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1 Os Últimos 50 anos da Pintura e Escultura Portuguesa do Século XX Os últimos cinquenta anos da pintura e escultura portuguesas, não podem ser desvinculados de modo algum do que lhes precedeu. Evidentemente, não é possível em virtude das limitações de espaço, abordar de forma muito complexa tudo quanto esteve na génese deste período, no entanto, convirá para melhor explicitação, recuarmos um pouco, e criarmos uma sinergia de modo a melhor relacionarmos os momentos posteriores. A incumbência deste trabalho levantou grandes dificuldades no que diz respeito à escolha dos artistas. Não pretendemos criar uma hierarquia de nomes, nem, tampouco, eleger grupos em detrimento de outros. Por outro lado, foi nossa intenção fazer representar as atitudes, ou os movimentos, por alguns elementos que poderão não ser os mais representativos do tema em causa, mas que enunciam suficientemente o fim desejado, de modo plausível e clarificador. Não deixa de ser ingrato assumir a responsabilidade da selecção dos artistas, por critérios que, evidentemente, são subjectivos. Tal selecção assenta na firme convicção do nosso critério, aceitando desde já a crítica da subjectividade optada. Não poderia deixar de exprimir, os meus sinceros agradecimentos ao Dr. Telo de Morais, pelas conversas que ajudaram na elaboração deste breviário.

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Os Últimos 50 anos da Pintura e Escultura Portuguesa do

Século XX

Os últimos cinquenta anos da pintura e escultura portuguesas, não podem ser

desvinculados de modo algum do que lhes precedeu. Evidentemente, não é possível em

virtude das limitações de espaço, abordar de forma muito complexa tudo quanto esteve

na génese deste período, no entanto, convirá para melhor explicitação, recuarmos um

pouco, e criarmos uma sinergia de modo a melhor relacionarmos os momentos

posteriores.

A incumbência deste trabalho levantou grandes dificuldades no que diz respeito

à escolha dos artistas. Não pretendemos criar uma hierarquia de nomes, nem, tampouco,

eleger grupos em detrimento de outros. Por outro lado, foi nossa intenção fazer

representar as atitudes, ou os movimentos, por alguns elementos que poderão não ser os

mais representativos do tema em causa, mas que enunciam suficientemente o fim

desejado, de modo plausível e clarificador. Não deixa de ser ingrato assumir a

responsabilidade da selecção dos artistas, por critérios que, evidentemente, são

subjectivos. Tal selecção assenta na firme convicção do nosso critério, aceitando desde

já a crítica da subjectividade optada.

Não poderia deixar de exprimir, os meus sinceros agradecimentos ao Dr. Telo de

Morais, pelas conversas que ajudaram na elaboração deste breviário.

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Após a Segunda Guerra Mundial brotou um clima favorável a uma

fundamentação críptica das artes plásticas numa sociedade marcadamente progressista.

As Exposições Gerais de Artes Plásticas foram de 1946 a 1956 orientadas pelo

Movimento de Unidade Democrático, possuíam uma determinação artística próxima do

“realismo socialista”. O Neo-Realismo foi o movimento que mais fascinou os artistas1

em meados de 40. Com esta atitude, os artistas desejavam transmitir uma informação de

apoio ao povo, e pretendiam contribuir para o melhoramento da vida social, apoiando-se

na ambição da derrota de Salazar2. A finalidade consistia numa transformação da

consciência da sociedade, mas sem grandes resultados político-sociais. Neste período

são organizadas várias Exposições Independentes3, por várias cidades do país,

nomeadamente no Porto, Lisboa, Coimbra, etc. Este neo-realismo, denota uma grande

preocupação formal, como no conceituadíssimo Almoço do Trolha4 [1946-50] de Júlio

Pomar [1926- ]. Muitos artistas desvincularam-se deste caminho sob a égide de uma

nova formalização estética.

Júlio Pomar, O Almoço do Trolha, 1947.

Tornava-se imperioso romper a obsolescência da arte, e criar uma expressão que

se apresentasse como uma outra via de libertação. As primeiras obras surrealistas

surgiram com este desígnio. Estava esgotado o exercício “dimensionista” que António

1 Entre outros, Júlio Pomar [1926- ], Ribeiro de Pavia [1910-1957, Querubim Lapa [1925- ], Avelino Cunhal, Rogério Ribeiro [1930- ]. 2 Apesar da vitória de Salazar nas eleições de 1949, este não perdoou ao modernista António Ferro [1895-1956], director do Secretariado de Propaganda Nacional, o facto de não lhe ter conseguido o apoio dos artistas, demitindo-o das suas funções. 3 Nestas exposições participaram vários artistas, entre outros, Fernando Lanhas, Nadir Afonso, António Lino, Arlindo Rocha, Júlio Pomar, Vítor Palla. 4 Considerado como o ponto referencial e mais representativo da pintura Neo-Realista portuguesa.

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Pedro [1909-1966] tinha como preocupação, e era necessário ir mais além do seu

expressionismo. Este encontrou como aliado, António Dacosta [1941-1990], que o

ajudou nessa cisão, bem assim como Cândido Costa Pinto [1911-1976]. Estes três foram

os responsáveis pelo aparecimento em 1947 do surrealismo em Portugal fortemente

influenciado pelo ímpeto parisiense desse ano, que se fez sentir verdadeiramente como

grupo após o apoio de José Augusto França. Após este período outros se lhes juntaram,

tais como Alexandre O’Neill [1924-1986], Mário Cesariny [1923- ], Marcelino

Vespeira [1925-2002], Fernando Azevedo [1923-2002], e Moniz Pereira [1920-1988].

Cândido Costa Pinto, Decadência Outonal/

Fadista, 1943.

Por divergências de vária ordem, o grupo surrealista, divide-se em dois,

liderados respectivamente por António Pedro e Mário Cesariny. Ambos questionavam

os direitos de autenticidade surrealista. Os dois grupos duraram pouco tempo, mas

deixaram, porém, uma porta aberta para a criatividade que viria a ser explorada nas

décadas seguintes. O drama da guerra e as circunstâncias da época foram determinantes

para o trabalho do trio, Pedro, Dacosta, e Cândido, aos quais se lhes pode juntar um

quarto – Maria Helena Vieira da Silva [1908-1991]. Foram estes quatro os pintores mais

modernos do início da década, mas com dificuldade em prestarem aquilo a que se

propunham: tornar a arte esclarecida a um público lato. Não havia empenho político

nem social para se atingir tal desiderato. Isto veio reafirmar, já em meados do século

XX, a incompreensão e o “analfabetismo” estético, face à diminuta educação visual de

uma arte moral e formalmente provocatória. Estávamos perante um público que nutria

as convenções, dando-se a outro tipo de atitudes, digamos mais gratuitas, como os livros

da colecção policial “Vampiro” na qual Cândido Costa Pinto tinha como encargo a

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realização das capas da referida revista. Na escultura, a estatuária neoclássica de

Francisco Franco [1885-1955] e Leopoldo de Almeida [1898-1975], deu lugar a vez no

final dos anos 40, a um modernismo com um sentido mais abstracto de Arlindo Rocha

[1921-1999], e uma liberdade surrealista de Jorge Vieira [1922-1997].

Jorge Vieira, sem título, 1949

Outra referência é Fernando Lanhas [1923- ] que preconizou uma primeira

forma de arte tendo como suporte o espaço geográfico5. Convém também não esquecer

as suas intervenções geométricas de cor e forma sobre pedras, indiciando uma

expressiva forma poética. Nadir Afonso [1920- ], fortemente influenciado por Lanhas,

cede às suas ideias e desenvolve um abstraccionismo geométrico, recriando uma nova

visão espacial, desenvolvendo um novo conceito de espaço/tempo.

Até ao final da década de 40 coexistem, assim três tendências que se afirmam

com enorme força: o neo-realismo, o surrealismo, e o abstraccionismo geométrico.

A intelectualidade portuguesa, que estava dividida - de um lado tínhamos a

existência de uma clandestinidade, ou seja, de pessoas que viviam oprimidas e que

tinham como única solução para se exprimirem, a ocultação das suas ideias; por outro,

um grupo de pessoas parcialmente envolvidas no regime - foi fortemente influenciada

pela enorme evolução da cultura do mundo ocidental, sobretudo após o fim da segunda

Grande Guerra.

À demissão de António Ferro, seguiu-se no início da década de 50 uma

deficiente promoção da arte portuguesa no estrangeiro. Havia um desinteresse

generalizado pelas artes, e as participações nacionais em bienais estrangeiras 5 Em 1952 realiza algumas pinturas sobre rochedos da Serra de Valongo.

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subordinavam-se a um ecletismo cada vez maior, e tinham uma orientação que seguia

determinados critérios estéticos extemporâneos, longe das desejadas correntes

vanguardistas6. Assiste-se, pois, a uma separação entre o gosto oficial e a vanguarda

artística. O que de melhor se fazia culturalmente não tinha, em consequência, a chancela

do governo, mas sim a dos artistas e a dos críticos de entre os quais se destaca José

Augusto França. As encomendas públicas, e políticas eram maioritariamente dirigidas à

escultura e à tapeçaria, e reportavam-se essencialmente a temáticas patrióticas, tais

como o império ultramarino, e os heróis nacionais. Jorge Vieira vai iniciar aquilo que

caracterizou a escultura deste período. Ele cria uma sinergia entre as várias vertentes

que nos anos 40 estiveram em vanguarda, ou seja, ele articula associações entre a

abstracção com alguma dependência surrealista, aflorando em alguns momentos o neo-

realismo.

Até 1957 Júlio Pomar desenvolve o neo-realismo, ano em que dá por encerrado

este movimento, realizando o seu último trabalho paradigmático - “Maria da Fonte”.

Também Augusto Gomes [1910-1957] se aproximou na década de 50 do neo-realismo,

preconizando nas suas obras uma geometrização simplificada das formas, e uma

hermetização da cor. Em clara oposição a Augusto Gomes, surge Luís Dourdil [1914-

1989] com fluidez das figuras, e transparência da cor. Influenciado pela obra dos

nacionais Lanhas e Nadir Afonso, e pelo internacional Mondrian [1872-1944], Joaquim

Rodrigo [1912-1997] interessa-se pelo neoplasticismo, participando em 1954 no “1º

salão de Arte Abstracta” na Galeria de Março7. A sua pintura baseava-se nas teorias

neoplasticistas, assente pois, na pureza das formas e das cores, subjugadas a regras de

construção.

Esta década não deixou de ter um franco predomínio de obras surrealistas e, por

isso, Fernando de Azevedo e Marcelino Vespeira8, juntamente com Fernando Lemos

[1926- ] realizam na Casa Jalco uma exposição nesta corrente, atestando a existência do

movimento. Lemos, explora os limites da fotografia, imprimindo-lhe um cariz

surrealista, através da múltipla sensibilização do papel fotográfico por meio de vários

negativos.

6 Para a Bienal de São Paulo em 1951, o governo português enviou obras puramente naturalistas, o que teve como consequência o desagrado da entidade anfitriã, elevando a nossa cultura ao ridículo. 7 Galeria criada em 1952 por Fernando Lemos e José Augusto França. 8 Estes autores que já na década anterior tinham expresso referências não-figurativas, nos anos 50, reforçam-nas e assumem um papel actuante na abstracção lírica.

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Outros nomes podem constituir referência desta década, como Carlos Calvet

[1928- ], com um forte poder metafísico, reportando-nos a Chirico [1888-1978]. Manuel

D’assumpção [1926-1969], que deixa as obras surrealistas para se fixar numa ambição

poética, muito próxima do espaço ambíguo promovido pela escola que abandonara, e

muito desenvolvido por Vieira da Silva9. Lourdes Castro [1930- ], René Bertholo

[1935- ], Gonçalo Duarte [1935-1986], João Vieira [1934- ], Costa Pinheiro [1932- ], e

José Escada [1934-1980], estiveram muito perto daquilo que foi o “Nouveau

Réalisme”10, criando o grupo “KWY”11. Este grupo começou por expor em Munique e

em Paris juntamente com o alemão Jan Voss, e o Búlgaro Christo Javacheff [1935- ], o

qual neste período começava a esboçar os seus famosos “embrulhos”. Em 1960, o KWY

realiza na Sociedade Nacional de Belas Artes [SNBA], uma exposição de reacção à

cultura nacional, e marca o início de uma plurivocidade artística. Até ao momento a arte

estava presa a determinadas convenções, e este grupo abre as portas para o renovar e

equacionar de determinadas questões estéticas, desde logo substituindo a questão “isto é

belo?”, por outra ainda mais angustiante “isto é arte?”

As décadas de 40 e 50 foram decisivas para o rumo das artes nos anos 60. A Pop

Art era o movimento que ao nível mundial se havia afirmado e influenciou grandemente

o panorama nacional. Este período proporciona grandes “aberturas” à arte nacional.

Verifica-se uma enorme quantidade de artistas que emigram para a Europa; dá-se a

abertura de novas galerias e é quando a SNBA começa a ser permeável, permitindo

exposições de alguns artistas modernos que até então encontravam para si as portas

fechadas.

Em Lourdes Castro, além das obras ligadas à assemblage, verifica-se uma

enorme preocupação com a sombra e com a materialização desse jogo de percepção

lumínica, mesmo que negra e virtual. Ela faz uma abordagem ao objecto, ou ao humano,

não os desvinculando da sua ausência, salientando-os por meio da silhueta, que se

traduz na uniformização da cor.

9 A influência da obra de Vieira da Silva e da Escola de Paris que representa, influenciou um grande número de pintores. Para além D’Assumpção, também tocou Menez [1926-1995], Fernando de Azevedo, e Marcelino Vespeira. 10 Segundo a Declaração Constitutiva do Nouveau Réalisme, redigida pelo crítico Pierre Restany, os “Nouveaux Realistes tomaram consciência da sua singularidade colectiva. Nouveau Réalisme = novas abordagens perceptivas do real.” 11 KWY eram as letras que não faziam parte do alfabeto português, e vieram significar neste contexto: “Ká Wamos Yndo”.

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Em 1960 Paula Rego [1935- ] apresenta uma sátira crítica à ditadura de Salazar:

“Salazar a vomitar a pátria”. Esta exposição foi uma promessa daquilo que viria a ser a

obra de Paula Rego no futuro, e mais concretamente a sua celebridade nos dias de hoje.

Grande estímulo para a arte nacional foi a atribuição em 1961 do prémio da

Bienal de São Paulo a Vieira da Silva. António Sena [1941- ] - artista de prestigiado

mérito no panorama artístico nacional, com uma obra que é em parte desconhecida na

actualidade12 - preocupou-se nas relações entre a escrita e a pintura, nas suas profundas

e perfeitas sinergias, entre a imagem e a forma dessa imagem enquanto signo de uma

realidade. A pintura e o desenho confrontam-se a partir da inscrição e de um conjunto

de formas sígnicas, representações de momentos objectivos de apropriação do

quotidiano. São os gestos tornados perenes. As suas grafias são diacrónicas, tendo como

princípio o Dadaísmo e terminando nas experiências letristas e informais do pós-guerra

e no contexto do Expressionismo Abstracto. Também com este ímpeto referimos Ana

Hatherly [1929- ] e Eurico Gonçalves [1932- ]. Por esta altura, Eduardo Nery [1938- ]

aproximava-se de uma realidade pop, com obras que graficamente suscitavam

enormemente a atenção do fruidor. A partir de 1965, Eduardo Nery decide explorar os

efeitos ópticos na pintura. Formas arquitectónicas apareciam sob o efeito de geometrias

que passavam a ser referenciais no seu trabalho, como espaços abstractos e indefinidos.

Eduardo Batarda [1943- ] começou a expor em 1966, com trabalhos que

causavam muita polémica, devido ao carácter sarcástico e erótico das suas produções.

As obras são sátiras sociais, utilizando um formato muito próximo da banda desenhada,

com narrativas jocosas nas quais são abordadas questões, quer sociais, quer culturais.

12 Grande parte da obra de Sena permaneceu escondida no seu atelier.

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Eduardo Batarda, O Senhor Professor CJP na Hora de Maior Movimento, 1965.

Por esta altura surgem as primeiras esculturas de Ângelo de Sousa [1938- ], e

Jorge Pinheiro [1931- ] que vinha mantendo as sua obra ligada a um expressionismo de

cromatismo tonal, apresentando as suas primeiras pinturas abstractas. A partir de 1966

começa a explorar o abstraccionismo geométrico, com um inspirado desígnio –

transformar a sua obra, em formas de resultado semelhante à sinalética de trânsito. Teve

como principal preocupação o impacto visual da obra no espaço real. Jorge Pinheiro é

hoje considerado um dos maiores coloristas portugueses. Ele também fez parte da

constituição do grupo “Os 4 vintes” em 1968, juntamente com, Ângelo de Sousa

Armando Alves [1935- ] e José Rodrigues [1936- ]. Também neste ano, Alberto

Carneiro [1937- ] altera de modo persistente o conceito de escultura convencional,

apresentando as obras “O canavial” e “Árvore dentro da escultura”. Deste modo,

adultera as normas pré-existentes, que estavam presas a conceitos de monumentalidade,

e de materialidade una, para passar a centrar-se numa interacção, e numa integração

espacial, em que o próprio espaço é uma componente estética. Podemos citá-lo como

um dos pioneiros – além de Lanhas – da instauração das primeiras manifestações da

Land Art [ou ecológica, como prefere chamar].

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Alberto Carneiro, Canavial, 1968.

Júlio Pomar, ao abandonar as preocupações poéticas neo-realistas, envereda por

novos caminhos, tais como as collages e as pinturas-objecto, numa busca incessante da

especificidade objectual e detalhada da realidade.

No final da década de 60 e viragem para a década seguinte, não existia já uma

confluência nas escolas artísticas, mas antes um vasto alargamento de tendências que

auguravam uma abertura estética, despojada de preconceitos e de rivalidades internas.

Entrada resoluta no domínio da “não-espectacularidade” [tendo por referência os

princípios escolásticos da estética], que origina uma concentração pluridisciplinar

concertada, como é o caso do happening e da perfomance13.

A década de 60 veio, sem sombra de dúvida, cimentar a década seguinte, naquilo

que viria a ser o início de uma arte plasticamente diferente. Apesar do governo de

Marcelo Caetano ter permitido o aparecimento de uma maior mercantilização artística,

comprovada pela abertura de inúmeras galerias em Lisboa e no Porto, não pôs fim à

marginalidade artística a que todos [quase] estavam forçados, levando à execução de

obras contra o regime. A massa artística constituía-se como um impedimento para a boa

prossecução do regime ditatorial, pelo que uma das medidas tomadas foi a perseguição à

intelectualidade, o que levou muitos artistas a ultrapassarem as nossas fronteiras,

emigrando para o estrangeiro.

Na década de 70, a poderosa influencia estrangeira14 tornou a arte portuguesa

interventiva, também afectada pela conjuntura política de então. A necessidade de

materializar os pensamentos e as ideias que vinham da Europa, encaixou-se

13 É em 1965, que a galeria Divulgação promove os primeiros happenings e performances, que se realizaram em Portugal. 14 A partir de 1956 a Fundação Calouste Gulbenkian, começa a atribuir bolsas aos artistas portugueses que pretendem fazer investigação no estrangeiro. Estes artistas traziam em primeira-mão novidades do exterior para a massa artística nacional, que apesar de conhecedor da actualidade internacional, sentia-se oprimida pelo regime político, que de certa forma controlava por meio de censura as “alfândegas” culturais.

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perfeitamente no sistema cultural português, como que numa complementaridade “mão-

luva”. Havia uma enorme vontade de aproximação da arte portuguesa à arte estrangeira,

não só para a criação de um homónimo, mas também para o reconhecimento e inserção

da arte nacional no contexto internacional. Formaram-se dois grandes grupos de

trabalho: os Abstractos e os Neo-Figurativos, e acentuam-se as performances e os

happenings.

Até ao 25 de Abril, a arte portuguesa estava fulgurante, com a instituição de

prémios; abertura de novas galerias; as instituições artísticas tinham extensos programas

que aliciavam o público e encontravam-se perfeitamente activas e empenhadas. Na

imprensa, a revista “Colóquio Artes” desempenhava um papel importante na veiculação

da produção nacional, bem assim como, a sua directa associação aos críticos como por

exemplo José Augusto França, Rui Mário Gonçalves, ou Fernando Pernes. A liberdade

de criar e de pensar surge finalmente com o 25 de Abril. A revolução ultrapassou tudo

aquilo que se conhecia, transportando o nosso país para uma dimensão social sem

precedentes15. Após o golpe militar, surge a necessidade de reorganizar o sistema

vigente, e a vontade de festejar colectivamente, através de uma criação conjunta16, no

sentido de combater a iliteracia cultural. Em Coimbra, o Círculo de Artes Plásticas17 foi

um dos dinamizadores destas actividades colectivas, bem assim como o surgimento de

grupos dos quais se destaca o grupo Acre18 composto por Clara Meneres [1943- ],

Alfredo Queiroz, e Lima de Carvalho [1940- ]; e o grupo Puzzle19 de que fizeram parte

João Dixo [1941- ], Armando Azevedo [1946- ], Albuquerque Mendes [1953- ], Carlos

Carreiro [1946- ], Graça Morais [1948- ], Dário Alves [1940- ], Jaime Silva [1947- ],

Pinto Coelho [1942- ], Gerardo Burmester [1953- ], e Pedro Rocha [1945- ].

A revolução de Abril atribuiu aos artistas, aos críticos e ao público de um modo

geral, um novo estatuto, numa democracia que se estava a iniciar, e numa sociedade

pujante de desejo interventivo.

15 Mesmo comparada com a instauração da Republica em 1910, ou com o final da segunda Grande Guerra. 16 Procurou-se uma aproximação entre arte e sociedade, que não logrou grandes resultados, pois as acções colectivas tinham escassa adesão por parte do público a que se destinavam. Uma consciência de intervenção pública levou a que Várias pinturas murais fossem sendo executadas por todo o país. 17 Do qual Alberto Carneiro e Ângelo de Sousa foram amplos participantes e pedagógicos. O CAPC virá na década de 90 a ser novamente lugar de referência positiva. 18 Este grupo, para além de intervenções em monumentos públicos, também intervinha com pinturas nos pavimentos. 19 Com os seus festivais de performances, entre outras actividades.

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As alterações à política artística foram muito reduzidas, não conseguindo

colmatar os défices existenciais antes da revolução. As transformações foram quase

inexistentes, e as actuações a que se referem, não passaram de esforços bem

intencionados.

Também economicamente a arte se alterou. O que antes da revolução se tinha

pautado por um crescente fervor mercantilista, modifica-se consideravelmente após o 25

de Abril. Os artistas começam a ter dificuldades em fazer escoar as suas obras, e

algumas galerias vêem-se obrigadas a encerrar portas. Esta considerável decadência de

mercado concilia os artistas, que unidos, criam grupos, dos quais se destacam, o

“Movimento Democrático dos Artistas Plásticos”20, e no ano seguinte, a Associação

Portuguesa de Artistas Plásticos21, com a finalidade de promoverem formas de

ultrapassar as sérias dificuldades, que estavam a passar.

painel realizado por 48 artistas do M.D.A.P. em 10/06/74, na Galeria de Belém.

Em 1977 Ernesto de Sousa [1921-1988], comissaria uma exposição intitulada

“Alternativa Zero”22 que serviu de modelo para outras mostras dos anos 80. O certame

incluía vários artistas, tais como, Alberto Carneiro, Clara Meneres, Helena Almeida

[1934- ], Ana Hatherly, Ângelo de Sousa, Ana Vieira [1940- ] e António Sena, entre

outros. Esta exposição foi considerada pelos críticos como o gonzo ao qual tudo girava,

o ponto de partida de uma arte que emergia, caracterizada por uma vontade de praticar

atitudes vanguardistas23 próximas do panorama internacional.

20 Criado em 1974 por artistas oriundos da Sociedade Nacional de Belas Artes. 21 A APAP é vulgarmente conhecida por os “papas”. 22 Realizada na Galeria Nacional de Arte Moderna de Belém, significou ser uma tradução exemplar daquilo que constava ser o panorama artístico nacional, e reunia cerca de meia centena de artistas, de vários quadrantes plásticos. 23 Esteve marcadamente ligada à inserção do conceptualismo, bem assim como se aliou à abertura de outras actividades artísticas, como por exemplo o vídeo, e a música.

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Esta época estava plenamente aberta às vanguardas europeias, tendo surgido

muito perto de nós o nome de Wolf Vostell24 [1932-1998], com quem João Vieira

privou, levando-o a explorar o campo experimental do happening. Neste período, Paula

Rego propõe-nos uma linguagem mais específica, deixando para trás a associação à

collage, a fragmentação das figuras, e a forte relação inicial com a art brut. Ela cria

ambientes ao mesmo tempo sinistros e encantadores, com perspectivas desajeitadas,

recorrendo algumas vezes à deturpação da escala, transportando-nos para mundos

nostálgicos e intemporais. A sua pintura sempre teve uma enorme carga expressionista,

ligada a uma grande sensibilidade estética, tendo grande influência no seu processo

criativo, as recordações de infância, a cultura portuguesa, e as suas experiências da vida

adulta.

Dentro do conceptualismo, Helena Almeida deixa as pinturas-objecto e aporta na

fotografia25, auto-representando-se, quer de forma visível ou não visível, introduzindo

discursos sobre a condição feminina. Podemos considerar a sua obra como o resultado

de uma atitude performativa congelada. É a procura de uma irrealidade, questionando-a,

e tornando-a real. A pintura e o desenho invadem a fotografia, conferindo unidade à

obra.

Outro inconfundível artista desta época é Ângelo de Sousa, que explora a

abstracção geométrica, por meio de uma síntese formal e cromática, afastando a sua

obra de uma realidade/tema. Esta ausência [vazio] determinada por um rapprochement

ao minimalismo, sobretudo o de Robert Mangold [1937- ], envolve-a numa

simplificação, que emana um sentido de espaço e de calma, conferindo-lhe uma

natureza única.

Pedro Chorão [1945- ], tendo iniciado o seu interesse pela pintura através de

textos de Paul Klee, decide “disciplinar-se” procurando para seus mestres amigos do seu

pai26, nomeadamente Luís Dourdil e António Dacosta. A relação que existe entre os

elementos sígnicos da sua obra e a própria realidade remetem-nos para uma teoria da

comunicação, onde todos os seus registos são tidos como auxiliares de visualização, e

em que a vivência do espectador auxilia a compreensão das realidades,

24 Em 1979 realiza-se em Lisboa a “Lisbon International Show”, uma bienal onde para além da presença de Vostell, e de portugueses, estiveram outros estrangeiro, como Carl André, Luciano Castelli, e Jochen Gerz. 25 Helena Almeida foi das primeiras a trabalhar a fotografia, tendo-a como suporte físico das suas obras. Convirá referir que somente a partir da década de 60, a fotografia começa a ganhar o estatuto de arte, e autonomia de afirmação. 26 Arquitecto Raul Chorão Ramalho.

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Eduardo Nery em 1976 realiza uma exposição intitulada “A Arte na Sociedade

de Consumo”. Agrupava um conjunto de colagens, combinando uma imagem de uma

obra de arte consagrada, com uma imagem de publicidade. Esta associação de ideias

resultou da possibilidade de outro entendimento sobre a utilização da banalidade

publicitária. Esta acção esteve na origem de uma atitude do recém-chegado Director

Geral da Acção Cultural, Eduardo Prado Coelho, no sentido de contrariar a ideia

estatucional de arte. Por esta altura a arte era entendida como algo supérfluo e luxuoso,

conferindo-lhe, na comunicação social, uma imagem desastrosa que em nada a abonou.

Com o arrefecimento do espírito revolucionário, a individualidade torna-se mais

proeminente, e o experimentalismo artístico esvanece-se. Sem desconsiderar as

positivas implicações, quer artísticas, como também políticas, e sociais, convirá referir

que a revolução 25 de Abril que trouxe a democracia e expandiu a liberdade num prazo

muito curto, hermetizou as participações colectivas, levando inclusivamente a recuos

nas formas de expressão para um conservadorismo já há muito esquecido, consequência

da conjuntura comercial dos anos 80, sobretudo a partir de 1977.

Eduardo Nery, 1976.

Muitos grupos que se criaram com o fundamento de melhorar o sistema cultural

e que vivendo opressivamente tinham necessidade de se exprimirem, deixaram de ser

actuantes, em virtude de terem perdido toda a sua eficácia assumida inicialmente – a

transformação estava concretizada, e uma questão se colocava: que sentido teria a

continuidade de acções que estariam despidas de contexto?

Nesta conformidade podemos caracterizar a partir de 1977, mas com mais

evidência a partir de 1983, o período a partir do qual a arte portuguesa se pautou por um

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individualismo. De referir que os anos 80, se caracterizaram como amplamente

positivos para a arte portuguesa. É nesta época que surge o Centro de Arte Moderna27 da

Fundação Calouste Gulbenkian; o mercado da arte se revitaliza; o governo instaura a lei

do mecenato e toma a resolução de ajudar os jovens artistas no financiamento dos seus

projectos. Estas facilidades estão na origem da individualidade atrás referida. Tais

factores contribuíram para que os artistas se projectassem individualmente. Ora, o

individualismo não deverá ser considerado consequência da personalidade artística,

mas, sim, do oportunismo de que estes dispunham, benesse da conjuntura de então.

Por volta da década de 80, António Dacosta, que tinha abandonado a pintura nos

anos 40, volta a pintar centrando o seu trabalho na memória individual e colectiva.

Também certos artistas que adquiriram alguma notoriedade nos anos 60, se vêem nos

anos 80 com preocupações de ordem conceptual. Em causa estão figuras como Pires

Vieira [1950- ] e Fernando Calhau [1948-2002].

Julião Sarmento [1948- ], que iniciou a sua carreira com ligações ao vídeo, à

fotografia e às instalações, retoma a pintura como base do seu trabalho. Primeiramente

com referência a uma bad-painting ligada a um erotismo conotado com a literatura.

Mais recentemente, adopta uma complexa linguagem dicotómica que oscila entre a

dissimulação e a revelação, através de imagens fragmentadas, sejam elas de carácter

figurativo ou abstracto. A sua obra é hesitante, com um pingo de humor, não se

podendo desprender do erotismo e uma nostalgia, que, de resto, são os temas centrais da

sua obra. Ele explora a sedução deixando na obra elementos sugestivos e deixando ao

critério do observador a livre possibilidade de significação da mesma.

Julião Sarmento, Emma (5), 1990.

Outra figura famosa da pintura portuguesa é Pedro Calapez [1953- ] que,

fortemente influenciado pela arquitectura, organiza o seu trabalho em função de 27 Inaugurado em 1983.

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espaços, sejam eles cenográficos ou mais resignados, como o espaço do palco, por meio

de riscas que têm por base o desenho, ou, com maior acutilância a incisão gráfica dos

seus motivos. As obras variaram das monocromias, até às diferentes gradações de

múltiplas cromias.

Também especial preocupação com o espaço, revela a obra de José Pedro Croft

[1957- ]. O cuidado do escultor com cada peça é proveniente da relação das

delimitações espaciais das suas obras. Esta relação existencial entre o jogo do interior e

do exterior à peça resulta também no adicionar de uma busca da melhor situação do

espaço que a recebe. O alargamento da sua obra ao âmbito dos objecto de carácter

vulgar, trouxe um beneficio acrescido, sem, contudo deixar de criar uma confrontação

entre uma realidade pré-existente, e notoriamente reconhecida, entenda-se

paradigmática, e algo que se afigura complementar, mas estranho à obra, talvez mesmo

extemporâneo.

Rui Sanches [1954- ], com semelhantes preocupações, delimita o seu trabalho

entre o mundo da organicidade e a sua respectiva geometria. Explora complexos

conjuntos de formas, estruturadas de modo coerente e sistemático, não permitindo

qualquer fuga à desordenação do seu contexto, sob pena da obliteração textual de cada

obra. A referência ao orgânico remete-nos para a biologia e seus afins, e a sua

conjugação com elementos que se determinam pela sua maior rigidez da forma,

reportam-nos para um simulacro da vida, uma arquitectura que implica uma utilização,

um habitat versus habitação.

Rui Sanches, sem título, 1994.

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Em 1985, Sílvia Chicó revaloriza o abstraccionismo, comissariando em Lisboa e

em Évora uma exposição intitulada “O Gesto, o Signo e a Escrita”. José Mouga [1942- ]

foi um dos artistas presentes nesta mostra. A sua obra era organizada segundo uma

geometria que orientava o aspecto cromático. Apesar da geometria estabilizante, a

linguagem pictórica do seu trabalho era fundamentada num dinamismo cromático e

compositivo. A referência à figuração surgida depois de 1984 foi tomada tendo sempre

em conta essa geometrização, criando uma fusão sinérgica entre os objectos e os

elementos que compõem a obra.

A obra de Leonel Moura [1948- ] caracteriza-se por um forte predomínio

conceptual, passando posteriormente pelas influências da cultura popular, em que ele se

projecta num cenário eminentemente pop a provar pelas suas obras referenciadas nas

identidades portuguesas, como o caso de Amália Rodrigues onde nos apercebemos de

uma aproximação à pop americana de Andy Warhol [1928-1987] indo até às suas obras

mais recentes de afirmação pública com grande intenção política. Também Júlia

Ventura28 [1952- ] se apropriou das técnicas serigráficas e desenvolveu o seu trabalho

en torno de referências warholianas, sobretudo na utilização da repetição das imagens.

O seu caso, diferente do de Leonel Moura, descreve-se pela preocupação da auto-

representação. Não é uma heteronomia pictórica que está em causa, mas sim uma

singularidade com subtis variações, sejam elas cromáticas ou de composição.

Também com a vontade de auto-representação consta grande parte da obra de

Mário Botas [1952-1983]. O narcisismo de Mário Botas é facilmente identificável nos

seus auto-retratos, por exemplo na colecção de Le Spleen de moi-même, onde o único

tema do pintor é efectivamente o “eu-mesmo”, mas que poderá sofrer mutações e

transformar-se no eu que é um outro: “Je est un autre”.

Este “inventário” de artistas ficaria incompleto se não se fizesse referência a um

dos grandes representantes da performance portuguesa, que foi sem dúvida,

Albuquerque Mendes. Ele conseguiu internacionalizar as suas performances, nos

symposium de Lyon, e nos festivais de Beaubourg, tendo atingido grande visibilidade ao

lado de artistas como Joseph Beuys [1921-1986], e Vostell. O seu trabalho, apresentado

ao público sob a forma de acções “teatrais”, é constituído por rituais reminiscentes de

referências a procissões e das manifestações religiosas e profanas da cultura popular

portuguesa. Na sua pintura evidenciam-se temas e géneros que subsistem

28 Em 2004 esteve presente numa exposição no Museu de Serralves, intitulada “Marcar, Imprimir, Expor”

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diacronicamente por toda a sua obra. Ele utiliza alusões a vários momentos históricos, a

várias gramáticas de representação, características do século XX, como a pintura

expressionista, a collage dadaísta, as linguagens do movimento fluxus, a bad-painting,

etc. Da sua passagem da performance até à pintura [e mesmo dentro desta] verifica-se

um iter de uma extroversão manifestacional para uma introspecção cada vez mais

íntima.

Os anos 80 também levantaram o véu da arte feminina, até então um pouco

esquecida. Realizaram-se algumas retrospectivas de Lourdes Castro e Helena Almeida,

como também se revalorizou a obra plástica de Ana Haterly. Outro nome da arte

feminina é Ilda David, que recria mundos pessoais repletos de memórias.

Os artistas que adquiriram consagração nos anos 80 reforçam-a na década de 90,

dando seguimento aos seus trabalhos de forma convincente. A pintura, escultura

desenho e fotografia intensificam-se e o aparecimento de novas tecnologias coloca, ao

dispor da arte, a possibilidade de se expandir, extrapolando os limites convencionais da

estética. As mixed media, são o resultado de uma incessante busca e consequente

descoberta de novas formas de linguagem. As abordagens temáticas - ao corpo [Post

Human], à espacialidade, o crossover que torna permeável os limites entre a cultura

popular e a arte, e o High and Low verificado a partir desta década, em virtude da

trivialidade cultural a que assistimos, por força das várias condições de inanidade

mental, existente em vários processos, designadamente o da comunicação social -

tornam a actualidade artística, por um lado, uma das mais ricas, e altissonantes; e por

outro inserem-na num contexto de dúvida, em permanente questionamento

idiossincrático, sobre a sua categorização estilística, e sobre a sua idoneidade com

referência às apropriações científicas29.

Os artistas desta década diminuem o papel da estética no processo de

significação e valorização da obra de arte. A prática duchampiana é novamente

questionada, e determina a abertura da arte contemporânea, a uma plural e estonteante

interdisciplinaridade. Trata-se de uma fase que exporta para as obras e particularmente

para os artistas uma elevada complexidade de execução, o que, de certo modo, constitui

uma triagem da esteticização dos anos 90. Para além das dificuldades técnicas que se

29 O savoir-faire é aqui questionado com grande força. Este é questionado, ou pelo menos apenas se pensa nele, quando entramos no mundo da arte, porque como facilmente entendemos, ninguém quando entra num supermercado pensa como a massa esparguete é feita, mas quando se entra num museu, aí sim temos uma predisposição para pensar na sua “confecção”. É bem mais facilmente entendível que uma cadeira num museu não é arte, mas sim engenharia.

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apresentam aos artistas, por causa da inadequada disponibilidade de oferta de meios

técnicos, também é exigido ao criador um know-how, dificilmente concebível no âmbito

nacional. Estamos, pois, ainda muito longe do realizado extra-fronteiras, talvez que até

se possa considerar tal período como o mais marcante, neste ponto, sobretudo se

estabelecermos comparações com algumas personalidades do âmbito internacional dos

quais Eduardo Kac e Stelarc, são apenas alguns exemplos.

A arte enquanto intervenção social e política estava muito reduzida, e a que

existia não mantinha uma boa visibilidade. A obra “Eucalipto/Homenagem – um

monumento ao Estado Laranja, homenagem àqueles que contribuem para o

embelezamento do nosso país,” de Pedro Portugal30 [1963- ] relança o questionamento

da nossa sociedade face às vicissitudes conjunturais da época, nomeadamente como

crítica política, visando importantes valores ecológicos.

Pedro Portugal, Eucalipto/Homenagem

Nessa obra existe uma apropriação do conceito de monumento, não só pelas suas

dimensões, mas também pela utilização do espaço público31, criada na vontade de

confrontar a obra com a sociedade.

Portugal não soube acompanhar o cenário internacional que há pelo menos 200

anos seguia. Na década de 90, a arte portuguesa encontra-se na retaguarda internacional,

seguindo o caminho dos já afirmados meios de comunicação social, com apenas

30 Fundador em 1983 do grupo Homeoestética, movimento característico de uma certa modernidade que se desdobrou pela produção de textos, e manifestos teóricos, por performances, pela produção de filmes, e pelos registos fotográficos de carácter memorialista. 31 A rotunda do Aeroporto de Lisboa.

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pequenas flexões nos seus contextos. Algumas atitudes que nos anos 80 estiveram

afastadas da realidade nacional32, são retomada e desenvolvidas. Em 1993, e como

forma de aproximar a arte portuguesa ao contexto externo, realizam-se no Porto as

segundas jornadas de Arte Contemporânea, onde são apresentadas33 obras de artistas

britânicos emergentes, tais como Douglas Gordon [1966- ] e Jane & Louise [1967- ].

A comprovar a inadequação da arte portuguesa relativamente à do estrangeiro,

alertou a crítica extremamente negativa de Alexandre Pomar, acerca da exposição

“imagens para os anos 90”, realizada na Casa de Serralves em 1993. Em resposta às

afirmações contundentes de Pomar, alguns dos artistas visados34 publicaram um artigo

apelidado de “Oito Novos Fora”, o qual entre outras coisas, se fundava na ausência de

uma crítica coerente e plausível, que, de resto, se viria a confirmar anos mais tarde.

A fotografia e a escultura foram-se autonomizando e ganham mais relevo na

selecção desses modos de expressão por parte dos artistas, como também por parte do

público, que começa a atribuir-lhes um maior valor de mercado. Na fotografia

destacam-se Jorge Molder [1947- ], Paulo Nozolino [1955- ], João Tabarra [1976- ],

Luís Palma [1960- ], e Albano da Silva Pereira35 [1950- ]. No domínio da escultura,

podemos referir alguns exemplos já anteriormente citados, que na década de 90

confirmam o teor do seu trabalho: Manuel Rosa [1953- ], Rui Sanches, José Pedro

Croft, ou Rui Chafes36 [1966- ], que em 2004 apresentou a obra “Comer o Coração”,

representando Portugal na 26ª Bienal de São Paulo, em co-participação com a

coreógrafa Vera Mantero [1966- ]. Convirá não esquecer que determinados pintores

influenciados pela escultura, também realizaram algumas peças escultóricas, ou pelo

menos com a aproximação ao objecto. É o caso de Pedro Cabrita Reis [1956- ] e

Gerardo Burmester, como se pôde constatar da presença destes dois últimos na

exposição “Depois de Amanhã”37, aquando da Lisboa 94, Capital europeia da Cultura,

levada a efeito no Centro Cultural de Belém.

32 Por várias razões, desde logo por um excessivo tradicionalismo imposto. 33 Esta exposição intitulava-se “A Pasta de Walter Benjamin, e foi comissariada por Andrew Renton. 34 João Paulo Feliciano, Paulo Mendes, Rui Serra, Carlos Vidal, Fernando Brito, João Louro, Miguel Palma, e João Tabarra. 35 Dinamizador dos Encontros Fotográficos de Coimbra. 36 Juntamente com José Pedro Croft, e Pedro Cabrita Reis, representou Portugal em 1995, na Bienal de Veneza. 37 Nesta exposição estiveram presentes além destes dois, Pedro Calapez, Rui Sanches, Baltazar Torres, Frank Thiel, José Pedro Croft, Xana, Wim Delvoye, Julião Sarmento, Augusto Alves da Silva, James Turrel, Narrele Jubelin, João Paulo Feliciano, Miguel Palma, João Penalva, Stephan Balkenhol, Marie Jo Lafontaine, Olaf Metzel, Ângela Ferreira, Miguel Ângelo Rocha, Taro Chiezo, e Cathy de Monchaux.

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Rui Chafes, e Vera Mantero, Comer o Coração, 2004.

A arte dos anos noventa é site-specific, logo puramente consagrada às práticas

próximas da instalação. João Paulo Feliciano [1963- ] é um dos autores que se permitiu

a este tipo de linguagem. A sua obra é associativa, quer isto significar, que ele coloca

em feliz conjunção, a escultura, a luz e os aspectos tecnológicos, numa perfeita

harmonia. O seu trabalho “The Big Red Puff Sound Site”, realizado para a Lisboa 94,

Capital Europeia da Cultura, constitui exemplo desta complexa sinergia. Outros autores

podem aqui ser destacados como: Pedro Tudela [1962- ] e a sua obra “Rastos”,

Francisco Tropa [1968- ] com “Buda”, Cristina Mateus [1966- ], a criação “Engenho”

de Miguel Palma [1964- ], Miguel Leal [1967- ], Fernando Brito [1958- ], entre outros.

No final do século, acentua-se a singularidade artística, pulverizados os poucos

grupos que mantinham actividade conjunta. Esta reacção foi a consequência de uma

política internacional que se repercutiu no nosso país. Uma nova geração de artistas

começa a emergir, subjugada às novas exigências, sociais, políticas e culturais e de

intenções artísticas, que são agora definidas por uma esteticização cultural que todos

conhecem, reconhecem e aceitam, fruto de um espírito amplamente renovado. O maior

desafio está lançado a esta geração, num tempo em que se relembra, e reclama o fim da

arte. Chuva Vasco,

Figueira da Foz, 2005

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Bibliografia

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Para citar este artigo utilize a seguinte referência: CHUVA VASCO, Nuno - Os últimos 50 anos da pintura e escultura portuguesa do século XX. [Em linha]. Figueira da Foz: Chuva Vasco, 2005. Disponível em WWW:<URL:http://www.chuvavasco.com/50anos.pdf>.