanto, ainda remotamente, pudesse satisfazer tal interesse; outros poderiam enfatizar o cuidado com as práticas preventivas, concordando com o fornecimento, pelo Estado, de vacinas de última geração, de eficácia ainda não comprovada; um terceiro grupo poderia pretender que o Estado desse impulso a uma política de saúde calcada na medicina alternativa, ou ao subsídio aos planos privados de saúde. Existem, enfim, um leque infinito de estratégias possíveis, o que aparentemente tornaria inviável sindicar-se prestações positivas, nesta seara, sem que o constituinte ou o legislador elegessem uma delas. 12

No mesmo sentido é o magistério de INGO WOLFANG SARLET: A necessidade de interposição legislativa dos direitos sociais prestacionais de cunho programático justifica-se apenas (se é que tal argumento pode assumir feição absoluta) pela circunstância – já referida – de que se cuida de um problema de natureza competencial, porquanto a realização destes direitos depende da disponiblidade dos meios, bem como – em muitos casos – da progressiva implementação e execução de políticas públicas na esfera socioeconômica.

11 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 70/1. 12 GOUVÊA, Marcos Maselli. O Direito ao Fornecimento Estatal de Medicamentos. In: GARCIA, Emerson (coord.). A Efetividade dos Direitos Sociais. Rio de Janeiro: Lúmen Iuris, 2004, p. 206.

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[...] Os direitos sociais prestacionais carecem de uma interpositio legislatoris pelo fato de ser extremamente difícil e, em certas situações, inviável, precisar, em nível constitucional, o conteúdo e alcance da prestação que constitui seu objeto. 13

Em suma: o enunciado do artigo 196 da Constituição Federal contém um comando

princípio programático não imediatamente aplicável pelo Poder Judiciário, carecendo para

tanto, de interposição legislativa e/ou administrativa (prática de atos materiais no sentido de

criar e aparelhar determinado serviço público para viabilizar a concretização do comando

constitucional programático), afinal “as normas-tarefa e normas-fim pressupõem, em larga

medida, a clarificação conformadora efectuada pelas autoridades com poderes político-

normativos”14.

2 A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL SOBRE A TUTELA DO DIREITO À SAÚDE

Nada obstante as considerações afirmadas no item precedente, é certo que há mais de

dez anos o Supremo Tribunal Federal fixou entendimento de que nossa Constituição abriga o

direito público subjetivo à saúde, como conseqüência imediatamente dedutível do direito à

vida, inviolável e indisponível, e consagrado no artigo 5º, “caput”, da Lei Maior, sendo, por

conseguinte, dever do Estado zelar pela sua implementação.

Ilustrativamente, em julgamento de 29 de junho de 1999, a 1ª Turma do Supremo

Tribunal Federal, confirmou acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, pelo qual o

Estado fora condenado a fornecer gratuitamente à pessoa carente, os medicamentos

necessários ao tratamento da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida. Considerou-se que,

por força da Lei Estadual n. 9.908/93, o Estado do Rio Grande do Sul vinculara-se a programa

de distribuição gratuita de medicamentos, não podendo, portanto, furtar-se à obrigação de

fornecer os remédios à população, ante o comando emergente do artigo 196 da Constituição

Federal 15.

Na ocasião, os argumentos clássicos no sentido de obstar o deferimento da tutela

individual ao fornecimento gratuito de medicamentos pelo Estado, a saber, o princípio da

reserva do possível, sob os aspectos econômicos (recursos limitados X necessidades públicas

infinitas) e jurídicos (limitações orçamentárias – compete ao Poder Executivo e ao Poder

13 SARLET, Ingo Wolfang A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 8ª Edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 310 e 327. 14 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998, p. 1054. 15 RE 242.859/RS , DJ 17/09/99.

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Legislativo estabelecer a aplicação da receita pública), não foram acolhidos como idôneos a

afastar o dever do estatal de concretizar o direito à saúde.

Esse entendimento, por seu turno, também foi acatado pela 2ª Turma do Supremo

Tribunal Federal, que, em julgamento realizado em 12 de setembro de 2000, afirmou que o

Estado (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) não pode furtar-se ao dever de zelar

pela vida humana, para cuja preservação a saúde é condição essencial, sob pena de incorrer

em grave omissão inconstitucional. Os Ministros admitiram que a norma do artigo 196 da

Constituição Federal é programática, mas obtemperaram que entre proteger um interesse

financeiro do Estado (reserva do possível), e tutelar o direito à vida e à saúde, há que se

privilegiar este último, por razões de ordem ético-jurídica16.

No mesmo sentido, os seguintes julgados da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal:

AI-AgR 616551/GO – DJU 30/11/07; AI-AgR 648971/RS – DJU 28/09/07; AI-AgR

604949/RS – DJU 24/11/06; RE-AgR 255627/RS – DJU 23/02/00.; RE-AgR 393175/RS -

DJU 12/12/06.

Sintetizando os argumentos que fundamentam os julgados de nossa Corte

Constitucional, acerca da atuação do Poder Judiciário na tutela de pretensões individuais ao

direito à prestações de saúde, pode-se destacar o seguinte: (1) o direito à saúde é conseqüência

indissociável do direito à vida (CF, art. 5º, “caput”), qualificando-se como direito

fundamental, sendo relevante expressão das liberdades reais e concretas; (2) deve-se

reconhecer efetividade aos preceitos fundamentais da Constituição Federal, não bastando a

proclamação do reconhecimento formal do direito à saúde, sendo mister respeitá-lo e garanti-

lo; (3) a norma do artigo 196 da Constituição Federal tem natureza programática, mas não

pode ser convertida em promessa constitucional vazia, sob pena do Estado descumprir a

vontade soberana do legislador constituinte originário; (4) a função primordial do Estado é

proporcionar às pessoas o mínimo existencial apto à assegurar a preservação da dignidade

humana; (5) no conflito entre a inviolabilidade do direito à vida e à saúde e o interesse

financeiro do Estado, deve prevalecer o direito à vida e à saúde.

Infere-se, assim, que o Supremo Tribunal Federal tem se mostrado sensível ao

acolhimento das pretensões individuais no sentido de obrigar o Estado, em sua acepção

genérica (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), ao fornecimento gratuito de

prestações de saúde, sem delimitar parâmetros seguros para definir claramente o conteúdo do

direito subjetivo à saúde que entende estar assegurado pela Lei Maior.

16 RE-AgR 271286/RS , DJU 24/11/00.

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A orientação jurisprudencial parece fincar-se na concepção de que: “[...] ao Estado não apenas é vedada a possibilidade de tirar a vida (daí, por exemplo, a proibição das pena de morte), mas também que a ele se impõe o dever de proteger ativamente a vida humana, já que esta constitui a própria razão de ser do Estado, além de pressuposto para o exercício de qualquer direito (fundamental ou não).17”

Por outro lado, as decisões de nossa Corte Constitucional superam o óbice da falta de

legitimidade democrática do Poder Judiciário para instituir políticas públicas com o

argumento de ser inquestionável a vontade do legislador constituinte federal em preservar a

vida da pessoa humana, pois, “[...] na esfera das condições existenciais mínimas encontramos

um claro limite à liberdade de conformação do legislador”18.

E, com base na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem sido crescente a

multiplicação de demandas individuais em que se postula o fornecimento estatal gratuito de

medicamentos, tratamentos e insumos, gerando um significativo comprometimento do

orçamento público alocado para a assistência médica e farmacêutica que é desviado para o

cumprimento dos mandados judiciais, prejudicando o direito dos usuários regulares do

Sistema Único de Saúde – SUS.

Em sintonia com tal circunstância, e diante da necessidade de traçar limites à atuação

do Poder Judiciário, a Ministra Ellen Gracie, quando no exercício da função de Presidente do

Supremo Tribunal Federal, em decisões proferidas em pedidos de Suspensão de Tutela

Antecipada, Suspensão de Liminares e Suspensão de Seguranças, sinalizou no sentido de que

o direito ao fornecimento gratuito de prestações de saúde pelo Poder Público deve ser

reconhecido de acordo com os princípios da proporcionalidade e razoabilidade, o que impõe

que os pleitos judiciais sejam analisados de forma casuística e não abstratamente.

Os principias parâmetros identificados no sentido da manutenção da decisão de

fornecer medicamentos, tratamentos e insumos aos demandantes, explicitados nas ditas

decisões da Ministra Ellen Gracie foram os seguintes: (1) a hipossuficiência econômica do

beneficiário da tutela jurisdicional questionada19; (2) a gravidade da doença (risco de morte

e/ou seqüelas graves)20 ; (3) o registro do medicamento na ANVISA ou a existência de outro

17 SARLET, Ingo Wolfang A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 8ª Edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 373. 18 Ibidem, p. 373. 19 STA 162/RN, DJU: 25/10/07; STA 138/RN, DJU: 19/09/07; SS 3205/AM, DJU: 08/06/07; SS 3158/RN, DJU: 08/06/07; SS 3183/SC, DJU: 13/06/07; SS 3231/RB, DJU: 01/06/07; SS 3382/RN, DJU 29/11/07, SS 3345/RN, DJU: 19/09/07; SL 166/RJ, DJU: 21/06/07; SS 3196/RN, DJU: 15/06/07; SS 3403/PR, DJU: 04/12/07. 20 SL 188/SC, DJU: 01/02/08; STA 162/RN, DJU: 25/10/07; STA 138/RN, DJU: 19/09/07; SS 3205/AM, DJU: 08/06/07; SS 3158/RN, DJU: 08/06/07; SS 3183/SC, DJU: 13/06/07; SS 3231/RB, DJU: 01/06/07; SS 3382/RN,

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meio técnico confiável de comprovação da eficácia terapêutica21 ; (4) a comprovação por

laudo médico de que a doença não responde a outros tratamentos ofertados pelo SUS22.

No sentido da inadmissibilidade da manutenção do fornecimento dos medicamentos,

tratamentos e insumos podem ser referidos os seguintes argumentos extraídos das decisões da

Ministra Ellen Gracie: (1) a existência de alternativas de tratamento mais baratas e eficientes,

ainda que não ofereçam o mesmo conforto, pois, v.g., a forma de aplicação é mais dolorosa23;

(2) o fato da eficácia do medicamento não ser comprovada, seja por falta do registro na

ANVISA, seja por comprovação por laudo científico de instituição abalizada apresentado pelo

Estado24; (3) o fato da doença não representar risco à vida e à saúde do paciente, como é o

caso da infertilidade feminina25.

As destacadas decisões demonstram que é imprescindível aplicar os princípios da

razoabilidade e proporcionalidade na apreciação de pretensões individuais de concretizar

judicialmente um afirmado direito fundamental à saúde.

Nesse cenário, ainda, merece especial referência o fato da Ministra Ellen Gracie haver

prestigiado o princípio da reserva do possível fática ao deferir pedido de Suspensão da Tutela

Antecipada formulado pelo Estado de Alagoas em face de decisão do Presidente do Tribunal

de Justiça que, no âmbito de ação coletiva, determinara, genericamente, que o Estado

fornecesse todo e qualquer medicamento necessário ao tratamento dos transplantados renais e

pacientes renais crônicos. Eis alguns trechos da decisão da Ministra: [...] a liminar impugnada é genérica ao determinar que o Estado forneça todo e qualquer medicamento necessário ao tratamento dos transplantados renais e pacientes renais crônicos. [...] o fornecimento de medicamentos, além daqueles relacionados na Portaria n° 1.318 do Ministério da Saúde e sem o necessário cadastramento dos pacientes, inviabiliza a programação do Poder Público [...] a gestão da política nacional de saúde, que é feita de forma regionalizada, busca uma maior racionalização entre o custo e o benefício dos tratamentos que devem ser fornecidos gratuitamente, a fim de atingir o maior número possível de beneficiários. Entendo que a norma do art. 196 da Constituição da República, que assegura o direito à saúde, refere-se, em princípio, à efetivação de políticas públicas que alcancem a população como um todo, assegurando-lhe acesso

DJU 29/11/07, SS 3345/RN, DJU: 19/09/07; SL 166/RJ, DJU: 21/06/07; SS 3196/RN, DJU: 15/06/07; SS 3403/PR, DJU: 04/12/07. 21 STA 162/RN, DJU: 25/10/07; STA 138/RN, DJU: 19/09/07; SS 3158/RN, DJU: 08/06/07; SS 3183/SC, DJU: 13/06/07; SS 3231/RB, DJU: 01/06/07; SS 3382/RN, DJU 29/11/07, SS 3345/RN, DJU: 19/09/07; SL 166/RJ, DJU: 21/06/07; SS 3403/PR, DJU: 04/12/07. 22 STA 138/RN, DJU: 19/09/07; SS 3205/AM, DJU: 08/06/07; SS 3345/RN, DJU: 19/09/07; SS 3196/RN, DJU: 15/06/07. 23 STA 139/RN, DJU: 10/09/07; SS 3145/RN, DJU: 18/04/07. 24 SS 3073/RN, DJU: 14/02/07; SS 3403/PR, DJU: 04/12/07. 25 SS 3322/GO, DJU: 26/09/07; SS 3350/GO, DJU: 23/08/07; SS 3274/GO, DJU: 22/08/07; SS 3263/GO, DJU: 02/08/07; SS 3201/GO, DJU: 27/06/07.

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universal e igualitário, e não a situações individualizadas. A responsabilidade do Estado em fornecer os recursos necessários à reabilitação da saúde de seus cidadãos não pode vir a inviabilizar o sistema público de saúde. No presente caso, ao se conceder os efeitos da antecipação da tutela para determinar que o Estado forneça os medicamentos relacionados "[...] e outros medicamentos necessários para o tratamento [...]" (fl. 26) dos associados, está-se diminuindo a possibilidade de serem oferecidos serviços de saúde básicos ao restante da coletividade. Ademais, a tutela concedida atinge, por sua amplitude, esferas de competência distintas, sem observar a repartição de atribuições decorrentes da descentralização do Sistema Único de Saúde, nos termos do art. 198 da Constituição Federal. Finalmente, verifico que o Estado de Alagoas não está se recusando a fornecer tratamento aos associados (fl. 59). [...] defiro parcialmente o pedido para suspender a execução da antecipação de tutela, tão somente para limitar a responsabilidade da Secretaria Executiva de Saúde do Estado de Alagoas ao fornecimento dos medicamentos contemplados na Portaria n.° 1.318 do Ministério da Saúde [...]. 26 (grifo nosso)

Como se denota, o Poder Judiciário é permeável à argumentação de não ser admissível

colocar em risco o atendimento regular de pacientes cadastrados no Sistema Único de Saúde

(direito à vida e à saúde de uns), para tutelar a pretensão dos postulantes de tutelas

jurisdicionais episódicas (direito à vida e à saúde de outros).

Mais recentemente, o Ministro Gilmar Mendes, em uma série de decisões

monocráticas em que apreciou pedidos de Suspensão de Tutela Antecipada e de liminares

proferidas em Mandados de Segurança27, reconheceu ser necessário compatibilizar os

critérios de justiça comutativa que orientam a decisão judicial, com os parâmetros de justiça

distributiva e social que norteiam a elaboração de políticas pública na área da saúde, de modo

que, segundo o entendimento do Ministro, ao deferir uma tutela jurisdicional assegurando ao

postulante acesso a uma política pública de saúde não contemplada em um programa de

governo, o Poder Judiciário deve verificar se o Sistema Único de Saúde tem condições

financeiras de suportar as despesas do postulante individual e também de todos os usuários do

sistema que ocupem situação idêntica.

Tal entendimento está em consonância com a doutrina de GUSTAVO AMARAL nos

termos da qual se o Estado apresentar justificativas plausíveis que amparem sua conduta

omissiva em disponibilizar a prestação de saúde pleiteada em juízo, fundamentando

razoavelmente suas escolhas alocativas, não poderá o Poder Judiciário, em princípio, instá-lo

a fornecer ao demandante a prestação de saúde postulada, afinal: As prestações positivas são exigíveis pelo cidadão, havendo dever do Estado ou de entregar a prestação, através de um dar ou fazer, ou de justificar porque não o faz. Esta justificativa será apenas a existência de circunstâncias concretas que impedem

26 STA 91/AL, DJU 05/03/07. 27SS 3741/CE, DJU: 03/06/2009; SS 3751/SP, DJU: 28/04/2009; SS 3690/CE, DJU: 28/04/2009; STA 198/MG, DJU: 03/02/2009; STA 277/AL, DJU: 09/12/2008; STA 245/RS, DJU: 29/10/2008.

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o atendimento de todos que demandam prestações essenciais e, assim, tornam inexoráveis escolhas trágicas, conscientes ou não. Estando presentes circunstâncias desse tipo, haverá espaço de escolha, no qual o Estado estabelecerá critérios de alocação dos recursos e, consequentemente, de atendimento às demandas, o que tornará legítima a não entrega da prestação demandada para aqueles que não estão enquadrados nos critérios. 28

Estes são os novos parâmetros traçados pela jurisprudência do Supremo Tribunal

Federal acerca da tutela do direito à saúde através de demandas individuais que podem ser

explorados pelo Poder Público para tolher a eficácia de decisões judiciais que sejam

destituídas de razoabilidade, máxime considerando que nossa Corte Constitucional,

reconhecendo que a questão debatida deve ser tratada de maneira casuística, houve por bem,

no julgamento do RE 566471 RG/RN, ocorrido em 15 de novembro de 2007, decidir que:

“Possui repercussão geral controvérsia sobre a obrigatoriedade de o Poder Público fornecer

medicamento de alto custo”.

3 PROPOSIÇÃO DE CRITÉRIOS LEGITIMADORES DA TUTELA JURISDICIONAL DO DIREITO SUBJETIVO À SAÚDE

Em 05 de março de 2009 foi convocada Audiência Pública no âmbito do Supremo

Tribunal Federal para esclarecer questões técnicas, científicas, administrativas, políticas e

econômicas que permeiam o fenômeno da denominada “judicialização da saúde”, com

objetivo de subsidiar futuras decisões de nossa Corte Constitucional sobre o tema,

especialmente diante da existência de proposta de Súmula Vinculante n. 04, apresentada pela

Defensoria Pública Geral da União para tornar expressa “a responsabilidade solidária dos

entes da federação no que concerne ao fornecimento de medicamentos e tratamentos” e “a

possibilidade de bloqueio de valores públicos para o fornecimento de medicamentos e

tratamentos, restando afastada, por outro lado, a alegação de que tal bloqueio fere o artigo

100, caput e parágrafo 2º, da Constituição de 1988” 29.

A partir da leitura dos vários pronunciamentos e das contribuições de gestores,

Procuradores do Estado, Defensores Públicos, Promotores, Juízes, médicos, pacientes e

autoridades sanitárias, apresentados na Audiência Pública em destaque, que teve lugar entre

27 de abril e 07 de maio de 2009, foram identificadas as questões tormentosas e as possíveis

28 AMARAL, Gustavo. Direito, escassez e escolha: em busca de critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 214/5. 29 Pronunciamento proferido pelo Ministro Gilmar Ferreira Mendes em 27 de abril de 2009, na Abertura da Audiência Pública n. 04, Brasília/DF. PAINEL: O ACESSO ÀS PRESTAÇÕES DE SAÚDE NO BRASIL – DESAFIOS AO PODER JUDICIÁRIO. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaSaude/anexo/Abertura_da_Audiencia_Publica__MGM.pdf. Acesso em 04/07/2009.

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soluções para orientar a mais racional, eficiente e razoável atuação do Poder Judiciário na

tarefa anômala por ele encampada de reconhecer e concretizar o direito à saúde em sua

dimensão subjetiva.

O fenômeno da judicialização da saúde é justificado pelo argumento de que o Poder

Público seria omisso em adotar providências necessárias e indispensáveis à preservação da

vida e da saúde dos indivíduos, inviabilizando o efetivo exercício de liberdades jurídicas

asseguradas pela Constituição Federal. Assim, diante do postulado da proteção insuficiente do

direito à saúde30 e da necessidade de preservação do mínimo existencial, a jurisprudência

pátria considera cabível a intervenção do Poder Judiciário para definir, em ações individuais,

o direito subjetivo do demandante a receber gratuitamente medicamentos, tratamentos e

insumos do Estado (União, Estados, Distrito Federal e Municípios)31.

Essa premissa que orienta a jurisprudência tem contribuído para banalizar o desfecho

dos pedidos deduzidos nas ações individuais que em grande parte dos casos são acolhidos em

cognição sumária (tutelas antecipadas, liminares e cautelares), confirmada em sentenças

definitivas que, em regra, se limitam a afirmar abstratamente o direito fundamental subjetivo à

saúde do postulante e o contraposto dever constitucional do Estado de preservar a vida e a

saúde das pessoas32, passando ao largo da análise do caso concreto que imporia a justificação

do deferimento da tutela jurisdicional com base no princípio da razoabilidade.

Existe até mesmo a prática de formular ao Poder Judiciário pedido genérico no sentido

de que o Estado forneça ao autor da demanda individual todos os medicamentos de que venha

a necessitar, segundo prescrições médicas futuras, em que pese a própria lei processual civil

impor que o pedido deduzido em juízo seja certo e determinado e, surpreendentemente, há

julgados que acolhem semelhantes pretensões33.

Ademais, as prescrições médicas que amparam os pedidos deduzidos em juízo são,

geralmente, formuladas por profissional de saúde não credenciado junto ao Sistema Único de

Saúde e, sendo a prescrição o único elemento de convencimento a ser considerado pelo Juiz

para afirmar o direito fundamental à saúde do demandante, não é incomum que o Poder

Judiciário legitime a entrega de medicamentos, tratamentos e insumos de questionável

30 MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 333. 31 SS 3741/CE, DJU: 03/06/2009; SS 3751/SP, DJU: 28/04/2009; SS 3690/CE, DJU: 28/04/2009; STA 198/MG, DJU: 03/02/2009; STA 277/AL, DJU: 09/12/2008; STA 245/RS, DJU: 29/10/2008. 32 MARQUES, Silvia Badin, DALLARI, Sueli Gandolfi. Garantia do Direito Social à assistência farmacêutica no Estado de São Paulo. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaSaude/anexo/Garantia_do_direito_social_a_assistencia_farmaceutica_no_Estado_de_Sao_Paulo.pdf. Acesso em 05/07/2009. 33 Ibidem.

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eficácia terapêutica e deletérios efeitos colaterais, criando terreno fértil para a ocorrência de

fraudes e desperdício de recursos públicos, como foi constatado no Estado de São Paulo no

âmbito da operação “Garra Rufa”.34

Obtempera-se, ainda, que a “judicialização da saúde” tem provocado distorções no

funcionamento do Sistema Único de Saúde, uma vez que a dispensação de medicamentos,

tratamentos e insumos na esfera jurisdicional torna mais oneroso ao Poder Público o custeio

das prestações disponibilizadas aos pacientes, impõe o remanejamento de receitas

orçamentárias para cumprir preferencialmente as ordens judiciais e coloca em risco o regular

funcionamento de programas oficiais de assistência médica e farmacêutica35.

Nesse cenário, e diante do inquestionável papel encampado pelo Poder Judiciário

brasileiro no sentido de extrair diretamente da Constituição Federal o direito subjetivo à saúde

dentro da perspectiva da micro-justiça, é preciso adotar mecanismos para minimizar o

impacto da judicialização sobre a política de saúde pública implementada pelo Poder

Executivo sob a ótica da macro-justiça, assegurando que o fenômeno não comprometa o

regular funcionamento do Sistema Único de Saúde e não prejudique usuários do sistema que

por hipossuficiência econômica ou social não se socorrem do Poder Judiciário.

Para tanto, é necessário que os entes federados assumam o compromisso de executar

as políticas públicas contempladas nos protocolos clínicos e nas diretrizes terapêuticas do

Ministério da Saúde, evitando a propositura de ações que versem sobre a falta de execução de

uma política pública já prevista. Igualmente, é possível adotar mecanismos de conciliação

prévia, através dos quais técnicos das Secretarias de Saúde avaliem a condição médica do

potencial postulante da tutela jurisdicional e, no âmbito de um procedimento administrativo,

pronunciem-se pelo deferimento do pedido de entrega da prestação de saúde pretendida, ainda

que não padronizada, dispensando o recurso à via jurisdicional.

A proposta conciliatória vem sendo implementada com êxito na cidade de São Paulo,

através de parceria entre a Defensoria Pública do Estado de São Paulo e a Secretaria Estadual

da Saúde, e resultou em drástica queda do número de ações ajuizadas36.

34 Pronunciamento proferido por Alexandre Sampaio Zakir, representante da Secretaria de Segurança Pública e do Governo de São Paulo, na Audiência Pública n. 04, em 29 de abril de 2009, Brasília/DF. Painel: GESTÃO DO SUS – LEGISLAÇÃO DO SUS E UNIVERSALIDADE DO SISTEMA. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoaudienciapublicasaude/anexo/sr_alexandre_sampaio_zakir.pdf. Acesso em 07/07/2009. 35 Pronunciamento proferido pela Dra. Janaína Barbier Gonçalves, Procuradora do Estado do Rio Grande do Sul, na Audiência Pública n. 04, em 04 de maio de 2009, Brasília/DF. Painel: REGISTRO NA ANVISA E PROTOCOLOS E DIRETRIZES TERAPÊUTICAS DO SUS. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaSaude/anexo/PGERS.pdf. Acesso em 07/07/2009. 36 Pronunciamento proferido pelo Dr. Vitore Maximiano, Defensor Público do Estado de São Paulo, na Audiência Pública n. 04, em 29 de abril de 2009, Brasília/DF. Painel: GESTÃO DO SUS – LEGISLAÇÃO DO

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A solução conciliatória parece ser também prestigiada pelo Ministério da Saúde que se

compromete a atualizar protocolos clínicos e as diretrizes terapêuticas, acelerar e tornar mais

transparente a atuação da Comissão Técnica de Incorporação de Tecnologias (CITEC),

organizar e aperfeiçoar a pesquisa em redes de centros de referência, estabelecendo resultados

nacionais e, incrementar a criação de Centros de Referência em parceria com Estados e

Municípios, para dar assistência aos pacientes que recebem medicamentos de alto custo. No

que concerne ao equacionamento dos problemas de gestão oriundos das ações judiciais, o

Ministério da Saúde propõe “oferecer ao Judiciário – como há em alguns Estados –

assessoria técnica em centro de referência, por profissionais ad hoc, sem conflito de

interesses e sem relação com a assistência e prescrição aos pacientes”37.

A adoção de tais medidas reduziria, inequivocamente, o número de ações judiciais

tornando viável ao Poder Judiciário a análise dos pleitos remanescentes com critérios

rigorosos, com vistas a prevenir fraudes, desperdício de recursos públicos e a desarticulação

do Sistema Único de Saúde - SUS.

O problema que se evidencia, neste ponto, é definir quais são os critérios que devem

ser empregados pelo Poder Judiciário para delimitar o núcleo essencial do direito à saúde

caracterizável como direito subjetivo que poderia ser legitimamente extraído da Constituição

Federal a partir da análise da controvérsia posta, afinal: Como visto, constitucionalismo traduz-se em respeito aos direitos fundamentais. E democracia, em soberania popular e governo da maioria. Mas pode acontecer de a maioria política vulnerar direitos fundamentais. Quando isto ocorre, cabe ao Judiciário agir. É nesse ambiente, é nessa dualidade presente no Estado constitucional democrático que se coloca a questão essencial: podem juízes e tribunais interferir com as deliberações dos órgãos que representam as maiorias políticas – isto é, o Legislativo e o Executivo -, impondo ou invalidando ações administrativas e políticas públicas? A resposta será afirmativa sempre que o Judiciário estiver atuando, inequivocamente, para preservar um direito fundamental previsto na Constituição ou para dar cumprimento a alguma lei existente. Vale dizer: para que seja legítima, a atuação judicial não pode expressar um ato de vontade própria do órgão julgador, precisando sempre reconduzir-se a uma prévia deliberação majoritária, seja do constituinte, seja do legislador. 38

O primeiro aspecto que deve ser revisado pelo Poder Judiciário relaciona-se à

concessão indiscriminada de medidas liminares, tutelas antecipadas e cautelares, considerando

SUS E UNIVERSALIDADE DO SISTEMA. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaSaude/anexo/Sr_Vitore_Maximiano.pdf. Acesso em 05/07/2009. 37 Pronunciamento proferido pelo Ministro José Gomes Temporão na Audiência Pública n. 04, em 07 de maio de 2009, Brasília/DF. Painel: ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA DO SUS. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaSaude/anexo/Temporao.pdf. Acesso em 09/07/2009 38 BARROSO, Luiz Roberto. Da Falta de Efetividade à Judicialização Excessiva: Direito à Saúde, Fornecimento Gratuito de Medicamentos e Parâmetros para a Atuação Judicial. Disponível em: www.lrbarroso.com.br/pt/noticias/medicamentos.pdf. Acesso em 26/04/08.

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que Juiz não pode furtar-se da verificação, em cada caso concreto, da real existência de

fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação à vida ou à saúde do postulante da

tutela, ou seja, o requisito da urgência deve estar ampla e concretamente demonstrado para

justificar a determinação judicial de que o Estado forneça liminarmente o medicamento,

tratamento ou insumo exigido pelo demandante.

Por outro lado, considerando que muitas ações são ajuizadas para a entrega de

prestações de saúde já contempladas em uma política pública existente e regularmente

executada, sendo patente a falta de interesse de agir do postulante, seria razoável exigir que

este comprovasse que seu pleito de entrega do medicamento, insumo ou tratamento foi

previamente indeferido pelo Poder Público39.

Superada essa etapa, deve-se impor ao postulante da tutela jurisdicional que comprove

sua hipossuficiência financeira para suportar o custo do tratamento pleiteado, pois, o

reconhecimento judicial do direito subjetivo à saúde não se sustenta, propriamente, na norma

do artigo 196 da Constituição Federal que, como salientado no primeiro capítulo, é norma

programática que só pode ser concretizada através da atuação institucional do Poder Público.

Na verdade, o direito subjetivo à saúde reconhecido judicialmente é amparado no princípio da

dignidade da pessoa humana e na teoria do mínimo existencial que supõem a preservação da

vida e saúde como pressupostos do exercício efetivo das liberdades jurídicas asseguradas na

Lei Maior.

Logo, não é razoável invocar os postulados do acesso universal e igualitário (CF, art.

196) para legitimar o reconhecimento do direito subjetivo à saúde de demandantes que tenham

condições financeiras para custear o tratamento médico pleiteado já que eles não enfrentam

qualquer risco de vulnerabilidade ao seu núcleo de direitos existenciais. Deveras, como alerta

INGO WOLFANG SARLET: [...] a prestação reclamada deve corresponder ao que o indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade, de tal sorte que, mesmo em dispondo o Estado dos recursos e tendo o poder de disposição, não se pode falar em uma obrigação de prestar algo que não se mantenha nos limites do razoável. Assim, poder-se-ia sustentar que não haveria como impor ao Estado a prestação de assistência social a alguém que efetivamente não faça jus ao benefício, por dispor, ele próprio, de recursos suficientes para o seu sustento. [...] o princípio da proporcionalidade também opera nesta esfera e que não se afigura como proporcional (e até mesmo razoável) que um particular que disponha de recursos suficientes para financiar um bom plano de saúde privado (sem o comprometimento de um padrão digno de vida para si e sua família, e sem prejuízo,

39 Pronunciamento proferido pelo Dr. Domingos Adib Jatene na Audiência Pública n. 04, em 29 de abril de 2009, Brasília/DF. Painel: GESTÃO DO SUS – LEGISLAÇÃO DO SUSE E UNIVERSALIDADE DO SISTEMA. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaSaude/anexo/Sr_Adib_Jatene.pdf. Acesso em 04/07/09.

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portanto, do acesso a outros bens fundamentais como educação, moradia, etc) possa acessar, sem qualquer tipo de limitação ou condição, o sistema público de saúde nas mesmas condições que alguém que não esteja apto a prover com recursos próprios a sua saúde pessoal. [...] Em termos de direitos sociais básicos a efetiva necessidade haverá de ser um parâmetro a ser levado a sério, juntamente com os princípios da solidariedade e da proporcionalidade. [...].40

Constatada a hipossuficiência financeira do autor para custear o tratamento postulado,

deve-se verificar, ainda, a eventual existência de alternativas terapêuticas disponibilizas aos

usuários do Sistema Único de Saúde para o tratamento da patologia do demandante, e,

existindo a alternativa, a pretensão não deve ser acatada, já que é razoável reconhecer ao

Poder Público a competência discricionária de eleger, dentre as alternativas de tratamento

viáveis, aquela mais conveniente e oportuna ao atendimento da necessidade pública

identificada sob o prisma do custo-efetividade41.

Ainda, o Poder Judiciário não deve instar o Poder Público a fornecer aos postulantes

de tutelas jurisdicionais medicamentos cuja eficácia terapêutica é questionável, seja por falta

de registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, seja por indicação “off

label”42, seja em face de novas evidências científicas corroboradas pela literatura médica

mais recente, afinal, a competência discricionária da administração pública abrange a

definição de critérios técnicos acerca da eficácia e segurança dos medicamentos que não são

sindicáveis na esfera jurisdicional.

Ademais, ao Estado será legítimo objetar que o tratamento pleiteado seja executado

através de opções terapêuticas menos onerosas e razoavelmente eficazes para preservação da

vida e saúde do postulante, não sendo admissível, também, exigir que o Poder Público

entregue ao demandante um medicamento de marca se existir o princípio ativo genérico

disponível no mercado farmacêutico.

40 SARLET, Ingo Wolfang A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 8ª Edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 304, 347 e 376. 41 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 462. 42 Muitas vezes o postulante da tutela jurisdicional busca receber medicamento com amparo na prescrição “off label”, mediante a qual o médico dispensa determinado medicamento já conhecido no mercado farmacêutico, mas para tratar patologia não contemplada na indicação terapêutica da bula do remédio. A prescrição, no caso, é baseada em conhecimentos adquiridos em congressos e na literatura científica. Em tal hipótese, a responsabilidade pela eficácia do tratamento e dos possíveis efeitos colaterais é integralmente atribuída ao médico que avia a receita, pois, a indicação proposta não tem amparo da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, que aprovou a droga para tratamento de patologia diferente daquela que acomete o paciente (VIVIANO, Lúcia. Uso “off label” De Medicamentos. Disponível em: http://www.cvs.saude.sp.gov.br/pdf/bfarmaco_2.pdf. Acesso em 15/04/2008.)

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Porém, se para o tratamento de certa doença houver somente uma opção terapêutica

amparada na medicina de evidências43 da qual dependa a preservação da vida ou da saúde do

demandante, o Poder Executivo estará em princípio vinculado adotá-la44, segundo a

jurisprudência consolidada de nossa Corte Constitucional. Nada obstante, esta última

afirmação só será verdadeira se o acolhimento da pretensão individual não colocar em risco

outras ações e serviços integrantes do Sistema Único de Saúde e for compatível com o

princípio da justiça distributiva. Explica-se:

O financiamento do Sistema Único de Saúde é realizado por todas as pessoas políticas

que são obrigadas a investir determinados percentuais mínimos de receitas públicas para

executar ações e serviços de saúde, de acordo com o que for definido em lei complementar

(CF, art. 198, parágrafo 2º). A elaboração da proposta orçamentária do Sistema Único de

Saúde é atribuição de todos os entes federados e deve corresponder às exigências de aportes

financeiros destinados a realizar o plano de saúde governamental para o exercício respectivo

(Lei n. 8080/90, art. 15). Por força do princípio da legalidade orçamentária, as despesas

realizadas pelos órgãos integrantes do Sistema Único de Saúde só podem ser financiadas com

recursos previstos no orçamento correspondente.

Eis o motivo pelo qual a Lei n. 8080/96 determina que os planos de saúde serão a base

das atividades e programações de cada nível de direção do Sistema Único de Saúde, e seu

financiamento será previsto na respectiva proposta orçamentária (art. 36, parágrafo 1º), sendo

vedada a transferência de recursos para o financiamento de ações não previstas nos planos de

saúde, exceto em situações emergenciais ou em caso de calamidade pública (art. 36, parágrafo

2º).

A premente necessidade de atender aos mandados judiciais que estipulam prazos

exíguos para o fornecimento de medicamentos, tratamentos e insumos consubstancia,

inequivocamente, situação emergencial na forma prevista pelo parágrafo 2º, do artigo 36, da

Lei n. 8080/96, a qual autoriza a transferência de recursos de uma ação e serviço de saúde

para outra, pois, do contrário, a pessoa política destinatária da ordem judicial poderá ser

penalizada, seja pela incidência de multa diária, seja com o bloqueio de verbas públicas45.

43 Pronunciamento proferido pelo Dr. Raul Cutait na Audiência Pública n. 04, em 06 de maio de 2009, Brasília/DF. Painel: POLITICAS PÚBLICA DE SAÚDE – INTEGRALIDADE DO SISTEMA. Disponível em http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaSaude/anexo/Raul_Cutait.pdf Acesso em 09/07/09. 44 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 463. 45 É expressiva a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que o descuprimento de mandados judiciais que determinam ao Poder Público a entrega de medicamentos aos beneficiários das tutelas jurisdicionais enseja o bloqueio de verbas públicas, com base no artigo 461, parágrafo 5º, do CPC, como meio de

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Logo, o administrador público, para cumprir o princípio da legalidade orçamentária e

atender com presteza as ordens judiciais, simplesmente retira recursos do próprio orçamento

da saúde para adquirir os medicamentos, tratamentos e insumos solicitados pelos

demandantes, prejudicando os usuários do Sistema Único de Saúde, cujas ações regulares são

comprometidas para viabilizar o atendimento às requisições judiciais.

Assim, o óbice da reserva do possível não pode ser simplesmente desprezado pelas

decisões judiciais que, especialmente em um cenário de multiplicação de demandas, podem

potencialmente, desorganizar o Sistema Único de Saúde afetando o integral atendimento dos

pacientes regularmente inscritos em programas públicos de acesso gratuito a medicamentos,

tratamentos e insumos, os quais são imediatamente atingidos pelo desvio de recursos

originariamente alocados.

Na matéria, destaca-se a arguta observação de LUIS ROBERTO BARROSO: “São comuns, por exemplo, programas de atendimento integral, no âmbito dos quais, além de medicamentos, os pacientes recebem atendimento médico, social e psicológico. Quando há alguma decisão judicial determinando a entrega imediata de medicamentos, freqüentemente o Governo retira o fármaco do programa, desatendendo a um paciente que o recebia regularmente, para entregá-lo ao litigante individual que obteve a decisão favorável.” 46

A situação descrita consubstancia verdadeira colisão entre os direitos fundamentais à

vida e à saúde do postulante da tutela jurisdicional, de um lado, e de pacientes cadastrados

previamente em programas de assistência à saúde, de outro, não sendo possível, então,

desconsiderar o óbice da reserva do possível, afinal: “A reserva do possível constitui, em verdade (considerada em toda a sua complexidade), espécie de limite jurídico e fático dos direitos fundamentais, mas também poderá atuar, em determinadas circunstâncias, como garantia dos direitos fundamentais, por exemplo, na hipótese de conflitos de direitos, quando se cuidar da invocação – observados sempre os critérios da proporcionalidade e da garantia do mínimo existencial em relação a todos os direitos – da indisponibilidade de recursos com o intuito de salvaguardar o núcleo essencial de outro direito fundamental.”47.

Na mesma esteira, há julgados recentes do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

acolhendo a tese de ser inviável a salvaguarda do direito à vida e à saúde do postulante da

tutela judicial se ficar demonstrado que a despesa pública efetuada para fornecer a prestação

de saúde pretendida poderá comprometer o orçamento destinado à saúde pública, em prejuízo

efetivar o direito do postulante. Nesse sentido: AgRg no REsp 935083; REsp 900458; REsp 836913; AgRg no REsp 888325; REsp 840912. 46 BARROSO, Luiz Roberto. Da Falta de Efetividade à Judicialização Excessiva: Direito à Saúde, Fornecimento Gratuito de Medicamentos e Parâmetros para a Atuação Judicial. Disponível em: www.lrbarroso.com.br/pt/noticias/medicamentos.pdf. Acesso em 26/04/08. 47 SARLET, Ingo Wolfang A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 8ª Edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 305.

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de outras parcelas da população que ficariam sem acesso às ações e serviços de saúde. Eis

alguns trechos emblemáticos extraídos dos votos proferidos pelos Desembargadores Relatores

dos acórdãos em destaque: “A aquisição a preço de mercado de medicamento específico para um paciente, que teve a felicidade de conseguir o concurso de um advogado para acionar o Poder Judiciário, custa, economicamente, desvio de verbas da saúde, com o risco do perecimento de centenas de crianças carentes por falta de uma simples vacina. Lastima-se o mal que só pode ser combatido com medicamentos caríssimos e importados mas, direcionar-se recurso público para esse particular paciente implica em sacrificar o necessário recurso que seria destinado a uma vacina, medida preventiva indispensável para a sobrevivência de milhares de crianças originárias, igualmente de bolsões de miséria que cercam as grandes cidades. Trata-se de evidente inversão de valores.”48 “Há de se ter em mente que causas como a presente, versando sobre a distribuição gratuita de medicamentos, possuem implicações muito mais amplas e complexas do que se poderia inicialmente imaginar. A proliferação indiscriminada de ordens judiciais determinando a aquisição de medicamentos caríssimos e não devidamente incorporados às listas e programas oficiais acaba, em última instância, comprometendo totalmente o planejamento realizado pelo Poder Executivo para a já combalida área da saúde pública no país. Apenas a título de exemplo, pesquisas recentes indicam que no Estado de São Paulo quase um terço da verba para a compra de medicamentos é consumida no cumprimento de decisões judiciais que beneficiam menos de um décimo da população que recebe gratuitamente remédios na rede pública. É fácil perceber que tal quadro torna quase que inviável a concretização de políticas públicas visando a redução da desigualdade e a realização tão reclamada da justiça social.”49

Por outro lado, as decisões judiciais não podem desconsiderar o fato de que o

orçamento destinado à saúde é limitado e que seus recursos devem ser aplicados para garantir

o direito à saúde como direito social, e não simplesmente como direito individual. Ambas as

dimensões devem ser compatibilizadas, de modo que a tutela jurisdicional não pode ser

conferida com base exclusiva na avaliação médica do postulante, mas, deve também ser

apoiada em critérios técnicos e econômicos. Com efeito, considerando que na área da saúde o

aumento dos custos decorrente da incessante incorporação de novas tecnologias faz eclodir a

escassez de recursos como realidade inegável50, é preciso que as decisões judiciais sejam

pautadas por critérios de justiça distributiva sob pena de malferir o princípio da isonomia,

afinal, o Sistema Único de Saúde não pode ser obrigado a oferecer medicamentos, tratamentos

e insumos que encerrem um nível de desenvolvimento científico superior à média e que não

podem ser disponibilizados a todos os usuários do sistema. 48 Apelação Cível 646.308-5/5-00, 7ª Câmara Cível do TJSP, Relator Des. Cláudio Marques, julgado em 09/11/2007. Disponível em: www.tj.sp.gov.br. Acesso em 27/04/2008. 49 Apelação Cível 734.721-5/9-00, 2ª Câmara Cível do TJSP, Relator Des. Corrêa Vianna, julgado em 26/02/2008. Disponível em: www.tj.sp.gov.br. Acesso em: 27/04/2008. 50 AMARAL, Gustavo. Direito, escassez e escolha: em busca de critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 147.

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CONCLUSÕES 1) O artigo 196 da Constituição Federal veicula uma norma-princípio programática

garantidora do direito à saúde em sua dimensão objetiva e, conseqüentemente, a efetividade

desse comando constitucional está condicionada por fatores jurídicos, sociais e econômicos

que só podem ser avaliados institucionalmente pelo Poder Executivo na condição de titular da

competência constitucional de criar e executar políticas de saúde pública.

2) Nossa Corte Suprema admite ser possível extrair diretamente da Constituição

Federal o direito subjetivo à saúde com fulcro no princípio da dignidade da pessoa humana.

3) O crescente deferimento de pleitos judiciais para que o Poder Público forneça aos

demandantes medicamentos, insumos e tratamentos não contemplados em protocolos clínicos

e nas diretrizes terapêuticas do Ministério da Saúde representa grave risco ao regular

funcionamento do Sistema Único de Saúde.

4) O Poder Público deve executar as políticas de saúde pública previstas nos

protocolos clínicos e nas diretrizes terapêuticas do Ministério da Saúde e, se possível, adotar

mecanismos de conciliação prévia avaliando a necessidade, adequação e proporcionalidade da

prestação de saúde pretendida pelo potencial demandante, e, sendo o caso, entregando desde

logo o medicamento, tratamento ou insumo almejado, a fim de reduzir o número de demandas

judiciais propostas e melhor gerenciar as remanescentes.

5) Os órgãos jurisdicionais devem agir com redobrada cautela ao instar o Poder

Público a fornecer medicamentos, tratamentos e insumos não contemplados em protocolos

clínicos e nas diretrizes terapêuticas do Ministério da Saúde, só sendo admissível atender às

pretensões individuais se ficar demonstrado, inequivocamente, que: (5.1) não haverá violação

do direito à saúde de outros usuários do Sistema Único de Saúde – SUS, diante do

redirecionamento das receitas orçamentárias; (5.2) o deferimento da tutela é compatível com o

princípio da justiça distributiva; (5.3) o postulante da medida judicial não tem condições

financeiras de pagar o tratamento; (5.4) inexistem alternativas terapêuticas já disponibilizadas

pelo Poder Público, ou menos onerosas, idôneas a substituir o tratamento médico, ainda que

não garantam idêntico conforto ao paciente; (5.5) o medicamento é comprovadamente eficaz e

tem registro na ANVISA, sendo objeto de prescrição médica regular (não “off label”); (5.6) a

patologia é grave sendo a prestação de saúde postulada indispensável à preservação da vida e

da saúde do demandante.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. AMARAL, Gustavo. Direito, escassez e escolha: em busca de critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 5ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2003. _______________________ Da Falta de Efetividade à Judicialização Excessiva: Direito à Saúde, Fornecimento Gratuito de Medicamentos e Parâmetros para a Atuação Judicial. Disponível em: www.lrbarroso.com.br/pt/noticias/medicamentos.pdf. Acesso em: 26/04/08. CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional. 2ª Edição. Coimbra: Almendina, 1998. GOUVÊA, Marcos Masseli. O Direito ao Fornecimento Estatal de Medicamentos. In: A Efetividade dos Direitos Sociais. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2004. MARQUES, Silvia Badin, DALLARI, Sueli Gandolfi. Garantia do Direito Social à assistência farmacêutica no Estado de São Paulo. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaSaude/anexo/Garantia_do_direito_social_a_assistencia_farmaceutica_no_Estado_de_Sao_Paulo.pdf. Acesso em 05/07/2009. MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional – Vol. II. Coimbra: Coimbra Editora, 1996. _______________ Manual de Direito Constitucional – Vol. IV. Coimbra: Coimbra Editora, 1996. SARLET, Ingo Wolfang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 8ª Edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.