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CANTO E REDENÇÃO N’”OS LUSÍADAS” E NA “MENSAGEM”
Partamos do princípio de que “Os Lusíadas” e
“Mensagem” são as duas opera magna da “portugalidade”, os
dois pilares maiores da construção da identidade nacional,
e que esse genérico traço comum lhes reserva um lugar dual
em que, reflectindo-nos, mutuamente se emulam, irmãs,
apesar disso, unidas tanto pela força do canto como pelo
profundo (des)encanto que deixam transparecer por uma
pátria cuja história é, em ambas, motivo de ressentimento
pelo presente de cada uma e desejo de redenção futura.
Camões compôs o seu poema nos dois primeiros decénios
da segunda metade do século XVI, que corresponderão
sensivelmente aos anos da sua estadia no Oriente, longa e
amarga experiência humana, que progressivamente o levará ao
encontro do “desconcerto do mundo” e motivará uma certa
ambiguidade evolutiva do projecto epopeico. Com efeito, a
partir do final do Canto V (estâncias 92-100), onde
reflecte sobre o topos clássico das armas e das letras,
1
concluindo pela supremacia dos valores culturais sobre os
guerreiros, muito a contrario do que os portugueses afinal
exemplificavam, o poeta imiscui-se (o que é “suspeito”,
para uma epopeia) com certa regularidade no discurso(1),
sempre para proferir juízos de valor cada vez mais críticos
e contrastantes entre o ideal de heroísmo e os seus
contemporâneos, entre a excelência do seu canto e a surdez
dos potenciais receptores.
O chamado “plano do poeta”, em que deparamos
com o sujeito/poeta a falar de si próprio e das concepções
cívicas, axiológicas e estéticas que o norteiam, por vezes
eivado de certa severidade judicativa, outras vezes
entregue à lamentação mais fatalista, o plano do poeta —
dizia – surge praticamente só na segunda metade do poema,
se excluirmos a Proposição, a Invocação e a Dedicatória,
que antecedem a Narração, iniciada na estância 19 do Canto
I. Isto significa que as experiências deceptivas de Camões
o terão conduzido gradualmente a uma “crise de epopeia”,
que vão corroer o intuito épico de glorificação tout
court. O arrazoado crítico do Velho do Restelo constitui
já, grandemente, a intromissão dissonante de uma persona
anti-épica, que não mais abandona o poema, daí em diante na
voz do próprio sujeito/poeta, num crescendo que culmina na
2
famosa estância 145 do Canto X, muito próxima do final da
obra:
Nõ mais, Musa, nô mais, que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a Pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Dua austera, apagada e vil tristeza. (est. 145, C. X)
Acentue-se que não é do canto o desencanto, mas da
gente nele cantada, que afinal não estará à altura de tal
sublimidade. O que contradiz o postulado da Invocação
inicial, em que o poeta suplica às Tágides:
Dai-me igual canto aos feitos da famosa
Gente vossa, que a Marte tanto ajuda,
Que se espalhe e se cante no Universo,
Se tão sublime preço cabe em verso. (Est. 5, C. I)
Digamos que se altera – que quase se inverte – a
posição do poeta perante o valor do objecto do canto à
medida que, por contraste, uma progressiva auto-consciência
do valor do canto se acentua. Num resumo grosseiro, dir-se-
ia que quanto mais o poeta conhece os homens, mais valor
confere à poesia. Que a poiesis, enfim, não ilumina a polis 3
tanto quanto se pretenderia. Camões acaba assim,
“condenado” a um dissídio solitário, em simultâneo
despeitado e orgulhoso, que é já, de algum modo, a condição
do artista moderno. E dá-se a si próprio como paradigma do
herói completo, à falta de o não encontrar entre os mais:
Nem me falta na vida honesto estudo,
Com longa experiência misturado,
Nem engenho, que aqui vereis presente,
Cousas que juntas se acham claramente.(Est. 154, C. X)
Vitalina Leal de Matos vê nesta progressiva
intromissão do sujeito-poeta na epopeia uma implicação
pessoal do autor real que tende a afastar-se do cânone
genológico, sofrendo a contaminação da lírica, modo, aliás,
mais consentâneo com a atmosfera estética e a mundividência
maneiristas que Camões viveu: “[…] o autor está cada vez
mais implicado, envolvido e confundido com o poema: dir-se-
ia que uma inspiração lírica domina o termo da epopeia.”(2)
Camões fora adquirindo consciência de que o mundo burguês e
mercantil do seu tempo, com todos os avatares da decadência
ética e cultural que o poeta não se exime de apontar aos
contemporâneos, se desviaria da épica – narrativa exemplar
que tendia a divinizar a gesta humana, individual e/ou
colectiva –, já sem lugar num tempo em que o homem começava
4
burguesmente a viver bem com a ideia de que era um “ser
caído” sem remissão (a corrosiva paródia quixotesca não
tardaria).
A “derrota” de Camões e a sua exasperada lamentação
maneirista, se, por um lado, se encontra um pouco por toda
a obra lírica, não deixa, por outro lado, de estar presente
também na epopeia, em lugares periféricos dela, é certo, e
apesar do cânone genológico o não legitimar. E, releve-se,
quase sempre em contradição com passos do poema de
exaltação épica dos heróis e dos seus feitos. Não admira
que o grande vate, logo após a inglória morte, rapidamente
encontrasse todas as condições de “salvação” e fosse
elevado à categoria de autêntico herói, desses raros que,
perante os tributos materiais e efémeros do mundo, poderiam
dizer Milhor é merecê-los sem os ter, / Que possuí-los sem
os merecer (Est. 93, C. IX).
Toda a glória póstuma do autor de “Os Lusíadas” chega
imparável a Pessoa, o que, convenhamos, não seria sombra
pequena para quem desejava ser “toda uma literatura”, como
se lhe fosse possível começar ab initio uma literatura
secular, querendo ser ao mesmo tempo o seu nec plus ultra,
impondo influências e filiações, reformulando quer a
paisagem literária precedente, quer a seguinte – o que, até
certo ponto, foi um escopo alcançado. Não foi Pessoa que,
5
em boa parte, nos “iluminou” Cesário Verde ou Pessanha, do
mesmo modo que obscureceu, por exemplo, Junqueiro? Não
assim com Camões, no entanto.
É hoje consensualmente aceite que o Super-Camões que
messianicamente Pessoa fez anunciar em 1912, nas páginas da
revista “Águia”, só poderia ser ele próprio. É também
conhecida a indiferença, se não mesmo alguma hostilidade,
que o poeta dos heterónimos votava ao autor de “Os
Lusíadas”, que estava muito longe de valorizar maximamente.
Mas não é despiciendo verificar que é “contra” Camões que
Pessoa desenha a sua própria “entrada em cena”. Diz Pessoa
num texto datado provavelmente de 1914 (o ano do “dia
triunfal” da sua vida): Estamos no raiar da Época Áurea da
literatura portuguesa. Portugal encontrou-se finalmente a
si próprio, começa finalmente a sacudir o peso de chumbo da
tradição antinacionalista representada pelo italianizado
Camões. E conclui adiante: Afastamo-nos de Camões, de todos
os absurdos enfadonhos da tradição portuguesa, e avançamos
para o futuro.(3) Noutro texto, afirma lapidarmente que
Camões é italiano.(4) José Augusto Seabra, deslocando a
emulação para o plano da imanência textual, sugere que o
anunciado “super-Camões” é, de algum modo, realizado na
“Mensagem” através de uma “poética pangenérica,
processando-se o projecto do livro pelas vias da poesia
6
épica, lírica e dramática, que arquitextualmente se
entrelaçam”(5)
Harold Bloom diz “que os poetas realmente fortes só se
podem ler a si próprios”(6), e esse será porventura o caso
pessoano. Mas, ainda assim, “Os Lusíadas” são uma paisagem
incontornável, existem “demasiado” para que a simulação de
ignorância consiga impor o seu eclipse. E todos os
espectros que falam no “drama estático” da “Mensagem”,
lembram o grande “ausente”, Camões.
“Mensagem” é então uma espécie de espelho que tenta
cegar a paisagem visível para, cerebralmente, anunciar uma
“paisagem invisível”, mas não sobrevive sem o que tenta
ofuscar. O desejo nostálgico de épica contido no enigmático
apelo que fecha a “Mensagem” – É a Hora! – reage contra a
contaminação lírica de que “Os Lusíadas” foram vítimas. Mas
a nostalgia é quase sempre um efeito da imaginação. A
austera, apagada e vil tristeza da pátria – no diagnóstico
camoniano – equivale ao fulgor baço da terra / Que é
Portugal e entristecer da obra pessoana.
Ambos são “poetas da ausência”(7), ambos procuram uma
saída no labirinto do canto. Relativamente à história de
Portugal, a epopeia camoniana situa-se no início do longo
processo de dissolução imperial, a obra de Pessoa, na fase
terminal desse processo. Camões, após o longo episódio (que
7
abrange um quinto da obra) da utópica “Ínsula Divina”,
lugar da redenção pelo amor contra os desvios viciosos dos
homens, acaba o seu poema com um novo exórdio a D.
Sebastião (est. 146-156, C. X), que, contraditoriamente, se
segue à famosa estância 145 desse mesmo último Canto.
Parece, assim, apaziguar a desilusão da pátria, para
acreditar de novo nos vassalos excelentes (v. 8, est. 146,
C. X) de que o rei dispunha, e aconselha o jovem monarca,
num apelo de cruzada também redentora, de feição contra-
reformista, a investir sobre o norte de África. Não
tardava, contudo, a batalha de Alcácer-Quibir (1578),
embora Camões ainda não pudesse sabê-lo quando editou o
poema. Aliás, logo em 1571, com o poema concluído, mas
ainda não publicado, a vitória cristã na Batalha de Lepanto
(1571) de algum modo “desactualizou” “Os Lusíadas”, no seu
apelo ao ímpeto cristão contra o perigo do mouro inimigo,
travado em definitivo naquela batalha.
O objectivo fundamental de Vénus, ao recompensar com a
“Ilha dos Amores” os nautas excelentes, seria “a anunciação
do início de um novo ciclo na história do homem”(8), que a
própria deusa enuncia muito assertivamente, quando pede
ajuda ao filho Cupido:
Quero que haja no reino neptuniano,
8
Onde eu nasci, progénie forte e bela;E tome exemplo o mundo vil, malino,Que contra sua potência se rebela,Por que entendam que muro AdamantinoNem triste hipocrisia val contra ela;Mal haverá na terra quem se guardeSe teu fogo imortal nas águas arde. (Est. 42, C. IX)
Mas a “progénie forte e bela”, que nasceria da
consagrada copulatio entre nautas e ninfas, e restituiria o
amor ao homem, não frutifica. Aguiar e Silva assinala, a
este propósito, que “a imaginação e o pensamento utópicos
de Camões, porém, encontram-se em conflito com uma
antropologia pessimista e com uma mundividência trágica que
estão expressos em muitos textos da sua lírica. A distopia
ameaça assim inelutavelmente a utopia, corroendo a sua
lógica e a sua coerência”.(9)
Pessoa, herdeiro da espera, três séculos e meio
depois, promete a pax in excelsis num novo império, agora
simbólico e não terreno, ecuménico e não estreitamente
nacionalista, finalmente cultural e não bélico. Um império
por vir, envolto em nevoeiro, que é um operador de
indefinição que atravessa toda a terceira e última parte do
livro. A Pessoa assenta na perfeição a asserção de Eduardo
Lourenço segundo a qual “querer ser português é pouco para
portugueses”(10). Por isso, o Quinto Império é a promessa
(im)possível de redenção de um destino esgotado pelo menos
9
desde Alcácer-Quibir, pela futura universalidade da cultura
portuguesa, de que Pessoa, ele próprio, seria o grande
fautor, e a sua obra, “as terras sem ter lugar” desse
império.
Camões dirige-se a um D. Sebastião de carne e osso,
Pessoa, a um D. Sebastião metamorfoseado em Sebastianismo.
Em Pessoa, segundo Jacinto do Prado Coelho, “o objecto da
esperança transferiu-se para o sonho, a utopia.”(11) Que
outra “saída”, que mais “oferecer” para “cumprir Portugal”,
uma vez cumprido o mar e o império desfeito, com o país
condenado a ser “ninguém”, como Garrett o nomeou?
Em certo sentido, e paradoxalmente, podemos considerar
a aproximação de Pessoa à corrente de opinião anti-
expansão, que nasce em Sá de Miranda e configura, mais
tarde, uma das pulsões dominantes da Geração de 70, cujo
ressentimento cultural poderia bem subscrever, por exemplo,
a primeira estrofe do poema “Prece” da “Mensagem”:
Senhor, a noite veio e a alma é vil.Tanta foi a tormenta e a vontade!Restam-nos hoje, no silêncio hostil,O mar universal e a saudade.
Com o ideário da Geração de 70 também comunga Pessoa o
mesmo “desprezo” pela dinastia brigantina (que é rasurada
10
da “Mensagem”), longo interregno de decadência e espera, de
onde apenas emerge o poderoso vulto, et pour cause, do
Padre António Vieira. Note-se ainda que a Primeira
República, cuja “ideia colonial” se vinha acicatando desde
o “Ultimatum” de 1890, defendia não só a manutenção das
colónias como sobretudo o relançar no país a exaltação de
uma pátria imperial. Ora, para Pessoa, as colónias não
detinham a menor importância, nem sequer simbólica, e não
era com elas que ele contava para o Quinto Império, que era
profundamente outra coisa.
Em Camões, a redenção utópica e alegórica da “Ínsula”
é seguida por um apelo concreto que redima a “austera,
apagada e vil tristeza”: a desejada empresa contra
Marrocos, que o poeta, eivado do seu estatuto de exemplo
cívico e ético, aconselha a D. Sebastião. O “É a hora!”
camoniano tem um fito à vista, é uma proposta clara, que
Pessoa já não podia ter, pelo desengano da história. Assim,
a “Mensagem” só pode ser uma sombra elegíaca e fantasmática
de “Os Lusíadas”, criada por endogénese porventura mal
assumida. O seu “passo em frente” só poderia ser o
horizonte inalcançável da distância, a redenção que
propusesse não poderia ser senão a vaga utopia de uma hora
incerta.
11
NOTAS
1. As intempestivas cívicas, axiológicas e estéticas do sujeito/poeta, estão repartidas assim: est. 92-100 do C. V; est. 95-99 do C. VI; est. 1-14 e 78-87 do C. VII; est. 89-95 do C. IX; est.8-9 e 145 do C. X. Alguns destes passos correspondem a invocações a Calíope, a quem recorre em fases de maior desânimo. Mas o passo porventura mais ferozmente acutilante encontra-se logo no início da “Ilha dos Amores” (Est. 27-29, C. IX), em que o narrador épico, por interposta focalização em Vénus, nos dá uma amaríssima visão do desconcerto.
2. Maria Vitalina Leal de Matos, “Que farei eu com este poema? Como evolui o projecto da epopeia ao longo d’”Os Lusíadas”, in Épica. Épicas. Épica Camoniana, Lisboa, Cosmos, 1997, p. 69.
3. Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, Lisboa, Ática, s/d, pp.121-122.
4. Fernando Pessoa, Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias, Lisboa, Ática, 1973, p.335.
5. José Augusto Seabra, O Coração do Texto / Le Cœur du Texte, Lisboa, Cosmos, 1996, p. 76.
6. Harold Bloom, A Angústia da Influência, Lisboa, Cotovia, 1991, p. 33.
7. A expressão é de Jacinto do Prado Coelho, que acrescenta: “Poetas do que foi ou do que poderá vir a ser” (cf. id, Camões e Pessoa – Poetas da Utopia, Lisboa, Europa-América, 1983, p. 106.
8. Vítor Manuel de Aguiar e Silva, Camões: Labirintos e Fascínios, Lisboa, Cotovia, 1994, p. 151.
9. Id., ibid., p.153.
10. Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade, Lisboa, D.Quixote, 1982, p. 118.
11. Jacinto do Prado Coelho, ibid, p. 106.
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BIBLIOGRAFIA
Bloom, Harold, A Angústia da Influência, Lisboa, Cotovia, 1991.
Camões, Luís de, Os Lusíadas, edição organizada e prefaciada por António José Saraiva, Porto, Figueirinhas, 1978.
Coelho, Jacinto do Prado, Camões e Pessoa – Poetas da Utopia, Lisboa, Europa-América, 1983.
Lourenço, Eduardo, O Labirinto da Saudade, 2ª ed., Lisboa, D. Quixote, 1982.
Matos, Maria Vitalina Leal de, “Que farei eu com este poema? Como evolui o projecto da epopeia ao longo d’”Os Lusíadas”, in Épica. Épicas. Épica Camoniana, Lisboa, Cosmos, 1997.
Pessoa, Fernando, Mensagem, 12ª edição, Lisboa, Ática, 1978.
Pessoa, Fernando, Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias, 2ª ed., Lisboa, Ática, 1973.
Pessoa, Fernando, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, Lisboa, Ática, s/d.
Pessoa, Fernando, Sobre Portugal – Introdução ao Problema Nacional (Intr. e org. de Joel Serrão), Lisboa, Ática, 1997.
Seabra, José Augusto, O Coração do Texto / Le cœur du Texte, Lisboa, Cosmos, 1996.
Serrão, Joel, “Introdução” a Fernando Pessoa, Sobre Portugal – Introdução ao Problema Nacional, Lisboa, Ática, 1977, pp. 6-63.
Silva, Vítor Manuel de Aguiar e, Camões: Labirintos e Fascínios, Lisboa, Cotovia, 1994.
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