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OS LUMINARES

ELEANOR CATTON

OS LUMINARES

Tradução deANA FALCÃO BASTOS e CLÁUDIA BRITO

Para Pop, que vê as estrelas,e para Jude, que ouve a sua música

NOTA PARA O LEITOR

As posições estelares e planetárias referidas neste livro foram de-terminadas com base na astronomia. Ou seja, reconhecemos o fenó-meno celeste designado por precessão, movimento que produz a deslo-cação do equinócio vernal, o equivalente astrológico do meridiano deGreenwich. O equinócio vernal (outonal, nas latitudes do Sul) tinhalugar anteriormente quando o Sol estava na constelação de Carneiro,o primeiro signo. Tem lugar agora quando o Sol está em Peixes,o décimo segundo. Por consequência, e como os leitores desta obrapoderão verificar, cada signo do zodíaco «ocorre» aproximadamenteum mês mais tarde do que indica a informação popular. Não é nossaintenção desrespeitar a informação popular com esta correção. Toda-via, observamos que o erro acima mencionado se mantém, contra-riando o facto material que é o nosso firmamento do século XIX.E atrevemo-nos ainda a conjeturar que essa convicção pode ser clas-sificada como pisciana — característica, de facto, das pessoas nasci-das na Era de Peixes, uma era de espelhos, de tenacidade, de instinto,de geminação e de coisas ocultas. Esta ideia agrada-nos. Além disso,afirma também a nossa fé na influência vasta e sapiente

do céu infinito.

LISTA DAS PERSONAGENS

ESTELARES:Te Rau Tauwhare, pesquisador de nefriteCharlie Frost, bancárioBenjamin Löwenthal, jornalista

Edgar Clinch, hoteleiroDick Mannering, magnata dos campos

auríferosQuee Long, fundidor de ouroHarald Nilssen, comissionistaJoseph Pritchard, boticárioThomas Balfour, agente de navegaçãoAubert Gascoigne, escrivão

Sook Yongsheng, chapeleiroCowell Devlin, capelão

PLANETÁRIOS:Walter MoodyLydia (Wells) Carver,

Greenway de solteiraFrancis CarverAlistair LauderbackGeorge ShepardAnna WetherellEmery Staines

TERRA FIRMA:Crosbie Wells

CASA RELACIONADA:Casa dos Wells (vale do Arahura)Banco de Reserva (Revell Street)Escritório do West Coast Times (Weld

Street)Hotel Gridiron (Revell Street)Mina de Ouro Aurora (Kaniere)

«Forja do Bairro Chinês» (Kaniere)Nilssen & Co. (Cais Gibson)Casa de Ópio (Kaniere)Godspeed (uma barca, reg. Port Chalmers)Tribunal de Hokitika (Tribunal do

Magistrado)Wayfarer’s Fortune (Revell Street)Prisão de Hokitika (Seaview)

INFLUÊNCIA RELACIONADA:RazãoDesejo

ForçaAutoridadeRestriçãoO Exterior (anteriormente O Interior)O Interior (anteriormente O Exterior)

(falecido)

MERCÚRIO EM SAGITÁRIO

Em que um desconhecido chega a Hokitika, uma reunião secreta é perturba-da, Walter Moody esconde a sua recordação mais recente e Thomas Balfour come-ça a contar uma história.

Os doze homens reunidos no salão de fumo do Hotel Crowndavam a impressão de um grupo que se tivesse encontrado de formaacidental. Pela variedade das suas atitudes e do seu vestuário — so-brecasacas, casacas, casacos Norfolk com botões de chifre, cotimamarelo, cambraia e sarja — podiam ser doze desconhecidos numacarruagem de caminho de ferro, cada um com destino a um bairrodiferente de uma cidade com nevoeiro e marés suficientes para os di-vidir. Com efeito, o isolamento estudado de cada homem quando sedebruçava sobre o seu jornal, se inclinava para a frente a fim de sacu-dir a cinza na grelha da lareira ou apoiava a mão aberta sobre o panoda mesa de bilhar para dar uma tacada, conspirava para criar o génerode silêncio corpóreo que ocorre, ao princípio da noite, numa estaçãode comboios — aqui abafado, não pelo som indistinto e pelo trepidarmetálico das composições, mas pelo fragor da chuva.

Foi esta a impressão que teve o senhor Walter Moody do localonde se encontrava, à entrada, com a mão na ombreira da porta.Walter Moody não interrompera nenhuma reunião privada, pois ospresentes tinham-se calado ao ouvir os seus passos na entrada. Nomomento em que abriu a porta, os doze homens já haviam retomadoo que estavam a fazer (os jogadores de bilhar de forma bastante alea-tória, pois tinham-se esquecido dos seus lugares), mostrando-se de tal

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modo absortos que ninguém ergueu sequer o olhar quando ele en-trou na sala.

O rigor e a uniformidade com que o ignoraram poderiam ter sus-citado o interesse do recém-chegado, caso ele estivesse no seu estadonormal. Mas acontecia que se sentia enjoado e abalado. Soubera quea viagem para a Cantuária Ocidental seria, na pior das hipóteses,fatal, uma interminável agitação de espuma e água branca que termi-nava no cemitério de destroços do banco de areia de Hokitika, masnão se preparara para os horrores particulares daquela viagem, sobrea qual ainda se sentia incapaz de falar, mesmo consigo próprio. Moo-dy era por natureza impaciente no que respeitava a falhas da sua pró-pria pessoa — o medo e a doença tornavam-no introvertido — e foipor esta razão que não conseguiu avaliar o ambiente da sala em queacabara de entrar, o que nele era pouco característico.

A expressão natural de Moody era de disponibilidade e de aten-ção. Os seus olhos cinzentos eram grandes e fixos, e a boca, maleávele juvenil, exibia normalmente uma expressão de preocupação aten-ciosa. O cabelo tinha tendência para formar caracóis cerrados. Na ju-ventude, caía-lhe em cachos até aos ombros, mas agora usava-o maiscolado à cabeça, com risca ao meio e penteado com uma brilhantinade cheiro doce que escurecia a sua tonalidade dourada e a transfor-mava num castanho oleoso. As sobrancelhas e as maçãs do rostoeram em ângulo reto, o nariz afilado e a pele lisa. Ainda não comple-tara vinte e oito anos, tinha ainda gestos rápidos e precisos e possuíao género de vigor travesso e impoluto que não evidencia ingenuidadenem malícia. Apresentava os modos de um mordomo discretoe perspicaz, o que levava a que muitas vezes fosse alvo das confidên-cias do menos volúvel dos indivíduos ou convidado a mediar rela-ções entre pessoas que só recentemente conhecera. Possuía, emsuma, uma aparência que denunciava muito pouco acerca do seupróprio carácter e em que os outros se sentiam imediatamente incli-nados a confiar.

Moody tinha consciência da vantagem que o seu encanto impe-netrável lhe concedia. Tal como a maioria das pessoas excessivamen-te belas, estudara o seu próprio reflexo de forma minuciosa e, de cer-ta maneira, conhecia-se melhor visto de fora. Estava sempre numa

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câmara qualquer da sua mente a observar-se do exterior. Passara mui-tas horas no seu quarto de vestir, onde o espelho lhe triplicava a ima-gem, apresentando-a de perfil, de meio-perfil e de frente: o Carlos I,de Van Dyck, embora muito mais vivo. Era uma rotina privada, queele teria provavelmente negado, pois a observação pessoal é conde-nada com veemência pelos profetas morais da nossa época. Como sea pessoa não tivesse relação consigo mesma, e só olhasse para os es-pelhos para confirmar a sua arrogância. Como se o ato da auto-ob-servação não fosse tão subtil, profundo e mutável como qualquerlaço entre almas gémeas. No seu fascínio, Moody procurava não tan-to enaltecer a sua própria beleza, mas dominá-la. Era certo que,quando entrevia a sua imagem refletida depois do anoitecer, numa ja-nela ou numa vidraça, sentia um arrepio de satisfação, mas comoo que pode experimentar um engenheiro ao observar um mecanismopor si criado, constatando que está esplêndido, reluzente, convenien-temente oleado e a funcionar exatamente como ele previra.

Agora conseguia ver-se a si mesmo, perfilado à porta do salão defumo, e sabia que projetava uma imagem de perfeita compostura. Es-tava quase a tremer de fadiga. Carregava no seu íntimo um enormepeso de terror. Sentia-se seguido, perseguido até. Estava aterrorizado.Observou a sala com um ar de desprendimento delicado e de respei-to. Parecia um local reconstruído de memória após um longo perío-do de tempo, durante o qual muita coisa é esquecida (porta-toros,cortinados, uma bela armação a rodear a lareira), mas alguns porme-nores persistem: um retrato do falecido Príncipe Consorte, porexemplo, recortado de uma revista e fixado com tachas de sapatos naparede virada para o jardim, a costura no pano da mesa de bilhar, quefora serrada ao meio nas docas de Sydney para sobreviver melhorà travessia, a pilha de jornais velhos sobre a secretária, com as pági-nas gastas e desbotadas pelo manusear de muitas mãos. As duas pe-quenas janelas que ladeavam a lareira davam para o pátio das traseirasdo hotel, um terreno lamacento, repleto de caixotes e de bidões enfer-rujados, separado dos lotes vizinhos apenas por manchas de arbustosenfezados e de fetos baixos e, a norte, por uma fila de galinheiros, cujasportas estavam fechadas com correntes para as proteger dos ladrões.Para lá desta periferia vaga, viam-se cordas da roupa frouxas suspensaspor trás das casas um quarteirão mais a leste, pilhas desordenadas de

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madeira em bruto, pocilgas, montes de objetos e chapas de metal,rodos e caleiras partidas, tudo abandonado ou num estado de relativadegradação. O relógio batera aquela última hora do crepúsculo quan-do todas as cores parecem subitamente perder a sua intensidade, e achuva caía com força. Através do vidro martelado, o pátio pareciadescorado e indistinto. Lá dentro, as lâmpadas de álcool ainda não ti-nham substituído a luz verde-mar do dia que esmorecia e, com a suapalidez, pareciam acentuar a decoração soturna da sala.

Para alguém habituado ao seu clube em Edimburgo, onde tudoera iluminado em tons de vermelho e de dourado e os sofás capito-nês cintilavam com uma corpulência que refletia o perímetro abdo-minal dos cavalheiros que neles se sentavam, onde, à entrada, ofere-ciam aos recém-chegados um agasalho macio que emanava umagradável cheiro a anis ou hortelã, e onde daí em diante o mais ínfi-mo movimento de um dedo em direção à corda do sino bastava paraque se materializasse uma garrafa de clarete sobre uma bandeja deprata, o cenário era rústico. Mas Moody não era homem para ficarmal-humorado com a infração das normas: a simplicidade rude dolocal fazia apenas com que se ensimesmasse, como um homem ricoque se desvia rapidamente e assume um ar inexpressivo quando con-frontado com um pedinte na rua. A expressão suave do seu rostonão vacilou ao olhar à volta, mas no seu íntimo cada novo detalhe —o monte de cera suja na base desta vela, o círculo de pó à volta da-quele copo — fizeram com que se retraísse ainda mais e com queo seu corpo ficasse ainda mais rígido perante a cena.

Este retraimento, ainda que inconsciente, devia-se não tanto aospreconceitos comuns sobre a abastança — na realidade, Moody eraapenas moderadamente rico e oferecia com frequência moedas a po-bres, ainda que (há que reconhecer) nunca sem uma pequena sensa-ção de satisfação pela sua generosidade — e mais ao desequilíbriopessoal, ao qual o homem se esforçava naquele momento e de formainvisível por dominar. Afinal, aquela era uma cidade mineira, recém--construída entre a selva e o mar, no extremo mais meridional domundo civilizado, e ele não ia à espera de encontrar lá grandes luxos.

A verdade é que, não havia ainda seis horas, a bordo da barcaque o havia transportado de Port Chalmers até à parte selvagem da

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Costa, Moody testemunhara um acontecimento tão extraordinárioe perturbador que o levara a questionar todas as outras realidades.A cena ainda o acompanhava, como se uma porta se tivesse abertonum canto da sua mente, deixando entrever uma faixa de luz acin-zentada, e ele já não pudesse desejar regressar à escuridão. Era-lhenecessário um grande esforço para impedir que aquela porta se abris-se mais. Naquele estado de fragilidade, qualquer contratempo ou si-tuação pouco ortodoxa era uma afronta pessoal. Moody sentia comose todo o cenário deprimente que tinha perante si fosse um eco glo-bal dos tormentos por que passara recentemente e rejeitou-o paraimpedir a sua mente de seguir essa ligação e de regressar ao passado.O desdém era útil. Dava-lhe um firme sentido da proporção, uma le-gitimidade a que podia apelar para se sentir seguro.

Classificou a sala como infeliz, pobre e monótona, e com a suamente interior assim fortificada contra o mobiliário, voltou-se paraos doze residentes. Um panteão invertido, pensou ele, e sentiu-se no-vamente um pouco mais firme por ter dado largas à petulância.

Os homens tinham rostos bronzeados e curtidos como todos osdesbravadores, lábios com gretas brancas e uma postura que expres-sava privações e perdas. Dois deles eram chineses, vestidos de formaidêntica, com sapatos de pano e túnicas de algodão cinzento. Atrásdeles estava um maori, de rosto tatuado com espirais azul-esverdea-das. Quanto aos outros, Moody não conseguiu descortinar a sua ori-gem. Não sabia ainda que a prospeção podia envelhecer um indiví-duo numa questão de meses. Lançando um olhar à sua volta, achouque era o homem mais jovem ali presente, quando na realidade vá-rios tinham a sua idade ou menos. O fulgor da juventude quase seapagara neles. Iriam ficar para sempre amargurados, inquietos, ávi-dos, cinzentos de corpo e a cuspir pó para as linhas castanhas daspalmas das mãos. Achou-os grosseiros e mesmo bizarros; pareceram--lhe homens de pouca influência. Não se perguntou por que razãoestavam todos tão calados. Apetecia-lhe um conhaque, um sítio parase sentar e fechar os olhos.

Depois de entrar, permaneceu junto da porta durante alguns ins-tantes, à espera de ser recebido, mas como ninguém fez qualquer ges-to de acolhimento ou de repúdio, deu outro passo em frente e fe-chou a porta suavemente atrás de si. Esboçou uma vénia em direção

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à janela e outra em direção à lareira, o bastante como apresentaçãopor atacado da sua pessoa, e dirigiu-se à mesa de apoio, onde come-çou a preparar uma bebida com as garrafas aí colocadas para essefim. Escolheu um charuto e cortou-o. Colocou-o entre os dentes, vi-rou-se novamente para a sala e sondou uma vez mais os rostos. Nin-guém parecia minimamente afetado pela sua presença, o que lheagradou. Sentou-se na única poltrona desocupada, acendeu o charutoe recostou-se com o suspiro de alguém que sente que os seus confor-tos diários são, por uma vez, muito merecidos.

A sua satisfação foi de pouca dura. Ainda mal esticara as pernase cruzara os tornozelos (o sal das calças secara formando pequenasvagas brancas irritantes) quando o homem imediatamente à sua direitase inclinou no cadeirão, agitou no ar a ponta do charuto e perguntou:

— Vem tratar de negócios aqui no Crown?A pergunta foi verbalizada de uma forma bastante abrupta, mas

a expressão de Moody não a registou como tal. Inclinou a cabeçaeducadamente e explicou que, efetivamente, alugara um quarto noandar de cima e que chegara nessa mesma noite à cidade.

— Quer dizer que acabou de desembarcar?Moody inclinou novamente a cabeça e afirmou que era precisa-

mente isso que queria dizer. Para que o outro não o achasse lacónico,acrescentou que viera de Port Chalmers com a intenção de tentara sua sorte na prospeção de ouro.

— Isso é bom — disse o homem. — Isso é bom. Encontraramnovos filões e a praia está cheia dele. Areias negras, é esse o grito quevai ouvir. Areias negras para as bandas de Charleston. Fica a nortedaqui, evidentemente, Charleston. Embora ainda se faça dinheiro nodesfiladeiro. Tem algum companheiro ou veio sozinho?

— Vim só eu — respondeu Moody.— Sem sociedades!— Bem — disse Moody, novamente surpreendido com a manei-

ra de falar do outro. — Tenciono fazer a minha fortuna pessoal, sóisso.

— Sem sociedades — repetiu o outro. — E nada de negócios.Não tem negócios a tratar aqui no Crown?

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Pedir a mesma informação duas vezes era muito impertinente,mas o homem parecia cordial, até mesmo distraído, e batia com osdedos na lapela do colete. Talvez não tivesse sido suficientementeclaro, pensou Moody, que acrescentou:

— A única coisa que tenho a fazer neste hotel é descansar. Nospróximos dias tenciono fazer umas indagações acerca da prospeção,que rios são produtivos, que vales estão secos, e familiarizar-me coma vida de pesquisador. Tenciono ficar uma semana aqui no Crown.Depois disso, irei para o interior.

— Então já pesquisou ouro antes.— Não.— Nunca lhe viu a cor?— Só nos joalheiros, num relógio, numa fivela, nunca puro.— Mas sonhou com ele, puro! Sonhou com ele, viu-se ajoelhado

na água, a separar o metal do cascalho.— Talvez... Bem, não propriamente — respondeu Moody. O es-

tilo expansivo do discurso daquele homem era um pouco estranho.Apesar do seu aparente desprendimento, falava de forma intensae com uma energia que era quase importuna. Moody observou os ou-tros, na esperança de trocar um olhar complacente com um deles,mas não conseguiu cruzar o olhar com ninguém. Tossiu e acrescen-tou: — Julgo que sonhei com o que vem a seguir, ou seja, aquiloa que o ouro pode levar, aquilo em que se pode transformar.

O homem pareceu satisfeito com aquela resposta.— Alquimia ao contrário, é como gosto de chamar a toda esta

história da prospeção — prosseguiu. — Alquimia ao contrário. Nãosei se está a ver, a transformação, não em ouro, mas do ouro.

— É uma boa imagem. — E só muito mais tarde lhe ocorreuque aquela ideia correspondia muito aproximadamente à sua própriaimagem de um panteão ao contrário.

— E as suas indagações? — perguntou o seu interlocutor, ace-nando vigorosamente com a cabeça. — As suas indagações... Presu-mo que vá perguntar por pás, rodos, mapas e essas coisas.

— Sim, precisamente. Quero fazer as coisas como deve ser.O homem deixou-se cair de novo na poltrona, obviamente di-

vertido.

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— Uma semana no Hotel Crown só para fazer perguntas? —Soltou uma risadinha. — E a seguir, passa duas semanas na lama,para reaver o dinheiro!

Moody voltou a cruzar os tornozelos. Não estava com disposiçãopara retribuir a energia do outro homem, mas a sua educação severanão lhe permitia ser mal-educado. Podia simplesmente ter-se descul-pado pela sua circunspeção e pretextado um qualquer mal-estar geral— o homem parecia bastante compreensivo, com os dedos a tambo-rilar e aquele riso gorgolejante —, mas Moody não tinha o hábito defalar abertamente com desconhecidos e menos ainda de confessar osseus achaques aos outros. Recompôs-se interiormente e disse, numtom de voz mais animado:

— E o senhor? Está bem estabelecido aqui, suponho?— Ah, sim — respondeu o outro. — A Companhia de Navega-

ção Balfour, já nos deve ter visto, mesmo a seguir ao matadouro, umlocal de primeira. Em Wharf Street, sabe? Balfour sou eu. Thomas éo meu nome de batismo. Vai ter de arranjar um quando for paraa prospeção. Ninguém se trata por «senhor» no desfiladeiro.

— Nesse caso, terei de me habituar a usar mais o meu. Chamo--me Walter. Walter Moody.

— Sim, mas olhe que lhe vão chamar tudo menos Walter — dis-se Balfour, batendo no joelho. — «Walt Escocês», talvez. «Walt dasDuas Mãos», talvez. «Wally Pepita». Ha!

— Esse nome, terei de o conquistar.Balfour riu-se.— Não será difícil — disse ele. — Vi algumas do tamanho de

uma mama de senhora. Do tamanho de... Mas acredite, comparativa-mente é muito mais fácil deitar-lhes a mão.

Thomas Balfour tinha cerca de cinquenta anos e era compactoe robusto. Tinha o cabelo bastante grisalho, penteado para trás a par-tir da testa e até às orelhas. Usava uma barba em bico, que tinhao hábito de cofiar quando estava divertido. Fazia-o naquele momen-to, satisfeito com o seu gracejo. A prosperidade assentava-lhe bem,pensou Moody, reconhecendo nele aquela descontração que surgequando um otimismo persistente é ratificado por um êxito que se jul-ga merecido. Estava em mangas de camisa. O plastrão que usava,

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embora fosse de seda e delicadamente lavrado, estava sujo de molhoe folgado à volta do pescoço. Moody classificou-o como um libertá-rio, inofensivo, de espírito rebelde e galhofeiro nas suas efusões.

— Estou em dívida para consigo, cavalheiro — disse ele. — Esseé o primeiro de muitos costumes que ignoro por completo, estoucerto. Teria sem dúvida cometido o erro de usar um apelido no desfi-ladeiro.

Era verdade que a construção mental que fizera da prospeção deouro na Nova Zelândia era extremamente imprecisa, baseada princi-palmente em representações dos campos auríferos da Califórnia —cabanas de madeira, vales planos, carroças no meio do poeira —e numa ideia vaga (vinda não sabia de onde) de que a colónia era dealguma forma a sombra das Ilhas Britânicas, o reverso informe e selva-gem da sede e do coração do Império. Cerca de duas semanas antes,depois de contornar os picos da península de Otago, ficara surpreen-dido ao ver mansões na colina, cais, ruas e lotes de terreno ajardina-dos, e agora sentia-se surpreendido ao observar um cavalheiro bemvestido a passar os fósforos a um chinês e a inclinar-se depois porcima dele para recuperar o copo.

Moody era um ex-aluno de Cambridge, nascido em Edimburgocom uma fortuna modesta e numa casa com três criados. Os círculossociais em que se movera nos anos mais recentes, no Trinity e, maistarde, no Inner Temple, não tinham de forma alguma o aspeto rígidoda nobreza, onde a história e o contexto diferiam de um homem parao outro apenas em grau. Não obstante, a sua educação tornara-o fe-chado, pois ensinara-lhe que a maneira apropriada de compreenderqualquer sistema social era vê-lo de cima. Com os seus colegas deuniversidade (envoltos em capas e embriagados com vinho do Reno),defendia a fusão das classes com o desespero e a vitalidade da juven-tude, mas ficava sempre surpreendido quando se deparava com elana prática. Não sabia ainda que uma mina de ouro era um localimundo e perigoso, onde todos os indivíduos eram estranhos para osoutros e estranhos à terra, onde o rodo de um merceeiro podia ficarrepleto de ouro e o de um advogado, vazio, onde não existiam divi-sões. Moody era cerca de vinte anos mais novo do que Balfour, pelo

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que falava com deferência, mas tinha consciência de que aquelehomem era de estatuto inferior ao seu e dava-se igualmente conta daestranha miscelânea de pessoas à sua volta, cujos bens e origens nãotinha maneira de avaliar. Por conseguinte, a sua cortesia tinha umtoque ligeiramente desajeitado, como alguém que não costuma falarcom crianças, a quem falta a noção do que é apropriado, e assim sedistancia e fica rígido, por muito que deseje ser simpático.

Thomas Balfour sentiu essa condescendência e ficou encantado.Os homens que falavam, como ele dizia, «demasiado bem» eram-lheantipáticos e divertiam-no, e ele adorava provocá-los, não até á fúria,o que o aborrecia, mas até à vulgaridade. Encarava a rigidez de Moo-dy como um colarinho elegante, feito ao estilo aristocrático, insupor-tavelmente apertado para o homem que o usava — era assim que viatodas as convenções da cortesia social, como ornamentos inúteis —,e divertia-o o facto de as maneiras requintadas do homem lhe causa-rem tanto mal-estar.

Balfour era efetivamente um homem de estatuto humilde, comoMoody adivinhara. O pai trabalhara numa selaria em Kent, e ele po-deria ter seguido esse ofício, não fosse um incêndio ter vitimadoo pai e destruído o estábulo, tinha ele onze anos. Mas fora um rapazagitado, propenso a rixas e com uma impaciência que contradiziaa expressão sonhadora e meio aluada que lhe era habitual, e poucodotado para o trabalho árduo. De qualquer modo, um cavalo nãoconseguia acompanhar um vagão ferroviário, como ele gostava dedizer, e o ofício não resistira ao ímpeto dos novos tempos. Balfourgostava muito de sentir que estava na vanguarda de uma era. Quandofalava do passado, era como se cada década anterior ao ano em queestava fosse uma vela deformada que tivesse ardido e ficado gasta.Não sentia nostalgia pelas coisas da sua vida de criança — o líquidoescuro das cubas de curtimento, a armação das peles, a bolsa de pelede vitelo onde o pai guardava as agulhas e o furador — e raramenteas recordava, exceto para fazer uma comparação com as novas indús-trias. Minério: era aí que estava o dinheiro. Minas de carvão, siderur-gia e ouro.

Começou no vidro. Depois de vários anos como aprendiz, fun-dou uma vidraria própria, uma fábrica modesta que vendeu mais tar-de a troco da parcela de uma mina de carvão, que a seu tempo se

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expandiu e transformou numa rede de minas subterrâneas, vendidasa investidores de Londres por uma soma avultada. Não se casou. Nodia em que fez trinta anos, comprou um bilhete de ida num veleirocom destino a Veracruz, a primeira etapa de uma viagem de novemeses que o levaria até aos campos auríferos da Califórnia. O brilhoda vida de pesquisador de ouro depressa viria a esmorecer para ele,mas não o ímpeto e a esperança incessantes relativamente aos cam-pos auríferos. Com o seu primeiro ouro comprou ações num banco,construiu três hotéis em quatro anos e prosperou. Quando a Califórniaficou seca, vendeu tudo e navegou até Vitória — mais uma descoberta,mais um território desconhecido — e depois, seguindo novamente oapelo que atravessava o oceano como uma flauta encantada trazida poruma brisa ténue, até à Nova Zelândia.

Durante os dezasseis anos que passara na rudeza dos campos,Thomas Balfour conhecera muitos indivíduos como Walter Moody,e o seu temperamento tinha o mérito de ter mantido ao longo dessesanos uma ternura e um apreço profundos pelo estado virginal de in-divíduos ainda não testados pela experiência, ainda não postos à pro-va. Balfour era sensível à ambição e, enquanto homem que vencerapelo seu próprio esforço, era pouco convencional na sua generosida-de de espírito. A iniciativa agradava-lhe, e também o desejo. Sentia-seinclinado a gostar de Moody pela simples razão de que o outro deci-dira levar a cabo uma coisa acerca da qual sabia evidentemente muitopouco e da qual esperava um grande retorno.

Contudo, naquela noite em particular, Balfour não estava desocu-pado. A entrada de Moody fora uma surpresa para os doze homensali reunidos, que haviam tomado consideráveis precauções para ga-rantir que não seriam perturbados. A sala do Hotel Crown estava fe-chada nessa noite para um evento privado, e tinham mandado umrapaz postar-se debaixo do toldo a vigiar a rua, não fosse alguém tera ideia de lá ir beber um copo, o que era improvável, pois o salão defumo do Hotel Crown não era geralmente conhecido pela sua fre-quência nem pelo seu charme e estava, efetivamente, muitas vezesvazio, mesmo nas noites de fim de semana, quando os pesquisadoresregressavam em massa das colinas para gastar o ouro em bebidas nastabernas da cidade. O rapaz de serviço trabalhava para o Mannering

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e tinha em sua posse um espesso maço de bilhetes para distribuir degraça. O espetáculo, Sensações do Oriente!, era uma peça nova, um êxitogarantido, e havia caixas de champanhe prontas no átrio do teatro,cortesia do próprio Mannering, para celebrar a noite da estreia. Comestas diversões asseguradas, e convencido de que nenhum barco searriscaria a acostar numa noite tão escura e inclemente (as chegadasanunciadas nas páginas de navegação do West Coast Times tinham já,àquela hora, ocorrido todas), o grupo reunido não se lembrara deprever a possibilidade de um desconhecido acidental já se ter hospe-dado no hotel cerca de meia hora antes do cair da noite e, por conse-guinte, de se encontrar já dentro do edifício quando o rapaz ocupouo seu posto debaixo do alpendre gotejante que dava para a rua.

Walter Moody, apesar da sua atitude tranquilizadora e do des-prendimento cortês que aparentava, não deixava de ser um intruso.Os homens não faziam ideia de como persuadi-lo a ir-se embora semmostrarem que ele invadira o seu espaço, revelando dessa maneiraa natureza subversiva da reunião. Thomas Balfour assumira a tarefade o sondar devido apenas ao acaso de ser aquele que se encontravamais próximo, perto da lareira — uma feliz coincidência, pois Bal-four, apesar dos seus modos fanfarrões e exaltados, era tenaz e estavahabituado a virar uma situação em seu proveito.

— Sim, bem — dizia ele agora —, os costumes aprendem-se de-pressa, e toda a gente tem de começar no ponto em que o senhorestá, como aprendiz, quero dizer, sem saber nada. O que lançou a se-mente, se não se importa que pergunte? É um interesse pessoal, gos-to de saber o que traz um homem aqui, aos confins do mundo, o queo entusiasma.

Moody puxou uma fumaça do seu charuto antes de responder:— O motivo foi complicado. Uma desavença familiar que me

custa relatar e que me levou a fazer esta viagem sozinho.— Ah, mas nesse ponto não está sozinho — disse Balfour com

animação. — Todos os homens que aqui estão fugiram de qualquercoisa, pode ter a certeza disso!

— Não me diga! — exclamou Moody, achando aquilo bastantealarmante.

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— Toda a gente veio de outro sítio qualquer — prosseguiu Bal-four. — Sim, a verdade é essa. Somos todos de outros locais. E,quanto à família, encontrará muitos irmãos e pais no desfiladeiro.

— É muito gentil da sua parte tentar consolar-me.Balfour sorria agora abertamente.— Essa é boa — disse ele, agitando o charuto com tal energia

que espalhou a cinza por cima do colete. — Consolo! Se considera istoconsolo, então é um verdadeiro puritano, meu rapaz.

Moody não conseguiu produzir uma resposta apropriada parao comentário, de modo que anuiu novamente e, em seguida, comoque a repudiar qualquer implicação de puritanismo, deu um grandetrago na sua bebida. Lá fora, uma rajada de vento interrompeu omartelar constante da chuva, atirando com uma bátega contra as ja-nelas viradas a ocidente. Balfour examinou a ponta do charuto, aindaa rir. Moody colocou o seu entre os lábios, virou a cara e puxou umaligeira fumaça.

Foi nessa altura que um dos onze homens silenciosos se ergueu,dobrando o jornal em quatro, e se dirigiu à secretária para trocaro jornal por outro. Envergava um casaco preto sem gola e um colari-nho branco — roupa de padre, apercebeu-se Moody com algumasurpresa. Aquilo era estranho. Porque teria um sacerdote escolhidoler as notícias no salão de fumo de um hotel vulgar, numa noite desábado? E porque estaria tão calado ao fazê-lo? Moody observou-oa remexer numa pilha de jornais, rejeitando várias edições do Coloniste optando por um Grey River Argus, que retirou da pilha com ummurmúrio de prazer, afastou do corpo e inclinou com satisfação paraa luz. No fim de contas, pensou Moody para consigo, talvez não fos-se assim tão estranho. A noite estava muito húmida, e os bares e ta-bernas da cidade deviam estar apinhados. Talvez, por alguma razão,o reverendo tivesse sido obrigado a abrigar-se temporariamente dachuva.

— Então, teve uma desavença — dizia agora Balfour, como seMoody lhe tivesse prometido uma história entusiasmante e se tivessedepois esquecido de começar a contá-la.

— Estive envolvido numa desavença — corrigiu Moody. — Ouseja, o conflito não foi provocado por mim.

ELEANOR CATTON28

— Foi com o seu pai, imagino.— É penoso de relatar, cavalheiro. — Moody lançou um olhar

ao outro homem, tentando silenciá-lo com uma expressão grave, masBalfour respondeu inclinando-se ainda mais para a frente, convenci-do, pelo ar grave de Moody, que a história era ainda mais merecedorado seu interesse.

— Oh, vá lá! — exclamou. — Alivie esse peso.— Não é peso que se alivie, senhor Balfour.— Nunca ouvi tal coisa, meu amigo.— Perdoe-me se mudo de assunto...— Mas agora atiçou-me a curiosidade! Despertou-me o interesse!

— disse Balfour a sorrir.— Permita-me recusar — disse Moody, tentando falar discreta-

mente, para a conversa não ser ouvida pelo resto da sala. — Permita--me que mantenha sigilo. O meu motivo é simplesmente não querercausar-lhe má impressão.

— Mas foi o senhor o injustiçado, como disse. A desavença nãofoi provocada por si.

— Correto.— Pois bem! Nada o obriga a manter o sigilo em relação a isso!

Não é verdade o que digo? É escusado manter o sigilo acerca doserros dos outros! Não há que nos envergonharmos das... más açõesalheias! — exclamou Balfour em voz muito alta.

— O senhor refere-se à vergonha pessoal — disse Moody emvoz baixa. — Eu refiro-me à vergonha que se abate sobre uma famí-lia. Não quero manchar o nome do meu pai, que é também o meunome.

— O seu pai! Mas que lhe disse eu? Encontrará muitos pais nodesfiladeiro! Isto não é uma frase feita, é um costume, uma necessi-dade, é assim que as coisas são! Deixe-me dizer-lhe o que é uma ver-gonha na prospeção. Anunciar uma jazida falsa, isso é que é uma ver-gonha. Pôr em causa a demarcação de uma concessão, isso é queé uma vergonha! Roubar uma pessoa, enganar uma pessoa, mataruma pessoa, isso é que é uma vergonha. Mas o nome da família! Digaisso aos pregoeiros para anunciarem na estrada de Hokitika, e elesvão achar que é uma bela notícia. O que é a vergonha da família,quando não se tem família?